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“ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA” E “POLITIZAÇÃO DA ARTE” NA URSS: WALTER BENJAMIN E O MOVIMENTO PRODUTIVISTA (1926-1936)* * O presente texto só foi possível graças às inúmeras conversas e trocas de materiais com a grande amiga e pesquisadora Clara de Freitas Figueiredo, a quem agradeço imensamente. Em sua tese de doutoramento, Fotografia: Entre Fato e Farsa (URSS-Itália, 1928-1934), ela estabelece uma leitura do processo soviético a partir das categorias de “estetização da política” (W. Benjamin) e “revolução passiva” (A. Gramsci), determinando os nexos históricos do pensamento de Walter Benjamin com o ideário do movimento produtivista russo. O presente artigo, tributário da tese referida, procura desenvolver alguns aspectos de tais nexos históricos e conceituais. Cf. FIGUEIREDO, Clara de Freitas. Fotografia: entre fato e farsa (URSS-Itália, 1928-1934). Tese de doutorado em Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia.

“AESTHETICIZATION OF POLITICS” AND “POLITICIZATION OF ART” IN THE USSR: WALTER BENJAMIN AND THE PRODUCTIVIST MOVEMENT (1926-1936)* * O presente texto só foi possível graças às inúmeras conversas e trocas de materiais com a grande amiga e pesquisadora Clara de Freitas Figueiredo, a quem agradeço imensamente. Em sua tese de doutoramento, Fotografia: Entre Fato e Farsa (URSS-Itália, 1928-1934), ela estabelece uma leitura do processo soviético a partir das categorias de “estetização da política” (W. Benjamin) e “revolução passiva” (A. Gramsci), determinando os nexos históricos do pensamento de Walter Benjamin com o ideário do movimento produtivista russo. O presente artigo, tributário da tese referida, procura desenvolver alguns aspectos de tais nexos históricos e conceituais. Cf. FIGUEIREDO, Clara de Freitas. Fotografia: entre fato e farsa (URSS-Itália, 1928-1934). Tese de doutorado em Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia.

Resumo

O artigo objetiva analisar as relações históricas e conceituais entre Walter Benjamin e o movimento produtivista soviético, centrando-se, sobretudo, na relação entre a noção de “politização da arte”, defendida por Benjamin como dispositivo de combate ao fascismo no ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, e a noção de “factografia”, desenvolvida pelo produtivista soviético Sergei Tretiakov a partir de 1927. Sustenta-se, neste texto, que as categorias de “estetização da política” e de “politização da arte” tiveram seu primeiro desenvolvimento conceitual no pensamento de Benjamin a partir de sua viagem à URSS (1926-1927) e do seu contato com o pensamento produtivista.

Palavras-chave
Walter Benjamin; Estetização da política; Politização da arte; Revolução Russa; Produtivismo

Abstract

This article analyzes the historical and conceptual links established between Walter Benjamin and the Soviet productivist movement, focusing on the relation between the notion of “politicization of art” - defended by Benjamin as a device to combat fascism in the essay “The work of art in the age of mechanical reproduction” of 1936 -, and the notion of “factography”, developed by the Soviet productivist Sergei Tretiakov from 1927 onwards. It is argued in this text that the categories of “aestheticization of politics” and of “politicization of art” had their first conceptual development in Benjamin’s thinking from his trip to the USSR (1926-1927) and from his contact with the productivist thought.

Keywords
Walter Benjamin; Aestheticization of politics; Politicization of art; Russian Revolution; Productivism

A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte. Walter Benjamin

Estetização/politização

No final do célebre ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado originalmente em 1936, Walter Benjamin (1892-1940) estabeleceu uma distinção paradigmática entre duas modalidades possíveis de uso dos dispositivos modernos de reprodução técnica: por um lado, a “estetização da política” [Asthetisierung der Politik] que o fascismo operava e, por outro, a “politização da arte” [Politisierung der Kunst], que o comunismo deveria lhe opor. Ambas eram possibilitadas historicamente pelo desenvolvimento dos dispositivos de reprodução técnica e dos seus efeitos nas formas modernas de sociabilidade e no modo de organização da percepção humana. De acordo com Benjamin, as técnicas modernas de reprodução, além de submeterem os esquemas tradicionais de produção e circulação artísticas a uma reestruturação radical - a partir da perda do sentido histórico da noção de “autenticidade” da obra ou da superação da recepção individual das obras, por exemplo -, eram conjugadas historicamente às aspirações das massas em sua “orientação à realidade” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução Francisco Dea Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012., p. 123). Conforme o autor enfatizava em diversas partes do ensaio, o processo da “perda da aura” extrapolava o âmbito artístico e se constituía como um diagnóstico geral sobre os processos de modernização. Os rumos políticos de tais processos, contudo, encontravam-se em disputa.

A “estetização da política”, definida no final do ensaio, era a resposta do fascismo às contradições engendradas pela crise capitalista e pelos novos dispositivos de reprodução técnica. Ela consistia, fundamentalmente, numa política de contenção das demandas revolucionárias do proletariado através da difusão, em escala industrial, de imagens que representassem as massas ou que fossem o resultado da expressão delas. Segundo Benjamin, o interesse “originário” do proletariado em relação ao cinema - interesse calcado nas possibilidades de conhecimento da natureza, de destruição da tradição e do desenvolvimento da consciência de classe - era pervertido pelo fascismo. A “estetização da política”, portanto, era a representação das massas promovida justamente para pacificá-las. Ela operava, então, como uma espécie de concessão do fascismo ao movimento operário: “[o fascismo] vê sua salvação em deixar as massas alcançarem a sua expressão (de modo algum o seu direito [i.e., a revolução nas relações de propriedade e produção])” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução Francisco Dea Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012., p. 117). O “gozo estético” produzido pela contemplação da própria destruição era, segundo Benjamin, uma espécie de resultado libidinal, cuja matriz era a autoalienação generalizada da humanidade no capitalismo.

No ensaio, Benjamin opõe a “estetização da política” à “politização da arte”, embora não defina a última. Tal “politização da arte” aparece, pois, como uma espécie de projeto a ser formulado pelas forças comunistas para o combate do fascismo. O texto de Benjamin, então, inscreve-se como participante dessa tentativa de formulação. Existem no texto indícios do que seria tal projeto, presentes, por exemplo, na ideia de que a politização passaria pelo uso das técnicas modernas de reprodução e pelo dispositivo cinematográfico da montagem, objetivando combater a ilusão de unidade das obras fascistas, a estética contemplativa e o culto ao líder que elas promoviam.

O gozo estético da destruição

No decênio de 1930, a “estetização da política” praticada pelo fascismo, calcada na representação da alegria, na apologia do trabalho e na celebração das forças produtivas, não era um fenômeno exclusivo da Itália fascista ou da Alemanha nazista. Também na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) o governo apoiava e difundia uma linguagem visual acrítica e apologética, baseada na celebração dos líderes e na representação das massas. Esses traços comuns entre a produção artística fascista e a soviética não se restringiram às realizações das indústrias culturais nacionais e às feitas com os novos meios técnicos do cinema, da fotografia ou da fotomontagem - eles estavam presentes, também, na pintura de cavalete e na literatura.

A proliferação de grandes exposições e as semelhanças nas suas estratégias curatoriais atestam um regime discursivo semelhante entre esses países. Pode-se observar tais semelhanças, por exemplo, nas correspondências visuais entre a grande Mostra Fascista de 1932 (sediada em Roma) e as grandes exibições, concebidas também em 1932, dos Artistas da URSS dos últimos quinze anos (realizada em Leningrado e, sucessivamente, em Moscou, entre 1933 e 1934). Nas três mostras, a apologia da economia e a representação da alegria eram temas recorrentes. Na mostra fascista, o discurso celebratório era realizado através das fotomontagens e dos murais; na URSS, através da pintura. Ademais, a segunda versão da mostra Artistas da URSS dos últimos quinze anos parece ter fundado os dispositivos curatoriais baseados na difamação dos artistas que divergiam da estética oficial, dispositivos esses retomados pelo nazismo na Mostra de Arte Degenerada (1937), realizada em Munique (CHLENOVA, 2014CHLENOVA, Masha. Staging Soviet art: 15 years of artists of the Soviet Socialist Republic, 1932-33. October, Cambridge, v. 147, p. 38-55, 2014. Disponível em: <https://bit.ly/2m64Noe>. Acesso em: 25. jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/OCTO_a_00165.
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). Além do apontado, existem documentos que comprovam a existência de um intercâmbio sobre assuntos artísticos entre a URSS e a Itália fascista (GENTILE, 1993GENTILE, Emilio. Il culto del littorio: la sacralizzazione della politica nell’Italia Fascista. Bari: Editori Laterza, 1993., p. 149).1 1 Cabe apontar que as obras visuais que realizaram o elogio do trabalho e dos trabalhadores não se restringiram aos chamados regimes “totalitários”. Em 1935, os Estados Unidos sediaram na Filadélfia a mostra A arte da Rússia soviética, que exibiu as pinturas do início dos anos 1930 de artistas soviéticos vinculados ao regime stalinista. Aleksandr Deineka (1899-1969) e Ossip Beskin (1892-1969), personagens centrais na elaboração do realismo socialista e na crítica do “formalismo”, visitaram os EUA por conta da exibição referida e constataram, não obstante as diferenças entre o contexto americano e soviético, as similaridades entre a pintura soviética “oficial” e algumas pinturas do novo realismo americano. Com efeito, não seriam as pinturas de Charles Sheeler (1883-1965) uma espécie de celebração da economia americana semelhante à celebração realizada na URSS? E o mural de Thomas Hart Benton (1889-1975), American today (1930-31), não poderia ser lido, também, como uma espécie de apologia do trabalho calcado na noção de um trabalhador radicalmente empenhado na elevação da produtividade? Sobre o tema, Cf. Kiaer (2010, p. 241-282).

Ainda que tais semelhanças só tenham se tornado evidentes para o grande público a partir de 1936 - quando, na Feira Mundial de Paris, foram expostas obras visuais soviéticas e nazistas (BUCK-MORSS, 1995BUCK-MORSS, Susan. The city as dreamworld and catastrophe. October, Cambridge, v. 73, p. 3-26, 1995. Disponível em: <https://bit.ly/2lQKuLk>. Acesso em: 15 abr. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.2307/779006.
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) -,2 2 Cabe acrescentar que, a partir de 1936, a comparação entre o realismo socialista e a arte fascista parece também ser mais recorrente nos círculos de esquerda, conforme demonstra o Manifesto da FIARI (1938), escrito por Trotsky e pelo surrealista francês André Breton (1896-1966). Cf. Breton e Trotsky (1985). desde 1926 Benjamin já estava a par da estética difundida na URSS pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR), escola responsável por elaborar a gramática visual do “realismo socialista”.3 3 A Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR) foi fundada em 1922 pelo pintor Pavel Radimov (1887-1967). Nomeado presidente da associação, ele declarou que “os artistas, em nossa sociedade, devem representar com exatidão na pintura e na escultura os acontecimentos da Revolução, devem retratar os líderes e ilustrar o papel do Povo, dos trabalhadores simples, dos operários e camponeses” (apud LODDER, 1988, p. 184, grifos nossos). Os verbos utilizados por Radimov para definir a atividade dos artistas da sociedade soviética - “representar”, “retratar” e “ilustrar” - sintetizam o projeto artístico da AKhRR. No folheto da primeira exposição do grupo (cujo tema foi o Exército Vermelho), realizada em maio de 1922, os objetivos da AKhRR foram assim definidos: “O dia revolucionário e o momento revolucionário são um dia heroico e um momento heroico, e agora devemos revelar nossa experiência artística nas formas monumentais do realismo heroico” (apud LODDER, 1988, p. 184, grifos nossos). Assim, um mês após a declaração de Radimov, a AKhRR definia o seu projeto artístico com base na ideia da formulação de uma estética “monumental”, vinculada ao suposto teor heroico dos eventos revolucionários. O ato de “representar com exatidão (…) os acontecimentos da Revolução”, conforme havia afirmado Radimov, traduzia-se, portanto, não na apreensão crítica do processo revolucionário, mas na heroicização do processo e na celebração do modo de vida soviético e das lideranças bolcheviques. A partir de 1928, o Partido Comunista passou a apoiar publicamente a estética do realismo heroico, voltada, com a mudança do contexto político-econômico, para a apologia do Plano Quinquenal. Contudo, ainda que repudiasse o “realismo heroico” da AKhRR, conforme comprovam seus diários,4 4 Em Diário de Moscou, Benjamin (1989, p. 98) refere-se à AKhRR como “a escola de arte reacionária dos camponeses”. Benjamin não tratou das similaridades entre as obras fascistas e soviéticas em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.

Ainda que não criticasse o “realismo socialista”, o ensaio foi sistematicamente negado para publicação na Rússia, “lugar que deveria ser naturalmente seu”, conforme escrito por Benjamin em abril de 1936 em carta a Kitty Marx-Steinschneider (1905-2002) (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 219). Em junho do mesmo ano, Benjamin escreveu a Alfred Cohn (1880-1950): “A mais interessante [reação ao ensaio] foi a dos esforços dos escritores filiados no partido [comunista] para impedir, se não a difusão, pelo menos a discussão deste trabalho” (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 224).

O que explicaria tamanho empenho em silenciar o ensaio de Benjamin? Ele, aparentemente, não fazia qualquer menção crítica à arte stalinista ou ao governo soviético. Pelo contrário: Benjamin procurava mobilizar o proletariado para o combate ao fascismo. Talvez, contudo, os dirigentes e literatos associados ao regime soviético tenham percebido algum elemento crítico à URSS no ensaio referido. Qual seria ele, no entanto?

O fetichismo da mercadoria no mundo da NEP

As reflexões críticas de Benjamin sobre o processo revolucionário russo remontam a, pelo menos, nove anos antes da redação de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” e, mais especificamente, ao período entre dezembro de 1926 e janeiro de 1927, quando ele viajou à URSS. Em Diário de Moscou, publicado postumamente, Benjamin traçou um perfil político e cultural da cidade referida, centrado na investigação do modo de vida moscovita após a promulgação da Nova Política Econômica (NEP), que completava cinco anos.5 5 A Nova Política Econômica foi proposta pelo dirigente bolchevique Vladimir Lênin (1870-1924) no 10º Congresso do Partido Bolchevique, que foi realizado entre 8 e 16 de março de 1921, em Moscou. A NEP consistia, em linhas gerais, na negação das políticas do Comunismo de Guerra (1918-1920), por meio do restabelecimento da liberdade de comércio, da interrupção das requisições forçadas de cereais aos camponeses (substituída pelo imposto em espécie) e do regresso parcial à gestão privada das indústrias. Os diagnósticos políticos de Benjamin se encontram dispersos em meio à narrativa de seu cotidiano na capital soviética, permeado pelos encontros com a diretora de teatro Asja Lacis (1891-1979), o crítico teatral Bernhard Reich (1892-1972) e diversos outros intelectuais e artistas. Depois da estadia na URSS, partes do diário foram retrabalhadas por Benjamin e compuseram o ensaio “Moscou”. Entre ambos os textos, porém, existem diferenças substantivas - o caráter fragmentário e às pressas das notas tomadas por Benjamin revela impressões sobre o processo revolucionário que não constam em “Moscou” e que podem ser decisivos para a compreensão da crítica benjaminiana à sociedade soviética.

Em Diário de Moscou, salta aos olhos o exaustivo inventário elaborado por Benjamin das mercadorias em circulação após o estabelecimento da NEP. Com efeito, o “fetichismo da mercadoria” no mundo “nepista” é um dos grandes temas tratado por ele. Dentre as mercadorias, contudo, uma delas é constantemente referida como central para a compreensão da sociabilidade na URSS de 1926: a “mercadoria-Lênin”. Tratava-se da política de culto a Lênin, promulgada em 1924 pelo Partido.

Em nota do dia 28 de dezembro de 1926, alguns dias após visitar o “malogrado mausoléu de Lênin”, Benjamin (1989, p. 63)BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. escreveu a respeito dessa mercadoria sui generis:

O culto da imagem de Lênin em particular vai incrivelmente longe aqui [no clube de camponeses e arredores]. Existe uma loja na [rua] Kusnetzky especializada em Lênin, onde se pode encontrá-lo em todos os tamanhos, poses e materiais. Na sala de lazer do clube, onde se ouvia naquele momento um concerto no rádio, há um quadro em relevo muito expressivo dele, mostrando-o como orador, em tamanho natural, de peito inflado. Imagens dele mais modestas encontram-se também nas cozinhas, lavanderias etc. da maioria dos institutos públicos.

A difusão do culto ao líder era associada, por Benjamin, a uma espécie de passividade estrutural ensejada pela repressão política, pela censura e pela atomização do proletariado. Ou seja, submetido à nova burguesia russa e aos agentes estatais, a população miserável - que se assemelhava a uma “corporação de moribundos” (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 32) - se caracterizava pela inatividade política e pela indiferença, assim como a intelectualidade de esquerda.6 6 “A geração que estava na ativa na época da Revolução começa a envelhecer. É como se a estabilização da situação do Estado tivesse introduzido em suas vidas uma tranquilidade, ou até uma indiferença, como a que normalmente se adquire apenas com a idade” (BENJAMIN, 1989, p. 115).

Ao relatar, por exemplo, a recepção pública da montagem realizada por Vsevolod Meyerhold (1874-1940) de O inspetor geral, Benjamin (1989, p. 43)BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. escreveu que

Os aplausos no teatro foram escassos, o que talvez seja consequência mais da orientação oficial do que da impressão inicial que a peça causou no público, pois a encenação foi certamente uma festa para os olhos. Isto certamente está relacionado com a atmosfera geral de cautela que reina por aqui quando se trata de expressar publicamente uma opinião. Se se perguntar a uma pessoa que não se conhece bem o que ela pensa de uma peça de teatro ou filme insignificante, obtém-se apenas a seguinte resposta: “Por aí se diz que é assim ou assado” ou “em geral, as pessoas são desta ou daquela opinião”.7 7 Em “Moscou”, texto escrito após a volta da URSS, Benjamin comenta sobre este distanciamento retórico, sem, no entanto, referir a apresentação de Meyerhold. Ele interpreta tal distanciamento do seguinte modo: “Rumina-se o parecer dez vezes antes de emiti-lo a alguém de fora [estrangeiro]. Pois a qualquer hora o Partido, incidentemente, inopinadamente, toma uma posição no Pravda, e ninguém gosta de ser desmentido. Já que uma mentalidade confiável, se não é o único bem, é para a maioria das pessoas a garantia única de outros bens, lidam com o próprio nome e com a própria voz com tanta cautela que um cidadão de constituição democrática não pode entendê-los” (BENJAMIN, 1987a, p. 173).

Na leitura benjaminiana, a passividade e o distanciamento retórico, ensejados por tal “atmosfera geral de cautela”, marcavam o psiquismo da sociedade soviética e se estruturavam como uma espécie de complemento do culto ao líder e da celebração acrítica da revolução. Tal relação evidencia-se em uma das passagens do diário, na qual realiza um extenso diagnóstico político da URSS. Ele escreveu no dia 30 de dezembro de 1926:

Em sua política externa, o governo visa à paz, a fim de estabelecer acordos comerciais com Estados imperialistas; internamente, porém, e sobretudo, procura deter o comunismo militante, introduzir um período livre de conflitos de classe, despolitizar tanto quanto possível a vida de seus cidadãos. Por outro lado, a juventude passa por uma educação “revolucionária”, em organizações pioneiras, no Komsomol. Isto significa que o revolucionário não lhes chega como experiência, mas apenas como discurso. Existe a tentativa de deter a dinâmica do processo revolucionário na vida do Estado - entrou-se, querendo ou não, num período de restauração, ao mesmo tempo em que se deseja armazenar a energia revolucionária na juventude, como eletricidade numa pilha. Isto não funciona. Os jovens - especialmente os da primeira geração, cuja formação é mais do que deficiente - necessariamente desenvolvem a partir daí um comunismo presunçoso, para o qual já existe uma palavra própria na Rússia. (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 67, grifos nossos)

No trecho citado, a “espetacularização” da revolução (a qual chegava aos jovens “apenas como discurso”) e a “despolitização da vida dos cidadãos” soviéticos eram apresentadas, ambas, como facetas de um mesmo processo. A burocracia estatal, portanto, “falava” sobre a revolução ao mesmo tempo que barrava qualquer tentativa do proletariado de radicalizar o processo revolucionário. Não seria tal processo uma espécie de “estetização da política”, atribuída por Benjamin ao fascismo nove anos depois? Não por acaso, foi no contexto de proliferação das greves operárias contra a NEP e contra o monopólio político do Partido que a linguagem visual difundida pela AKhRR, que heroicizava acriticamente a revolução, passou a ser fortemente disseminada pelo governo.8 8 Um texto publicado alguns meses antes da viagem de Benjamin à URSS explicitava o crescimento da AKhRR. Em 6 de junho de 1926, o líder da AKhRR Yevgeny Katsman publicou na revista Zhizn iskusstsva um artigo intitulado “Que respondam”. Segundo ele, “A revolução acolhe com carinho a AKhRR. A AKhRR (…) está há cinco anos crescendo e ampliando-se (…) [Ela] organizou oito exposições centrais e inúmeras exposições ‘menores’. A URSS está contagiada pela AKhRR, que possui mais de cinquenta filiais. Em todas as escolas de arte existem organizações juvenis da AKhRR, as ‘OJAKhRR’. Pelas exposições da AKhRR passaram centenas de milhares de operários e camponeses” (KATSMAN, 1973, p. 115). Sobre as greves operárias no período da NEP, Cf. Pospielovsky (1997).

A “heroica vigarice”

Em sua estadia na URSS, Benjamin frequentou os círculos oposicionistas. Ele foi acolhido por Reich e Lacis, estabeleceu contato com o poeta Grigory Lelevitch (1901-1945) - que o colocou a par das críticas à burocratização do Partido formuladas pela Oposição Unificada9 9 A Oposição Unificada era liderada por Leon Trotsky (1879-1940) e por Grigori Zinoviev (1883-1936). - e conheceu o oposicionista de esquerda Karl Radek (1885-1939). Reich, ademais, traduziu para Benjamin um dos discursos contra a burocracia partidária do também oposicionista Lev Kamenev (1883-1936).

Apesar da proximidade com as ideias da oposição de esquerda, Benjamin não aderiu à tese elaborada pelos oposicionistas sobre o caráter proletário do Estado na URSS. Em nenhum momento de seus diários o regime soviético era definido como um “Estado operário”, tal como o definira Trotsky em 1923. Nas suas anotações, Benjamin fazia vagas alusões acerca de um “governo dos trabalhadores” ou da “ditadura do proletariado” que supostamente se desenvolvia na URSS. Contudo, em uma das poucas notas em que a questão do caráter do regime era tratada, a URSS era definida como um “capitalismo de Estado”, estruturado pela NEP e baseado no psiquismo individualista, na concorrência e na profunda desigualdade social:

Na Rússia, o capitalismo de Estado [Staatskapitalismus] conservou muitos traços da época da inflação. Sobretudo a incerteza jurídica no âmbito interno. Se, por um lado, a NEP é uma concessão oficial, de outro, ela é tolerada somente no interesse do Estado. Qualquer pessoa da NEP pode, de um dia para o outro, tornar-se vítima de uma reviravolta na política financeira ou até mesmo de uma passageira mudança de rumo na propaganda oficial. Não obstante há fortunas - colossais, do ponto de vista russo - sendo acumuladas em certas mãos. (…) Ao heroico comunismo de guerra, estes cidadãos contrapõem a heroica vigarice [em alemão: nepp]. (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 85-86, grifos nossos)10 10 Benjamin realiza um trocadilho com o termo nepp que, em alemão, significa tanto “vigarice” quanto “inflação”, para referir-se à Nova Política Econômica soviética.

Tal definição, que divergia da análise oposicionista, não reapareceu em nenhum dos textos de Benjamin que se seguiram à estadia na URSS. Em “Sobre a situação da arte cinematográfica russa” e “Réplica a Oscar A. H. Schmidt”, ambos de 1927, Benjamin realizava a defesa de O encouraçado Potemkin (1925), filme de Sergei Eisenstein, sem, no entanto, criticar o regime. Já em “Moscou”, o autor critica a NEP e atribui a ela um caráter “restauracionista”11 11 “O ‘basta’ que, um dia, o Partido com a NEP contrapôs ao comunismo de guerra, produziu um terrível contragolpe que subjugou muitos lutadores do movimento. Naquela época milhares devolveram ao Partido a carteirinha de membro. Sabe-se de casos de derrocadas tão completas que, em poucas semanas, fiéis suportes do Partido se fizeram seus defraudadores. Para o bolchevique, o luto por Lênin é, ao mesmo tempo, o luto pelo comunismo heroico” (BENJAMIN, 1989, p. 186-187). , porém não caracteriza a sociedade soviética como capitalista. Em “Moscou”, a única menção explícita ao caráter do Estado é a que segue:

A Rússia de hoje não é um Estado de classes, mas, antes, um Estado de castas. Um Estado de castas - isso significa que o valor social do cidadão não é definido pelo lado exterior de sua existência - como vestuário e moradia -, mas unicamente pela relação com o Partido. (BENJAMIN, 1987aBENJAMIN, Walter. Moscou. In: BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987a, p. 155-187., p. 173)

A definição do regime soviético como um “capitalismo de Estado”, realizada por Benjamin exclusivamente no Diário de Moscou, situava a sociedade soviética no âmbito das relações capitalistas e dos processos de modernização acelerada. Se a Oposição Unificada objetivava o redirecionamento do Partido Comunista soviético - uma demanda, segundo Benjamin (1989, p. 23)BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., digna do otimismo mobilizado pelos fanáticos -, a posição deste parecia pleitear a revolução da estrutura social. Como combater os homens da NEP e a burocracia estatal? Como superar a política de culto aos líderes e a fetichização da revolução? Qual seria, portanto, a antítese da “estetização da política”?

A estetização da miséria

No texto da conferência “O autor como produtor”, escrito em 1934, sete anos após a estadia de Benjamin na URSS e paralelamente ao ensaio “A obra de arte…”, o tema da “estetização da política” aparentemente reaparece - porém, como crítica da suposta arte de esquerda. Benjamin, ao referir-se à produção fotográfica aglutinada sob o nome de Nova Objetividade, escreve que

Ela [a produção fotográfica da Nova Objetividade] se torna cada vez mais diferenciada, cada vez mais moderna, e o resultado é que não é capaz de fotografar nenhum bairro miserável, nenhum monte de lixo, sem o transfigurar. Para não falar já do fato de que, perante uma barragem ou uma fábrica de cabos elétricos, ela seria incapaz de dizer outra coisa que não fosse: o mundo é belo. (…) Ela conseguiu, de fato, fazer até da miséria um objeto de prazer, captando-a e tratando-a de acordo com o perfeccionismo da época. (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 95, grifos nossos)

Como no caso do fascismo, a “estetização da miséria” operada pela Nova Objetividade era o resultado da utilização de novos aparatos técnicos de reprodução para finalidades conservadoras. O verniz crítico que tal tendência artística possuía ocultava, segundo Benjamin, o conservadorismo em relação à transformação dos meios de produção e à superação do trabalho especializado. Benjamin (2017, p. 96)BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. propunha, assim, a junção entre o trabalho do escritor e o do fotógrafo, com o intuito de articular a fotografia com uma legenda que explicitasse o seu propósito crítico e o seu “valor de uso revolucionário”. Explicitava-se, no campo estético, um debate sobre a superação da divisão social do trabalho.

Benjamin e o projeto factográfico

Tanto em “O autor como produtor” quanto em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin posicionava-se pela reestruturação do modo de produção e de circulação artística. Tal proposta combatia a “estetização da miséria” da Nova Objetividade, além de acentuar os limites de uma suposta arte de esquerda que não fazia mais do que mudar a temática de suas obras, deixando intactos os processos produtivos. Em “O autor como produtor”, lê-se:

Várias oposições, na literatura, que em épocas mais afortunadas se fertilizavam reciprocamente, transformaram-se em antinomias insolúveis. (…) Assim, há uma disjunção desordenada entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não lhe seja imposta pela impaciência do leitor. Essa impaciência não é só a do político, que espera uma informação, ou a do especulador, que espera uma indicação, mas, atrás delas, a impaciência dos excluídos, que julgam ter direito a manifestarem-se em defesa dos seus interesses. (…) Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: no declínio da dimensão literária da imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever, prescrever. Como especialista, se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções - ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 88, grifos nossos)

O trecho citado aparece como uma referência à primeira versão de “A obra de arte…”, escrita em 1934, porém não publicada. Nela, lê-se que

Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma reportagem. Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor. Num processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna, bem ou mal, um perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comércio, e como tal pode ter acesso à condição de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitações necessárias para executá-lo. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica, e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos. Tudo isso é aplicável sem restrições ao cinema, onde se realizaram numa década deslocamentos que duraram séculos no mundo das letras. Pois essa evolução já se completou em grande parte na prática do cinema, sobretudo do cinema russo. (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução Francisco Dea Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012., p. 81)

A finalidade da passagem citada é ilustrar a noção de factografia proposta pelo produtivista russo Sergei Tretiakov (1892-1937).12 12 Para a definição do movimento produtivista soviético, ver o item “O grupo LEF e a crítica de arte” deste texto. Os trechos citados são uma explicação da proposta factográfica desenvolvida pelo movimento produtivista russo a partir de 1927.13 13 Em “O autor como produtor”, Benjamin parece explicitar também a noção construtivista de “encomenda social”. Para o detalhamento deste conceito e do uso que faz dele, Cf. Figueiredo (2017). Curiosamente, enquanto em “O autor como produtor” Benjamin refere-se diretamente à Tretiakov, em “A obra de arte…” o produtivista não é mencionado. Qual era a razão da supressão do nome de Tretiakov, sendo que Benjamin estava, efetivamente, explicando a proposta dele e propondo-a como uma resposta para a arte de esquerda?

Em sua estadia em Moscou, Benjamin teve contato com Tretiakov em um dos debates sobre a peça de Meyerhold, O inspetor geral, ocorrida em 3 de janeiro de 1927. Sabe-se que Benjamin seguiu acompanhando o trabalho do escritor russo, pois em “O autor como produtor” ele refere-se às visitas de Tretiakov aos Kolkhozes, iniciadas em 1928.14 14 Tretiakov encarregou-se, entre julho de 1928 e o final de 1930, da gestão das comunicações administrativas entre a fazenda coletiva O farol comunista e as autoridades de Moscou, além da edição de um jornal distribuído entre dezesseis fazendas e fundamentado nos relatos dos camponeses. Ele procurou, assim, pôr em prática o movimento factográfico. Ademais, quando tentou publicar “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” na Rússia, Benjamin enfatizou a importância que atribuía à leitura de seu ensaio por Tretiakov. Em carta à atriz alemã Grete Steffin (1908-1941), de 1936, Benjamin (2017, p. 226, grifos nossos)BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. escreveu:

[Bernhard] Reich não coloca quaisquer problemas quanto ao método [do ensaio “A obra de arte…”], e da carta [que Reich enviara a Benjamin] só se depreende que, para ele, eu vou “longe demais”, que as coisas “não devem ser bem assim”, etc. Gostaria, isso sim, que Tretiakov o lesse [o ensaio “A obra de arte…”]. Foi esse, desde o princípio, o conselho de [Slatan] Dudov [1903-1963], que aprecia muito o trabalho e me disse logo que Reich não o aceitaria. Suponho que conhece bem Tretiakov e lhe poderá dar o manuscrito (gostaria, é claro, que esse não se perdesse).

A carta de Benjamin não chegou a Grete Steffin ou a Tretiakov. Aproximadamente um ano depois, em 16 de julho de 1937, Tretiakov foi preso pela polícia política do regime e enviado para um campo de trabalhos forçados, acusado pelo governo de ser um espião. Por que Tretiakov era tomado por Benjamin como um interlocutor privilegiado de seu texto? Em que consistia a proposta factográfica, elaborada, dentre outros, pelo produtivista russo?

O “Tolstói coletivo”

No primeiro número da revista NovaFrente de Esquerda das Artes (Novy LEF), de 1927, Tretiakov publicou um artigo intitulado “O novo Leon Tolstói”. No artigo, que lançou as bases do projeto factográfico, ele questionava a função social do escritor e a forma romance:

Alguns estão desconsolados. Eles reclamam: onde está a arte monumental da revolução? Onde estão as obras-primas do “épico vermelho”? Onde estão nossos Homeros e Tolstóis vermelhos? E existem os otimistas que replicam: Espere! A revolução é sempre “indelicada” no que se refere à arte. Dê um tempo às coisas. Os futuros Goncharovs e Leon Tolstóis estão entrando na escola primária. E, por hora, contente-se com os Tolstóis provisórios: Seifullina, Pilniak e Veresaev. Eles podem não ser tão bons assim; “Virineia” não é exatamente “Guerra e Paz”, mas sejamos pacientes. (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
https://bit.ly/2lLQ3uC...
, p. 47, tradução nossa)15 15 Salvo indicação em contrário, todas as traduções são nossas. No texto em inglês: “Some are disheartened. They complain: Where is the monumental art of the revolution? Where are the “major canvases” of the red epic? Where are our red Homers and red Tolstoys? And then there are the optimists who reply: Just you wait! Revolution is always clumsy when it comes to art, but give things some time. The future Goncharovs and Leo Tolstoys are entering grade school. And for now, sustain yourself with the provisional Tolstoys: Seifullina, Pil’niak, and Veresaev. They may not be all one could ask for, and Virineia is not exactly War and Peace, but we will be patient” (TRETIAKOV, 2006b, p. 47). Embora Tretiakov não tenha mencionado Trotsky em “O novo Leon Tolstói”, ambas as posições por ele descritas - as posições dos “desconsolados” e a dos “otimistas” - estavam presentes em “A cultura e a arte proletárias”, do líder oposicionista. Trotsky escreveu, por exemplo, questionando os apologistas da suposta arte monumental soviética: “Camaradas, onde está essa arte de grande envergadura, grande estilo, esta arte monumental? Onde?”; e “Pode-se dizer, com muita razão, que os Shakespeare e os Goethe proletários hoje correm descalços para alguma escola primária” (TROTSKY, 2007, p. 160, 164).

Para Tretiakov, a espera por um “Tolstói vermelho” se fundamentava na noção do escritor como “professor da vida”.16 16 Tretiakov escreveu: “O Tolstói que estão todos esperando pode ser descrito por uma simples fórmula: um narrador de grande maestria mais um professor da vida” (TRETIAKOV, 2006b,p. 47). No texto em inglês: “The Tolstoy that everyone is waiting for can be described by a simplistic formula: a ‘describer’ of the broadest sort, plus a teacher of life”. A “demanda” por um “novo Tolstói” seria, nesse sentido, a solicitação do surgimento de um indivíduo que pudesse instruir intelectual e sensivelmente o proletariado soviético com sua produção literária. Tanto para os “desconsolados” quanto para os “otimistas”, a figura do escritor como uma espécie de gênio capaz de iluminar as massas não era questionada.

Tal figura, no entanto, contradizia o imperativo da reestruturação dos processos de trabalho preconizada pelo movimento da tomada do poder em 1917; posição que era reivindicada, por exemplo, em ABC do comunismo, escrito em 1920 por Nikolay Bukhárin (1888-1938) e Evgeni Preobrajensk (1886-1937). Para Tretiakov, a figura do escritor pertencia ao modo de vida burguês e a reivindicação de tal figura consistia na reposição da cisão entre o trabalho intelectual e o manual, além da manutenção do processo de produção literária individual, em detrimento de uma prática reflexiva coletiva. De que forma seria possível, então, reestruturar o trabalho literário e superar a figura “fetichizada” do autor, ao invés de repô-la mecanicamente, transferindo-a do contexto burguês para o soviético?

Segundo o produtivista, a resposta para tal questão residia na imprensa:

Hoje o jornal é para o ativista soviético o que o romance foi para a inteligência liberal russa ou o que a bíblia foi para os cristãos medievais: o guia para todas as situações da vida. Ele abarca os eventos, suas sínteses e diretrizes em todos os setores da vida social, política, econômica e do front do cotidiano. (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
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, p. 49)17 17 No texto em inglês: “Today’s newspaper is for the Soviet activist what the didactic novel was for the Russian liberal intelligentsia and what the bible was for the medieval Christian: the guide to all of life’s situations. It encompasses events, their synthesis, and directives in all sectors of the social, political, economic, and everyday-material fronts” (TRETIAKOV, 2006b, p. 49).

O jornal, portanto, substituíra as “belas letras” no papel de organizador da consciência coletiva e no papel de “professor da vida”: segundo Tretiakov, a produção literária deveria direcionar-se para o jornal. Ele escreveu: “Nós não temos razão alguma para esperar por novos Tolstóis. Nós temos a nossa literatura épica, que é o jornal” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
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, p. 46).18 18 No texto em inglês: “We have no reason to wait for Tolstoys. We have our epic literature. Our epic literature is the newspaper” (TRETIAKOV, 2006b, p. 49).

Para Tretiakov, a estratégia para a superação do estado da imprensa soviética consistiria, assim, na formação do público para a leitura dos jornais, na atração dos escritores profissionais para a atividade jornalística e no aperfeiçoamento dos jornais, que permitiria que a imprensa cumprisse com excelência o papel de formadora da consciência que os romances cumpriram no período burguês.19 19 A necessidade da formação de um público para os jornais foi pensada anteriormente por Trotsky em Questões do modo de vida (1923). Também Aleksandr Rodchenko (1892-1956) a concebeu no projeto do Clube de Trabalhadores (1925), que ele expôs em Paris. Rodchenko procurava, mediante a construção de uma biblioteca e uma sala de leituras, estimular o proletariado soviético à consulta e à reflexão baseadas nos periódicos soviéticos.

O projeto da reestruturação da atividade literária proposta pelo produtivista não consistia, contudo, apenas no direcionamento dos escritores profissionais para as redações e no melhoramento dos jornais. Tretiakov (2006b, p. 49)TRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
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defendia que “toda a massa anônima que escreve para os jornais, dos correspondentes-operários até o redator do artigo principal: eis o Tolstói coletivo de nosso tempo”.20 20 No texto em inglês: “The entire anonymous newspaper mass, from the workercorrespondent to the writer of the lead article, is the collective Tolstoy of our time” (TRETIAKOV, 2006b, p. 49).

Para o produtivista, o “Tolstói coletivo” seria o resultado da atividade literária coletiva das “massas anônimas” soviéticas. Logo, o projeto de aperfeiçoamento da imprensa não implicaria apenas a reforma dos processos de produção dos jornais ou a profissionalização dos escritores, mas a reestruturação radical das formas de produção e recepção dos relatos.21 21 A produção documental realizada pelas “massas anônimas” soviéticas já era uma prática generalizada em 1927 - o que tornava o projeto factográfico viável historicamente, segundo Tretiakov. Tal produção era feita, como apontava o produtivista, pelo movimento dos “correspondentes operários” [rabcors]. O vínculo entre as publicações partidárias e a produção de relatos por parte de operários e camponeses pobres estabeleceu-se no período da Guerra Civil, quando o Pravda e outros periódicos partidários requisitaram publicamente cartas de operários e camponeses que relatassem a situação da guerra civil em distintos locais da Rússia. A 4ª Conferência do Sindicato dos jornalistas soviéticos, realizada em 1923, aprovou a colaboração de correspondentes operários e camponeses nos jornais soviéticos. Tais correspondentes deveriam informar aos jornais os problemas nos locais de trabalho e vilas e, assim, funcionarem como uma espécie de fiscais do Estado soviético, denunciando os abusos cometidos por membros do Partido, “especialistas” e kulacs. Em novembro de 1923, o Departamento de Agitprop do Partido, aliado ao comitê editorial do Pravda, organizou a 1ª Conferência dos Correspondentes Operários, na qual o movimento referido foi fundado. Bukharin, em 1926, era enfático quanto aos perigos dos relatos dos rabcors - perigos que ele atribuía à influência pequeno-burguesa dos imigrantes do campo que iam às cidades, escrevendo que: “[as cartas dos rabcors] são marcadas por uma rispidez inadequada com relação aos gestores [especialistas] e aos dirigentes sindicais, por denúncias excessivamente enfáticas dos superiores, pela incapacidade de reconhecer as realizações reais da indústria soviética e pelo ocultamento dos aspectos negativos do trabalho dos próprios operários” (LENOE, 2004, p. 122). A reivindicação de Tretiakov, quanto à necessidade da reestruturação da produção literária com base na atividade autônoma dos rabcors afrontava, portanto, a linha política da burocracia partidária, de restrição e supervisão dos relatos.

O produtivista propunha a superação do papel histórico do romancista, cuja atividade supostamente instruía as “massas anônimas”. Tal papel deveria ser substituído pela atividade criadora da própria classe trabalhadora, que deveria refletir e escrever sobre as contradições da sociedade soviética. Tretiakov propunha, em suma, a abolição da figura do herói e do líder em prol da autodeterminação e da prática reflexiva do proletariado soviético. A difusão da produção dos relatos, portanto, seria um dispositivo para a formação da autoconsciência dos proletários.

Em síntese, Tretiakov definia, em “O novo Leon Tolstói”, um novo método de trabalho documental, denominado de factografia. A noção de factografia - que significava, literalmente, “grafia dos fatos” - preconizava a reestruturação da produção literária russa a partir do abandono da forma romance (fundamentada no drama, na narrativa ficcional e no subjetivismo) e em prol da organização dos materiais, dos relatos sobre o cotidiano e da exposição do processo produtivo dos objetos. Propunha, por conseguinte, uma espécie de “soviete literário”, no qual os operários e camponeses poderiam publicizar, criticar, discutir e resolver as questões referentes à reorganização do modo de vida [byt].

No contexto de 1927, ano que marcava o decênio da Revolução de Outubro, o produtivista pretendia recuperar um dos ideais do período da tomada do poder. Ele recuperava a noção de que o proletariado deveria ser o principal sujeito do processo revolucionário e da reflexão política. À “heroicização” do processo revolucionário elaborada pela burocracia partidária e pela AKhRR, Tretiakov opunha o trabalho reflexivo com o material e o exame crítico do modo de vida soviético. Contra a estética contemplativa e a recepção fetichizada das obras, o produtivista defendia o trabalho coletivo fundamentado na reflexão e na prática política.

O grupo LEF e a crítica da arte

A reordenação radical do modo de produção e de circulação artística, sistematizada a partir de 1927 na ideia da factografia, era uma ideia elaborada coletivamente pelo movimento produtivista desde o seu surgimento, em 1921. O produtivismo soviético era uma radicalização marxista do construtivismo que propunha a superação da arte de cavalete - e do psiquismo contemplativo que ela supostamente engendrava -, em benefício de uma arte operativa e politicamente engajada que serviria ao avanço do processo revolucionário, na medida em que reestruturaria psiquicamente os sujeitos e os processos de trabalho.

Como forma de combate à NEP e aos esquemas de gestão consoantes à divisão social do trabalho para a produção de mercadorias, o grupo de teóricos e artistas construtivistas adotou a plataforma produtivista, que se baseava num programa de introdução dos artistas no processo produtivo, isto é, nas fábricas, para a reorganização da produção e das relações de trabalho, que deveriam ser reorientadas para a produção de objetos socialmente úteis. Em 1923, o grupo produtivista fundou a LEF.

Ao longo de sua história, a LEF combateu a estética contemplativa difundida pela AKhRR, a NEP, a cultura burguesa dos nepmen e o “culto a Lênin”.22 22 No editorial da primeira edição de 1924 da LEF, cujo título foi “Não comercializem Lenin!”, Maiakovski (1893-1930) escreveu: “Somos solidários com os ferroviários da estrada Kazan, que propuseram a um artista que fizesse em suas casas uma Sala Lenin, sem busto nem retrato, e disseram: ‘Não queremos ícones’. Insistimos: nada de Lenins em série. Não reproduzam seus retratos em manifestos, telas encerradas, pratos, copos, cigarreiras. Não façam Lenins em bronze falso. (…) Precisamos dele vivo, e não morto. Portanto, sigam as lições de Lenin, não o canonizem” (MAIAKOVSKI, 1924 apud ALBERA, 2002, p. 263). Para o detalhamento da crítica “lefista” ao culto a Lênin, Cf. Figueiredo (2016). A LEF constituiu, portanto, uma frente de combate à burocracia estatal. Como se percebe, muitos dos aspectos sociais combatidos pela LEF coincidem com os pontos criticados por Benjamin durante sua visita à URSS. Um deles é particularmente relevante para a compreensão das noções de “estetização da política” e de “politização da arte”, articuladas por Benjamin em “A obra de arte na época…”. Trata-se da análise dos produtivistas a respeito do desenvolvimento histórico das artes visuais nas sociedades burguesas.

Em “A vida cotidiana e a cultura do objeto”, publicado em 1925, o produtivista Boris Arvatov (1896-1940) afirmava que

a maioria dos marxistas que discutiram o problema da cultura proletária o abordaram de modo puramente ideológico ou, no mínimo, tomaram a ideologia como o ponto de partida de suas investigações. As perspectivas sobre a cultura dominante no campo marxista foram caracterizadas por um peculiar “ideologismo”. (ARVATOV, 1997ARVATOV, Boris. Everyday life and the culture of the thing (toward the formulation of the question). October, Cambridge, v. 81, p. 119-128, 1997. Disponível em: <https://bit.ly/2lJ4Lm9>. Acesso em: 25 jan. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.2307/779022.
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, p. 119)23 23 No texto em inglês, traduzido do russo por Christina Kaier: “The great majority of Marxists who address the problem of proletarian culture approach it on a purely ideological level, or at the very least take ideology as the point of departure for their investigations. Views on culture dominant within the Marxist Sphere are characterized by a peculiar ideologism” (ARVATOV, 1997, p. 119).

Arvatov apontava que a concepção de cultura e de arte da “maioria dos marxistas” centrava-se apenas em seus aspectos ideológicos, ou seja, na temática das obras, e não em seus aspectos materiais constitutivos. Era tal concepção, por exemplo, que permitia a manutenção do “valor de culto” realizada pelas escolas artísticas figurativistas e endossada pelo Partido. Qual seria, então, o “tratamento materialista desta questão”? Para Arvatov, qualquer abordagem sobre os objetos estéticos deveria partir do pressuposto materialista de que a produção artística se situa historicamente entre as demais formas produtivas de uma sociedade.

Tal ideia era desenvolvida por Tretiakov no texto “A arte na revolução e a revolução na arte”, de 1923. No artigo, Tretiakov afirmava que a arte e, sobretudo, a arte de cavalete só puderam proliferar na sociedade burguesa como uma espécie de complemento perverso da alienação do trabalho engendrada pela expropriação dos meios de produção. Comentando as palavras de ordem veiculadas pelo governo bolchevique em 1923, Tretiakov (2006a, p. 15)TRETIAKOV, Sergei.Art in the revolution and the revolution in art (aesthetic consumption and production). October, Cambridge, v. 118, p. 11-18, 2006a. Disponível em: <https://bit.ly/2mecXLu>. Acesso em: 5 jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.11.
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argumentava:

Existem slogans como Arte para todos!; Arte para as massas!; Arte nas ruas!. Estes slogans soam vagos se levarmos em conta que existem dois aspectos na arte: a fixação de experiências e sensações privadas em um material (a criação), e o efeito das formas criadas no psiquismo humano (a percepção). Nas condições da sociedade burguesa, estes dois aspectos são distribuídos entre dois grupos distintos. O grupo daqueles que percebem - uma audiência passiva que devota a maior parte da vida a um trabalho inútil e indesejado, e que se esforça para preencher suas horas de lazer com alguma atividade que ofereça prazer e interesse (…). As pessoas estão procurando por espaços nas quais elas possam escapar da monotonia e insipidez do cotidiano. E pintores, poetas, músicos e atores vieram em seu resgate. (…) A arte constituiu-se como um truque com qualidades hipnóticas. Ela é um narcótico que cria na psique humana uma vida paralela à vida concreta.

No contexto da NEP, que mantinha a divisão social do trabalho e a produção voltada para a fabricação de mercadorias, a razão de existir do trabalho artístico era a manutenção desse estado de coisas. Nas palavras de Tretiakov (2006a, p. 18)TRETIAKOV, Sergei.Art in the revolution and the revolution in art (aesthetic consumption and production). October, Cambridge, v. 118, p. 11-18, 2006a. Disponível em: <https://bit.ly/2mecXLu>. Acesso em: 5 jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.11.
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:

Temos que lembrar que é a praga do trabalho forçado que atualmente gerou essa necessidade [a necessidade da “arte como um narcótico”, conforme definida previamente no artigo]. Foi tal praga que forçou as pessoas a assimilarem a neblina da “cultura burguesa”, que incute a passividade e a contemplação.24 24 No texto em inglês: “We must remember that it was the curse of forced labor that actually generated this need in its day. It was this curse that primed people to assimilate the haze of a “bourgeois culture” that instilled passivity and contemplation” (TRETIAKOV, 2006a, p. 18).

Analogamente, Arvatov escrevia em 1925 que a manutenção de uma relação passiva entre os sujeitos e o produto do trabalho social, concretizado em objetos, era o principal problema para o avanço do processo revolucionário. O problema da superação da arte de cavalete, assim, era pensado como o problema da superação do objeto-mercadoria e do seu fetichismo. O processo de superação da arte se transformava no próprio processo da reestruturação das relações de produção, da construção do poder operário e da reordenação psíquica. Segundo Tretiakov (2006a, p. 17, grifos do autor)TRETIAKOV, Sergei.Art in the revolution and the revolution in art (aesthetic consumption and production). October, Cambridge, v. 118, p. 11-18, 2006a. Disponível em: <https://bit.ly/2mecXLu>. Acesso em: 5 jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.11.
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, “A alegria em transformar a matéria bruta em formas socialmente úteis (…): é isso que Arte para todos! deveria ser”.25 25 No texto em inglês: “Joy in transforming raw material into some socially useful form: this is what this ‘art for all!’ should have become” (TRETIAKOV, 2006a, p. 17).

A superação da “forma espectador”

Talvez seja possível situar os produtivistas entre um grupo minoritário que, durante o processo revolucionário russo, procurou questionar as bases do pensamento burguês no seio do movimento operário e, especificamente, partidário. Se, em 1924, Evgeny Pachukanis (1891-1937), rechaçando qualquer tentativa teórica de fundamentar um direito socialista, analisou o Direito como uma construção especificamente burguesa, cujo núcleo articulador seria a “forma sujeito” e o estabelecimento de contratos que daí decorreriam entre indivíduos juridicamente livres e abstratamente iguais (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). Tradução Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017.), talvez seja possível pensar que a LEF e os teóricos produtivistas operaram uma crítica análoga no campo artístico.

Também na arte concebida na ilustração como “produção por liberdade” e contraposta, no esquema kantiano, ao artesanato, entendido como atividade remunerada e penosa,26 26 “A arte distingue-se também do ofício; a primeira chama-se arte livre, a outra pode também chamar-se arte remunerada. Observa-se a primeira como se ela pudesse ter êxito (ser bem-sucedida) conforme a um fim somente enquanto jogo, isto é, ocupação que é agradável por si própria; observa-se a segunda enquanto trabalho, isto é, ocupação que por si própria é desagradável (penosa) e é atraente somente por seu efeito (por exemplo, pela remuneração), que, por conseguinte, pode ser imposta coercitivamente” (KANT, 2008, p. 150). o pressuposto é a “forma sujeito”, isto é, um sujeito contemplativo e distante do processo produtivo. Essa concepção específica de experiência estética, calcada na oposição à atividade interessada, realizou-se historicamente nas sociedades burguesas estruturadas por meio da divisão social do trabalho e voltadas para a produção de mercadorias. Talvez seja possível afirmar, então, que, de acordo com a teoria produtivista, o núcleo articulador da arte burguesa é a “forma espectador”, que deveria ser superada no decorrer do processo revolucionário através da reorganização das relações de produção.

É possível apontar, nesse sentido, que também Benjamin visava a superação da divisão social do trabalho ao afirmar que “o comunismo politiza a arte”. Em uma das anotações feitas durante o processo de elaboração de “A obra de arte…”, lê-se que:

A produção cinematográfica tem uma enorme importância para a liquidação da diferença entre trabalho manual e intelectual. As leis da representação no cinema exigem do ator uma total sensualização [sic] dos reflexos e das reações mentais; e exigem também dos operadores um trabalho altamente intelectualizado. A divisão do trabalho surge na vida a partir do momento em que se manifesta uma diferença entre trabalho manual e intelectual. Se essa afirmação de A ideologia alemã faz sentido, então nada servirá melhor à liquidação da divisão do trabalho e do desenvolvimento de uma formação politécnica do homem do que o apagamento das diferenças entre trabalho manual e intelectual. Hoje podemos segui-lo de uma forma particularmente evidente na produção cinematográfica, ainda que não exclusivamente nela. (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 245)

“Politizar a arte”, portanto, implicava não apenas transformar sua temática e tratá-la a partir de um “estilo moderno”, tal como feito pela Nova Objetividade. “Politizar a arte”, segundo a posição benjaminiana, era superá-la como atividade especializada, questionando e modificando as condições de produção, circulação e realização do valor na produção artística. Lida dessa maneira, a frase final do ensaio “A obra de arte…” adquire outra dimensão: se a política fascista operava a partir da criação de representações visuais que simulavam a realização de uma “revolução” e pacificavam a classe trabalhadora, a resposta comunista deveria se localizar na superação da lógica contemplativa e na reestruturação radical do psiquismo e das relações produtivas.27 27 Benjamin alinhava-se ao ideário produtivista ao criticar a “ilusão de que o trabalho industrial, que é uma característica do progresso técnico, traduz-se em uma vitória política”. Segundo ele, tal ilusão desconsiderava “a questão de como os produtos das fábricas beneficiavam os trabalhadores” (BENJAMIN apud BUCK-MORSS, 1995, p. 19).

O realismo stalinista

Ainda que “A obra de arte…” tenha sido um texto concebido para combater a política fascista, talvez seja possível afirmar que a matriz das categorias “estetização da política” e “politização da arte” foram tributárias da análise de Benjamin sobre a URSS e a ela também se referem. Tais conceitos parecem ser, efetivamente, uma espécie de corolário do diálogo de Benjamin com o grupo LEF. Assim, se ele afirmava, na primeira parte do ensaio, que os conceitos ali introduzidos “diferenciavam-se dos [conceitos] mais recorrentes [na teoria da arte tradicional] pelo fato de serem completamente inutilizáveis para os objetivos do fascismo” (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 11), o mesmo se poderia dizer quanto à inutilidade de tais conceitos para os objetivos do regime stalinista.

Com efeito, no contexto do recrudescimento da repressão política, consubstanciada na instauração dos Processos de Moscou (1935-1938) e na fundação do movimento stakhanovista (1935), a “estetização da política” desempenhava um papel-chave, seja na “espetacularização” dos julgamentos dos opositores ao regime, seja na promoção do otimismo e do trabalho. Nesse cenário, quais conceitos informavam e justificavam tal atividade artística?

Além da noção de “realismo heroico”, elaborada pela AKhRR, a publicação, em 1933, de uma coletânea de textos de Marx e Engels sobre arte e cultura parece ter contribuído decisivamente para a elaboração do discurso oficial. Tratava-se da primeira compilação realizada sobre o tema e cuja organização fora feita pelos filósofos húngaros György Lukács (1885-1971) e Mikhail Lifschitz (1905-1983), no Instituto Marx-Engels-Lênin, dirigido por David Riazanov (1870-1938).

Esta compilação marcava a “canonização” de uma estética “propriamente marxista”, isto é, de uma leitura bastante particular deste conjunto de fragmentos de Marx e Engels e patrocinada pelo governo soviético (STRADA, 1989STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWM, Eric J. História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989., p. 120). A compilação estruturava-se em temas (como “Concepção materialista da história da cultura”, “A arte na sociedade de classes”, “O partido da classe operária e o ethos pequeno-burguês dos literatos” etc.) que agrupavam trechos das obras de Marx e Engels de forma não cronológica.28 28 28 A análise da coletânea de Marx e Engels é baseada na edição Cultura, arte e literatura, da editora Expressão Popular, que se apresenta como fiel à estrutura originalmente concebida e editada por Lukács e Lifschtz. Cf. Engels e Marx (2010). O primeiro tema da coletânea, “Problemas gerais da criação artística”, apresentava como primeiro subtema o assunto “Ideologia e realismo”, a partir do qual se podia deduzir, como efetivamente aconteceu, uma suposta concepção genuinamente marxista sobre o realismo nas artes.

Tal concepção partia da defesa, realizada por Engels, de uma literatura que explorasse as nuances psíquicas das personagens e as contradições do quadro histórico no qual se desenvolviam as ações da obra. Conforme Engels, em carta à escritora Margaret Harkness (1854-1923), de 1888,

Quanto mais dissimulados os pontos de vista do autor, melhor será para a obra artística. O realismo a que me refiro se manifesta, inclusive, independentemente dos pontos de vista do autor. (ENGELS, 2010ENGELS, Friedrich. Engels a Margaret Harkness. In: ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução José Paulo Neto, Miguel Makoto. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 67-69., p. 68)

Engels criticava, na carta, a suposta caricatura realizada por Harkness da classe operária no romance A city girl (1887). Segundo Engels, ao mesmo tempo que as personagens trabalhadoras eram representadas por Harkness de maneira uniforme e sem vida, elas eram investidas de um discurso político radical que as tornava caricaturais. Em oposição a essa estratégia narrativa, Engels propunha que o escritor deveria focar na investigação e na representação do drama humano em todas as suas nuances e contradições. A postura artística reivindicada por ele, chamada de “realista”, era definida como a representação de “caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas” (ENGELS, 2010ENGELS, Friedrich. Engels a Margaret Harkness. In: ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução José Paulo Neto, Miguel Makoto. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 67-69., p. 67).

Em 1934, o escritor A. I. Stetsky parafraseava a definição de realismo de Engels para defender as representações literárias da classe trabalhadora russa feitas durante a primeira metade do decênio de 1930. Ironicamente, a defesa de Stetsky reproduzia precisamente as construções literárias caricaturais criticadas por Engels. Em seu discurso no plenário do Congresso dos Escritores, que definiu o “realismo socialista” como a estética oficial do regime, ele afirmou:

Nós todos conhecemos o princípio, formulado por Engels, de que o artista deve representar caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas. E se nós tomarmos como exemplo os representantes dos trabalhadores, dos camponeses das fazendas coletivas e dos membros do Exército Vermelho que estiveram conosco nesta tribuna, veremos que ninguém carrega tão notavelmente a verdade deste princípio como eles o fazem. Isso porque essas pessoas foram criadas na titânica luta de classes que tem sido travada em nosso país estes anos. (STETSKY, 2005STETSKY, Alexei I. Under the flag of the Soviets, under the flag of socialism. Marxists, [S. l.], 7 jan. 2005. Disponível em: <https://bit.ly/2lSD7D9>. Acesso em: 15 jun. 2019.
https://bit.ly/2lSD7D9...
)29 29 No texto em inglês: “We all know Engels’ principle that an artist should depict typical characters in typical circumstances. And if we take as an example the characters of those representatives of the workers, collective farmers, and Red Army men who have appeared here on this rostrum, no one so strikingly bears out the truth of this principle as they do. For these characters were created in the titanic class struggle which has been raging in our country through out all these years” (STETSKY, 2005).

A definição de realismo realizada por Engels no século XIX era, assim, descontextualizada e trazida à tona na URSS de 1930.

A intervenção de Stetsky no Congresso, como a de diversos outros escritores e militantes comunistas, foi editada e publicada na URSS em 1935 (SCOTT, 1980SCOTT, H. G. (ed.). Problems of Soviet literature: reports and speeches at the first Soviet Writers’ Congress. London: Martin Lawrence, 1980.). Difundia-se, assim, um conceito específico sobre o “realismo” nas artes, bastante distinto do conceito de realismo elaborado por teóricos produtivistas que eram, no decênio de 1930, marginalizados e reprimidos pelo governo, na medida em que, para além do domínio da representação, explicitavam as contradições do processo produtivo na arte, tal como foi retomado por Benjamin em “O autor como produtor”.

A noção de realismo, “retomada” por Stetsky e Lukács30 30 Lukács alinhava-se à política stalinista ao fazer equivaler a posição de Engels com a posição de Stálin. Ele escreveu, em 1936, que “através desta aplicação do materialismo dialético aos problemas da literatura, [Engels] descobriu e elaborou - juntamente com Marx - aquela linha de desenvolvimento da literatura proletária que seus grandes discípulos, Lenin e Stalin, continuaram, defenderam contra toda deformação oportunista e desenvolveram e concretizaram ulteriormente. A luta de Engels por um grande realismo, enriquecida pela obra teórica de Lenin, é posteriormente desenvolvida e concretizada - em um período no qual o proletariado já triunfou, no período da construção socialista - pela palavra de ordem staliniana do ‘realismo socialista’” (LUKÁCS, 2010, p. 47). , partilhava com os “artistas de cavalete” a defesa da estética contemplativa. Tais teóricos não questionavam os esquemas estruturais de produção e de circulação das obras, conforme questionara o movimento produtivista anos antes; eles detinham-se, pelo contrário, na análise semântica dos textos, segundo a economia da representação.31 31 Benjamin, em oposição aos teóricos do “realismo” associados ao regime soviético, indagava sobre as condições de produção e recepção do romance, tal como os produtivistas fizeram. Ademais, o romance parece, nos textos de Benjamin, funcionar como uma espécie de “narcótico”, conforme a definição de Tretiakov. Em “O narrador”, texto de 1936, o filósofo alemão enfatizava a recepção individual inerente ao romance. Ele escreveu, investigando o psiquismo do leitor burguês: “Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. (…) Em consequência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro” (BENJAMIN, 1987b, p. 213-214).

Crítica da arte/crítica da mercadoria

A crítica empreendida por Benjamin sobre os novos aparatos de reprodução técnica foi uma pedra angular de sua teoria social. Em tal crítica, apresentava-se um projeto investigativo sobre a constituição do regime de circulação das mercadorias e da reestruturação perceptiva operada na modernidade. Assim, Benjamin parecia retomar e desenvolver, em “A obra de arte…”, o projeto de crítica da “mercadoria-arte”. Esta, que fora constituída no decorrer do desenvolvimento capitalista, era endossada pela inflexão capitalista da URSS através do estabelecimento da NEP. A repressão ao movimento produtivista, que fazia a crítica do fetichismo da arte e da mercadoria em geral, acentuou o endosso da “mercadoria-arte”. Com efeito, é razoável perguntar: teria sido historicamente possível a crítica radical acerca da “mercadoria-arte” e de suas formas institucionais sem o processo da Revolução de Outubro, que em seus primórdios visava e supostamente possibilitava a superação da divisão social do trabalho?

Adotando o partido crítico de O capital, Benjamin situava os objetos de arte entre as demais mercadorias e formas de produção de valor sociais. Daí decorrem as analogias elaboradas por ele entre, por exemplo, a forma mercadoria, objeto da contradição interna entre valor de uso e valor, e a forma artística, internamente cindida entre a contradição valor de uso e valor de exposição. Também parece existir uma analogia entre a proposição de Benjamin, de que o desenvolvimento das novas formas de reprodução técnica ensejam as condições para uma possível reestruturação psíquica e social, e a ideia de Marx de o desenvolvimento capitalista produzir, mediante sua expansão produtiva e sua configuração de classes, as possibilidades de sua própria superação por meio da ação política revolucionária (MARX, 1985MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, v. 1. Tradução Regis Barbosa, Flávio Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1985.).

E, estendendo a comparação, por que não afirmar que a “estetização da política”, praticada pelo fascismo, é uma espécie de radicalização do fetichismo da mercadoria? Tal radicalização consistiria, assim, não apenas no mascaramento do processo de produção dos objetos no capitalismo, os quais parecem ganhar vida própria, mas também no mascaramento do processo político, que passa a ser contemplado ao invés de praticado. De toda maneira, a “estetização da política” se apresenta como fruto do esmagamento dos movimentos de massa e dos esquemas de auto-organização política - seja na URSS, na Alemanha nazista ou na Itália fascista. Nesses processos de repressão, marcados pela lógica da modernização acelerada, o proletariado aparenta se comportar diante da produção simbólica tal como Marx descreveu o comportamento da humanidade frente ao valor de troca: “[O movimento social dos homens] possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las” (MARX, 1985MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, v. 1. Tradução Regis Barbosa, Flávio Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1985., p. 72-73).

  • *
    O presente texto só foi possível graças às inúmeras conversas e trocas de materiais com a grande amiga e pesquisadora Clara de Freitas Figueiredo, a quem agradeço imensamente. Em sua tese de doutoramento, Fotografia: Entre Fato e Farsa (URSS-Itália, 1928-1934), ela estabelece uma leitura do processo soviético a partir das categorias de “estetização da política” (W. Benjamin) e “revolução passiva” (A. Gramsci), determinando os nexos históricos do pensamento de Walter Benjamin com o ideário do movimento produtivista russo. O presente artigo, tributário da tese referida, procura desenvolver alguns aspectos de tais nexos históricos e conceituais. Cf. FIGUEIREDO, Clara de Freitas. Fotografia: entre fato e farsa (URSS-Itália, 1928-1934). Tese de doutorado em Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia.
  • 1
    Cabe apontar que as obras visuais que realizaram o elogio do trabalho e dos trabalhadores não se restringiram aos chamados regimes “totalitários”. Em 1935, os Estados Unidos sediaram na Filadélfia a mostra A arte da Rússia soviética, que exibiu as pinturas do início dos anos 1930 de artistas soviéticos vinculados ao regime stalinista. Aleksandr Deineka (1899-1969) e Ossip Beskin (1892-1969), personagens centrais na elaboração do realismo socialista e na crítica do “formalismo”, visitaram os EUA por conta da exibição referida e constataram, não obstante as diferenças entre o contexto americano e soviético, as similaridades entre a pintura soviética “oficial” e algumas pinturas do novo realismo americano. Com efeito, não seriam as pinturas de Charles Sheeler (1883-1965) uma espécie de celebração da economia americana semelhante à celebração realizada na URSS? E o mural de Thomas Hart Benton (1889-1975), American today (1930-31), não poderia ser lido, também, como uma espécie de apologia do trabalho calcado na noção de um trabalhador radicalmente empenhado na elevação da produtividade? Sobre o tema, Cf. Kiaer (2010, p. 241-282)KIAER, Christina. Modern soviet art meets America, 1935. In: RASMUSSEN, Mikkel Bolt & WAMBERG, Jacob (ed.). Totalitarian art and modernity. Aarhus: Aarhus University Press, 2010, p. 241-282..
  • 2
    Cabe acrescentar que, a partir de 1936, a comparação entre o realismo socialista e a arte fascista parece também ser mais recorrente nos círculos de esquerda, conforme demonstra o Manifesto da FIARI (1938), escrito por Trotsky e pelo surrealista francês André Breton (1896-1966). Cf. Breton e Trotsky (1985)BRETON, André & TROTSKY, Leon. Por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e Terra, 1985..
  • 3
    A Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR) foi fundada em 1922 pelo pintor Pavel Radimov (1887-1967). Nomeado presidente da associação, ele declarou que “os artistas, em nossa sociedade, devem representar com exatidão na pintura e na escultura os acontecimentos da Revolução, devem retratar os líderes e ilustrar o papel do Povo, dos trabalhadores simples, dos operários e camponeses” (apud LODDER, 1988LODDER, Christina. El constructivismo ruso. Tradução Maria Condor Orduña. Madrid: Alianza Editorial, 1988., p. 184, grifos nossos). Os verbos utilizados por Radimov para definir a atividade dos artistas da sociedade soviética - “representar”, “retratar” e “ilustrar” - sintetizam o projeto artístico da AKhRR. No folheto da primeira exposição do grupo (cujo tema foi o Exército Vermelho), realizada em maio de 1922, os objetivos da AKhRR foram assim definidos: “O dia revolucionário e o momento revolucionário são um dia heroico e um momento heroico, e agora devemos revelar nossa experiência artística nas formas monumentais do realismo heroico” (apud LODDER, 1988LODDER, Christina. El constructivismo ruso. Tradução Maria Condor Orduña. Madrid: Alianza Editorial, 1988., p. 184, grifos nossos). Assim, um mês após a declaração de Radimov, a AKhRR definia o seu projeto artístico com base na ideia da formulação de uma estética “monumental”, vinculada ao suposto teor heroico dos eventos revolucionários. O ato de “representar com exatidão (…) os acontecimentos da Revolução”, conforme havia afirmado Radimov, traduzia-se, portanto, não na apreensão crítica do processo revolucionário, mas na heroicização do processo e na celebração do modo de vida soviético e das lideranças bolcheviques. A partir de 1928, o Partido Comunista passou a apoiar publicamente a estética do realismo heroico, voltada, com a mudança do contexto político-econômico, para a apologia do Plano Quinquenal.
  • 4
    Em Diário de Moscou, Benjamin (1989, p. 98)BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. refere-se à AKhRR como “a escola de arte reacionária dos camponeses”.
  • 5
    A Nova Política Econômica foi proposta pelo dirigente bolchevique Vladimir Lênin (1870-1924) no 10º Congresso do Partido Bolchevique, que foi realizado entre 8 e 16 de março de 1921, em Moscou. A NEP consistia, em linhas gerais, na negação das políticas do Comunismo de Guerra (1918-1920), por meio do restabelecimento da liberdade de comércio, da interrupção das requisições forçadas de cereais aos camponeses (substituída pelo imposto em espécie) e do regresso parcial à gestão privada das indústrias.
  • 6
    “A geração que estava na ativa na época da Revolução começa a envelhecer. É como se a estabilização da situação do Estado tivesse introduzido em suas vidas uma tranquilidade, ou até uma indiferença, como a que normalmente se adquire apenas com a idade” (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 115).
  • 7
    Em “Moscou”, texto escrito após a volta da URSS, Benjamin comenta sobre este distanciamento retórico, sem, no entanto, referir a apresentação de Meyerhold. Ele interpreta tal distanciamento do seguinte modo: “Rumina-se o parecer dez vezes antes de emiti-lo a alguém de fora [estrangeiro]. Pois a qualquer hora o Partido, incidentemente, inopinadamente, toma uma posição no Pravda, e ninguém gosta de ser desmentido. Já que uma mentalidade confiável, se não é o único bem, é para a maioria das pessoas a garantia única de outros bens, lidam com o próprio nome e com a própria voz com tanta cautela que um cidadão de constituição democrática não pode entendê-los” (BENJAMIN, 1987aBENJAMIN, Walter. Moscou. In: BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987a, p. 155-187., p. 173).
  • 8
    Um texto publicado alguns meses antes da viagem de Benjamin à URSS explicitava o crescimento da AKhRR. Em 6 de junho de 1926, o líder da AKhRR Yevgeny Katsman publicou na revista Zhizn iskusstsva um artigo intitulado “Que respondam”. Segundo ele, “A revolução acolhe com carinho a AKhRR. A AKhRR (…) está há cinco anos crescendo e ampliando-se (…) [Ela] organizou oito exposições centrais e inúmeras exposições ‘menores’. A URSS está contagiada pela AKhRR, que possui mais de cinquenta filiais. Em todas as escolas de arte existem organizações juvenis da AKhRR, as ‘OJAKhRR’. Pelas exposições da AKhRR passaram centenas de milhares de operários e camponeses” (KATSMAN, 1973KATSMAN, Yevgeny. Que respondan. In: ARVATOV, Boris. Arte y produccion: el programa del productivismo. Tradução José Fernandez Sanchez. Madrid: Alberto Corazon, 1973, p. 113-116., p. 115). Sobre as greves operárias no período da NEP, Cf. Pospielovsky (1997)POSPIELOVSKY, Andrew. Strikes during the NEP. Revolutionary Russia, London, v. 10, n. 1, p. 1-34, 1997. Disponível em: <https://bit.ly/2med5dW>. Acesso em: 16. jul. 2019. doi: https://doi.org/10.1080/09546549708575661.
    https://bit.ly/2med5dW...
    .
  • 9
    A Oposição Unificada era liderada por Leon Trotsky (1879-1940) e por Grigori Zinoviev (1883-1936).
  • 10
    Benjamin realiza um trocadilho com o termo nepp que, em alemão, significa tanto “vigarice” quanto “inflação”, para referir-se à Nova Política Econômica soviética.
  • 11
    “O ‘basta’ que, um dia, o Partido com a NEP contrapôs ao comunismo de guerra, produziu um terrível contragolpe que subjugou muitos lutadores do movimento. Naquela época milhares devolveram ao Partido a carteirinha de membro. Sabe-se de casos de derrocadas tão completas que, em poucas semanas, fiéis suportes do Partido se fizeram seus defraudadores. Para o bolchevique, o luto por Lênin é, ao mesmo tempo, o luto pelo comunismo heroico” (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Tradução Hildegard Herbold. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 186-187).
  • 12
    Para a definição do movimento produtivista soviético, ver o item “O grupo LEF e a crítica de arte” deste texto.
  • 13
    Em “O autor como produtor”, Benjamin parece explicitar também a noção construtivista de “encomenda social”. Para o detalhamento deste conceito e do uso que faz dele, Cf. Figueiredo (2017)FIGUEIREDO, Clara de Freitas. Uma noiva vermelha! In: SILVA, Michel (org.). Revolução Russa: passado e presente. Blumenau: Todas as Musas, 2017, p. 51-83..
  • 14
    Tretiakov encarregou-se, entre julho de 1928 e o final de 1930, da gestão das comunicações administrativas entre a fazenda coletiva O farol comunista e as autoridades de Moscou, além da edição de um jornal distribuído entre dezesseis fazendas e fundamentado nos relatos dos camponeses. Ele procurou, assim, pôr em prática o movimento factográfico.
  • 15
    Salvo indicação em contrário, todas as traduções são nossas. No texto em inglês: “Some are disheartened. They complain: Where is the monumental art of the revolution? Where are the “major canvases” of the red epic? Where are our red Homers and red Tolstoys? And then there are the optimists who reply: Just you wait! Revolution is always clumsy when it comes to art, but give things some time. The future Goncharovs and Leo Tolstoys are entering grade school. And for now, sustain yourself with the provisional Tolstoys: Seifullina, Pil’niak, and Veresaev. They may not be all one could ask for, and Virineia is not exactly War and Peace, but we will be patient” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
    https://bit.ly/2lLQ3uC...
    , p. 47). Embora Tretiakov não tenha mencionado Trotsky em “O novo Leon Tolstói”, ambas as posições por ele descritas - as posições dos “desconsolados” e a dos “otimistas” - estavam presentes em “A cultura e a arte proletárias”, do líder oposicionista. Trotsky escreveu, por exemplo, questionando os apologistas da suposta arte monumental soviética: “Camaradas, onde está essa arte de grande envergadura, grande estilo, esta arte monumental? Onde?”; e “Pode-se dizer, com muita razão, que os Shakespeare e os Goethe proletários hoje correm descalços para alguma escola primária” (TROTSKY, 2007TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Tradução Luiz Alberto Moniz Bandeira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 160, 164).
  • 16
    Tretiakov escreveu: “O Tolstói que estão todos esperando pode ser descrito por uma simples fórmula: um narrador de grande maestria mais um professor da vida” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
    https://bit.ly/2lLQ3uC...
    ,p. 47). No texto em inglês: “The Tolstoy that everyone is waiting for can be described by a simplistic formula: a ‘describer’ of the broadest sort, plus a teacher of life”.
  • 17
    No texto em inglês: “Today’s newspaper is for the Soviet activist what the didactic novel was for the Russian liberal intelligentsia and what the bible was for the medieval Christian: the guide to all of life’s situations. It encompasses events, their synthesis, and directives in all sectors of the social, political, economic, and everyday-material fronts” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
    https://bit.ly/2lLQ3uC...
    , p. 49).
  • 18
    No texto em inglês: “We have no reason to wait for Tolstoys. We have our epic literature. Our epic literature is the newspaper” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
    https://bit.ly/2lLQ3uC...
    , p. 49).
  • 19
    A necessidade da formação de um público para os jornais foi pensada anteriormente por Trotsky em Questões do modo de vida (1923). Também Aleksandr Rodchenko (1892-1956) a concebeu no projeto do Clube de Trabalhadores (1925), que ele expôs em Paris. Rodchenko procurava, mediante a construção de uma biblioteca e uma sala de leituras, estimular o proletariado soviético à consulta e à reflexão baseadas nos periódicos soviéticos.
  • 20
    No texto em inglês: “The entire anonymous newspaper mass, from the workercorrespondent to the writer of the lead article, is the collective Tolstoy of our time” (TRETIAKOV, 2006bTRETIAKOV, Sergei.The new Leo Tolstoy .October, Cambridge, v. 118, p. 45-50, 2006b. Disponível em: <https://bit.ly/2lLQ3uC>. Acesso em: 3 abr. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.45.
    https://bit.ly/2lLQ3uC...
    , p. 49).
  • 21
    A produção documental realizada pelas “massas anônimas” soviéticas já era uma prática generalizada em 1927 - o que tornava o projeto factográfico viável historicamente, segundo Tretiakov. Tal produção era feita, como apontava o produtivista, pelo movimento dos “correspondentes operários” [rabcors]. O vínculo entre as publicações partidárias e a produção de relatos por parte de operários e camponeses pobres estabeleceu-se no período da Guerra Civil, quando o Pravda e outros periódicos partidários requisitaram publicamente cartas de operários e camponeses que relatassem a situação da guerra civil em distintos locais da Rússia. A 4ª Conferência do Sindicato dos jornalistas soviéticos, realizada em 1923, aprovou a colaboração de correspondentes operários e camponeses nos jornais soviéticos. Tais correspondentes deveriam informar aos jornais os problemas nos locais de trabalho e vilas e, assim, funcionarem como uma espécie de fiscais do Estado soviético, denunciando os abusos cometidos por membros do Partido, “especialistas” e kulacs. Em novembro de 1923, o Departamento de Agitprop do Partido, aliado ao comitê editorial do Pravda, organizou a 1ª Conferência dos Correspondentes Operários, na qual o movimento referido foi fundado. Bukharin, em 1926, era enfático quanto aos perigos dos relatos dos rabcors - perigos que ele atribuía à influência pequeno-burguesa dos imigrantes do campo que iam às cidades, escrevendo que: “[as cartas dos rabcors] são marcadas por uma rispidez inadequada com relação aos gestores [especialistas] e aos dirigentes sindicais, por denúncias excessivamente enfáticas dos superiores, pela incapacidade de reconhecer as realizações reais da indústria soviética e pelo ocultamento dos aspectos negativos do trabalho dos próprios operários” (LENOE, 2004LENOE, Matthew. Closer to the masses: Stalinist culture, social revolution and soviet newspapers. Massachusetts: Harvard University Press, 2004., p. 122). A reivindicação de Tretiakov, quanto à necessidade da reestruturação da produção literária com base na atividade autônoma dos rabcors afrontava, portanto, a linha política da burocracia partidária, de restrição e supervisão dos relatos.
  • 22
    No editorial da primeira edição de 1924 da LEF, cujo título foi “Não comercializem Lenin!”, Maiakovski (1893-1930) escreveu: “Somos solidários com os ferroviários da estrada Kazan, que propuseram a um artista que fizesse em suas casas uma Sala Lenin, sem busto nem retrato, e disseram: ‘Não queremos ícones’. Insistimos: nada de Lenins em série. Não reproduzam seus retratos em manifestos, telas encerradas, pratos, copos, cigarreiras. Não façam Lenins em bronze falso. (…) Precisamos dele vivo, e não morto. Portanto, sigam as lições de Lenin, não o canonizem” (MAIAKOVSKI, 1924 apud ALBERA, 2002ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo. Tradução Heloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2002., p. 263). Para o detalhamento da crítica “lefista” ao culto a Lênin, Cf. Figueiredo (2016)FIGUEIREDO, Clara de Freitas. Não comercializem Lênin! A crítica da LEF ao culto do chefe. Dazibao, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 27-62, 2016..
  • 23
    No texto em inglês, traduzido do russo por Christina Kaier: “The great majority of Marxists who address the problem of proletarian culture approach it on a purely ideological level, or at the very least take ideology as the point of departure for their investigations. Views on culture dominant within the Marxist Sphere are characterized by a peculiar ideologism” (ARVATOV, 1997ARVATOV, Boris. Everyday life and the culture of the thing (toward the formulation of the question). October, Cambridge, v. 81, p. 119-128, 1997. Disponível em: <https://bit.ly/2lJ4Lm9>. Acesso em: 25 jan. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.2307/779022.
    https://bit.ly/2lJ4Lm9...
    , p. 119).
  • 24
    No texto em inglês: “We must remember that it was the curse of forced labor that actually generated this need in its day. It was this curse that primed people to assimilate the haze of a “bourgeois culture” that instilled passivity and contemplation” (TRETIAKOV, 2006aTRETIAKOV, Sergei.Art in the revolution and the revolution in art (aesthetic consumption and production). October, Cambridge, v. 118, p. 11-18, 2006a. Disponível em: <https://bit.ly/2mecXLu>. Acesso em: 5 jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.11.
    https://bit.ly/2mecXLu...
    , p. 18).
  • 25
    No texto em inglês: “Joy in transforming raw material into some socially useful form: this is what this ‘art for all!’ should have become” (TRETIAKOV, 2006aTRETIAKOV, Sergei.Art in the revolution and the revolution in art (aesthetic consumption and production). October, Cambridge, v. 118, p. 11-18, 2006a. Disponível em: <https://bit.ly/2mecXLu>. Acesso em: 5 jan. 2019. doi: https://doi.org/10.1162/octo.2006.118.1.11.
    https://bit.ly/2mecXLu...
    , p. 17).
  • 26
    “A arte distingue-se também do ofício; a primeira chama-se arte livre, a outra pode também chamar-se arte remunerada. Observa-se a primeira como se ela pudesse ter êxito (ser bem-sucedida) conforme a um fim somente enquanto jogo, isto é, ocupação que é agradável por si própria; observa-se a segunda enquanto trabalho, isto é, ocupação que por si própria é desagradável (penosa) e é atraente somente por seu efeito (por exemplo, pela remuneração), que, por conseguinte, pode ser imposta coercitivamente” (KANT, 2008KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valerio Rohden, Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 150).
  • 27
    Benjamin alinhava-se ao ideário produtivista ao criticar a “ilusão de que o trabalho industrial, que é uma característica do progresso técnico, traduz-se em uma vitória política”. Segundo ele, tal ilusão desconsiderava “a questão de como os produtos das fábricas beneficiavam os trabalhadores” (BENJAMIN apud BUCK-MORSS, 1995BUCK-MORSS, Susan. The city as dreamworld and catastrophe. October, Cambridge, v. 73, p. 3-26, 1995. Disponível em: <https://bit.ly/2lQKuLk>. Acesso em: 15 abr. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.2307/779006.
    https://bit.ly/2lQKuLk...
    , p. 19).
  • 28
    28 A análise da coletânea de Marx e Engels é baseada na edição Cultura, arte e literatura, da editora Expressão Popular, que se apresenta como fiel à estrutura originalmente concebida e editada por Lukács e Lifschtz. Cf. Engels e Marx (2010)ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução José Paulo Neto, Miguel Makoto. São Paulo: Expressão Popular, 2010..
  • 29
    No texto em inglês: “We all know Engels’ principle that an artist should depict typical characters in typical circumstances. And if we take as an example the characters of those representatives of the workers, collective farmers, and Red Army men who have appeared here on this rostrum, no one so strikingly bears out the truth of this principle as they do. For these characters were created in the titanic class struggle which has been raging in our country through out all these years” (STETSKY, 2005STETSKY, Alexei I. Under the flag of the Soviets, under the flag of socialism. Marxists, [S. l.], 7 jan. 2005. Disponível em: <https://bit.ly/2lSD7D9>. Acesso em: 15 jun. 2019.
    https://bit.ly/2lSD7D9...
    ).
  • 30
    Lukács alinhava-se à política stalinista ao fazer equivaler a posição de Engels com a posição de Stálin. Ele escreveu, em 1936, que “através desta aplicação do materialismo dialético aos problemas da literatura, [Engels] descobriu e elaborou - juntamente com Marx - aquela linha de desenvolvimento da literatura proletária que seus grandes discípulos, Lenin e Stalin, continuaram, defenderam contra toda deformação oportunista e desenvolveram e concretizaram ulteriormente. A luta de Engels por um grande realismo, enriquecida pela obra teórica de Lenin, é posteriormente desenvolvida e concretizada - em um período no qual o proletariado já triunfou, no período da construção socialista - pela palavra de ordem staliniana do ‘realismo socialista’” (LUKÁCS, 2010LUKÁCS, György. Friedrich Engels, teórico e crítico da literatura. In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 19-51., p. 47).
  • 31
    Benjamin, em oposição aos teóricos do “realismo” associados ao regime soviético, indagava sobre as condições de produção e recepção do romance, tal como os produtivistas fizeram. Ademais, o romance parece, nos textos de Benjamin, funcionar como uma espécie de “narcótico”, conforme a definição de Tretiakov. Em “O narrador”, texto de 1936, o filósofo alemão enfatizava a recepção individual inerente ao romance. Ele escreveu, investigando o psiquismo do leitor burguês: “Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. (…) Em consequência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro” (BENJAMIN, 1987bBENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987b, p. 197-221., p. 213-214).

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Editado por

Editores responsáveis pela publicação:
Iris Kantor e Rafael de Bivar Marquese.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2018
  • Aceito
    26 Mar 2019
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