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O NEOCONSERVADORISMO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: AS IDEIAS DE IRVING KRISTOL E A EXPERIÊNCIA POLÍTICA NO GOVERNO RONALD REAGAN (1981 - 1989)1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo

NEOCONSERVATISM IN THE UNITED STATES OF AMERICA: IRVING KRISTOL’S IDEAS AND POLITICAL EXPERIENCE IN THE RONALD REAGAN ADMINISTRATION (1981 - 1989)

Resumo

O neoconservadorismo é um fenômeno. No final dos anos 1960, os Estados Unidos da América (EUA) e o mundo deram os primeiros passos rumo a uma crise sistêmica, persistente e generalizada. Neste contexto, Irving Kristol e um grupo de intelectuais começaram a gestar um conjunto de ideias para solucionar os dilemas que a crise impôs aos EUA. No início dos anos 1970, Kristol e seus colegas conformaram uma percepção de mundo madura, o neoconservadorismo. Logo, ficaram conhecidos como neoconservadores ou necons. Poucos anos depois, os neocons e o neoconservadorismo chegaram ao governo de Ronald Reagan (1981 - 1989) como protagonistas. Desde então, rondam a Casa Branca, seja no salão oval ou nos jardins dos fundos. Este artigo é resultado de uma pesquisa, que buscou examinar o fenômeno do neoconservadorismo. Nas próximas páginas este artigo vai apresentar as reflexões de Kristol e o processo de conformação do neoconservadorismo como percepção de mundo. E vai analisar a experiência do governo Reagan com o neoconservadorismo como projeto político.

Palavras-chave
Neoconservadorismo; Estados Unidos da América; Irving Kristol; Ronald Reagan; Welfare

Abstract

Neoconservatism is a phenomenon. In the late 1960s, the United States of America (USA) and the world took the first steps towards a systemic, persistent and widespread crisis. In this context, Irving Kristol and a group of intellectuals began to generate a set of ideas to solve the dilemmas that the crisis imposed on the USA. In the early 1970s, Kristol and her colleagues formed a mature ideology, known as neoconservatism. Soon, they became known as neoconservatives or necons. A few years later, neocons and neoconservatism arrived at the White House as protagonists in the Ronald Reagan presidency (1981 - 1989). Since then, they have been hanging around the White House, either in the Oval Office or in the backyard. This article is the result of research that sought to examine the neoconservatism as a phenomenon. In the next pages this article will present Kristol’s reflections and the process of shaping neoconservatism as a perception of the world. And it will analyze the Reagan administration’s experience with neoconservatism as a political project.

keywords
Neoconservatism; United States of America; Irving Kristol; Ronald Reagan; Welfare

Introdução: o dilema da hegemonia

No fim da década de 1960, a iminente derrota na Guerra do Vietnã (1955 - 1973), a persistência de bolsões de pobreza e a recuperação econômica do Japão e da Europa impuseram limites à hegemonia dos Estados Unidos da América (EUA). A derrota no Vietnã acarretou custos enormes em diferentes áreas. Os EUA gastaram cerca de US$ 173 bilhões, apenas em combates e ajuda militar ao Vietnã do Sul, e arcaram com mais US$ 251 bilhões com juros e assistência aos veteranos (CAMPAGNA, 1991CAMPAGNA, Anthony. The economic consequences of the Vietnam War. New York: Praeger, 1991., p. 248; 257). Dentro do país, o governo de Lyndon Johnson (1963 - 1969) lançou a Grande Sociedade, uma plataforma política para acabar coma pobreza e ampliar direitos civis. A Guerra contra a Pobreza, um conjunto de programas sociais e ampliação de políticas públicas para acabar com a pobreza, elevou os gastos com o Welfare3 3 O termo Welfare abarca políticas públicas, programas sociais e seguridade social específicos. Não existe termo correlato em português. de US$ 75 bilhões para US$ 185 bilhões entre 1965 e 1972. A pobreza persistiu. Como aponta Katz, “mais do que qualquer fator, a Guerra do Vietnã mutilou a Guerra contra a Pobreza”4 4 Todas as citações deste texto foram traduzidas pelo autor, estão originalmente em língua inglesa e podem ser encontradas de acordo com as referências (KATZ, 1996KATZ, Michael. In the Shadow of the poorhouse: a social history of welfare in America. New York: Basic Books, 1996., p. 266). Em paralelo, a recuperação do Japão e da Alemanha intensificou a competição global e, por extensão, a crescente contradição da demanda efetiva, que colocou de um lado a necessidade de ampliar o consumo e de outro a obrigação de diminuir os custos sobre a produção, mormente a remuneração sobre o trabalho, para vencer a concorrência. Como resultado destas variáveis, no último terço da década de 1960, os EUA passaram por um quadro de inflação, decorrente do aumento dos gastos com a Guerra do Vietnã e com a Guerra contra Pobreza, e estagnação econômica, acentuada pela concorrência com o Japão e a Europa, especialmente a Alemanha. Logo, a crise se espalhou pelo mundo.

A crise econômica turbinou a crescente insatisfação e os movimentos contra-hegemônicos. Nas ruas, dentro e fora dos EUA, os movimentos sociais intensificaram as reivindicações pela paz e por direitos. Em certa medida, a insatisfação se expressou através de diversas formas de contracultura e modelos alternativos ao padrão cultural que fundamentou a liderança estadunidense e o próprio capitalismo. Os países periféricos colocaram em xeque a hegemonia dos EUA, recorrendo aos modelos de desenvolvimento autônomos e menos dependentes, em parceria com Alemanha, Japão, China e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Como aponta McCormick, diante deste quadro de crise, os EUA tiveram que enfrentar o dilema hegemônico: sustentar os altos gastos com aparato bélico para evitar qualquer desafio militar, negligenciando o desenvolvimento civil, distorcendo a economia e reduzindo a capacidade de competir no mercado global. Ou, cortar gastos com o aparato bélico para restaurar a produtividade e a competitividade, diminuindo o protagonismo militar (MCCORMICK, 1989MCCORMICK, Thomas Joseph. America’s Half-Century: United States Foreign Policy in the Cold War and After. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995. p. 216).

Como este artigo vai evidenciar, nas três décadas seguintes, os neoconservadores (neocons) tentaram contornar o dilema da hegemonia redesenhando o papel do Estado. No contexto da crise do final dos anos 1960, intelectuais ex-liberais e ex-trotskystas organizados sob a liderança de Irving Kristol na revista The Public Interest (TPI) construíram um arcabouço de ideias estruturado na: reação à expansão das políticas de Welfare; hostilidade aos movimentos sociais e à contracultura; e oposição à política externa de distensão, compreendida como reflexo inexorável do declínio do protagonismo internacional dos EUA. Como os neoliberais, os neocons acreditavam que a expansão do Welfare gerava inflação, endividamento e prejuízos à produtividade. Mas, diferentemente dos neoliberais, identificaram três problemas ainda mais graves. Primeiro, a expansão do Welfare garantia a segurança econômica e, como efeito imediato, desestimulava o trabalho e a inovação, afetando a produtividade econômica. Segundo, conformava um Estado totalizante e sem legitimidade, que usurpou o lugar da família, da igreja, da comunidade e do mercado para perseguir um igualitarismo pervertido e abstrato5 5 Como herdeiros do liberalismo, os neoliberais admitem apoiar, de acordo com a conjuntura, políticas progressistas de legalização das drogas, descriminalização da prática de aborto, a união civil homoafetiva, a liberdade religiosa e medidas relativas a preservação do meio ambiente. Como salvaguarda do direito à vida, a atuação mínima do Estado pressupõe políticas para socorrer aqueles que se encontram em necessidade. Já os neocons resistem a essas pautas. Já os neocons resistem a essas pautas. . Como consequência, os jovens passaram a valorizar a leniência, a dependência, o consumo de drogas, a pornografia e o sexo expressos na contracultura e nas políticas identitárias. Terceiro, a expansão do Welfare exauriu as capacidades econômicas e morais dos EUA na Guerra Fria.

Como solução, os neocons propuseram desvincular o papel do Estado do compromisso com o bem-estar dos indivíduos dentro e fora dos EUA. E, com isso, intentaram abrir espaço para reconstrução da hegemonia dos EUA com a transferência de recursos do Welfare para defesa e segurança, a fim de garantir uma nova ofensiva militar global e a expansão de um novo modelo político-econômico-cultural dependente, neoliberal e neoconservador. Para isso, os neocons elaboraram uma estratégia, articulando três elementos aparentemente contraditórios: a restauração da eficiência econômica através do livre mercado; a valorização das instituições tradicionais (família, igreja, comunidade e mercado); e o protagonismo político e militar internacional. Por um lado, a proposta econômica era semelhante à solução neoliberal. O Estado deveria ter um papel reduzido e promover o livre mercado. Para isso precisava: diminuir os gastos governamentais; desregulamentar a economia; e instituir um sistema tributário regressivo. Por outro lado, o Estado deveria ser forte o suficiente para promover os valores clássicos ocidentais a fim de: garantir a estabilidade; impedir qualquer intervenção artificial na vida dos indivíduos e das instituições tradicionais; conter o avanço da URSS e de novas ameaças; e assegurar o livre mercado dentro e fora dos EUA.

Até o início dos anos 1970, os neocons tinham pouca organicidade, muitas contradições e quase nenhuma capacidade de apresentar um projeto político nacional. Essa realidade mudou radicalmente nos anos seguintes. Empresários diretamente ligados a grandes companhias como a Olin Corporation (armas e munições), Mobil, Chase Manhattan Bank, General Eletric, Hewlett-Packard, Xerox, Standard Oil e Coors Brewing financiaram e participaram diretamente de Centros de Pesquisa como o Heritage Foundation (HF) e o American Enterprise Institute (AEI), que funcionaram como lócus de conformação e difusão das ideias dos neocons, sobretudo, para sociedade política. Em 1981, os neocons chegaram à Casa Branca. Nas próximas páginas, este artigo vai mostrar que, sob inspiração neocon, o governo de Ronald Reagan (1981 - 1989) lançou o “Reaganomics”, um conjunto de medidas econômicas para: desfazer o Welfare; devolver o protagonismo da ação social para as instituições tradicionais; conter a inflação; recuperar a produtividade; e transferir recursos para recuperar a hegemonia internacional dos EUA. Em outro flanco, o governo Reagan adotou estratégias simbólicas e legais para atacar os movimentos sociais e a contracultura em nome da preservação e difusão dos valores das famílias e da nação. Na política externa, substituiu a estratégia de distensão por um plano centrado na contenção unilateral da URSS e na promoção seletiva da democracia e da liberdade, através de operações secretas de desestabilização no Terceiro Mundo. Essa experiência política de inspiração neoconservadora do governo Reagan consolidou uma concepção de Estado limitado e frágil para políticas de Welfare e ilimitado e forte para coerção dos inimigos internos e externos. Como consequência, aumentou desigualdades, aprofundou o déficit e ressignificou a relação do Estado com gênero, raça e classe.

Este artigo pretende expor uma análise do neoconservadorismo na relação dialética entre a ideologia, - compreendida aqui como um conjunto de ideias que sintetizam a percepção e as estratégias de transformação do mundo - e a práxis, materializadas nas experiências políticas do governo Reagan para recuperar a hegemonia dos EUA. Na primeira parte, este artigo vai refletir sobre a trajetória formativa das ideias neocons a partir de um exame crítico e contextual dos textos de Kristol e, em menor medida, sobre escritos de outros autores que desenvolveram e extrapolaram essas concepções intelectuais. Kristol teve um papel fundamental no processo de sedimentação, maturação e distribuição das ideias neocons. Como editor da TPI, atuou como curador do neoconservadorismo, admitindo, talhando e refutando temas e ideias ao longo deste processo. Na segunda parte, este artigo vai examinar a experiência política neocon no governo Reagan como forma de recuperar a hegemonia estadunidense em tempos de crise, a partir da análise crítica de dados econômicos, leis e discursos, que desnudam a articulação entre o projeto econômico, a ofensiva sobre os movimentos sociais e a conformação de uma política externa voltada para o combate de qualquer ameaça internacional.

Parte 1: Irving Kristol e o processo de formulação e maturação das ideias que conformam o neoconservadorismo

Em 1965, os intelectuais que se reuniram em torno da TPI tinham percepções de mundo difusas e contraditórias, assentadas na tradição liberal estadunidense do século XX6 6 Durante o século XX, o liberalismo nos EUA se transformou com o objetivo de oferecer respostas à pobreza, ao desemprego e aos problemas sociais associados à crise do capitalismo. Diante das transformações e contradições da sociedade urbana e industrial, sobretudo após a crise de 1929, os liberais estadunidenses compreenderam que para garantir a liberdade e a emancipação plena dos indivíduos era necessário: mediar as relações de produção; regular a competitividade; e oferecer instrução e recursos econômicos e sociais mínimos. . O neoconservadorismo só ganharia maturidade no início da década seguinte. O próprio Kristol aponta que: “embora a fundação de The Public Interest seja geralmente vista em retrospecto como a origem do “neoconservadorismo” (um termo que ainda não havia sido inventado), o grupo principal da revista ainda se considerava liberal, com inclinação dissidente e revisionista” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 32). Para Kristol, dois eventos em 1972 foram determinantes para sua trajetória do liberalismo para o neoconservadorismo: sua primeira entrevista para um jornal de grande circulação, o Wall Street Journal; e a nomeação de McGovern como candidato democrata à presidência. Segundo Kristol: “um desses eventos importantes foi a nomeação do senador George McGovern como candidato democrata em 1972, o que de fato nos enviou - a maioria de nós, de qualquer maneira - uma mensagem de que agora estávamos fora do espectro liberal (...) nosso cenário político estava em processo de transformação” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 32). E, “um agente importante nessa transformação foi o Wall Street Journal” (KRISTOL 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 32).

Nesta trajetória, a crítica ao Welfare foi a engrenagem central que moveu a formação do neoconservadorismo como uma ideologia coerente e nova no campo conservador. Kristol fundou a TPI no bojo dos debates sobre a pobreza e sobre o papel do Welfare, que, em geral, estavam articulados, de diferentes formas, com variáveis culturais e psicológicas. Por um lado, intelectuais como Michael Harrington, no campo progressista, denunciaram uma pobreza estrutural quase invisível nos EUA, agravada pelos efeitos culturais e espirituais entre os pobres que, em contraste com uma sociedade aparentemente afluente, sucumbiam paralisados no derrotismo e no pessimismo7 7 Neste debate, o termo espiritual se refere a internalização psíquica de um sentido para a vida. . Nesta perspectiva, o governo federal era a única instituição com alcance e força suficientes para acabar com a pobreza, ampliando o Welfare e os programas distributivos (HARRINGTON, 1964HARRINGTON, Michael. A Outra América: pobreza nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964). Por outro lado, intelectuais como Russell Kirk, no campo conservador, sugeriram que a desigualdade política e econômica era natural. A atuação do Estado com o objetivo de promover uma igualdade artificial entre os indivíduos através de programas científicos e modernos era ineficiente e funcionou como um método de dominação nocivo, uma vez que substituiu os laços espirituais e comunitários pela realização de desejos materiais imediatos e, consequentemente, promoveu instabilidade e quebrou laços com a igreja, a família e a comunidade. Somente essas instituições livres da ação do Estado e guiadas pela providência divina poderiam restaurar a estabilidade e promover pequenas mudanças lentas e graduais para solucionar os problemas, conservando as tradições (KIRK, 1953KIRK, Russell. The Conservative Mind: From Burke to Santayana. Chicago: Henry Regnery Company, 1953.). Nas ruas, o debate sobre a pobreza e seus efeitos culturais e espirituais se materializou nos protestos pelos direitos civis e sociais e na contracultura. Neste contexto, Kristol lembrou: “de repente, descobrimos que éramos conservadores culturais o tempo todo” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 31). Tal como os conservadores, Kristol e seus colegas na TPI atacaram a expansão do Welfare como parte da Guerra contra a Pobreza e da contracultura. Entretanto, encaravam a ciência e a modernidade de forma positiva, inclusive para redefinir o papel do Estado, diferente dos conservadores como Kirk. De acordo com Kristol, “nós nos considerávamos melioristas realistas, céticos em relação aos programas do governo que ignoravam a história e a experiência em favor das ideias de esquerda da moda geradas pela academia. Essa foi a ideia original da revista” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 31). Em 1971, Eugene Goodheart, na revista The Nation, foi o primeiro a identificar o processo de transformação de intelectuais ligados a TPI e cunhou o apelido de Novos Conservadores (New Conservatives) (GOODHEART, 1971GOODHEART, Eugene. The deradicalized intellectuals. The Nation, New York, v. 212, n. 8, p. 177-180, fev, 1971.). Em 1973, Michael Harrington, na revista Dissent, consagrou o apelido Neoconservadores (Neoconservatives) para o grupo (HARRINGTON, 1973HARRINGTON, Michael. The Welfare State and Its Neoconservative Critics. Dissent Magazine, Philadelphia, v. 20, n. 4, p. 435-454, set, 1973.).

Neste mesmo momento, Kristol e seus companheiros, sob influência do neoliberalismo, se tornaram críticos de quase todos os programas sociais que não estavam inseridos na lógica da economia de mercado, moderna e científica. Kristol reconheceu, em suas memórias e em outros textos, a influência do pensamento neoliberal. Nas próprias palavras de Kristol: “Fui neo-marxista, neo-trotskista, neo-socialista, neoliberal e, finalmente, neoconservador” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 03). Mais do que isso, Kristol identificou sua relação com o neoliberalismo desde o final dos anos 1940, ainda que naquele período não tivesse interesse em expressar publicamente (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 18). Nas recordações sobre os anos 1950, Kristol reconheceu que admirava os escritos de F. A. Hayek sobre filosofia política e história intelectual, embora não tivesse lido sua principal obra, The Road to Serfdom, de 1944 (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 173). A influência do neoliberalismo de Hayek ficaria óbvia, ainda que implícita, em vários artigos críticos ao Welfare. Em um deles, Kristol afirmou:

A ordem social que chamamos de “capitalismo”, construída com base em uma economia de mercado, não acredita que a “sociedade” possa prescrever uma distribuição de renda “justa”. “Sociedade”, nesse contexto, significa governo; a “sociedade” é sem voz até que as autoridades políticas falem. (...) A liberdade de uma sociedade liberal deriva de um ceticismo predominante quanto à capacidade de alguém de conhecer o “bem comum”, exceto em seu mínimo. (...) Uma sociedade liberal, portanto, será muito tolerante com transações capitalistas entre adultos que consentem porque essas transações são para vantagem mútua e a soma dessas transações são para vantagem material de todos (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 253; 256).

Entretanto, Kristol admitiu que, nos anos 1950 e 1960, era ignorante em economia e que, talvez por isso, não questionava os pressupostos keynesianos (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 25; 34). Mais tarde, em 1999, Kristol lembraria que “hoje podemos entender por que uma economia de mercado é tão benéfica para a sociedade sem precisar fazer um esforço muito grande; uma leitura cuidadosa de Adam Smith e Friedrich Hayek fará o trabalho” (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 305). E afirmaria que os conservadores estadunidenses que “estão dispostos a aceitar um grau limitado de intervenção do governo para fins sociais, provavelmente serão projetados como ‘neoconservadores’” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 230).

Kristol se encontrou definitivamente com a economia neoliberal no American Enterprise Institute (AEI), um centro de pesquisa voltado exclusivamente para a compreensão da economia e para a defesa do sistema de livre mercado. Em suas memórias, Kristol revelou que tinha decidido que precisava se educar em economia para compreender o fenômeno da estagflação. Entre 1976-1977, se dedicou exclusivamente ao AEI como pesquisador visitante. Sob influência direta de Jude Wannisky, colega no centro de pesquisa e editor do Wall Street Journal, Kristol adotou como credo a teoria Supply-Side Economics (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 34-35). Em resumo, essa teoria, criada por Arthur Laffer, sob os pressupostos econômicos neoclássicos e bases filosóficas neoliberais, concluiu que a taxação sobre o capital acima de determinado ponto, não especificado, diminuía o incentivo para o investimento produtivo, uma vez que os empresários preferiam alocar recursos em outras áreas com tributação mais baixa. A taxação sobre o trabalho acima de um ponto ideal também reduzia o estímulo laboral, na medida em que os trabalhadores escolhiam outras formas de ocupação ou preferiam viver apenas com ajuda dos programas sociais. Em suma, a taxação acima de determinado ponto e o Welfare desestimulavam os investimentos e o trabalho e, consequentemente, levavam a estagnação econômica, provocando impacto negativo sobre a própria arrecadação. Logo, a redução da taxação sobre os empresários promoveria mais investimentos no setor produtivo e os cortes no Welfare estimulariam a produtividade do trabalhador.

Por outro lado, os neocons articularam a crítica científica ao Welfare com os problemas sociais e espirituais em dois esforços: no ataque à “Nova Classe” e na denúncia dos efeitos nocivos para indivíduos e instituições tradicionais. Para Kristol, o Welfare retro-alimentava uma “Nova Classe”, que perseguiu benefícios próprios e a destruição da civilização ocidental em nome de um igualitarismo perverso e de concepções equivocadas sobre justiça, igualdade e sociedade. Por um lado, Kristol ecoou seu passado trotskysta, reavivando a crítica à burocratização do Estado. Por outro lado, ecoou a filosofia política neoliberal. Nesse sentido, particularmente, Kristol mobilizou a Teoria da Escolha Pública, que concebe os agentes do Estado como indivíduos racionais interessados em maximizar sua própria utilidade com recursos públicos para se manter na estrutura estatal e realizar interesses particulares. Segundo, Kristol, nos EUA, essa “Nova Classe” surgiu com a expansão do ensino superior, mas não tinha qualquer competência intelectual. Os jovens membros da “Nova Classe” absorviam a maior parte dos recursos públicos, atuando como professores, assistentes sociais, advogados, médicos, nutricionistas e servidores de todo tipo, que atendiam a “população que não trabalha” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 170). Assim, a “Nova Classe” criou a explosão do Welfare, através da Guerra contra a Pobreza para resolver o problema da desigualdade que ela mesma provocava (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 47). Literalmente, Kristol dividiu a “Nova Classe” entre os que morriam de overdose e os que buscavam poder em nome da igualdade (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 175).

De acordo com Kristol, a “Nova Classe” estava, supostamente, engajada em uma batalha contra a comunidade empresarial, sob a bandeira da igualdade, mas queria conquistar apenas poder e status. A agenda da “Nova Classe”, principalmente na esfera educacional, tinha como objetivo induzir o multiculturalismo, o conflito étnico-racial e uma consciência de Terceiro Mundo nas mentes dos estudantes (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 52). Kristol acusou a “Nova Classe” de dirigir o espírito reformista dos anos 1960 e 1970 com a satisfação de ver os estadunidenses uns contra os outros (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 204). Queriam destruir a civilização ocidental. Nas palavras de Kristol: “eles claramente não gostam - para dizer o mínimo - de nossa sociedade liberal, burguesa e comercial, acham inadequada para sobreviver e buscam poder para reconstruí-la de alguma maneira não especificada, mas radical” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 170).

Nesta perspectiva, essa “Nova Classe” hedonista e cosmopolita encarnou oficialmente os movimentos sociais e a contracultura dentro do Estado, alavancando inovações políticas que visavam estabelecer uma igualdade crescente e resolver todos os problemas sociais. Mas, os governos se mostraram completamente incapazes de promover utopias. Com isso, a “Nova Classe” sobrecarregou os governos, onde estavam entranhadas. Provocou uma crise de legitimidade sobre a autoridade (STEINFELS, 2013STEINFELS, Peter. The neoconservatives: the origins of a movement. New York: Simon and Schuster, 2013.). No fundo, a “Nova Classe” odiava a liberdade e amava o totalitarismo. Segundo Kristol: “eles acreditam que possuem a verdadeira definição de justiça distributiva; e desejam inevitavelmente ver a sociedade moldada à imagem dessas verdadeiras crenças (...) muitos pensadores liberais acham muito difícil detestar genuinamente regimes autoritários ou totalitários de esquerda (isto é, igualitários)” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 256-257).

Na outra ponta, o Welfare da “Nova Classe” aprisionava uma subclasse na armadilha da pobreza e causava dependência social. Com inspiração nos elementos mais conservadores do liberalismo de Alexis de Tocqueville, Kristol assinalou que a maioria dos homens trabalhava apenas pela necessidade de sobreviver. A minoria dos homens trabalhava para melhorar as condições de vida. Logo, as leis que promoviam segurança social e econômica para os pobres, independente da origem da pobreza, destruíam a motivação para o trabalho, na medida em que os indivíduos não precisavam mais de trabalhar para sobreviver (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 44). Nas palavras de Kristol: “quando os pagamentos do Welfare (e benefícios associados, como Medicaid e Food Stamps) competem com salários baixos, muitas pessoas pobres preferem racionalmente o Welfare” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 47). Nesta lógica, os neocons acusavam o Welfare de perpetuar a pobreza porque os indivíduos ficavam acomodados com os programas sociais e não buscavam melhorar as condições de vida. De acordo com Kristol, com o Welfare: “um grande desincentivo é oficialmente estabelecido; torna-se positivamente irracional para uma família pobre tentar subir um nível ou dois ao longo da escala de renda. Definidos como pobres, são incentivados a permanecer pobres” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 202). Dessa forma, o Welfare provocaria dependência. Como aponta Kristol: “muitas pessoas que preferiam não trabalhar estavam deixando (ou recusando-se a entrar) na força de trabalho. Essa população, agora dependente, foi rapidamente corrompida e desmoralizada por sua própria dependência não natural” (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 79).

Para Kristol, ao reforçar a dependência em relação ao Estado, o Welfare pavimentou o caminho em direção à crise e ao autoritarismo. Os indivíduos ficavam presos em uma armadilha da pobreza e sem alternativas institucionais demandariam mais Welfare do Estado. Sempre insatisfeitos e afinados com a “Nova Classe”, os indivíduos dependentes promoviam instabilidade política e econômica. Consequentemente, abriam caminho para os governos adotarem soluções autoritárias a fim de reformar a ordem econômica e/ou reprimir descontentes. Nas palavras de Kristol: “A demanda por mais [Welfare] (...) se alimentará até que uma crise econômica e, eventualmente, política, crie um regime autoritário que lide com o descontentamento ao reprimi-lo ou provoque uma reversão para uma ordem econômica mais liberal-capitalista” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 307)

Mais ainda, inspirado por Charles Murray, um cientista político da AEI, Kristol sustentou que o Welfare destruía as instituições tradicionais da sociedade, principalmente a família, alimentando o multiculturalismo. Com o Welfare, o individuo se tornava sujeito de direito subordinado, abrindo mão de governar sua própria vida em troca de segurança. Com isso, sob a tutela do Estado, ficava liberado de todas as velhas instituições sociais que inibiam maus comportamentos e patologias sociais e espirituais, como crime, vício, promiscuidade e divórcio (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 95-98). Kristol dá especial atenção à relação entre Welfare e família. De acordo com Kristol, o Welfare competia com a capacidade do chefe de família, homem, para ganhar dinheiro. Consequentemente, roubava a função econômica da família, sobretudo do chefe de família, tornando-o um “homem supérfluo” (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 49). Logo, liberava a família, sem função, para se desfazer e, consequentemente, estimulava o divórcio e a promiscuidade (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 97). De forma semelhante, ao assumir as responsabilidades sociais da religião, o Welfare liberava os indivíduos para tratar a religiosidade como consumo privado, como um hobby individual ou uma moda. Assim, desfazia os laços comunitários que se estabeleciam na sociabilidade em torno das igrejas e induzia uma epidemia de crises de identidade, que ameaçava a civilização ocidental (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 98).

Kristol identificou especificamente os negros e as mulheres com a dependência e com as patologias sociais e espirituais, que, em última instância, poderiam levar os EUA ao caminho da servidão. Kristol fazia três associações separadas, mas encadeadas: A) o Welfare diminuiu a motivação para o trabalho porque a maioria dos indivíduos estava interessada somente em garantir a própria sobrevivência e apenas uma minoria tinha ambição natural para melhorar de vida; B) o Welfare gerava dependência e, consequentemente, patologias sociais e espirituais; C) o Welfare estava desproporcionalmente enraizado nas comunidades negras (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 48). Logo, é possível deduzir dessa perspectiva que: em geral, os negros não tinham ambição; aceitavam a dependência; estavam socialmente e espiritualmente doentes; e, com isso, contribuíam significativamente para decadência dos EUA. Em alguns textos, Kristol identificou diretamente os negros com a patologia espiritual e social daqueles dias. Para Kristol o multiculturalismo estava se tornando o maior problema educacional, social e político dos EUA. Os negros lideravam uma coalizão com feministas radicais, gays, lésbicas e um punhado de demagogos, que diziam representar minorias étnicas e espalhavam o multiculturalismo nos campi universitários. Em especial, os negros lideravam a coalizão com autoridade para qualificar os críticos como racistas. Em um artigo sobre o multiculturalismo nas escolas, Kristol afirmou que: “se esses estudantes negros e seus problemas não existissem, ouviríamos pouco do multiculturalismo (...) o problema dos jovens negros não surge em nossas escolas, nem são remediáveis por lá. Eles são o produto de suas casas e ambientes” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 50-51).

No caso das mulheres, Kristol caracterizou o Welfare após a Segunda Guerra Mundial como feminino e maternal. Como as mães, o Welfare buscava manter seus filhos longe dos perigos do mundo e dependentes até o fim da vida, com proteção e sem dificuldades. De acordo com Kristol, a mudança na constituição do Welfare após 1945 estava diretamente relacionada à entrada das mulheres no mercado de trabalho e nas universidades, quando as ideias feministas ganharam popularidade. Diferentemente, um Welfare masculino, austero, criaria crianças confiantes e prontas para encarar o mundo (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 99-101).

Para Kristol, o Welfare, com base maternal, exauriu a capacidade econômica e o estímulo necessário para defesa da nação contra as ameaças internacionais, especialmente vindas da URSS e do Terceiro Mundo. Uma superpotência precisava de grandes capacidades militares. Mas, de acordo com Kristol, o Welfare priorizou gastos com programas sociais e conformou sociedades avessas ao risco. Consequentemente, colocou em segundo plano os gastos com aparato militar e emasculou o espírito nacionalista e patriótico (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 101). Com isso, tornou o patriotismo real, “que implica disposição para morrer pelo país”, em uma ideia extremista (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 97). Além disso, a “Nova Classe” que dirigia o Welfare com uma agenda multiculturalista e terceiro mundista, principalmente para os programas educacionais, não mediu esforços para convencer o público, sobretudo os estudantes, de que os EUA oprimiam e exploravam outros povos. A “Nova Classe” e os radicais estavam travando uma Guerra contra o Ocidente. Nas palavras de Kristol: “O que esses radicais chamam suavemente de multiculturalismo é uma “guerra contra o Ocidente”, como o nazismo e o stalinismo jamais fizeram” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 52).

John Ehrman (1995)EHRMAN, John. The Rise of Neoconservatism. New Haven: Yale University Press, 1995. aponta Walter Laqueur e Robert Tucker como os principais artífices da construção de um ideário neoconservador para a política externa. No plano do conflito com a potência comunista, Laqueur recuperou, a sua maneira, linhas gerais da tese de George Kennan, argumentando que a URSS tinha um desejo natural indomável pela expansão. Para Laqueur, a URSS usava estrategicamente a distensão para diminuir as vantagens dos EUA e dominar o mundo. Diante desse quadro, Tucker apontou que, a elite intelectual que formulava a política externa estadunidense perdeu legitimidade e objetividade, sobretudo ao assumir um compromisso impossível com a igualdade e o desenvolvimento econômico para o Terceiro Mundo. Consequentemente, promoveu instabilidade e mais necessidade de assegurar a ordem. Laqueur e Tucker deram ao neoconservadorismo uma percepção atualizada do mundo. Mostraram que a URSS e a difusão do comunismo ainda eram um perigo real e urgente. E, apresentaram outros perigos: o despreparo das elites que pensavam e formulavam a política externa estadunidense; e, principalmente, a ameaça dos países do Terceiro Mundo aos países desenvolvidos, em especial aos EUA. Além disso, Laqueur e Tucker conformaram entre os neoconservadores uma perspectiva simbiótica entre a política doméstica e a política externa. Assinalaram que o ataque da Nova Esquerda à política externa estadunidense era uma ameaça à democracia porque a distensão, o isolacionismo ou o compromisso com o desenvolvimento global levariam inexoravelmente ao fracasso dos EUA e ao triunfo da URSS, uma vez que abriam mão da contenção e canalizavam recursos da defesa para o Welfare (EHRMAN, 1995EHRMAN, John. The Rise of Neoconservatism. New Haven: Yale University Press, 1995.).

Em 1976, os Neocons capitanearam a formação do Committee on Present Danger (CPD) com o objetivo de criar um arcabouço intelectual analítico e prescritivo para a Guerra Fria. Albert Wohlsteter e Paul Nitze formaram os pilares intelectuais do CPD. Wohlsteter defendeu que a política de equilíbrio de poder entre os EUA e a URSS era uma estratégia instável, que precisava constantemente de investimentos em tecnologia e modernização do aparato militar, principalmente em defesas antimísseis para dissuasão. Sem isso, a URSS romperia o equilíbrio de poder e subjugaria os EUA. Paul Nitze acreditava que a URSS estava em condições de atacar aliados e regiões de interesse econômico e geoestratégico. Nessas condições, apenas sobreviver não seria suficiente, uma vez que, sem aliados e sozinhos em um mundo hostil, a democracia e a liberdade estadunidenses morreriam. Os membros do CPD estavam convictos de que os planos SALT I e SALT II, que visavam aproximar EUA e URSS para estabelecer um controle sobre armas estratégicas a fim de evitar a aniquilação mútua, facilitariam a vitória do comunismo internacional. Logo no primeiro encontro, os membros do CPD apresentaram um manifesto, intitulado Common Sense and Common Danger, para alertar para erosão da capacidade econômica e militar dos EUA diante da expansão da URSS (POWERS, 2005POWERS, Richard Gid. Norman Podhoretz and the Cold War. In. FRIEDMAN, Murray (ed). Commentary in American Life. Philadelphia: Temple University Press, 2005.).

No começo dos anos 1970, os neocons admitiram que a URSS estava ganhando a Guerra Fria e promovendo um enorme risco à liberdade, à democracia e à segurança internacional. Para Kristol, a URSS era imoral, brutal e expansionista. Na prática, nunca se submeteu ao equilíbrio de poder. Em alguns momentos abdicou temporariamente do confronto militar, mas sempre travou uma guerra ideológica, com o objetivo de impor ao mundo o modelo econômico, político e cultural comunista (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 210). Para Norman Podhoretz, a URSS estava promovendo a expansão de um sistema baseado no terror e no genocídio. Portanto, o combate ao comunismo era uma questão moral (PODHORETZ, 1980PODHORETZ, Norman. The present danger: Do we have the will to reverse the decline of American power? New York: Simon and Schuster, 1980.). Para Podhoretz, abandonar a contenção foi um erro estratégico. Como consequência, a URSS dominaria o mundo e os EUA entrariam em um processo acelerado de finlandização. Ou seja, como o país nórdico, os EUA ficariam a mercê da influência da URSS e manteriam apenas uma independência nominal (PODHORETZ, 1980PODHORETZ, Norman. The present danger: Do we have the will to reverse the decline of American power? New York: Simon and Schuster, 1980.).

As concepções de Kristol e Podhoretz entraram em simbiose com as noções sobre a política externa de Daniel Patrick Moyniham sobre o avanço do socialismo do Terceiro Mundo na Organização das Nações Unidas (ONU) e Jeanne Kirkpatrick sobre o autoritarismo e o totalitarismo. Moynihan, no artigo The United States in Opposition, denunciou o avanço socialista do Terceiro Mundo na ONU. Para o senador do Partido Democrata, a maior parte do Terceiro Mundo caminhava rapidamente para o comunismo. Nos EUA, o Governo Nixon (1969 - 1974) não estava enfrentando a situação corretamente. Não reconhecia os embates ideológicos na ONU como um traço distintivo da Guerra Fria. Segundo o senador, os documentos da ONU estavam calcados na premissa totalitária de que é necessário estabelecer mudanças sociais para viabilizar justiça social e, consequentemente, promover a estabilidade e a ausência de conflitos. Esta premissa colocava a URSS como um Estado justo e os EUA e os países da Europa Ocidental como Estados injustos, que promoviam a opressão sobre os pobres. Logo, a ONU reforçava a aliança entre a URSS e os países do Terceiro Mundo e, consequentemente, estava mudando o equilíbrio de forças global (MOYNIHAM, 1975MOYNIHAM, Daniel Patrick. The United States in opposition. Commentary Magazine, New York, v. 59, n. 3, p. 31-44, mar, 1975.).

Em coro com Moyniham, Kristol afirmou que ONU promovia uma equivalência moral entre direitos econômicos, típicos das democracias capitalistas, e direitos sociais, característicos do comunismo. Dessa forma, tal como os governos dos EUA faziam com o Welfare, a ONU validava direitos que foram, supostamente, definidos a partir de interesses comuns. Mas, que, na realidade, foram definidos por grupos com interesses específicos, uma espécie de “Nova Classe” internacional. Em pouco tempo, esses mesmos grupos incluíram sob a rubrica dos Direitos Humanos Universais: o multiculturalismo; a contracultura; o controle de armas; o ambientalismo; o feminismo radical; e a ampliação da acusação de tortura nas ações policiais e militares, com o objetivo de abrir caminho para insurreições anti-estadunidenses pelo mundo. No fim, a ONU estaria substituindo os direitos individuais que garantiam a liberdade por direitos sociais. Assim, acima de tudo, legitimava o totalitarismo (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 220-221).

Kirkpatrick, que mais tarde integraria o governo Reagan, ilustrou bem a concepção neocon de política externa no artigo Dictatorship & Double Standart. Para Kirkpatrick, o governo Carter abriu brechas para instalação de regimes hostis aos EUA, ao tentar levar a democracia no Terceiro Mundo. Este tipo de política equivocada e ingênua partia do princípio de que seria possível democratizar qualquer governo a qualquer hora e em qualquer lugar através da modernização política e econômica das sociedades, sem considerar as condições necessárias para estabelecer instituições democráticas (KIRKPATRICK, 1979KIRKPATRICK, Jeane. Dictatorship and double standards. Commentary Magazine, New York, v. 68, n. 5, p. 34-45, nov, 1979.). De forma semelhante, Kristol apontou que a modernização ocidental, calcada na difusão do progresso econômico e científico, não mudaria os povos árabes, como não mudaram os nazistas (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., 201-202).

Para superar as questões colocadas até aqui, os neocons defenderam a articulação entre: soluções políticas e econômicas guiadas pela racionalidade funcional e eficiente; estratégias de preservação dos valores ocidentais; e o combate ao comunismo. Na prática, preconizaram: substituir o Welfare por políticas sociais de mercado; fomentar as instituições e os valores tradicionais; e reconstruir o poderio militar estadunidense. Acreditavam que o livre mercado deveria ser o principal instrumento de alocação de recursos e solução para os problemas sociais, sobretudo através de mudanças tributárias, reformas financeiras, sistemas de renda mínima para os mais pobres e treinamento para o trabalho. Pregavam o respeito às instituições intermediárias e aos valores tradicionais da cultura ocidental, lançando guerras culturais e jurídicas contra os movimentos sociais e a contracultura. Para os neocons, as instituições tradicionais intermediárias deveriam operar as transformações e as mudanças sociais de forma natural e gradual, conservando princípios e práticas, a fim de garantir a estabilidade social e a própria sobrevivência dos EUA diante de ameaças internas e externa (STEINFELS, 2013STEINFELS, Peter. The neoconservatives: the origins of a movement. New York: Simon and Schuster, 2013.). Os neocons reconheciam que os EUA deveriam reconstruir seu poderio militar para retomar a contenção ao comunismo e/ou qualquer outra ameaça internacional e impulsionar o livre mercado global em oposição aos clamores por políticas de desenvolvimento e Welfare no “Terceiro Mundo”.

Para combater os males do Welfare, Kristol apostou na adoção do modelo neoliberal, mais especificamente a partir da Teoria Supply-Side Economics. Como solução, em suas memórias, Kristol resumiu a Teoria Supply-Side Economics ao cerne do próprio neoliberalismo: fixar os gastos do governo abaixo dos índices históricos de crescimento da economia; evitar regulações desnecessárias para a atividade econômica; e aplicar impostos baixos para encorajar os investimentos privados e evitar o deficit (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 36). De acordo com o pensamento de Kristol, no que se refere estritamente ao campo econômico, esse conjunto de medidas estimularia os investidores e motivaria os trabalhadores. Consequentemente, aumentaria a produtividade, o consumo e a arrecadação. Assim, promoveria a superação da crise de estagflação e recuperaria a legitimidade dos governos. Para Kristol a Supply-Side Economics: “ofereceu ao neoconservadorismo uma abordagem econômica que prometia um crescimento econômico estável - condição sine qua non para a sobrevivência de uma democracia moderna” (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 37).

Mas, mais importante, do ponto de vista político cultural e espiritual, o combate ao Welfare aniquilaria o poder de ação da “Nova Classe” e do multiculturalismo, que deveriam ser substituídos por um corpo técnico “sem ideologia”. Como consequência intencional, o combate ao Welfare devolveria a importância social das instituições tradicionais mediadoras, sobretudo a família e o mercado. O próprio Estado deveria reajustar o foco de atuação a fim de fortalecer as instituições tradicionais da civilização ocidental. De acordo com Kristol, o governo deveria redesenhar o Welfare com o objetivo de manter o maior nível de escolha individual possível. Para isso, precisaria reelaborar o Welfare com uma mistura de esquemas voluntários e compulsórios compatíveis com a sociedade capitalista, através do mercado (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 308). O governo poderia manter programas sociais que reforçam o estímulo ao trabalho e o senso de comunidade, como ensino noturno para os trabalhadores. E, seria apropriado manter programas para os que são “naturalmente dependentes”, para os quais a motivação é irrelevante, como idosos, deficientes físicos e deficientes mentais (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 77-80). Para as crianças, Kristol indicou um programa de renda mínima, em torno de US$ 15 dólares por filho para todas as famílias. Os mais ricos devolveriam o incentivo em forma de impostos. Os mais pobres ganhariam motivação para sair da pobreza porque sem o Welfare não perderiam praticamente nada, somente US$ 15 dólares de cada filho (KRISTOL, 1995KRISTOL, Irving. Neo-conservatism: the autobiography of an idea. New York: Free Press, 1995., p. 210). Para casos mais complexos, como presidiários e viciados, Kristol recomendou casamento, religião e programas de desintoxicação (KRISTOL, 2011KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuasion: Selected Essays, 1942-2009. New York: Basic Books, 2011., p. 78).

A solução econômica permitiria direcionar recursos da tributação e do Welfare para outras áreas, especialmente a defesa e a segurança, para combater a crise de legitimidade internacional, causada mormente pela política de distensão e subordinação à ONU. A concepção de política externa neocon sustentou um caráter unilateral e adotou um sentido moral seletivo, que apregoou a expansão dos valores estadunidenses como democracia, direitos humanos, liberdade individual e livre mercado através de ações militares a fim de salvar o mundo do totalitarismo e do atraso e, consequentemente, limitar as condições que favoreceriam o domínio da URSS. Para os neocons, os EUA precisavam conter o avanço da URSS e do Terceiro Mundo para garantir sua própria existência e voltar a ser a única potência global capaz remodelar o mundo de acordo com seus próprios interesses, mantendo a ordem liberal, democrática, capitalista e calcada nos valores ocidentais (KRISTOL, 2013).

A partir da CPD, sob influência de Wohlsteter, os neocons consolidaram a ideia estratégica de que os EUA precisariam rejeitar qualquer acordo de controle de armas e redução de danos e deveriam investir na capacidade bélica para estabelecer uma superioridade nuclear e ameaçar a URSS. Além disso, sob influência de Nitze, compreenderam que os EUA precisavam representar e defender o mundo livre, ajudando outros países a recuperar suas próprias capacidades militares e promovendo uma reforma na OTAN, para que a Europa tivesse mais responsabilidade. Concluíram que os EUA deveriam inclusive apoiar aliados autoritários contra o totalitarismo soviético. E, utilizar, até mesmo, meios não democráticos, como operações secretas de desestabilização e guerras por procuração, para alcançar a democracia (EHRMAN, 1995EHRMAN, John. The Rise of Neoconservatism. New Haven: Yale University Press, 1995.). Em resumo, com base no estudo de Kirkpatrick, os neocons sustentaram que era necessário conter e derrotar o comunismo com uma combinação de restrições econômicas, que levariam a crise, e estímulos a sublevação da oposição interna, que deveria carregar valores como democracia e liberdades individuais, principalmente, no que se refere ao livre mercado. Com isso, vislumbravam fomentar e incentivar crises internas, que pudessem provocar mudanças de regimes, com apoio militar dos EUA. Para Kirkpatrick, era preciso separar os governos totalitários de esquerda dos governos autoritários de direita, aliados dos EUA. Os governos totalitários eram aqueles que controlavam brutalmente a sociedade; exigiam mudanças que violavam valores e hábitos culturais internalizados; e se apropriavam do poder do Estado e das riquezas, criando desigualdades e pobreza. Esses governos estariam completamente fechados para promoção dos valores estadunidenses. Por outro lado, os governos autoritários aliados aos EUA adotaram o caminho despótico para evitar o avanço do comunismo. Portanto, estavam em um momento de transição e o autoritarismo era reflexo da ameaça da URSS. Para Kirkpatrick, esses governos autoritários não violavam valores e hábitos tradicionais. Ao contrário, defendiam os mesmos do avanço do comunismo. Ofereciam riqueza, poder, status e outros recursos para poucos indivíduos, mas a miséria era suportável e ensinava as pessoas a adquirir habilidades necessárias à sobrevivência (KIRKPATRICK, 1979KIRKPATRICK, Jeane. Dictatorship and double standards. Commentary Magazine, New York, v. 68, n. 5, p. 34-45, nov, 1979.).

Parte 2: O governo de Ronald Reagan (1981 - 1989) e a experiência prática com as ideias que conformam o neoconservadorismo

Diante do dilema hegemônico e a partir de uma forte inspiração neocon, o governo Reagan buscou reestruturar o Estado e o poder militar dos EUA. Para isso, articulou: um plano econômico de ajuste estrutural, que ficaria conhecido como Reaganomics; uma cruzada cultural e espiritual doméstica; o combate ao comunismo e qualquer outra ameaça global; e a promoção do modelo neoliberal e neoconservador no plano internacional.

Na Casa Branca, Ronald Reagan recrutou dezenas de economistas e analistas de relações internacionais afinados com o neoconservadorismo e com o neoliberalismo. Apenas para citar alguns nomes, todos com passagem no AEI: Martin Feldstein, Murray Weidenbaum, William Niskanen e William Poole VII estavam no Conselho de Consultores Econômicos (Council of Economic Advisors - CEA); Arthur Burns, Herbet Stein, Milton Friedman, Arthur Laffer e Paul McCracken estavam na Diretoria Consultiva de Política Econômica (Economic Policy Advisory Board); e David Stockman assumiu como diretor do Gabinete de Administração e Orçamento (Office of Management and Budget - OMB). Entre os analistas de relações internacionais, quase todos com passagem pelo AEI, CDM e CPD, estavam: Michael Ledeen, como consultor do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council - NSC) e consultor do Departamento de Estado; Michael Novak, como Embaixador dos EUA no Conselho de Direitos Humanos da ONU; Richard Perle, como Secretário de Defesa Assistente para Assuntos de Estratégia Global; James Q. Wilson e Gary Schmitt no Conselho Consultivo de Inteligência Estrangeira (Foreign Intelligence Advisory Board); Paul Wolfowitz, como Diretor de Planejamento Político; Jeane Kirkpatrick, como Embaixadora dos EUA na ONU e conselheira no NSC; Elliott Abrams, como Secretário de Estado Assistente para Assuntos Inter-Americanos; Paul Nitze, como Conselheiro Especial da Presidência para Controle de Armas; Richard Allen, como Conselheiro de Segurança Nacional; William Casey, como diretor da Agencia Central de Inteligência (Central Intelligence Agency - CIA); e George Schultz, como Secretário de Estado. Vale lembrar ainda de William Bennett, membro da Heritage Foundation e amigo pessoal da família Kristol, que assumiu o cargo de Secretário de Educação e nomeou William Kristol, filho de Irving Kristol, como Chefe de Gabinete do Secretário de Educação. Apesar da presença quase onipresente nas áreas de economia e política externa, vale ressaltar que o governo Reagan buscou apoio e quadros em outros grupos no campo conservador, como fundamentalistas religiosos e falcões tradicionais.

O Reaganomics foi calcado em quatro medidas estratégicas de inspiração neoconservadora e neoliberal: reduzir os gastos do governo federal; diminuir impostos para a indivíduos e empresas com capacidade de investir e ampliar a base de arrecadação sobre os trabalhadores; encolher as regulações federais sobre a atividade econômica; e estabilizar a moeda.

Os investimentos no Welfare e em outras áreas sofreram redução expressiva no período. Entre as áreas que tiveram investimentos cortados no orçamento entre 1981 e 1989 estão: Assuntos Internacionais (exceto defesa) 44%; Energia 73%; Conservação de Recursos Naturais 13%; Projetos de Desenvolvimento Regional e Comunitário 64%; Educação e Treinamento para o Trabalho 14%; Governança 48%; Benefícios para Veteranos de Guerra 6%; e programas sociais de assistência às famílias mais pobres (Income Security) 17,5%. Os investimentos em Saúde e Seguridade Social cresceram muito pouco, respectivamente 7,6% e 1%. A forte oposição de grupos organizados da sociedade civil aos cortes nos investimentos nessas duas áreas animou os liberais no Congresso e inibiu os avanços dos conservadores (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 226-229). Especificamente, entre 1982 e 1985, o governo Reagan cortou investimentos significativos de programas da Seguridade Social e dos programas de assistência as famílias mais pobres: Seguro Desemprego 16%; assistência para famílias pobres com filhos dependentes (Aid to Families with Dependent Children - AFDC) 12,7%; auxílio alimentação para pessoas pobres (Food Stamps) 12,6%; programas para nutrição infantil 27,7%; auxílio moradia para pessoas pobres 4,4%; e auxílio energia elétrica para população com baixa renda 8,3% (KATZ, 1996KATZ, Michael. In the Shadow of the poorhouse: a social history of welfare in America. New York: Basic Books, 1996., p. 297).

Por outro lado, a administração Reagan logrou reduzir significativamente os impostos. O Plano original, calcado na teoria de Arthur Laffer, era cortar o total de impostos em 30% em 3 anos, com 10% para cada ano, ajustando a malha tributária de 14% a 70% para 10% a 50%, distribuídos em 14 faixas tributárias (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 233). No embate com o congresso, o governo Reagan conseguiu aprovar a Lei Tributária de Recuperação Econômica (Economic Recovery Tax Act - ERTA), que: diminuiu o total de impostos em 5% para ajuste fiscal do ano de 1981; cortou 10% para os dois anos seguintes, totalizando 25%; e promoveu a redução tributária de 70% para 50% no topo da tabela (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 233-234). Na prática, a nova lei tributária previa ainda uma série de deduções fiscais para indivíduos e empresas. Em 1982, o governo Reagan promoveu uma correção de rumos, com a Lei de Equidade Tributária e Responsabilidade Fiscal (Tax Equity and Fiscal Responsibility - TEFRA). A nova lei atenuou o corte de impostos consagrado no ano anterior em aproximadamente 1/3, mas não anulou a ERTA. Para isso, reduziu deduções tributárias dos indivíduos; freou deduções fiscais empresariais; aumentou a taxação sobre os trabalhadores federais para compor o fundo coletivo de seguro desemprego dos mesmos; e aumentou os impostos sobre consumo. Em adição, aumentou impostos sobre gasolina em US$0,05 por galão e a contribuição para Seguridade Social (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 235). Em cifras, significou um aumento de US$ 99 bilhões nos tributos para os três anos seguintes, começando com um aumento de US$ 20 bilhões em 1983. Por fim, a Reforma Tributária de 1986 simplificou o sistema de taxação e restaurou um pouco a progressividade, sem voltar aos padrões anteriores à ERTA e à TEFRA. Para citar algumas medidas mais importantes: apresentou apenas duas faixas de tributação, 15% na base e 28% no topo malha tributária; passou a tributar ganhos de capital; eliminou ou diminuiu deduções; taxou seguro desemprego e bolsas de estudo e pesquisa; eliminou isenções fiscais sobre alguns investimentos; reduziu os impostos sobre empresas para, no máximo, 34%; diminuiu o alívio tributário sobre depreciação de imóveis; e, mais importante, retirou 6 milhões de pobres da malha tributária, expandindo deduções padrão, isenções pessoais e restituições (U.S. GOVERNMENT, 1986U.S. GOVERNMENT. 99th Congress. Public Law 99-514, de 22 de outubro de 1986. Washington: U.S. Government Information, 1986.).

Em diversos discursos públicos, Reagan justificou a política econômica com a percepção de mundo neocon, reforçando os estigmas sobre o Welfare em contraposição à nação. No discurso em que lançou o programa para recuperação econômica, Reagan afirmou:

Esse plano visa reduzir o crescimento dos gastos e impostos do governo, reformar e eliminar regulamentações desnecessárias e improdutivas ou contraproducentes, além de incentivar uma política monetária consistente, voltada para a manutenção do valor da moeda. Se promulgado na íntegra, esse programa pode ajudar os Estados Unidos a criar 13 milhões de novos empregos, quase 3 milhões a mais do que teríamos sem essas medidas. Também nos ajudará a ganhar o controle da inflação (...) Nossas instituições sociais, políticas e culturais, bem como nossas instituições econômicas, não podem mais absorver os choques repetidos que foram enfrentados nas últimas décadas (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
https://www.reaganlibrary.gov/research/s...
).

A partir da percepção de mundo neocon, Reagan ressignificou valores morais e a própria ideia de nação, difundindo estigmas negativos sobre os programas sociais, sobre aqueles que precisavam de assistência e sobre os liberais - a “Nova Classe” - que defendiam projetos progressistas. Em 1983, no discurso no Encontro Nacional da Associação dos Magistrados, Reagan comentou:

As políticas que aumentam a dependência e dividem as famílias não são progressistas; elas são reacionárias, mesmo sendo invariavelmente promovidas, aprovadas e realizadas em nome da justiça, generosidade e compaixão (...) Começamos a apoiar um crescente exército de profissionais. Não questiono suas boas intenções, mas seu interesse econômico está na ampliação da dependência, e não no fim dela (REAGAN, 1983REAGAN, Ronald. Remarks on Signing the Bill Making the Birthday of Martin Luther King, Jr., a National Holiday. 02 Nov. 1983. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/110283a>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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).

Quatro anos mais tarde, no almoço da Conservative Political Action Conference, o presidente declarou:

Um sistema federal de Welfare, construído em nome de ajudar aqueles que estão na pobreza, causou estragos nas famílias pobres - destruindo-as, destruindo os fundamentos de suas comunidades, criando filhos sem pai e desespero sem precedentes. O estado de bem-estar liberal tem sido uma tragédia além da descrição para muitos de nossos concidadãos, um crime contra americanos menos afortunados. O sistema de Welfare clama por reforma, e reformado será (REAGAN, 1987REAGAN, Ronald. Radio Address to the Nation on Welfare Reform. 07 Fev. 1987. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/020787a>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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).

Neste sentindo, frequentemente, Reagan sublinhou a dicotomia neocon entre os “verdadeiramente dependentes” - deficientes físicos e mentais, idoso e crianças - e os “socialmente dependentes” - trabalhadores que estavam presos na pobreza em virtude dos efeitos contraproducentes do Welfare. Nas palavras do presidente:

Continuaremos a cumprir as obrigações que emergem de nossa consciência nacional. Aqueles que, sem culpa alguma, precisam depender de todos nós - os atingidos pela pobreza extrema, os deficientes, os idosos, todos aqueles com verdadeiras necessidades - podem ficar seguros de que a rede de segurança social dos programas dos quais dependem é isenta de qualquer corte (…) Mas o governo não continuará a subsidiar indivíduos ou interesses comerciais específicos onde a necessidade real não puder ser demonstrada (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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).

Em um dos episódios do seu programa na rádio, Reagan resumiu os problemas do Welfare, inclusive usou exatamente a mesma figura de linguagem neocon, sobre a armadilha da pobreza, e contrapôs ao ideal de nação. Nas palavras de Reagan:

A triste verdade é que nosso sistema de Welfare representa uma longa e lamentável história de decepção (…) Pela primeira vez na história de nossa nação, milhões de americanos se tornaram virtualmente tutelados pelo Estado, presos em um ciclo de dependência social que lhes rouba dignidade e oportunidade (...) Ninguém duvida que os programas do Welfare foram projetados com a melhor das intenções, mas ninguém pode duvidar de que eles falharam - falharam em tirar as pessoas da dependência. Na luta contra a pobreza, agora sabemos que é essencial ter famílias fortes - famílias que ensinam às crianças as habilidades e os valores que eles precisarão no mundo inteiro. (…) No entanto, quando perguntamos se nosso sistema de Welfare incentivou a vida familiar, devemos responder: longe disso. Entre os pobres no Welfare hoje, as famílias, como sempre pensamos nelas, muitas vezes não estão sendo formadas. (…) Os pais, na maioria das vezes, não são encontrados. Também estamos entendendo que nosso sistema de Welfare enfraquece os valores e a auto-estima da comunidade. A falta de habilidades impede que nossos jovens obtenham os empregos e carreiras que desejam, sua esperança para si e para seus vizinhos desaparece. Para reverter esse terrível ciclo de desespero, precisamos aproveitar a vitalidade e a força de nossas comunidades. (…) Na busca por soluções, devemos retornar aos valores básicos que ajudaram a construir esta nação: fé nas famílias, fé na dignidade e no trabalho individual e fé em nosso sistema federal de governo. (…) Como eu disse antes, a única medida verdadeira do sucesso de um programa Welfare é quantas pessoas ele faz independente do próprio Welfare (REAGAN, 1987REAGAN, Ronald. Radio Address to the Nation on Welfare Reform. 07 Fev. 1987. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/020787a>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b).

Afinado com o neoconservadorismo, o governo Reagan procurou reverter e deslegitimar os movimentos sociais, sobretudo negros e mulheres, movendo uma série de ataques contra os direitos civis. Como lembra Wilentz, no caminho para Casa Branca, Reagan apelou para estratégia de Lei e Ordem, inaugurada por Richard Nixon, para conquistar os votos dos brancos conservadores no Sul e alienar politicamente trabalhadores brancos e católicos conservadores no Norte. Em 1980, Reagan começou a campanha eleitoral em Neshoba County, no Mississippi, aonde três ativistas pelos direitos civis foram brutalmente assassinados em 1964. Para os bons entendedores, Reagan deixou claro que estaria ao lado daqueles que desejavam reverter as leis que garantiam os direitos civis, ainda que, em certos momentos, evocasse a tolerância e a harmonia racial. Para Wilentz, já na Casa Branca, o governo Reagan travou uma guerra cultural nas cortes e no congresso para reverter a filosofia jurídica deixada pelo New Deal e pela Grande Sociedade (WILENTZ, 2008WILENTZ, Sean. The age of Reagan. New York: Harper Perennial, 2009., p. 180; 187). Vale recordar que, nos primeiros dias na Casa Branca, Reagan reagiu à greve dos controladores de voo com violência.

Reagan delegou a guerra contra os direitos civis a William Bradfor Reynolds, Procurador Geral Assistente para os Direitos Civis, e a Clarence Thomas, presidente da Comissão para Igualdade de Oportunidades de Emprego (Equal Employment Opportunity Comission - EEOC), que mais tarde seria o segundo negro a assumir uma cadeira na Suprema Corte dos EUA, indicado por George Bush e com viés conservador. No EECO, sob o pretexto da desregulamentação da economia, Thomas deixou de usar ações coletivas para impor a contratação de minorias e negligenciou milhares de denúncias de discriminação no trabalho e no processo de admissão de trabalhadores. De acordo com Wilentz, sob a batuta de Reynolds, a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça interveio para reverter políticas de ações afirmativas em cidades, condados e estados e ignorou inúmeras alegações de violação da Lei de Direito ao Voto de 1965, que na pratica proibiu os poderes locais de estabelecer barreiras ao direito de voto dos negros e outras minorias (WILENTZ, 2008WILENTZ, Sean. The age of Reagan. New York: Harper Perennial, 2009., p. 182-184).

Na solenidade que instituiu o dia do aniversário de Martin Luther King Jr. como feriado nacional, Reagan, que era veementemente contra a medida, reconheceu a discriminação racial no passado, mas diminuiu a importância dos movimentos sociais e das leis que garantiram direitos civis iguais para todos os estadunidenses. Nas palavras do presidente:

A Lei dos Direitos Civis de 1964 garantiu a todos os americanos o uso igual de espaços públicos, acesso aos programas financiados por fundos federais e o direito de competir por emprego com base no mérito individual. A Lei dos Direitos de Voto de 1965 garantiu que a partir de então os americanos negros pudessem votar. Mas o mais importante, não houve apenas uma mudança de lei; houve uma mudança de coração. A consciência da América foi tocada. Em todo o país, as pessoas começaram a se tratar não como negros e brancos, mas como companheiros americanos (REAGAN, 1983REAGAN, Ronald. Remarks on Signing the Bill Making the Birthday of Martin Luther King, Jr., a National Holiday. 02 Nov. 1983. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/110283a>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b).

Em outro discurso, Reagan minimizou os efeitos da integração racial nas escolas, política que seu governo resistiu em impor. O presidente citou seu amigo, Wilson Riles, Superintendente de Educação da California: “O conceito de que crianças negras não podem aprender a menos que estejam sentadas entre crianças brancas é um disparate absoluto e completo” (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b).

Especificamente, em relação às mulheres, a administração Reagan não moveu nenhum esforço para aplicar a Emenda Educacional IX, contra discriminação sexual nas escolas e universidades. Mais do que isso, Reagan propôs uma emenda à Lei de Direitos Civis para assegurar proteção aos princípios religiosos sob a Emenda Educacional Title IX. Reagan cerrou fileiras contra a jurisprudência do caso Roe v. Wade que, desde 1973, garantiu o direito ao aborto. Em 1981, Reagan apoiou a Emenda Hyde, que proibiu o uso de recursos do Departamento de Saúde para realização de aborto, exceto em casos em que a vida da mãe estava em risco. E, em 1988, Reagan sugeriu restringir ainda mais o uso de recursos federais para realizar aborto através da Emenda da Vida Humana, que visava proibir uso dos fundos do Departamento de Saúde para qualquer programa ou instituição que realizasse ou promovesse o aborto. Para Reagan: “O aborto tira a vida de um ser humano e Roe v. Wade estava errado em não reconhecer a humanidade do feto” (REAGAN, 1988REAGAN, Ronald. 1988 Legislative and Administrative Message: A Union of Individuals. 25 Jan. 1988. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/012588e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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).

Reagan reforçou o ataque às minorias, principalmente negros, através da crítica ao Welfare, desvelando um racismo peculiar a partir da mesma lógica de Kristol. Nas campanhas eleitorais dos anos 1970 e 1980, Reagan frequentemente lembrou da figura da “Rainha do Welfare”, caracterização das mulheres que, supostamente, viviam dos benefícios e das fraudes dos programas sociais. Reagan nunca disse que a “Rainha do Welfare” era uma mulher negra. Entretanto, uma rainha, na concepção de Reagan, inegavelmente era uma mulher. E, o caso que deu origem à construção desta figura simbólica envolvia uma mulher negra. A caracterização da “Rainha do Welfare” em charges e descrições sempre remeteu à figura da mulher negra. Reagan sabia. A plateia de Reagan sabia (MAYER, 2002MAYER, Jeremy. Running on race: racial politics in presidential campaigns 1960-2000. New York. Random House, 2002., p. 151; WILENTZ, 2008WILENTZ, Sean. The age of Reagan. New York: Harper Perennial, 2009., p. 180). Ainda no início do mandato, Reagan lembrou da “Rainha do Welfare” ao comentar sobre a dependência e a fraude no Welfare:

Esse é o tipo de coisa que achamos que há muito mais do que alguém imagina, como foi evidenciado em Chicago alguns anos atrás com a “Rainha do Welfare” que foi a julgamento. E constatou-se que, além de coletar assistência social sob 123 nomes diferentes, ela também tinha 55 cartões de seguridade social (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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c).

De forma geral, Reagan adotou um discurso “cego para cor” (Color Blind), que igualava as demandas da comunidade negra às demandas de outros grupos, negando, completamente, qualquer necessidade de políticas públicas específicas para equiparação racial. Na convenção anual da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People - NAACP), Reagan pediu ao público, majoritariamente de ativistas negros, para esquecer os desentendimentos do passado. E, reforçou o discurso “cego para cor”, comparando:

Eu tenho ouvido as necessidades específicas de muitas pessoas - negros, agricultores, refugiados, sindicalistas, mulheres, homens, pequenos empresários e outros grupos - eles são comumente referidos como grupos de interesse especial (...) não importa em que grupos pertencemos, em que área vivemos ou quão pouco ganhamos; a economia afeta cada um de nós, independentemente de nossos outros interesses e afiliações (...) O bem-estar dos negros, como o bem-estar de todos os outros americanos, está diretamente ligado à saúde da economia (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b).

No mesmo discurso, Reagan associou a crítica ao Welfare especificamente à comunidade negra: “Nos próximos meses, nosso diálogo também incluirá perguntas difíceis e realistas sobre o papel do governo federal na comunidade negra” (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b). E, com uma série de perguntas retóricas carregadas de suposições prévias, vinculou a comunidade negra, especialmente as mulheres, às patologias sociais e à armadilha do Welfare:

O adolescente negro que enfrenta uma taxa de desemprego impressionante pode sentir que as políticas do governo são um sucesso? O assalariado negro que vê cada vez mais o seu salário em casa encolhendo por causa dos impostos do governo pode se sentir satisfeito? Os pais negros podem dizer, apesar de um influxo maciço de ajuda federal, que os padrões educacionais em nossas escolas melhoraram consideravelmente? As mulheres que eu vi na televisão recentemente - cujas famílias estavam no Welfare há três gerações e que temiam que seus filhos pudessem ser a quarta - podem acreditar que as políticas atuais do governo salvarão seus filhos desse destino? (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b).

Em seguida, Reagan emendou um comentário, colocando a comunidade negra como ingênua e submissa à “Nova Classe”: “Fazemos essas perguntas porque os negros da América não devem ser apadrinhados como apenas mais um bloco de votos a serem cortejados e vencidos. Vocês são indivíduos como todos nós somos” (REAGAN, 1981REAGAN, Ronald. Remarks at a “Salute to a Stronger America” Republican Fundraising Dinner in Houston, Texas. 13 Nov. 1981. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/111381e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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b). Em um discurso para levantar fundos para o Partido Republicano no Texas, com uma plateia eminentemente branca, Reagan contou que recebeu uma carta de uma senhora negra, de Nova Orleans, agradecendo pela reestruturação do Welfare. Para Reagan, ela era negra, mas, diferente do esperado dos negros, compreendia os problemas do Welfare. Nas palavras de Reagan: “Ela era negra, mas disse: “Obrigado por acabar com a Guerra contra a Pobreza”. Ela continuou: “Obrigado por nos deixar mais uma vez experimentar nossos próprios músculos e não nos tornarmos dependentes indefesos” (REAGAN, 1981d).

A guerra que o governo Reagan moveu contra o Welfare e contra os Direitos Civis melhorou, relativamente, alguns indicadores da economia estadunidense, mas teve um impacto atroz sobre a vida dos mais pobres, principalmente dos negros. Como aponta Campagna, no governo Reagan, o Produto Nacional Bruto (PNB) cresceu em média 3% no período entre 1981 e 1989. Retirou o país da estagnação. Mas, em perspectiva histórica, o PNB do governo Reagan cresceu exatamente na mesma média do período Carter, entre 1977 e 1981. E, cresceu menos do que no longo período entre 1945 e 1980, em média 3,4%. Em especial, dois fatores frearam o crescimento do PNB no governo Reagan: o crescimento lento da produtividade e o crescimento lento do setor industrial, evidenciando um processo de desindustrialização, que ganharia contornos mais dramáticos nas décadas seguintes. Vale ressaltar que, durante a administração Reagan, o déficit diminuiu a capacidade e a propensão aos investimentos internos. Em contrapartida, os investimentos externos diretos (IED) cresceram significativamente e contribuíram de forma determinante para o crescimento do PNB no período entre 1981 e 1989, revelando a interdependência crescente da economia estadunidense.

O governo Reagan conseguiu reduzir a tributação total em 23%, promovendo maiores vantagens tributárias e incentivos para os mais ricos (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 249). Mas essas medidas não tiveram impacto sobre a produtividade como previam adeptos da Teoria Supply-Side Economics. Pior, promoveram efeitos negativos diretos nos orçamentos e no déficit. Como aponta Campagna, ao fim dos três anos, as medidas da ERTA e da TEFRA provocaram um impacto direto nos orçamentos de 1985 e 1986 com perda de arrecadação de respectivamente US$ 181,2 bilhões e US$ 225,6 bilhões (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 250). E, foram os principais responsáveis pelo crescente déficit no período. O impacto indireto de perda de arrecadação é incalculável. Como efeito, a lei ampliou a base de arrecadação sobre os mais pobres. A redução tributária e a ampliação da base de arrecadação derrubaram progressividade do sistema de taxação. Com isso, os mais ricos se beneficiaram às custas dos mais pobres. Mas, a redução tributária para os mais ricos não conseguiu estimular a produtividade e teve um impacto negativo sobre orçamento. Os investimentos esperados não incrementaram mais do que 4.1% de horas trabalhadas de homens e 3.5% de horas trabalhadas de mulheres (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 248). Em outras palavras, os investimentos esperados com a redução de impostos não tiveram impacto significante na produtividade e na geração de emprego. Neste sentido, a experiência mostra o fracasso completo da Teoria Supply-Side Economics.

O desemprego caiu de 7,1% em 1980 para 5,5% em 1988. Todavia, a desigualdade cresceu, sobretudo porque os empregos e salários diminuíram no setor secundário, com remuneração média de US$ 13 por hora trabalhada, e aumentaram no setor terciário, com remuneração média de US$ 9 por hora trabalhada. Em 1989, o setor primário empregou 24% dos trabalhadores empregados e o setor secundário empregou 76% dos trabalhadores empregados. De forma geral, na comparação com as três décadas anteriores, os salários no período caíram significativamente. De acordo com Campagna, entre 1981-1989, 25% das famílias mais pobres perderam, em média, 13,2% da renda. Por outro lado, os 25% das famílias mais ricas ampliaram a renda, em média, 6,7%. E, 5% das famílias no topo das mais ricas aumentaram a renda, em média, 17%. De forma geral, 80% das famílias estadunidenses ficaram mais pobres no período. De acordo com a medição do Coeficiente Gini, a desigualdade entre as famílias aumentou 9,9% no período (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 558-565). Portanto, os cortes no Welfare atingiram uma parcela da população que estava ficando cada vez mais pobre. Como Katz ilustra, entre 1981 e 1984, a renda anual de uma mulher com três filhos abaixo da linha da pobreza caiu 20%, aproximadamente US$ 2.000. Neste caso hipotético, o suporte do AFDC caiu de US$ 1.862 para US$ 38; o Food Stamps aumentou de US$ 1.239 para US$ 1.599; e a tributação passou de US$ 91 em restituição para US$ 461 de contribuição. Com isso, o rendimento total anual caiu de US$ 11.150 para US$ 9.179 (KATZ, 1996KATZ, Michael. In the Shadow of the poorhouse: a social history of welfare in America. New York: Basic Books, 1996., p. 297).

O impacto do Reaganomics, principalmente da Guerra contra o Welfare, foi ainda mais significativo sobre a comunidade negra. Entre 1980 e 1984: a renda média das famílias negras, considerando a inflação caiu 5,3%. Neste último ano: 16% dos negros estavam desempregados, enquanto apenas 6,4% dos brancos estavam na mesma situação; 35,7% das famílias negras eram pobres, o maior número desde que começaram a recensear a pobreza no país, em 1968; entre as famílias 40% mais pobres, havia 3 vezes mais famílias negras do que famílias brancas; o rendimento anual médio das famílias negras era de US$ 15.432, o rendimento anual médio das famílias brancas era de US$ 27.686 e o rendimento anual médio das famílias em geral era de US$ 26.433; 48,6% das famílias negras eram chefiadas por mulheres e em média essas famílias tinham 2,36 filhos (não muito mais do que a média de 2 filhos das famílias brancas, diferente do que imaginavam os neocons); 51,7% das famílias negras chefiadas por mulheres estavam abaixo da linha da pobreza; 57% das famílias negras chefiadas por mulheres que tinham dois filhos estavam abaixo da linha da pobreza; 75,6% das famílias negras chefiadas por mulheres com três crianças estavam abaixo da linha da pobreza; aproximadamente três entre quatro crianças negras estavam vivendo na pobreza; e aproximadamente 46,5% das crianças e jovens negros (com menos de 18 anos de idade) eram pobres. Além disso, os programas destinados a subsidiar o ensino superior dos negros estadunidenses, como o Pell Grants, foram reduzidos em um sexto. Em 1980, 43% dos negros secundaristas entravam nas universidades. Em 1982, quando esses programas começaram a sofrer cortes, o número de negros estadunidenses nas universidades caiu para 36% (CENTER ON BUDGET AND POLICY PRIORITIES, 1986CENTER ON BUDGET AND POLICY PRIORITIES. Falling behind: a report on how blacks have feared under Reagan. Journal of black studies, Vol. 17, Nº2. Dec 1986.).

Apesar do sacrifício dos mais pobres, o governo Reagan não conseguiu reduzir as despesas do governo federal. Pelo contrário, as despesas aumentaram significativamente em função dos gastos com o aparato militar e com juros. No último ano fiscal do governo Carter, as despesas do governo totalizaram 22,1% do PNB ou US$590,9 bilhões. No último ano fiscal do governo Reagan, as despesas do governo somaram 22,3% do PNB ou US$1,14 trilhão. Ou seja, entre o último ano do governo Carter e o último ano do governo Reagan, o total de despesas do governo federal aumentou em 94%. Aparentemente, o impacto sobre o PNB foi quase o mesmo. Todavia, o deficit do governo federal aumentou de US$73 bilhões para US$206 bilhões no mesmo período. Ainda de acordo com Campagna, as medidas do Congresso, que resistiu de forma muito modesta aos cortes no Welfare e ao aumento dos gastos com defesa, tiveram pouquíssimo impacto na explosão orçamentária do período, apenas US$186,5 bilhões ou 2,5%. O gasto com aparato militar subiu de 22,7% para 26,5% do PNB. E, o gasto com juros da dívida subiu de 9,85% para 14,8% do PNB, uma vez que o governo teve que recorrer aos empréstimos no setor privado para financiar o déficit orçamentário, majoritariamente militar (CAMPAGNA, 1994CAMPAGNA, Anthony. The economy in the Reagan years: the economic consequences of the Reagan Administration. Westport: Greenwood Press, 1994., p. 213-219).

Os gastos com a defesa, em detrimento dos mais pobres e do equilíbrio das contas públicas, sedimentaram a reconstrução da hegemonia estadunidense no cenário internacional através de ações militares e da expansão do modelo econômico neoliberal. Para Reagan, a defesa nacional era a principal responsabilidade do governo. Nas palavras do presidente:

não devemos relaxar nossos esforços para restaurar a força militar, exatamente no momento em que nos aproximamos do nosso objetivo de um corpo profissional totalmente equipado, treinado e pronto. A segurança nacional é a primeira responsabilidade do governo (...) só temos um complexo industrial militar até um momento de perigo e então ele se torna o arsenal da democracia. Gastar com defesa é investir em coisas que não têm preço - paz e liberdade (REAGAN, 1985REAGAN, Ronald. Address Before a Joint Session of the Congress on the State of the Union. 06 Fev. 1985. Disponível em: <https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/20685e>. Acesso em 27 Fev. 2020.
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).

Com clara inspiração neocon, o governo Reagan abandonou definitivamente a política de distensão para adotar uma nova política externa centrada na contenção da URSS. Como premissa fundamental dessa estratégia, o governo Reagan investiu no setor bélico para obrigar a URSS a entrar em uma corrida armamentista e, consequentemente, aprofundar uma crise econômica em curso desde o final dos anos 1970. O governo Reagan vislumbrou até mesmo uma Guerra nas Estrelas, com um sistema moderno de armas espaciais para destruir mísseis nucleares no auge da sua trajetória, antes da reentrada na atmosfera terrestre, e assegurar que um ataque nuclear estadunidense não teria resposta adequada. De forma articulada, o governo Reagan fomentou nacionalismos e independências no Leste Europeu e em outros países aliados da URSS sob o manto da promoção da democracia e da liberdade em meio aos efeitos da crise econômica do bloco comunista. Para isso, usou operações secretas de desestabilização e apoiou diretamente opositores internos, apelidados de Guerreiros da Liberdade. Entretanto, como sugeriu Kirkpatrick, a promoção da democracia foi pensada em consonância com o combate ao comunismo e outras ameaças internacionais e não como um valor absoluto. Nesta perspectiva, o governo Reagan buscou sustentar governos autoritários amigos e combater governos democráticos despreocupados com a contenção da URSS.

Em especial, na América Central e no Caribe, o governo Reagan respondeu aos desafios à hegemonia com base na grande estratégia neocon, priorizando, também sob o manto da promoção da democracia, intervenções contra-insurgentes combinadas com instrumentos de imposição do modelo neoliberal de livre mercado como substituto do modelo de promoção do desenvolvimento econômico e social.

Para enfrentar Cuba, o governo Reagan apoiou e financiou a Fundação Nacional Cubano-Americana (CANF), fundada em 1981 por cubanos em Miami, para fortalecer o lobby contra o governo Castro no congresso dos EUA. Mais tarde, auxiliou a CANF em ações diretas na ilha, inclusive atentados terroristas. Além disso: realizou movimentos militares agressivos no Caribe; intensificou ações de espionagem; aumentou a pressão política com a criação da Radio Martí em Miami; e apertou o cerco econômico com recrudescimento do bloqueio comercial. Granada, outra ilha no Caribe que flertava com o socialismo desde um golpe revolucionário em 1979, não teve a mesma sorte. Em 1983, o governo Reagan aproveitou os embates entre facções revolucionárias para enviar tropas militares com o objetivo de por fim à revolução, sob a alegação de que pretendia apenas salvaguardar a vida de estudantes estadunidenses na ilha.

Em meio a Revolução Sandinista na Nicarágua e a Guerra Civil de El Salvador, o governo Reagan tomou a defesa da América Central contra a URSS como indispensável para os EUA, uma vez que dois terços do comércio estadunidense passava pelo Canal do Panamá. Além disso, o Secretário de Estado, Alexander Haig acreditava que a vitória dos EUA na América Central enviaria um sinal do comprometimento com o mundo e serviria de aviso para URSS, que reduziria seu ímpeto de dominação.

Na Nicarágua, o governo Reagan adotou uma estratégia para treinar, financiar e organizar os Contra, principal força paramilitar de contrainsurgência, para combater a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que chegou ao poder através da revolução de 1979. Durante toda década de 1980, o governo Reagan e os Contra perpetraram uma guerra para derrubar o governo revolucionário e, por extensão, provocaram o terror sobre a população civil, em especial sobre os camponeses pobres. Além disso, com apoio dos EUA, os Contra realizaram uma série de ataques para destruir instalações vitais para economia nicaraguense como portos, plataformas de petróleo e reservatórios de combustíveis. O governo Reagan, inclusive, recorreu a operações secretas para driblar o congresso estadunidense e financiar a contrarrevolução, como ficou evidente com o escândalo Irã-Contra. Em paralelo, o governo Reagan também exerceu mais pressão política e econômica sobre a Nicarágua. Por meio do FMI, obrigou o México a suspender a linha de crédito de 100% na venda do petróleo que abastecia a Nicarágua. E promoveu um embargo econômico sobre o país.

Em El Salvador, o governo Reagan treinou e financiou as forças armadas salvadorenhas no combate político e militar para evitar que a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) chegasse ao poder. Através do crescente financiamento militar, os EUA treinaram e equiparam as forças armadas de El Salvador com botas, uniformes, armas, munição e veículos de combate. Em operações como a “Operation Well-Being”, inspirada na experiência do Vietnã, o governo Reagan deu todo tipo de assistência aos melhores batalhões das forças armadas salvadorenhas para expulsar os guerrilheiros nas províncias do interior, uma de cada vez. Após a expulsão, as forças armadas salvadorenhas treinaram civis locais para enfrentar o retorno dos guerrilheiros. Entre 1984 e 1985, a força aérea salvadorenha bombardeou ostensivamente regiões sob o controle da FMLN. De forma complementar, as forças terrestres passaram a realizar assaltos e se mover mais rapidamente entre as zonas controladas pela guerrilha - tudo isso sem fazer nenhuma distinção entre civis e guerrilheiros. Com a vitória militar praticamente assegurada, o governo Reagan endereçou a El Salvador um plano econômico de estabilização nos moldes neoconservadores, calcados na austeridade, para reduzir os gastos, diminuindo ainda mais os investimentos em programas sociais e congelando salários dos funcionários públicos.

De forma mais generalizada, a administração Reagan buscou estabelecer programas amplos para reestruturar a defesa militar e alavancar a economia neoliberal, sob a legitimidade da promoção da democracia e da liberdade. Em 1982, lançou a Caribbean Basin Initiative (CBI), um programa de assistência militar e econômica para os países da América Central e do Caribe, com fomento do livre mercado, ampliação dos investimentos e promessas de ajuda financeira. No mesmo ano, no bojo da crise da dívida externa que assolou o subcontinente, o governo Reagan lançou o fracassado Plano Baker, que colocou os credores, com apoio do FMI, na coordenação das negociações sobre as dívidas da América Latina. Em linhas gerais, o Plano Baker suspendeu todos os recursos financeiros até que os países devedores conseguissem estabelecer um ajuste recessivo sobre suas economias - nos moldes neoliberais e neoconservadores - e garantir o pagamento das dividas privadas.

Em texto de 1981, Kirkpatrick justificou e legitimou as intervenções na América Central e no Caribe seguindo exatamente a lógica neocon. Para a intelectual, o governo Carter tentou promover mudanças artificiais na região, incentivando a igualdade e a democracia. Entretanto, ignorou a realidade da América Central e o poder do comunismo na região (KIRKPATRICK, 1981KIRKPATRICK, Jeane. U.S. security & Latin America. Commentary Magazine, New York, v. 71, n. 1, p. 29-40, jan, 1981.). Kirkpatrick apontou que, na América Central, o Estado estava sujeito à realização de interesses pessoais de grupos diversos. Nas palavras de Kirkpatrick: o Estado “não é forte o suficiente para canalizar e conter as reivindicações de vários grupos interessados em usar o poder público para aplicar políticas preferenciais” (KIRKPATRICK, 1981KIRKPATRICK, Jeane. U.S. security & Latin America. Commentary Magazine, New York, v. 71, n. 1, p. 29-40, jan, 1981.). Logo, também estava sujeito à instabilidade com “golpes, manifestações, greves políticas, conspirações e contra-conspirações” (KIRKPATRICK, 1981KIRKPATRICK, Jeane. U.S. security & Latin America. Commentary Magazine, New York, v. 71, n. 1, p. 29-40, jan, 1981.). No mesmo ano, nas audições no senado, Kirkpatrick sintetizou no governo Sandinista a fusão entre as características totalitárias da América Latina e a influência do comunismo. Nas palavras de Kirkpatrick, os sandinistas: “refletem o característico desejo totalitário de absorver a sociedade no Estado, de transformar grupos sociais em agências e instrumentos do governo” (KIRKPATRICK, apud, U.S. GOVERNMENT, 1981U.S. GOVERNMENT. Hearing before the Committee on Foreign Relations United States Senate: Ninety-Seventh Congress first session on the nomination of Jeane J. Kirkpatrick to be representative to the United Nations. Washington: U.S. Government Printing Office, 1981., p. 72). Para Kirkpatrick, o governo Carter promoveu uma política modernista e globalista, que deteriorou a posição dos EUA no hemisfério e criou vulnerabilidades e ameaças sem precedentes, conformando um anel de bases soviéticas em torno das fronteiras estadunidenses, lembrando o processo de finlandização. E, Cuba se tornou um instrumento significativo de expansão da URSS (KIRKPATRICK, 1981KIRKPATRICK, Jeane. U.S. security & Latin America. Commentary Magazine, New York, v. 71, n. 1, p. 29-40, jan, 1981., p.38-40). Os EUA precisavam construir uma política externa para região com o objetivo de promover os interesses e a segurança dos EUA e tornar as pessoas um pouco mais livres (KIRKPATRICK, 1981KIRKPATRICK, Jeane. U.S. security & Latin America. Commentary Magazine, New York, v. 71, n. 1, p. 29-40, jan, 1981.. P. 40).

Conclusão: o dilema hegemônico depois do neoconservadorismo

No final dos anos 1960, a crise generalizada impôs um dilema hegemônico aos EUA. Naquele contexto, Irving Kristol e outros intelectuais formularam analises e respostas para transformar o Estado, a Cultura e a Política Externa do país. Estabeleceram a crítica ao Welfare como engrenagem principal na conformação de uma ideologia totalizante, com base na articulação entre: o arcabouço econômico pretensamente científico neoliberal; estratégias legais, culturais e discursivas de revalorização das instituições tradicionais da sociedade, flertando, inclusive, com o racismo e o machismo estrutural; e uma política externa unilateral e seletiva de combate ao comunismo e difusão do livre mercado.

O governo Reagan colocou o neoconservadorismo em prática, com mediações e limites impostos pela realidade política, como a oposição no congresso e as alianças e embates com diversos setores da sociedade civil. A experiência neocon no governo Reagan aumentou a pobreza, principalmente entre os negros e mulheres. Insuflou a desigualdade, inclusive entre raças e gênero. Multiplicou o deficit público. Financiou o autoritarismo e a destruição no Terceiro Mundo, especialmente na América Central e no Caribe. Entretanto, a experiência neocon no governo Reagan resolveu, momentaneamente, o dilema da hegemonia. Ressignificou o papel do Estado, conformando um compromisso com a produtividade e a superioridade política e militar dos EUA em detrimento do bem-estar da população. Construiu um imaginário negativo sobre as políticas públicas governamentais de distribuição de renda e combate a desigualdade, inclusive ressignificando o racismo e o machismo estrutural. Neutralizou culturalmente e legalmente os movimentos sociais, tolhendo a ampliação da democracia. Mobilizou recursos para reerguer o poder econômico e militar dos EUA no sistema internacional. Contribuiu significativamente para a derrocada da URSS. E reestruturou a competitividade dos EUA através da expansão da super-exploração de recursos naturais e humanos no Terceiro Mundo, especialmente na América Latina e no Oriente Médio, através do modelo neoliberal combinado com a violência. Em suma, a experiência neocon no governo Reagan pavimentou o caminho dos EUA na Nova Ordem Mundial após a Guerra Fria.

  • Coordenação do Dossiê Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria
    Mary Anne Junqueira e Marcos Napolitano
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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo
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    O termo Welfare abarca políticas públicas, programas sociais e seguridade social específicos. Não existe termo correlato em português.
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    Todas as citações deste texto foram traduzidas pelo autor, estão originalmente em língua inglesa e podem ser encontradas de acordo com as referências
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    Como herdeiros do liberalismo, os neoliberais admitem apoiar, de acordo com a conjuntura, políticas progressistas de legalização das drogas, descriminalização da prática de aborto, a união civil homoafetiva, a liberdade religiosa e medidas relativas a preservação do meio ambiente. Como salvaguarda do direito à vida, a atuação mínima do Estado pressupõe políticas para socorrer aqueles que se encontram em necessidade. Já os neocons resistem a essas pautas. Já os neocons resistem a essas pautas.
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    Durante o século XX, o liberalismo nos EUA se transformou com o objetivo de oferecer respostas à pobreza, ao desemprego e aos problemas sociais associados à crise do capitalismo. Diante das transformações e contradições da sociedade urbana e industrial, sobretudo após a crise de 1929, os liberais estadunidenses compreenderam que para garantir a liberdade e a emancipação plena dos indivíduos era necessário: mediar as relações de produção; regular a competitividade; e oferecer instrução e recursos econômicos e sociais mínimos.
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    Neste debate, o termo espiritual se refere a internalização psíquica de um sentido para a vida.

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Editado por

Editores Responsáveis
Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
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