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Responsabilização e participação: como superar o caráter tutelar no centro de atenção psicossocial álcool drogas?

Motivación y participación: ¿cómo superar el carácter tutelar en lo centro de atenciónpsicosocial alcohol drogas?

Resumo

OBJETIVO

Analisar o grau de responsabilização e participação do usuário em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-ad) sob a perspectiva da política de redução de danos.

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, com 12 usuários e quatro profissionais do CAPS-ad de um município de Minas Gerais. Os dados foram coletados entre abril e setembro/2017 por meio de entrevista semi-estruturada, observação participante e análise documental.

RESULTADOS

A partir da análise de conteúdo, as informações foram organizadas em duas categorias temáticas: objetivos do tratamento e motivação para o tratamento. Conclusões: os achados da pesquisa revelaram que os usuários devem ser mais responsabilizados e empoderados em relação ao seu tratamento.

CONCLUSÕES

Sugere-se maior escuta profissional, favorecendo a construção de metas condizentes com os interesses dos usuários, na forma de contratos.

Palavras-chave:
Saúde mental; Serviços comunitários de saúde mental; Usuários de drogas; Redução do dano; Planejamento de assistência ao paciente

Resumen

OBJETIVO

Analizar el grado de responsabilización y participación del usuario en tratamiento en el Centro de Atención Psicosocial alcohol y drogas (CAPS-ad) a partir de la perspectiva de la política de reducción de daños.

MÉTODOS

Se trata de una investigación de abordaje cualitativo, del tipo estudio de caso, con 12 usuarios y cuatro profesionales del CAPS-ad de un municipio de Minas Gerais. Se reunieron los datos entre abril y septiembre/2017 por medio de entrevistas semiestructuradas, observación participante y análisis documental.

RESULTADOS

A partir del análisis de contenido se organizaron las informaciones en dos categorías temáticas: los objetivos del tratamiento y la motivación para el tratamiento. Los resultados del estudio sugieren que hay que responsabilizar más a los usuarios en cuanto a su tratamiento.

CONCLUSIÓN

Se sugiere más escucha profesional, favoreciendo la construcción de objetivos coherentes con los intereses de los usuarios, además de factibles, en la forma de contratos.

Palabras clave:
Salud mental; Servicios comunitarios de salud mental; Consumidores de drogas; Reducción del daño; Planificación de atención al paciente

Abstract

OBJECTIVE

Analyze the degree of accountability and participation of user under treatment at the Psychosocial Care Center for Alcohol and Drug Users (CAPS-ad) from the harm reduction policy perspective.

METHODS

It is a qualitative approach study, case study type, with 12 users and four professionals from CAPS-ad in a county of Minas Gerais state. Data were collected from April to September 2017, by means of semi-structured interview, participant observation and documental analysis.

RESULTS

Based on content analysis, information was organized in two thematic categories: treatment objectives and motivation for treatment. Conclusions: the study’s findings revealed that users should be more held accountable and empowered with regard to their treatment.

CONCLUSIONS

More professional listening is suggested, favoring the constructions of goals befitting users’ interests, as contracts.

Keywords:
Mental health; Community mental health services; Drug users; Harm reduction; Patient care planning

INTRODUÇÃO

As drogas sempre existiram em todas as sociedades com diferentes concepções (ideológicas, religiosas e/ou políticas) incorporadas à cultura, atingindo atualmente proporções epidêmicas de consumo prejudicial. Constata-se que o uso de álcool e outras drogas é um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo, pela relação comprovada entre o consumo prejudicial e agravos físicos, psicológicos e sociais.

A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 5% da população adulta entre 15 e 64 anos (um quarto de bilhão de pessoas) usou drogas pelo menos uma vez em 2015; e que 11% das pessoas que consomem drogas (29,5 milhões de pessoas) sofrem de transtornos devido ao uso de drogas a ponto de necessitar de tratamento11. United Nations Office on Drugs and Crime [Internet]. Vienna: UNODC; c2018 [cited 2018 Apr 25]. World Drug Report 2017; [about 1 screen]. Available from: http://www.unodc.org/wdr2017/.
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.

No Brasil, o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas (CAPS-ad) é uma modalidade de serviço que oferece atendimento a indivíduos com necessidades decorrentes do abuso e dependência de substâncias psicoativas22. Galhardi CC, Matsukura TS. The daily routine of teens at a Center for Psychosocial Care for Alcohol and Other Drugs in Brazil: realities and challenges. Cad Saúde Pública 2018;34(3):e00150816. doi: https:/doi.org/10.1590/0102-311x00150816.
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. Trata-se de um serviço especializado da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que trabalha na perspectiva de reorganização da assistência dos serviços públicos, preconizando o acesso universal e a livre circulação do usuário no território, o oferecimento de um cuidado integral de qualidade, centrado nas demandas e fundamentado no respeito aos direitos humanos e na autonomia dos usuários33. Nóbrega MPSS, Domingos AM, Silveira ASA, Santos JC. [Weaving the West Psychosocial Care Network of the municipality of São Paulo]. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):965-72. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0566.
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No CAPS-ad a abordagem da redução de danos é frequentemente utilizada como norteadora da conduta das equipes, enquanto diretriz política e de assistência à saúde, mas por vezes suas intervenções são desconsideradas, sendo uma opção de ação somente quando não se consegue alcançar a abstinência. Trata-se portanto, de uma estratégia que tem o objetivo de romper com modelos de estigmatização das drogas, a fim de promover o surgimento de outras possibilidades terapêuticas em relação ao uso e a dependência44. Carvalho B, Dimenstein M. [Discourse analysis about harm reduction in a CAPSad III and a therapeutic community]. Temas Psicol. 2017;25(2):647-60. Portuguese. doi: https://doi.org/10.9788/TP2017.2-13.
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. Destaca-se que as diferentes intervenções de redução de danos devem ser implantadas para minimizar danos e agravos associados ao consumo de drogas55. Bosque-Prous M, Brugal MT. Intervenciones de reducción de daños en usuarios de drogas: situación actual y recomendaciones. Gac Sanit. 2016;30(S1):99-105. doi: https://doi.org/10.1016/J.GACETA.2016.04.020.
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Essa abordagem visa minimizar os danos e consequências à saúde, bem como às circunstâncias sociais e econômicas associadas ao uso de drogas, sendo que as intervenções se dirigem às pessoas que não podem ou não querem interromper o consumo de drogas. Ela preconiza que o manejo das questões individuais relativas ao consumo deve levar em conta as singularidades de cada um, e as suas estratégias devem ser construídas de modo participativo junto com cada sujeito, em um processo de corresponsabilização pelas escolhas trilhadas66. Pinto LO, Oliveira DJ, Duarte FMR. [Informative group: harm reduction strategies for people apprehended for illicit drug consumption and/or possession]. Interface (Botucatu) 2015;19(supl 1):965-93. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0870.
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A redução de danos é uma importante diretriz de atuação dos profissionais do CAPS-ad, pois propõe um novo olhar para o abuso de drogas, ao buscar respeitar o livre-arbítrio do usuário em decidir sobre a moderação do uso ou à abstinência de drogas e ao favorecer o seu acesso e participação efetiva nos serviços de saúde. Assim, o principal aspecto dessa abordagem é a atitude inclusiva e sem preconceitos, que se reflete em mais flexibilidade para negociar e estabelecer objetivos e metas a serem alcançadas com o tratamento.

A partir da dimensão prática da assistência em saúde em um serviço especializado questiona-se: Como é a participação e envolvimento do usuário de drogas no seu tratamento? Este artigo buscou analisar o grau de responsabilização e participação do usuário em tratamento no CAPS-ad sob a perspectiva da política de redução de danos.

Considera-se necessário refletir sobre os pressupostos tradicionais que orientam as práticas no âmbito das políticas públicas no Brasil, pois os usuários dos serviços de saúde quase nunca são questionados quanto à participação e ao protagonismo na formulação dos programas e ações de saúde no cotidiano dos serviços. Em relação aos usuários de drogas, a literatura científica relata que isso não é diferente, pois frequentemente eles são considerados agentes passivos nesta relação33. Nóbrega MPSS, Domingos AM, Silveira ASA, Santos JC. [Weaving the West Psychosocial Care Network of the municipality of São Paulo]. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):965-72. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0566.
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MÉTODO

Esta pesquisa foi construída junto ao Mestrado Profissional em Prevenção e Assistência a Usuários de Álcool e outras Drogas77. Santos JM. A participação dos usuários no plano de tratamento em um CAPS-ad: um estudo de caso [dissertação]. Porto Alegre (RS): Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas; 2017., promovido pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça. Trata-se de um pesquisa de abordagem qualitativa, com delineamento do tipo estudo de caso88. Yin RK. Pesquisa qualitativa: do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016., realizada no CAPS-ad de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Tal serviço oferece permanência-dia e atendimentos ambulatoriais a usuários de álcool e outras drogas, e conta com uma equipe multiprofissional composta por médico clínico, médico psiquiatra, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, técnicos de enfermagem e monitores de oficinas terapêuticas. Funciona das 8 às 17 horas, de segunda à sexta-feira, com plantões em todo o período de funcionamento para o acolhimento de novos casos.

Esse serviço interage com a RAPS do município e outros parceiros, como Casas de Cultura, a Universidade Federal de Ouro Preto, a Fundação de Arte de Ouro Preto, a associação de usuários e familiares da RAPS e as oficinas de geração de renda.

A coleta de informações ocorreu entre abril e setembro de 2017, nas dependências do serviço, sendo utilizadas diferentes técnicas na coleta de dados, como análise documental (AD), observação participante (OP), entrevistas semi-estruturadas com usuários (EU) e com profissionais (EP). Ressalta-se que foram entrevistados 12 usuários e quatro profissionais do CAPS-ad e que a coleta de dados foi realizada por uma pesquisadora, membro da equipe assistencial desse serviço.

Nas entrevistas dos usuários foram abordados temas como: objetivos, motivações e participação no tratamento. Nas entrevistas dos profissionais foram abordados os temas: participação e objetivos na condução do tratamento de um usuário de sua referência. Foram realizadas observações de atendimentos de revisão de PTS, quanto aos objetivos e à participação do usuário no tratamento, e a interação dos profissionais com os usuários. Na análise documental, foram verificados os objetivos, as motivações e as propostas de tratamentos registrados.

Os usuários do CAPS-ad foram selecionados por conveniência, e os critérios de inclusão adotados foram: ser usuário de álcool e/ou outras drogas, ter 18 anos ou mais de idade e estar em tratamento no CAPS-ad há pelo menos três meses, na modalidade de tratamento intensivo ou semi-intensivo. Desta forma, os usuários entrevistados estavam em regime de Permanência-Dia, frequentando o CAPS-ad durante uma parte do dia e participando das atividades propostas. Usuários com déficit cognitivo acentuado, comorbidade psiquiátrica grave ou intoxicados no momento da entrevista não foram incluídos. Foram realizadas entrevistas com os usuários até a identificação de repetição de conteúdo nas falas dos entrevistados, segundo o critério de saturação dos dados em que há um número suficiente de entrevistas para permitir certa reincidência das informações88. Yin RK. Pesquisa qualitativa: do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016..

Em relação aos profissionais, foram entrevistados todos que eram referência na elaboração e condução do Projeto Terapêutico Singular (PTS) dos usuários no serviço, com pelo menos um ano de experiência de trabalho no CAPS-ad. Cada participante do estudo (usuários e profissionais) foi entrevistado uma única vez. A observação participante foi realizada nos atendimentos de revisão de PTS, com a presença do técnico de referência do usuário, ou seja, aquele profissional responsável pelo PTS do respectivo usuário. A análise documental foi direcionada para prontuários e formulários de PTS, abrangendo todos os usuários entrevistados.

A amostragem final ficou constituída de: cinco OP, 14 AD, 12 EU e quatro EP. Todos os usuários e profissionais envolvidos na pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os dados coletados foram identificados pelas iniciais da técnica de pesquisa e pelo número correspondente, para facilitar as citações e preservar o anonimato dos participantes (Ex. EP-01, OP-7).

Todas as técnicas utilizaram roteiros específicos para orientação do trabalho de campo. Não houve alteração dos roteiros após a realização de teste piloto e as entrevistas tiveram duração entre 10 e 40 minutos. Por meio da utilização das técnicas de coleta foi possível haver uma triangulação dos dados, permitindo analisar a participação e responsabilização do usuário no tratamento dando maior validade aos achados do estudo88. Yin RK. Pesquisa qualitativa: do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016..

Junto aos registros de AD e OP, as entrevistas gravadas foram transcritas, sendo posteriormente realizada a análise de conteúdo do tipo temática de Bardin99. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015.. Tal análise é composta por três etapas: pré-análise (organização e classificação dos dados, utilizando leitura flutuante, elaboração de hipóteses e objetivos que fundamentam a interpretação); exploração do material (releituras e codificação dos dados a partir das unidades de registro); tratamento dos resultados e interpretação (categorização e classificação dos dados em categorias temáticas e subcategorias)99. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015.. Ao final, os dados foram organizados em duas categorias temáticas: objetivos dos usuários no tratamento e motivação dos usuários para o tratamento.

A coleta de informações teve início apenas após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA (parecer n.º 1.887.083 de 04/01/2017) e mediante a assinatura do TCLE pelos participantes antes de cada etapa do estudo, seguindo as orientações legais.

RESULTADOS

Para analisar a participação e responsabilização do usuário pelo tratamento no CAPS-ad, na perspectiva de redução de danos, foram levantadas as informações referentes às motivações, objetivos e vínculo no tratamento. A partir da análise do conteúdo das entrevistas dos usuários e profissionais, das observações dos atendimentos e avaliação dos formulários de PTS e prontuários dos usuários, pode-se realizar a triangulação dos dados coletados, permitindo uma convergência de resultados de fontes diferentes, validando as informações88. Yin RK. Pesquisa qualitativa: do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016..

Foram entrevistados 12 usuários com idade entre 39 e 61 anos, sendo oito do sexo masculino, sete com ensino fundamental incompleto, dois com nível técnico, e todos os usuários de álcool. Quatro deles também eram usuários de crack, porém alguns estavam abstinentes de pelo menos uma dessas drogas. Quanto aos profissionais entrevistados, eles têm entre três e oito anos de experiência neste CAPS-ad.

Objetivos dos usuários no tratamento

Um dos objetivos principais dos usuários no tratamento era a abstinência, porém, na prática de acompanhamento desses usuários no CAPS-ad, observa-se que este objetivo, muitas vezes, não era alcançado.

Embora o foco principal dos usuários entrevistados seja a abstinência, alguns manifestaram a intenção de reduzir os danos associados ao consumo, com a expectativa de conseguir manter um uso controlado. Além desses objetivos, poucos usuários pontuaram a melhora do seu bem-estar e a recuperação de sua saúde e autoestima.

É parar de beber, mesmo, e parar de usar droga. (EU-06)

Aqui [CAPS-ad] não me dá vontade beber. (EU-09)

O intuito é de parar, não totalmente, porque se você parar totalmente de uma vez é pior. O que tá me matando é cachaça, posso tomar uma cerveja, posso tomar um vinho que não me faz mal nenhum. (EU-11)

Cuidar mais da saúde. De vez em quando eu tomo uma cervejinha, mas é muito difícil, pra não ter recaída. Eu tenho medo é da recaída. (EU-05)

Buscar meu tratamento de reconciliar comigo mesmo. (EU-01)

Ter uma vida melhor no geral, em termos pessoais, profissionais, de saúde. (EU-03)

Por outro lado, a análise documental revelou que os principais objetivos definidos em formulários de PTS são a ressocialização e a reinserção social do usuário. Constatou-se que esses objetivos registrados pelo profissional se repetiam como uma espécie de “indicação padrão” para todos os usuários, um tanto quanto vaga, sugerindo pouco exercício de avaliação e análise das necessidades e da singularidade do indivíduo na elaboração do PTS. Além disso, nesses registros não havia elencadas ações específicas informando como esses objetivos seriam alcançados, ou seja, não informavam as estratégias concretas sobre os meios para alcançar tais objetivos.

Ele teve muita dificuldade [trabalhar a coordenação motora], não de fazer, mas do desejo de estar ali fazendo, de interagir com aquela tarefa [...]. Por mais que o PTS tenha sido feito pensando em habilidades que ele possa trabalhar mais, ele é muito resistente ao que não gosta. (EP-01)

Que ela seja dona das ações dela, [...] de ter mais prudência com a vida. (EP-03)

Ressocialização em grupo e reinserção social. (AD-01 e AD-09)

Profissional sugere abstinência, mas o usuário nega fazer uso abusivo. É proposto participação no AA [alcóolicos anônimos]. (AD-13)

‘Não quero sobriedade total, gosto de vida social’ [usuário]. (OP-05)

Pode-se observar no relato do profissional EP-01 que o objetivo do usuário não coincide com o objetivo proposto pelo profissional no PTS, evidenciada pela aderência superficial dele nas atividades propostas. O terapeuta de referência intenciona a preservação ou desenvolvimento da coordenação motora do usuário, prejudicada pelo alcoolismo, mas tal objetivo não corresponde aos anseios e prioridades do usuário. Observa-se uma divergência de perspectivas e interesses do terapeuta de referência com a do usuário, que de maneira similar aparece também na fala do usuário EU-11, que tem como objetivo de tratamento a redução dos danos associados ao consumo abusivo de álcool, ao passo que o terapeuta de referência sugere abstinência (AD-13). Tal sugestão do terapeuta se baseia na avaliação dos riscos acentuados e dos prejuízos da condição clínica do usuário, demonstrando certo distanciamento entre objetivos do usuário e do profissional.

Embora seja reconhecido que o profissional deva estar atento aos processos psicodinâmicos do alcoolismo, como a negação e minimização do uso abusivo de substâncias e de seus prejuízos, ressalta-se que não fica explícita a utilização de estratégias de cuidado pautadas na redução de danos como um artifício do profissional em realizar a assistência, conciliando, o mais próximo possível, os seus interesses enquanto profissional de saúde com os interesses do usuário, como parte mais interessada do tratamento.

Motivação dos usuários para o tratamento

Quanto ao aspecto da motivação, considerada um fator importante no tratamento, os usuários foram questionados sobre a sua motivação para se tratar. Grande parte deles cita a busca pela a melhora do seu estado de saúde e do relacionamento na família (filhos e irmãos) como os fatores mais motivadores do tratamento.

O relacionamento com os meus irmãos. (EU-03)

Para minha melhora [...] já vi a morte antes. (EU-05)

Primeiramente meus filhos, todos me cobram isso aí. (EU-07)

Primeiro é a minha saúde. (EU-11)

Dentre os aspectos motivadores citados nas entrevistas, evidencia-se que a família ocupa um papel relevante na motivação para o tratamento dos usuários. Apesar desta relevância, neste estudo ela é pouco citada nos registros analisados (prontuários e formulários de PTS), apontando para a pouca visibilidade do seu envolvimento no tratamento do usuário. Os casos que apresentaram registros de uma maior presença do familiar do usuário no serviço foram nas situações de usuários com depressão grave, com acidentes ocasionados pelo uso abusivo e nas situações de demanda familiar de internação involuntária.

Outra questão reportada como fator motivador para os usuários foi a própria equipe do CAPS-ad, pois a forma de interação proporcionada pelos profissionais leva à construção de vínculos que repercutem positivamente na motivação deles.

Suas força de vontade de ver a gente bem, a equipe [...] de me ver sóbrio [...] me dá força pra estar aqui no dia-a-dia. (EU-01)

O respeito que os funcionários daqui têm com nós [...] A educação que eles nos tratam muito bem [...] E dizer que aqui nós são bem cuidado [....] A gente aqui aprende a respeitar os outros lá fora, porque os funcionários daqui dá conselho de como comportar lá na rua, com as pessoas, respeitando uns aos outros e o direito de ir e vir de cada um. (EU-02)

Observa-se que os usuários consideram a relação com os profissionais do CAPS-ad significativa em suas redes de relações sociais, pois se sentem motivados para o tratamento, a partir da maneira como os profissionais interagem com eles (relação de respeito à dignidade do usuário), e na maneira com que esses profissionais fornecem orientações para as suas condutas na vida em sociedade (aconselhamento de formas de convivência social e cidadania).

Além da família e do respeito dos profissionais do CAPS-ad, alguns usuários apontam as perdas financeiras e a conquista de integração social como fatores motivadores do tratamento.

Primeiro foi as perdas [...] vendi o último carro, eu troquei num videocassete [...] Não ter mais perdas e criar responsabilidade que eu não tinha nenhuma. (EU-08)

Tá mais integrado na sociedade. (EU-12)

Embora as perdas financeiras tenham sido pouco citadas pelos usuários nesta pesquisa, no cotidiano do serviço elas representam um fator motivador importante para o tratamento devido ao comprometimento patrimonial e às dívidas adquiridas. Além disso, estar integrado na sociedade, também pouco citada pelo usuário, é uma meta fundamental que coincide com as propostas de reabilitação psicossocial, almejadas pelas políticas de saúde mental.

Na fala do usuário, registrada na OP-05, ficou evidenciado um compartilhamento de sua reflexão sobre uma situação de risco que denota a implicação do usuário no tratamento. Já na entrevista de EP-04, pode-se verificar um caráter tutelar na abordagem ao usuário, que por sua vez, em resposta ao terapeuta de referência, demonstra desvinculação do tratamento e dos seus projetos de vida.

Demanda sempre atenção, [...] administração do dinheiro dele, tá sempre me solicitando, mas ele não adere às atividades propostas [...] se ele não tiver aqui, vai estar o dia inteiro na rua [...] fazendo uso. [...]. É difícil pensar no projeto terapêutico pra ele porque ele é resistente [...] qualquer atividade, qualquer coisa que faça ele se mobilizar mais, para qualquer mudança, [...] ‘mas você tá caindo, você tá se machucando, pode morrer [...]’ [profissional], e o usuário diz: ‘Se morrer morreu’. (EP-04)

‘O dinheiro é meu risco mesmo [...] às vezes você não cai na primeira vez que receber, mas pode cair na segunda, ou na terceira [...] meu risco é nos 4 dias depois do pagamento’ [usuário]. (OP-05)

A entrevista de EP-03 apresenta um conceito ampliado de PTS, em que o plano de tratamento está emaranhado com a própria vida do usuário, em constante mutação, sendo dinâmico e diferenciado para cada local onde o usuário circula.

Não vejo mais a pessoa funcionando de um jeito só [...] mas que isso vai se multiplicando a partir que vai aumentando os horizontes dela, então acho que pra cada instante da vida, pra cada lugar, pra cada momento da vida, vai se ampliando as possibilidades de se tratar, por exemplo, se ela tem um vínculo na Igreja [...] ela tem um vínculo com a escola, que estuda, tem um vínculo com arte, com o posto de saúde, na verdade, cada lugar desse, cada território, vai possibilitar pra ela desterritorializar, fazendo planos diferentes de cuidado, cada lugar ela vai se cuidar de um jeito. É claro que no fundo tá sendo cuidado desse sujeito, mas desse sujeito que tem uma multiplicidade da vida. (EP-03)

Eu gosto de participar das viagens [...] pra mim é um aprendizado [...] Eu tenho cada ideia [...] eu pensava vou chegar no CAPS hoje e vou conversar sobre isso na reunião, e às vezes eu já cheguei a ouvir coisa que eu queria falar na reunião eu vejo repetindo no rádio, até na política. (EU-08)

O entrevistado EP-03 traz o conceito de território em movimento, ou seja, com saídas do seu próprio espaço (geográfico e relacional) e a ocupação de outros, pois o usuário está inserido em diferentes contextos, como a família, a igreja, a escola, o posto de saúde, o CAPS-ad, as suas relações, dentre outros. O terapeuta de referência não tem o controle das atividades e ações realizadas pelos usuários em seus contextos de vida, mas quando o profissional se familiariza com as escolhas feitas por um usuário, inaugura um espaço de cumplicidade que permite um acompanhamento terapêutico em seus diferentes territórios, que são os diferentes planos de cuidado. Compreender esta dinâmica é caminhar junto com o usuário, nos princípios da redução de danos, em um processo que envolve escuta, direcionamento, aceitação e adaptação.

O relato do usuário EU-08, integrante da associação de usuários evidencia este conceito de território com os seus movimentos de saída e reocupação. As viagens frequentes e a participação em eventos, reuniões e conferências levam esses usuários a se apropriarem de temas ligados à política e às ações cidadãs, favorecendo no sujeito a multiplicidade de vida. Desta forma o usuário se implica e se responsabiliza com a vida e com o próprio tratamento.

DISCUSSÃO

No presente estudo os objetivos de tratamento dos usuários divergem em parte dos objetivos dos profissionais, pois estes últimos determinam como principal objetivo a abstinência de drogas devido aos problemas clínicos identificados, à revelia da participação dos usuários nesta definição. O envolvimento dos usuários no tratamento do álcool e de outras drogas tem um grande potencial para trabalhar em direção aos objetivos de diferentes grupos, explorando suas necessidades específicas para adequar a prestação de cuidados de saúde1010. Crabtree A, Latham N, Bird L, Buxton J. Results of a participatory needs assessment demonstrate an opportunity to involve people who use alcohol in drug user activism and harm reduction. Harm Reduct J. 2016;13:37. doi: https://doi.org/10.1186/s12954-016-0126-x.
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Esses objetivos podem se pautar em estratégias de cuidado fundamentadas nos princípios de redução de danos, conciliando interesses do usuário e do profissional, com a proposição de ações específicas para atingir os objetivos negociados. Contudo, ressalta-se que a falta de conhecimento sobre a redução de danos do álcool, juntamente com o racismo, a violência e a marginalização, são barreiras à colaboração e engajamento desses grupos no tratamento, pois as estratégias de redução de danos trabalhadas nos serviços (quando o são), ainda estão focadas nas drogas ilícitas1010. Crabtree A, Latham N, Bird L, Buxton J. Results of a participatory needs assessment demonstrate an opportunity to involve people who use alcohol in drug user activism and harm reduction. Harm Reduct J. 2016;13:37. doi: https://doi.org/10.1186/s12954-016-0126-x.
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. Apesar do evidente progresso alcançado na redução de danos, é importante que ela não se restrinja às consequências do uso de drogas injetáveis, mas também se ocupe de programas relacionados a outras substâncias e outras vias de consumo como álcool, tabaco55. Bosque-Prous M, Brugal MT. Intervenciones de reducción de daños en usuarios de drogas: situación actual y recomendaciones. Gac Sanit. 2016;30(S1):99-105. doi: https://doi.org/10.1016/J.GACETA.2016.04.020.
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e cocaína/crack (aspirados e fumados).

A condução da gestão deste cuidado organizados no PTS, pode ser realizado na modalidade de gerenciamento de casos, considerada pela literatura internacional como uma abordagem adequada para responder às necessidades de usuários de drogas com necessidades múltiplas e complexas1111. Morandi S, Silva B, Golay P, Bonsack C. Intensive case management for addiction to promote engagement with care of people with severe mental and substance use disorders: an observational study. Subst Abuse Treat Prev Policy. 2017;12:26. doi: https://doi.org/10.1186/s13011-017-0111-8.
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, obtendo resultados promissores quando esta modalidade é combinada com outras estratégias de atendimento1212. Savic M, Best D, Manning V, Lubman DI. Strategies to facilitate integrated care for people with alcohol and other drug problems: a systematic review. Subs Abuse Treat Prev Policy. 2017;12:19. doi: https://doi.org/10.1186/s13011-017-0104-7.
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Estudos demonstram que a família pode influenciar na produção do abusivo de drogas, seja como fator de risco ou de proteção dos seus membros, ocupando assim um papel relevante na motivação para o tratamento dos usuários1313. Vasconcelos ACM, Araújo LN, Porto LGM, Rocha NNV, Oliveira EN, Albuquerque JTP. [Family relationships and chemical addiction: a literature review]. Rev Bras Ciênc Saúde. 2015;9(4):321-6. Portuguese. doi: https://doi.org/10.4034/RBCS.2015.19.04.11.
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. Quando a família tem distanciamento afetivo, pouco diálogo e fronteiras pouco definidas, o uso de substâncias é favorecido, ao passo que, quando a família é acolhedora, possui comunicação adequada e promove afeto e proteção assume um papel de proteção ao abuso de droga1414. Paz MF, Colossi PM. [Chemical dependence family dynamic aspects]. Estud Psicol. 2013;18(4):551-8. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-294X2013000400002.
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A família do usuário de drogas é uma parte importante desse processo, pois as relações do usuário com o seu contexto social e familiar devem ser contemplados no cuidado integral1313. Vasconcelos ACM, Araújo LN, Porto LGM, Rocha NNV, Oliveira EN, Albuquerque JTP. [Family relationships and chemical addiction: a literature review]. Rev Bras Ciênc Saúde. 2015;9(4):321-6. Portuguese. doi: https://doi.org/10.4034/RBCS.2015.19.04.11.
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. A insuficiente participação dos usuários e de seus familiares na negociação do PTS, aliada à dificuldade de ampliação das ações para além do CAPS (rede assistencial e social de apoio) são barreiras para a realização de um plano de tratamento adequado1515. Vasconcelos MGF, Jorge MSB, Catrib AMF, Bezerra IC, Franco TB. [Therapeutic design in Mental Health: practices and procedures in dimensions constituents of psychosocial care]. Interface (Botucatu). 2016;20(57):313-23. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0231.
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No presente estudo ficou evidenciado que a família apresenta pouco envolvimento no tratamento dos usuários no CAPS-ad. Assim, com intuito de não realizar uma abordagem limitada de cuidado, a família pode ser uma importante parceira na elaboração e monitoramento do PTS, devendo, portanto, ser buscada estratégias para que os familiares participem dessa construção, responsabilizando-os também nesse processo.

O atual modelo de atenção ao usuário de drogas atribuem aos profissionais, usuários e familiares novas funções, sobretudo no compartilhando de responsabilidades dos envolvidos no processo de cuidado1616. Oliveira EN, Santana MMG, Eloia SC, Almeida PC, Felix TA, Ximenes Neto FRG. Projeto terapêutico de usuários de crack e álcool atendidos no centro de atenção psicossocial. Rev Rene. 2015 [citado2018 abr 10];16(3):434-41. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/rene/article/view/2819.
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. Esta pesquisa mostrou que os vínculos dos usuários com os profissionais e com o serviço são fortes e afetivos, evidenciados pelo o empenho dos profissionais no acolhimento e cuidado dos usuários, servindo assim como fatores de motivação para a frequência deles no serviço, o que tem favorecido a sua autoestima e relações sociais.

O desenvolvimento de projetos terapêuticos em serviços de saúde mental como os CAPS-ad se constitui como estratégia central de produção do cuidado ao mesmo tempo em que busca implementar relações horizontalizadas (profissional-usuário-familiares), mediante o acolhimento, vínculo, responsabilização pelos usuários e a garantia de atenção continuada e integral1616. Oliveira EN, Santana MMG, Eloia SC, Almeida PC, Felix TA, Ximenes Neto FRG. Projeto terapêutico de usuários de crack e álcool atendidos no centro de atenção psicossocial. Rev Rene. 2015 [citado2018 abr 10];16(3):434-41. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/rene/article/view/2819.
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. Entretanto, neste estudo, observou-se ainda, momentos em que o acolhimento colocava o usuário numa posição passiva perante o serviço, ao decidir por ele os objetivos e as ações terapêuticas no tratamento, desconsiderando seus desejos e interesses, indo na contramão das diretrizes de um PTS.

Todo o profissional da saúde é sempre um operador do cuidado, e como tal deveria ser capacitado para produzir acolhimento, responsabilização e vínculo. Ao ser identificado como o profissional responsável pelo PTS, vive um processo duplo ao ter o papel de operador do cuidado e gerente do processo de cuidar por meio da administração de toda uma rede necessária para a realização desse projeto1717. Merhy EE. O cuidado com o cuidado em saúde: saber explorar seus paradoxos para um agir manicomial. In: Merhy EE, Amaral H. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2007. p.25-37..

Dessa forma, as questões clínicas de maior risco são assumidas como uma responsabilidade exclusiva pelo terapeuta de referência, que geralmente recomenda a abstinência de drogas ao usuário com o intuito de promover a saúde dele. A operacionalização das ações de acolhimento, responsabilização e vínculo, estabelecido na perspectiva da redução de danos, parecem incompatíveis com a postura esperada para um terapeuta de referência, pois, ao produzir “acolhimento”, ele se responsabiliza excessivamente pelo usuário, ao invés de promover a sua corresponsabilização no processo. Por outro lado, esse vínculo profissional-usuário construído sugere uma relação tutelar, promovendo a dependência exagerada do usuário pelo terapeuta de referência e serviço, despotencializando assim a sua autonomia e participação.

O ato cuidador pode ter assim um caráter tutelar, não promovendo no usuário a responsabilização com o tratamento. Assim, é necessário explorar as possibilidades terapêuticas dessas intervenções por meio de uma escuta diferenciada, que permita o estabelecimento de contratos baseados em objetivos comuns, acordados entre usuário e terapeuta de referência, favorecendo o ganho efetivo de autonomia do usuário.

Algumas vezes, há responsabilização excessiva dos profissionais pelos usuários e uma promoção de relação de dependência destes com o serviço1818. Marchesan RQ, Ferrer AL. A terapêutica em um Centro de Atenção Psicossocial à luz do dispositivo "Projeto Terapêutico Singular". Saúde (Santa Maria). 2016;42(2):137-48. doi: https://doi.org/10.5902/2236583421662.
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. Contudo, o ato cuidador pode ter uma conotação de tutela que rompa com a lógica da dependência do outro (castradora), implicando ganhos efetivos de autonomia progressiva do usuário com vista a sua libertação na construção da sua autonomia na vida. Esta última busca produzir movimentos a todo o momento na interação, em que cada um dispare produção de vida no outro1919. Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. [Care production in mental health: the challenges beyond institutional walls]. Interface (Botucatu). 2017;21(61):373-84. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0139.
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Além disso, a condução de uma terapêutica efetiva demanda responsabilização, vínculo e o fortalecimento de ações para fora do serviço, articuladas com outros pontos da rede setorial e intersetorial1818. Marchesan RQ, Ferrer AL. A terapêutica em um Centro de Atenção Psicossocial à luz do dispositivo "Projeto Terapêutico Singular". Saúde (Santa Maria). 2016;42(2):137-48. doi: https://doi.org/10.5902/2236583421662.
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, em um movimento de abertura para o território geográfico e existencial das pessoas de uma comunidade (instituições, rede de relações, cultura local). Isto porque ainda há a supervalorização do serviço especializado para o tratamento de drogas e a precariedade na oferta de ações ao alcance dos indivíduos2020. Schneider JF, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB, Camatta MW, Wetzel C. Care for drug users in the perspective of family health professionals. Texto Contexto Enferm. 2013;22(3):654-61. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000300011.
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.

Um serviço de base territorial significa, ao mesmo tempo estar num determinado espaço geográfico e pertencer a certo mundo, habitado por pessoas que produzem modos de existir singulares1919. Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. [Care production in mental health: the challenges beyond institutional walls]. Interface (Botucatu). 2017;21(61):373-84. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0139.
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. Nessa concepção, os territórios comportam dentro de si vetores de desterritorialização e de reterritorialização. O primeiro aponta que não existe um território sem um vetor de saída dele, e o segundo destaca que, quando há esta saída, existe ao mesmo tempo um esforço para se reterritorializar em outra parte2121. Enes ENS, Bicalho MGP. Desterritorialização/reterritorialização: processos vivenciados por professoras de uma escola de Educação Especial no contexto da educação inclusiva. Educ Rev. 2014;30(1):189-214. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-46982014000100008.
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. Assim, a desterritorialização acontece a todo o momento, e em um mundo globalizado, ela se torna mais intensa, com a conexão de pessoas de diferentes países, línguas e etnias, com a possibilidade de se vivenciar culturas diversas, ficando os limites territoriais cada vez mais tênues. Assim, a desterritorialização dos usuários pode ocorrer em relação aos espaços de uso de drogas, impulsionando-o a circular em outros territórios, que não só aos relacionados ao consumo de drogas.

Portanto, o trabalho no território deve ser expandido em movimentos de reterritorialização, favorecendo que os usuários ocupem novos espaços, em um movimento contínuo de transformação. A presença deles na associação de usuários, no CAPS-ad e em espaços fora das dependências do serviço, favorece movimentos propulsores de ressignificações e de novas escolhas, e também a participação na formulação das políticas relacionadas ao tratamento em saúde mental, incentivando o protagonismo e o resgate da cidadania dos usuários.

CONCLUSÕES

Este estudo analisou a responsabilização do usuário de drogas no tratamento realizado no CAPS-ad à luz da política de redução de danos. Ele se fundamentou nos objetivos e motivações de usuários e profissionais que favorecem o compromisso do usuário com o próprio tratamento no CAPS-ad, dentro de uma lógica de redução de danos, de inserção social e de resgate da cidadania.

Uma importante contribuição deste estudo foi dar voz aos usuários e profissionais, promovendo uma escuta atenta, permitindo o entendimento de questões subjetivas relacionadas à participação no tratamento. Dessa forma foi evidenciada a necessidade dos usuários saírem de uma posição de espectadores para atuarem como protagonistas no seu tratamento.

Foram observadas divergências entre objetivos do usuário e do terapeuta de referência, em que há um enfoque excessivo nas questões clínicas por parte dos profissionais, ao passo que os usuários apresentam outros interesses.

Os usuários consideram como fatores motivadores para o tratamento, a relação com os familiares, a recuperação de sua saúde e a relação afetiva com os profissionais do serviço. No entanto, a família é pouco integrada ao tratamento no CAPS-ad, necessitando haver intervenções específicas para esta adesão.

Os resultados da pesquisa sugerem que o acolhimento e a responsabilização do usuário pelo próprio tratamento devem caminhar de forma sincrônica, favorecendo a autonomia e a participação efetiva do usuário, de forma a evitar que os vínculos entre os profissionais e os usuários tenham um caráter tutelar. Deve-se incentivar que os usuários se responsabilizem por suas atitudes, levando-os à reflexão sobre as suas escolhas na vida e no tratamento. Para tanto, é necessário haver uma escuta qualificada e um plano de tratamento condizente com seus interesses, organizados e pactuados no PTS. Os usuários precisam ampliar a ocupação de espaços no território para favorecer o protagonismo, a reinserção social e o resgate da cidadania deles, em um processo desafiador, que vai ao encontro das premissas da atenção psicossocial defendida nas políticas de saúde mental.

Este estudo tem como limitações a realização de um estudo de caso único e a realização da coleta de dados ter sido feita por um profissional da equipe assistencial do CAPS-ad estudado (possível viés de tendenciosidade). Sugerem-se novos estudos na modalidade de estudos de caso múltiplos, para ampliar a análise através da comparação com outras realidades. Entende-se que os achados desta pesquisa contribuem para a assistência e o ensino na saúde e enfermagem, pois fornecem conhecimentos importantes do grau de envolvimento e participação do usuário de drogas no seu tratamento, permitindo reflexões acerca do processo de trabalho da equipe de saúde nos CAPS-ad. Espera-se que tais reflexões favoreçam a construção de uma relação dialógica de escuta ao usuário e de promoção do protagonismo, autonomia e responsabilização no tratamento, buscando assim superar o caráter tutelar das instituições no cuidado ao usuário de drogas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2018
  • Aceito
    23 Ago 2018
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