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Ciência Aberta - o limite entre o saber e o poder do conhecimento

A Revista Gaúcha de Enfermagem, em atenção às orientações da SciELO, mediante um planejamento estratégico para três anos, desde 2020 adotou os princípios que orientam a Ciência Aberta.

A Ciência Aberta, a qual vem sendo muito debatida nos meios acadêmicos e científicos, bem como em agências de fomento e instituições governamentais, é atualmente um termo guarda-chuva, que engloba diferentes significados, tipos de práticas e iniciativas, e envolve distintas perspectivas, pressupostos e implicações, em que estão incluídas desde a disponibilização gratuita dos resultados da pesquisa (acesso aberto) até a valorização e a participação direta de não cientistas e não especialistas no fazer ciência, tais como “leigos” e “amadores” - é conhecida como ciência cidadã1Albagli S, Clinio A, Raychtock S. Ciência Aberta: correntes interpretativas e tipos de ação. Liinc Rev. 2014;10(2):434-50. doi: https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.749
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Esse movimento em prol da Ciência Aberta teve como marco inicial as Declarações de Budapeste, em 2002, nas cidades de Bethesda (USA) e de Berlim (Alemanha), em 2003, e foi impulsionado, inicialmente, em favor do acesso aberto em reação aos elevados preços praticados pelas editoras de periódicos científicos, e, nos dias atuais, é entendido como um “movimento de movimentos”2Albagli S. Ciência aberta como instrumento de democratização do saber. Trab Educ Saúde. 2017;15(3):659-64. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00093
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. Tais declarações defendem a disponibilização da literatura científica - principalmente aquela realizada com investimentos públicos - na internet, permitindo que seja acessada, lida, impressa, pesquisada ou referenciada e compartilhada, contribuindo para o avanço da ciência. Acompanhando esse movimento, no Brasil, em 2005, o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), foi o órgão que conduziu e representou o Movimento de Acesso Livre à Informação Científica, e lançou, em 5 de setembro de 2005, o Manifesto Brasileiro em Prol do Acesso Livre ao Conhecimento Científico3Rodrigues KO, Barros S, Rosa FG, Lessa B. Percepção de pesquisadores de instituições públicas acerca da ciência aberta. Ci Inf. 2019 [citado 2020 nov 11];48(3 Supl):266-75. Disponível em: Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/4950
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A Ciência Aberta tem como princípio essencial que o conhecimento científico deve ser livre para que outros possam colaborar e contribuir, em que dados de pesquisa, notas de laboratório e outros processos de pesquisa estejam disponíveis gratuitamente, podendo ser usados, reutilizados e distribuídos sem restrições legais, tecnológicas ou sociais4Manual de formação em Ciência Aberta - conceito e princípios da Ciência Aberta [Internet]. Lion: GitBook; 2019 [citado 2020 nov 11]. Disponível em: Disponível em: https://foster.gitbook.io/manual-de-formacao-em-ciencia-aberta/
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. Ao se referir sobre dados de pesquisa, incluem-se todos os registros produzidos ao longo da pesquisa e que validam os seus resultados. Nesse sentido, incluem-se todas as formas de registro, desde produção textual, imagens, figuras, gráficos, tabelas, resultados de instrumento de coleta de dados, entrevistas, memorandos, entre outros. Entretanto, há casos ou razões específicas que não tornam possível o compartilhamento de dados, seja por questões de privacidade, de segurança, seja por restrições relativas a propriedade intelectual e ou condições legais3Rodrigues KO, Barros S, Rosa FG, Lessa B. Percepção de pesquisadores de instituições públicas acerca da ciência aberta. Ci Inf. 2019 [citado 2020 nov 11];48(3 Supl):266-75. Disponível em: Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/4950
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,5Rezende LVR, Abadal E. Estado da arte dos marcos regulatórios brasileiros rumo à ciência aberta. Encontros Bibli. 2020;25:e71730. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e71370
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A adoção da Ciência Aberta pela comunidade científica tem gerado discussões em âmbito jurídico e em âmbito econômico no que se refere a produção e apropriação dos dados. Nesse contexto, os Panton Principles6Murray-Rust P, Neylon C, Pollock R, Wilbanks J. Panton Principles: principles for open data in science [Internet]. c2010 [cited 2020 Nov 11]. Available from: Available from: https://pantonprinciples.org/
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, redigidos em 2009, enunciando princípios sobre os dados científicos abertos, defendem que não devem existir barreiras legais, financeiras ou técnicas no acesso aos dados científicos, e que as publicações científicas deveriam ser disponibilizadas em domínio público, pois, quando há limitação do acesso aos dados científicos, há, de certa forma, uma sabotagem no próprio processo de fazer ciência.

No atual contexto socioeconômico e político que se vivencia no mundo, as discussões sobre a Ciência Aberta também permeiam preocupações no âmbito das questões éticas que estão implicadas no compartilhamento de informações e produções do conhecimento. A problemática da propriedade intelectual permeia praticamente todo o campo da Ciência Aberta e encontra resistência por parte de pesquisadores, não apenas pela dificuldade de aprender a lidar com essa nova prática, mas, também, pelos deslocamentos de poder que tais mudanças frequentemente envolvem. Mais do que mudanças na maneira de se praticar a atividade científica, são as relações entre ciência e sociedade e, mais ainda, entre saber e poder que se colocam em questão1Albagli S, Clinio A, Raychtock S. Ciência Aberta: correntes interpretativas e tipos de ação. Liinc Rev. 2014;10(2):434-50. doi: https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.749
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Estudos realizados com pesquisadores de diversas instituições de ensino do Brasil mostram uma falta de consenso sobre a Ciência Aberta no que se refere à sua adoção, com destaques para o compartilhamento de dados, de resultados e a relevância para o fortalecimento da ciência na sociedade (1Albagli S, Clinio A, Raychtock S. Ciência Aberta: correntes interpretativas e tipos de ação. Liinc Rev. 2014;10(2):434-50. doi: https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.749
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. Muitos cientistas concordam que as produções científicas devem estar acessíveis a qualquer pessoa, gratuitamente, mas divergem em relação ao momento de sua divulgação3Rodrigues KO, Barros S, Rosa FG, Lessa B. Percepção de pesquisadores de instituições públicas acerca da ciência aberta. Ci Inf. 2019 [citado 2020 nov 11];48(3 Supl):266-75. Disponível em: Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/4950
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Assim, entende-se que esse debate a respeito da Ciência Aberta ainda necessite encontrar alicerces para se tornar uma realidade, garantindo o acesso à produção científica, de forma gratuita, à comunidade como um todo, mostrando a importância da ciência no desenvolvimento de uma sociedade crítica e reflexiva, o que resulta, para alguns, na alternância da detenção do poder, que não mais será exclusivo ao pesquisador. Entretanto, também precisa ofertar terreno sólido de garantias de direitos éticos e autorais para aqueles que dedicam seu tempo na construção do saber.

Entende-se, no contexto que se vive, que a Ciência Aberta é uma realidade que está posta e, como tal, passa a exigir novas habilidades dos pesquisadores, que vão além do fazer pesquisa científica, isto é, acima de tudo, gerenciar as informações geradas e interagir com outros atores de múltiplos cenários - o que nem sempre é uma prática adotada -, tais como juristas, responsáveis por políticas públicas, bibliotecários, profissionais da área da tecnologia da informação, dentre outros, assim como com a comunidade leiga.

Dessa forma, cabe o desafio aos pesquisadores de reaprenderem a desenvolver pesquisas não mais como resultante de uma produção própria, mas como um instrumento para compartilhar o saber, contribuindo para uma sociedade mais crítica e reflexiva, e que passa a entender a ciência como uma ferramenta indispensável para transformar a realidade.

REFERENCES

  • Albagli S, Clinio A, Raychtock S. Ciência Aberta: correntes interpretativas e tipos de ação. Liinc Rev. 2014;10(2):434-50. doi: https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.749
    » https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.749
  • Albagli S. Ciência aberta como instrumento de democratização do saber. Trab Educ Saúde. 2017;15(3):659-64. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00093
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  • Rodrigues KO, Barros S, Rosa FG, Lessa B. Percepção de pesquisadores de instituições públicas acerca da ciência aberta. Ci Inf. 2019 [citado 2020 nov 11];48(3 Supl):266-75. Disponível em: Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/4950
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  • Manual de formação em Ciência Aberta - conceito e princípios da Ciência Aberta [Internet]. Lion: GitBook; 2019 [citado 2020 nov 11]. Disponível em: Disponível em: https://foster.gitbook.io/manual-de-formacao-em-ciencia-aberta/
    » https://foster.gitbook.io/manual-de-formacao-em-ciencia-aberta/
  • Rezende LVR, Abadal E. Estado da arte dos marcos regulatórios brasileiros rumo à ciência aberta. Encontros Bibli. 2020;25:e71730. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e71370
    » https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e71370
  • Murray-Rust P, Neylon C, Pollock R, Wilbanks J. Panton Principles: principles for open data in science [Internet]. c2010 [cited 2020 Nov 11]. Available from: Available from: https://pantonprinciples.org/
    » https://pantonprinciples.org/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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