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Intervenção lúdica a crianças com doença crônica: promovendo o enfrentamento

Resumos

As doenças crônicas podem gerar consequências adversas ao processo de desenvolvimento infantil. O estudo teve por objetivo analisar os efeitos da realização de atividades do manual "Como Hóspede no Hospital" sobre o processo de enfrentamento de crianças afetadas por doenças crônicas. Pesquisa qualitativa do tipo pesquisa-ação. Participaram do estudo seis crianças e adolescentes, entre 7 e 13 anos, com doenças crônicas. Os dados foram coletados na clínica pediátrica de um hospital público do estado da Paraíba, por meio de observações participantes e sessões individuais com a aplicação de atividades do manual. A interpretação dos dados seguiu os princípios da análise temática. As atividades do manual estimularam a busca de informação sobre a doença e o tratamento, e aumentaram o interesse e a participação das crianças e dos adolescentes em envolver-se no cuidado à saúde, contribuindo para um melhor enfrentamento. Aponta-se a necessidade de cuidados integrais às crianças com doenças crônicas.

Doença crônica; Criança; Assistência integral a saúde


Chronic diseases can adversely affect the development process of children. This qualitative, action-research study had the aim to analyze the effects of activities in the manual "Como Hóspede no Hospital" (As a patient in the hospital) on the coping process of children with chronic diseases. Study participants included six children and adolescents aged seven to 13 years, who suffered from a chronic disease. Data were collected in the pediatric clinic of a public hospital in the Brazilian state of Paraíba, through participant observation and individual sessions with activities from the manual. Data interpretation followed the principles of thematic analysis. The activities from the manual encouraged participants' search for information about their disease and treatment, and increased their interest and participation in their health care process, thereby contributing to better coping. The study points to the need for comprehensive care for children with chronic diseases.

Chronic disease; Child; Comprehensive health care


Las enfermedades crónicas pueden tener consecuencias adversas para el proceso de desarrollo del niño. El estudio tuvo como objetivo analizar los efectos de la realización de actividades del guía "Cómo huésped en el Hospital" en el proceso de enfrentamiento de los niños afectados por enfermedades crónicas. Investigación cualitativa del tipo investigación-acción. El estudio incluyó a seis niños y adolescentes de 7 a 13 años con enfermedades crónicas. Los datos fueron recogidos en la clínica pediátrica de un hospital público en el estado de Paraíba a través de la observación participante y sesiones individuales con la aplicación de las actividades del guía. La interpretación de los datos siguió los principios de análisis temático. Las actividades del guía alientan la búsqueda de información sobre la enfermedad y el tratamiento y aumentaron el interés y la participación de los niños y adolescentes en involucrarse en el cuidado de la salud, lo que contribuye a un mejor enfrentamiento. Se señala la necesidad de una atención integral a los niños con enfermedades crónicas.

Enfermedad crónica; Niño; Atención integral de salud


INTRODUÇÃO

As doenças crônicas englobam um conjunto de condições que, de maneira geral, estão relacionadas a múltiplas causas, com prognósticos normalmente incertos, duração longa ou indefinida, cursos clínicos variados e inconstantes, com períodos de crise e geração de incapacidades físicas e/ou funcionais. Muitos quadros requerem intervenções com uso de tecnologias e podem estar associados a mudanças no estilo de vida, em um processo de cuidado que nem sempre leva à cura( 11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília (DF) 2010. 132 p. : il. - (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ).

Estudos evidenciam que tais doenças na infância tendem a provocar alterações do cotidiano, e necessidades de adaptações, tais como o seguimento de dietas alimentares, imposição de limitações físicas( 22. Nóbrega RD, Collet N, Gomes, IP, Holanda, ER, Araújo, YB. Criança em idade escolar hospitalizada: significado da condição crônica. Texto Contexto Enferm. 2010;19(3):425-33. ), comprometimento do processo de escolarização( 33. Schineder KLK, Martini JG. Cotidiano do adolescente com doença crônica. Texto Contexto Enferm. 2011;20(Esp):194-204. ), exposição recorrente a procedimentos invasivos e/ou dolorosos( 44. Cicogna EC, Nascimento LC, Lima RAG. Crianças e adolescente com câncer: experiências com a quimioterapia. Rev Latino Am Enferm. 2010;18(5):864-72. ), frequentes episódios de hospitalização( 55. Frota MA, Machado JC, Martins MC, Vasconcelos VM, Landim FLP. Qualidade de vida da criança com insuficiência renal crônica. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2012;14(3):527-33. ), alterações corporais e sentimentos negativos em relação a si mesmo( 22. Nóbrega RD, Collet N, Gomes, IP, Holanda, ER, Araújo, YB. Criança em idade escolar hospitalizada: significado da condição crônica. Texto Contexto Enferm. 2010;19(3):425-33. ).

Diante de potenciais comprometimentos e mudanças do cotidiano, os cuidados precisam ser ampliados de forma que atendam às necessidades psicossociais específicas das crianças e dos adolescentes, sendo fundamental que a equipe de saúde identifique tais necessidades.

Quando o foco do cuidado é a criança e o adolescente, é essencial dispor de recursos que facilitem a interação social entre pacientes e profissionais de saúde, o processo de comunicação sobre a doença e o tratamento, especialmente sobre o que se espera do paciente( 66. Kohlsdorf, M, Costa Junior, AL. Comunicação em pediatria: revisão sistemática de literatura. Est Psic Campinas. 2013;30(4):539-552. ), e a atenção incondicional positiva às necessidades de todos os envolvidos, pacientes e familiares.

Nesse sentido, recursos lúdicos podem ser utilizados por possibilitarem, além do prazer e do entretenimento, a oportunidade de expressão de pensamentos e sentimentos, a aquisição de conhecimentos e mudanças de comportamentos, no sentido de estimular os indicadores de qualidade de vida( 77. Mota AB, Enumo SRF. Intervenção lúdica para o enfrentamento da hospitalização em crianças com câncer. Psicol Teoria Pesq. 2010;26(3):445-54. ).

Fontes de literatura infantil podem servir como instrumentos auxiliares para abordar diagnóstico e tratamento, servindo como ação de educação em saúde( 88. Brodani JP, Pedro ENR. A história infantil como recurso na compreensão do processo saúde-doença pela criança com HIV. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(1):14-21. ). Neste estudo, utilizou-se um manual de saúde "Como hóspede no hospital", cuja finalidade é atender crianças e adolescentes hospitalizados, composto por atividades interativas que solicitam a realização de tarefas que envolvem pensar, escrever, desenhar, colorir, completar frases, criar histórias, caçar palavras. O manual foi proposto com objetivo facilitar a expressão de sentimentos da criança em relação à doença e à hospitalização, ajudar a aquisição de conhecimentos das rotinas hospitalares e das situações específicas relacionadas à internação, bem como favorecer a adoção de estratégias de enfrentamento mais eficientes a essa nova situação. Dessa maneira, cada atividade, além de um mediador lúdico, aborda temáticas relacionadas a eventos potencialmente estressantes e de sofrimento, da criança e do adolescente, em relação às experiências de doença e hospitalização.

Este artigo apresenta resultados da dissertação de mestrado intitulada "O lúdico no enfrentamento da hospitalização de crianças com doenças crônicas"( 99. Moura FM, O lúdico no enfrentamento da hospitalização de crianças com doenças crônicas [dissertação]. João Pessoa (PB): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal da Paraíba; 2009. ). A questão que norteou este estudo foi: de que maneira o manual de saúde "Como hóspede no hospital" poderia influenciar o processo de enfrentamento da doença crônica por parte de crianças e adolescentes hospitalizados para tratamento? Assim, o objetivo do estudo foi analisar os efeitos da realização de atividades do manual "Como Hóspede no Hospital" sobre o processo de enfrentamento de crianças e adolescentes em tratamento de doenças crônicas.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de delineamento qualitativo, em que o método empregado apresenta caráter de pesquisa-ação. Essa é uma metodologia de intervenção, que busca diagnosticar um fenômeno específico, com vistas a alcançar algum resultado prático. Esse tipo de pesquisa, além da produção de conhecimento, também propõe uma ação planejada( 1010. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 2010 ).

O estudo foi realizado na clínica pediátrica de um hospital-escola público federal do Estado da Paraíba de janeiro a abril de 2009. Os critérios de inclusão dos participantes foram: crianças e adolescentes com doença crônica; idades entre 7 e 13 anos; hospitalizados na unidade em estudo; ser alfabetizado e estar em condições de escrever e desenhar; apresentar estado clínico geral não grave e demonstrar interação social com o ambiente. Foram excluídas crianças e adolescentes com transtornos mentais e/ou deficiência intelectual, visual ou auditiva. O critério de encerramento da coleta foi o de suficiência( 1111. Minayo MCS, Assis SG, Souza, ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. ).

Participaram do estudo 06 (seis) crianças e adolescentes com as seguintes doenças crônicas: síndrome nefrótica, anemia falciforme, talassemia, lupus e esclerodermia. Embora pudessem ser de ambos os gêneros, todas as participantes deste estudo foram do sexo feminino, por assim se configurar o perfil de internação durante o período de coleta de dados.

Atendendo à Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do referido hospital, tendo sido aprovado sob o protocolo nº 136/08. Após aceitação das crianças em participar da pesquisa, bem como de seus responsáveis estes últimos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Na primeira etapa do estudo, foram identificadas crianças que atendiam aos critérios de inclusão. Na segunda etapa, foram realizados contatos com familiares-acompanhantes das crianças, para obter informações sobre as condições gerais de saúde e como os mesmos enfrentavam a situação de doença e hospitalização.

Na terceira etapa, foi realizada a observação participante dos comportamentos das crianças no hospital, durante um dia, sendo esses registrados em diário de campo.

Na quarta etapa, foram realizadas sessões individuais de aplicação das atividades do manual com as crianças, com registro em áudio, na íntegra, dos comportamentos verbais. As sessões aconteciam diariamente e tinham duração variada, pois atendiam às necessidades e disponibilidade individuais das mesmas.

Na quinta etapa, foram realizadas, novamente, observações participantes, analisando-se os efeitos do uso do manual sobre as estratégias de enfrentamento da experiência de hospitalização, durante um dia.

Com a transcrição das gravações de áudio e os registros do diário de campo em mãos, procedeu-se à organização do material empírico produzido para a operacionalização da análise, por meio dos seguintes passos: ordenação, classificação e análise final dos dados( 1111. Minayo MCS, Assis SG, Souza, ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. ). O procedimento seguiu os princípios da análise temática que busca desvelar os núcleos de sentido de uma comunicação cuja presença indicasse algum significado para o objetivo a ser alcançado( 1111. Minayo MCS, Assis SG, Souza, ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. ). Em um primeiro momento, procedeu-se à leitura exaustiva e repetida de todo o material, iniciando-se uma primeira classificação. Posteriormente, foram realizados agrupamentos dos temas para a construção do núcleo de sentido: a criança fala sobre a doença crônica e seus cuidados.

Para assegurar o anonimato das participantes, na apresentação dos resultados, as mesmas foram identificadas por nomes de princesas da Disney seguido das idades, representadas em anos e acompanhadas da letra "a". Nos diálogos as falas das crianças foram representeadas pela letra "C" e as da pesquisadora pela letra "P". Foram, também, resguardas as identidades de outras pessoas referidas. E como recurso linguístico, utilizaremos de forma generalizada, o termo criança para designar as crianças e/ou adolescentes participantes do estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Analisar a compreensão e o conhecimento que os pacientes possuem sobre suas enfermidades e os cuidados necessários para que mantenham boa qualidade de vida, bem como identificar seus sentimentos e receios, é fundamental para subsidiar a construção de um projeto educacional e terapêutico integral, voltado às necessidades psicossociais das crianças e adolescentes. Tal procedimento pode, ainda, gerar outros projetos de intervenção psicossocial, a serem executados por toda a equipe de saúde do hospital, tais como o aprimoramento do processo de comunicação entre pacientes e médicos( 77. Mota AB, Enumo SRF. Intervenção lúdica para o enfrentamento da hospitalização em crianças com câncer. Psicol Teoria Pesq. 2010;26(3):445-54. ).

A atividade 01 do manual foi aplicada a todas as participantes e solicitava que escrevessem o nome da sua doença e as partes afetadas do seu corpo. Verificou-se que, além do nome da doença, as mesmas também se referiam a eventos relacionados ao surgimento da enfermidade, às limitações impostas e seus significados, a causa da hospitalização e aos cuidados que precisam, para ficarem bem. Tais informações podem subsidiar um diagnóstico psicossocial e facilitar o planejamento de intervenções pela equipe de saúde. Neste estudo, as crianças foram capazes de nomear a doença e algumas ainda souberam fornecer explicações sobre a mesma.

Esclerodermia [...] é um envelhecimento da pele (Cinderela-11a).

Eu tenho anemia falciforme [...]minhas células, devido a anemia, elas não são bem direitinhas, igual às de quem não tem anemia. Se eu não tomar muito líquido, fica se encaixando uma na outra, eu tomando líquido elas ficam bem separadas, que ficam tipo nadando, elas não se juntam, não dá a dor, e quando elas juntam dá dor nas costas, nas juntas (Mulan-13a).

A minha doença é simenefrótica (Síndrome Nefrótica) [...] A Dra. disse que era que nem um coador que não tá coando, que tem uns furinhos nele, ela disse que fica passando, mas eu não entendi direito (Bela-12a).

A partir do relato de Bela, percebe-se que a médica explicou sobre a doença com uso de uma metáfora, facilitando a compreensão, mas, mesmo assim, não houve a apreensão do que foi informado.

As intervenções com essa criança foram no sentido de levá-la a um maior conhecimento sobre a doença, já que havia expressado que não compreendia bem a parte do corpo que estava doente e o que poderia acontecer.

P - Quais são as partes do corpo que são responsáveis pelo xixi

C - O rins?

P - Você sabe para que servem os rins?

C - Não

P - Ele filtra a urina, o xixi. A doença que você tem é nos rins.

C - E é? (Bela-12a).

De maneira geral, uma condição crônica tem, como característica, o fato de não ser temporária( 11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília (DF) 2010. 132 p. : il. - (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ). Portanto, compreender a necessidade de um tratamento prolongado e suas características podem constituir elementos promotores do desenvolvimento de estratégias de enfrentamento a longo prazo, tornando as crianças e os adolescentes mais participativas e permitindo a aquisição de habilidades para o autocuidado, com implicações positivas à autonomia e competência social.

Lupus [...] é uma doença crônica e que tem tratamento [...]. Uma doença que demora a... que tem tratamento prolongado [...] e que tem cura (Jasmine-12a).

Durante as atividades, foi reforçada a necessidade de tratamento prolongado para a enfermidade crônica com todas as crianças, porém, no que refere à cura do lupus, foi destacado que, até o momento, essa ainda não é possível, sendo importante que o paciente tenha conhecimento real sobre sua condição.

Quanto à identificação corporal da doença, as crianças apontaram as partes do corpo afetadas, aquelas que, no momento, apresentavam algum comprometimento, principalmente dor. Isso pode ser compreendido porque são essas partes que evidenciam a presença da doença na percepção da criança.

A mão dói quando faço assim (movimento para frente e para trás), o joelho dói quando eu faço esforço e o pescoço quando rodo ele (Cinderela-11a).

C - O rosto, os braços e as pernas só tem um pouquinho.

P - O que tem nessas partes do seu corpo?

C - Lupus (Jasmine-12a).

Mesmo sendo a esclerodermia e o lupus doenças sistêmicas, que podem comprometer diversos órgãos, as crianças se referiram apenas às lesões bolhosas e à dor nas mãos. Porém, a portadora de anemia falciforme, que convive com a doença há mais tempo, e que apresentava episódios de exacerbação/crise, conseguiu fazer a distinção entre a parte afetada no momento da crise e complicações decorrentes da doença, como as dores osteoarticulares e abdominais e a relação com problemas hematológicos decorrentes da doença.

C - A parte do corpo... Quando eu estou em crise da anemia eu sinto dor nas juntas e nas costas [...].

P - Qual é a parte do corpo que fica doente quando se tem anemia?[...]

C - O sangue? (Mulan-12a).

Os depoimentos das crianças possibilitam a identificação de que possuem algum conhecimento sobre a enfermidade, porém, fica evidente a existência de lacunas ou a falta de compreensão, que se reflete sob a forma de estratégias menos eficientes de enfrentamento.

Algumas crianças souberam nomear os remédios de que fazem uso e falaram de alguns cuidados que precisam em relação à alimentação, ingestão de água e alimentos diuréticos, entretanto, é importante refletir se esses cuidados são, de fato, compreendidos pelas crianças, ou apenas reproduzidos da maneira como escutam.

As intervenções com as crianças foram realizadas no sentido de apresentar e discutir aspectos da enfermidade e do tratamento que fossem compreensíveis pelos pacientes. Muitos conteúdos surgiram durante as sessões e foram integrados à atividade em andamento. As atividades também foram voltadas à promoção de uma postura mais ativa diante do processo saúde-doença, de modo que o paciente fosse estimulado a buscar informações com a equipe de saúde e, com isso, aumentar seu domínio de controle da sua doença e adquirir crescente autonomia sobre o processo autocuidado.

C - Tomar os remédios, fazer fisioterapia e fazer os exames. [...]

P - Você toma que remédio?

C - Sei não mãe me dá (Cinderela-11a).

Percebe-se que os cuidados de saúde ficam, muitas vezes, sob a responsabilidade materna. Mesmo que a criança tenha condições cognitivas e psicossociais( 1212. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2011. ) para compreender um diagnóstico e suas implicações, bem como a capacidade de responsabilizar-se por alguns cuidados, com o auxílio e orientação da família, observa-se uma tendência à superproteção da mesma, a qual pode surgir devido às incertezas sobre o curso da doença e o medo da morte( 1212. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2011. ). Essa conduta é reforçada, em especial, pela mãe, que, diante de uma postura de superproteção à criança, torna-a menos responsiva, dificultando o desenvolvimento da sua autonomia( 1313. Pizzignacco TP, Mello DF, Lima RG. A experiência da doença na fibrose cística: caminhos para o cuidado integral. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(3):638-44. ).

Para que crianças e adolescentes apresentem um enfrentamento mais efetivo, é fundamental que tenha uma participação mais ativa no processo de tratamento. Eles precisam ser parceiros da produção e informação de cuidados e não meros destinatários ou receptores dos mesmos( 1414. Montovani MF, Mendes FRP, Ulbrich EM, Bandeira JM, Fusuma F, Gaio DM. As representações dos usuários sobre a doença crônica e a prática educativa. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(1):622-8. ). Pessoas ativas e informadas, que buscam os serviços de saúde, dispõem de motivação, informação, habilidades e confiança para, efetivamente, tomarem decisões sobre sua saúde e para gerenciar sua condição crônica. No caso da criança/adolescente, essas decisões devem ser tomadas juntamente com a família( 1414. Montovani MF, Mendes FRP, Ulbrich EM, Bandeira JM, Fusuma F, Gaio DM. As representações dos usuários sobre a doença crônica e a prática educativa. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(1):622-8. ). Ao inclinar para a escuta, os profissionais de saúde terão meios para apreender as demandas em cada encontro de cuidado, identificando necessidades específicas de cada criança/adolescente e aumentando o grau de confiança da relação mútua de ajuda e cuidados com a saúde.

Na proposta de construção das redes de cuidado na atenção à saúde( 1515. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(5):2297-305. ) e do cuidado nas condições crônicas, valoriza-se o autocuidado apoiado( 1616. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012. ), cujo enfoque está na cooperação entre a equipe de saúde e criança/adolescente com doença crônica e suas famílias, para, conjuntamente, definir problemas, estabelecer as prioridades, propor metas, elaborar planos de cuidado e monitorar os resultados.

Em 2011, o governo brasileiro lançou o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis, com vigência de 2011 a 2022. Esse Plano está fundamentado em uma abordagem integral das doenças crônicas não transmissíveis, em todos os níveis da atenção - promoção, prevenção e cuidado integral( 1717. Malta DC, Moraes Neto OL, Silva Júnior JB. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiol Serv Saúde. 2011;20(2):425-38. ). Embora esse documento aborde, mais especificamente, quatro principais grupos de doenças que acometem a população adulta, é importante salientar a preocupação com as doenças crônicas da infância e adolescência. Estas, apresentam características clínicas diferenciadas, mas, se não manejadas adequadamente, pode, acarretar prejuízos significativos ao processo de desenvolvimento típico de crianças e adolescentes, tanto na faixa etária em que se encontram, como na vida adulta, à sua família e aos gastos com sistema de atenção à saúde.

Estimular a criança a falar sobre os cuidados de que precisa pode levá-la a perceber-se responsável pelo seu próprio tratamento, desenvolvendo sua autonomia. Além disso, por meio dos relatos do paciente, a equipe pode identificar condutas de cuidados inadequadas em ambiente doméstico e orientar as mudanças de comportamento necessárias.

P - Como estava sendo o seu tratamento antes de vir para o hospital?

C - Era tomar o remédio e usar o protetor [...] Eu passava seis horas da manhã, antes de ir para a escola, quando chegava em casa passava novamente depois que tomava banho e antes de dormir passava novamente.

P - Quem falou para passar antes de dormir?

C - Mainha que passava por ela mesma, para não coçar. (Jasmine-12a).

Durante as sessões e por meio das observações ficaram evidentes lacunas de conhecimento acerca da doença e do tratamento, pouco envolvimento das crianças nos cuidados, comunicação ineficiente e distanciamento em relação à equipe de saúde. Constatou-se que havia o interesse de todas em obter mais informações, mas não percebiam a equipe como uma fonte acessível de informação e apoio.

Estudo( 1818. Araújo YB, Collet N, Moura FM, Nóbrega RD. Conhecimento da família acerca da condição crônica na infância. Texto Contexto Enferm. 2009;18(3):498-505. ) revelou que o conhecimento da família é insuficiente para o desenvolvimento de cuidados adequados com a criança com doença crônica em domicílio. Segundo as autoras, as informações às famílias têm ocorrido de forma sutil, gerando dificuldade em apreendê-las, por apresentarem conteúdo excessivamente técnico. Os participantes deste estudo também demonstraram conhecimentos insuficientes. A falta de conhecimento pode representar um risco à saúde, pode levar o paciente e a família a condutas inadequadas e/ou a atrasos do processo de desenvolvimento.

Quase sempre o manejo da enfermidade implica em mudanças de hábitos e requer esforço, físico e psicológico. Assim, as informações médicas precisam ser explicadas ao paciente de acordo com seu nível de compreensão cognitiva, pois, se não compreenderem a importância de uma determinada orientação de cuidado, poderão ter dificuldades em seguir o tratamento e de manterem boa qualidade de vida( 1919. Souza MLXF, Silva KL, Nóbrega MML, Collet N. Déficits de autocuidado em crianças e adolescentes com doença renal crônica. Texto Contexto Enferm. 2012;21(1):95-102. ).

A partir das constatações quanto à existência de lacunas de conhecimento, comunicação ineficiente e distanciamento da criança em relação ao tratamento, as intervenções foram no sentido de torná-las mais participativas no tratamento. Para isso, foram aplicadas atividades solicitando que escrevesse o que estava sentindo e o que sentia de diferente em seu corpo. Nessas atividades, esperava-se que o participante pudesse compreender-se como parte do processo de cuidado e fosse estimulado a comunicar sentimentos, dúvidas, receios, temores.

Para crianças com doenças crônicas nas quais a enfermidade apresenta um curso com episódios recorrentes de crise, a percepção corporal também é fundamental para a identificação de sinais e sintomas que podem anteceder uma intercorrência e, até mesmo, evitar o agravamento do quadro clínico.

C - [...] agora eu não estou sentindo nada, mas antes de vir eu estava com muita dor na vesícula. (Mulan-13a).

Desse modo, ressalta-se a relevância de se preparar os pacientes para se comunicarem com a equipe de saúde, a partir do fornecimento de informações mais precisas também por parte deles. Porém, essa comunicação só é possível, se for estabelecida uma relação afetiva, positiva e de confiança entre os envolvidos no processo e com informações compatíveis ao nível de compreensão da criança.

P - O que você sente de diferente no seu corpo?

C - Só isso daqui (mostra a pele)

P - Só as bolhinhas? E essas bolhinha provocam algum sentimento?

C - Ah! E coça, coça muito.

P - Você pode dizer que essas bolinhas estão coçando muito, já é diferente. (Jasmine-12a).

Observou-se que, muitas vezes, o paciente apresentava uma postura mais participativa diante do processo, mas essa conduta era desestimulada pela equipe, que não prestava atenção aos comportamentos do paciente (ou não sabia como prestar atenção) e por não se disponibilizar a uma escuta atenta das necessidades das crianças, ainda que referida de forma clara e direta.

C - Eu estava sentindo muita azia, falei com o médico (residente) e ele ia ver se passava o remédio, aí ele não passou. Falei com Dra. "B" (pediatra), ela também não passou, aí a médica (plantonista) que estava durante à noite, ela passou (Mulan-13a).

A atenção integral à saúde da criança e do adolescente deve ser pensada num contexto mais amplo, que vai além do fornecimento de instruções sobre a conduta com o tratamento a ser cumprido. Crianças e adolescentes precisam compreender os aspectos do tratamento e suas repercussões, positivas e negativas, em sua vida( 2020. Gabarra LM, Crepaldi MA. A comunicação médico-paciente pediátrico-família na perspectiva da criança. Psicol Argum. 2011;29(65):209-18. ) a fim de fazer as melhores escolhas, de acordo com seus desejos e necessidades. Tal como a proposta do Manual utilizado neste estudo, um projeto terapêutico deve ser construído com a participação de todos, sendo de grande relevância os significados atribuídos, o conhecimento e a compreensão sobre os cuidados que precisam ter, para manterem boa qualidade de vida.

As intervenções pautadas pelas atividades do Manual parecem ter contribuído para tornar as crianças mais ativas no processo de saúde e de tratamento, promovendo a aquisição de estratégias mais eficientes de enfrentamento. Todavia, a produção do cuidado integral implica em que os profissionais tenham disponibilidade e sensibilidade para atender os anseios e desejos das crianças/adolescentes e de seus familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O manual "Como hóspede no hospital" apresenta atividades que aumentaram a probabilidade de tornar crianças e adolescentes mais participativos ao processo de tratamento, contribuindo para o desenvolvimento de estratégias mais eficientes de enfrentamento da doença, proporcionando aprendizagem de conteúdos relacionados à enfermidade e ao tratamento, o desenvolvimento da autonomia diante do cuidar de sua saúde e uma postura mais ativa em relação aos cuidados, incluindo habilidades necessárias à manutenção da qualidade de vida.

Mesmo destacando os benefícios potenciais que podem ser obtidos com o uso do manual como recurso para uma assistência integral à criança/adolescente, ressalta-se a importância da participação da família e da equipe nesse processo. Para tanto, faz-se necessário que a equipe de saúde esteja preparada e atue proativamente na interação com as crianças/adolescentes com doença crônica e suas famílias, com base em informações significativas, com suporte e recursos necessários para prover uma atenção de alta qualidade. Recursos lúdicos têm se mostrado ferramentas importantes como mediadores desse processo.

Ainda que os resultados deste estudo demonstrem a importância do uso de recursos lúdicos no cuidado a crianças e adolescentes com doença crônica hospitalizados, faz-se necessárias novas pesquisas que avaliem de forma sistemática sua efetividade e que planejem intervenções de acordo com as necessidades psicossociais singulares dessas crianças/adolescentes. Evidencia-se a relevância de a equipe de saúde utilizar estratégias lúdicas que facilitem a compreensão das crianças e adolescentes com doença crônica, incentivando-os a participar do processo de saúde, tendo em vista que devem conviver com a enfermidade por, pelo menos, longo período de tempo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2013
  • Aceito
    09 Maio 2014
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