Acessibilidade / Reportar erro

Coordenação de unidades de saúde da família por enfermeiros: desafios e potencialidades

Coordinación de unidades de salud de la familia por enfermeros: desafíos y potencialidades

Resumos

Trabalho que parte da reflexão de que, embora a Política Nacional de Atenção Básica não defina o enfermeiro como o coordenador das Unidades de Saúde da Família (USF), muitas vezes este profissional acaba assumindo tal função por diversos fatores que compõem as práticas de enfermagem. Objetivou-se analisar a coordenação das Unidades de Saúde da Família realizada por enfermeiros, a partir de uma análise descritiva com abordagem qualitativa. O estudo foi realizado com oito enfermeiras da rede de atenção básica de Porto Alegre/RS, utilizando-se entrevista semiestruturada e observação registrada em diário de campo. Os resultados foram organizados a partir das categorias: atividades de coordenação; potencialidades ante ao processo de coordenação; dificuldades ante o processo de coordenação, e demonstraram um panorama duplo de desafios e qualidades que compõem o trabalho das enfermeiras coordenadoras. Este estudo retomou velhos desafios e discutiu novas perspectivas de olhar para o trabalho na atenção básica.

Gestão em saúde; Saúde da família; Enfermagem


El estudio busca reflexionar que, aunque la Política Nacional de Atención Básica no define al enfermero como coordinador de las Unidades de Salud de la Familia - USF, a menudo él asume este rol profesional por diversos factores que componen las prácticas de enfermería. El objetivo fue analizar la coordinación de las Unidades de Salud de la Familia por enfermeros, partiendo de un análisis descriptivo con abordaje cualitativo. Se realizó el estudio con ocho enfermeras de la red de atención básica de Porto Alegre/RS, utilizándose entrevista semiestructurada y observación registrada en diario de campo. Se organizaron los resultados a partir de dos categorías: actividades de coordinación; potencialidades delante el proceso de coordinación; dificultades delante el proceso de coordinación; además, se demostró un panorama doble de desafíos y calidades que componen el trabajo de las enfermeras coordinadoras. Este estudio retomó viejos desafíos y discutió nuevas perspectivas de mirar el trabajo en la atención básica.

Gestión en salud; Salud de la familia; Enfermería


This paper starts from the reflection that although the National Policy for Primary Health Care does not define the nurse as the coordinator of Family Health Units, USF, very often this professional ends up by taking over this position due to several factors that compose nursing practices. It aimed at analyzing the nurses´ coordination of Family Health Units beginning from a descriptive analysis with qualitative approach. The study was carried out with eight nurses from the Primary Health Care network of Porto Alegre-RS through semi-structured interview while the observations were registered in a field diary. The findings were organized from the following categories: coordination activities; potentials before the coordination process; difficulties before the coordination process. In addition, they evidenced a double setting of challenges and qualities that compose the job of coordination nurses. This paper took over old challenges and discussed new perspectives of looking into the primary care work.

Health management; Family health; Nursing


ARTIGO ORIGINAL

Coordenação de unidades de saúde da família por enfermeiros: desafios e potencialidades

Coordinación de unidades de salud de la familia por enfermeros: desafíos y potencialidades

Rafael Cerva MeloI; Maria Élida MachadoII

IBacharel em Enfermagem pelo Centro Universitário Metodista do IPA/ Porto Alegre-RS. Graduando do Bacharelado em Saúde Coletiva da UFRGS. Enfermeiro do Grupo Hospitalar Conceição, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIMestre em Enfermagem pela UFRGS. Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Professora Titular do Centro Universitário Metodista do IPA/ Porto Alegre-RS. Especialista em saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rafael Cerva Melo Rua Maris e Barros, 301, Americana 94820-410, Alvorada, RS E-mail: rafael.cerva@ufrgs.br

RESUMO

Trabalho que parte da reflexão de que, embora a Política Nacional de Atenção Básica não defina o enfermeiro como o coordenador das Unidades de Saúde da Família (USF), muitas vezes este profissional acaba assumindo tal função por diversos fatores que compõem as práticas de enfermagem. Objetivou-se analisar a coordenação das Unidades de Saúde da Família realizada por enfermeiros, a partir de uma análise descritiva com abordagem qualitativa. O estudo foi realizado com oito enfermeiras da rede de atenção básica de Porto Alegre/RS, utilizando-se entrevista semiestruturada e observação registrada em diário de campo. Os resultados foram organizados a partir das categorias: atividades de coordenação; potencialidades ante ao processo de coordenação; dificuldades ante o processo de coordenação, e demonstraram um panorama duplo de desafios e qualidades que compõem o trabalho das enfermeiras coordenadoras. Este estudo retomou velhos desafios e discutiu novas perspectivas de olhar para o trabalho na atenção básica.

Descritores: Gestão em saúde. Saúde da família. Enfermagem.

RESUMEN

El estudio busca reflexionar que, aunque la Política Nacional de Atención Básica no define al enfermero como coordinador de las Unidades de Salud de la Familia - USF, a menudo él asume este rol profesional por diversos factores que componen las prácticas de enfermería. El objetivo fue analizar la coordinación de las Unidades de Salud de la Familia por enfermeros, partiendo de un análisis descriptivo con abordaje cualitativo. Se realizó el estudio con ocho enfermeras de la red de atención básica de Porto Alegre/RS, utilizándose entrevista semiestructurada y observación registrada en diario de campo. Se organizaron los resultados a partir de dos categorías: actividades de coordinación; potencialidades delante el proceso de coordinación; dificultades delante el proceso de coordinación; además, se demostró un panorama doble de desafíos y calidades que componen el trabajo de las enfermeras coordinadoras. Este estudio retomó viejos desafíos y discutió nuevas perspectivas de mirar el trabajo en la atención básica.

Descriptores: Gestión en salud. Salud de la familia. Enfermería.

INTRODUÇÃO

Desde a implantação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Brasil, na década de noventa, pensa-se sua estruturação e afirmação como prática social de fazer saúde, ou ainda como modelo prioritário de organização da atenção básica, como preconiza a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Neste sentido, a ESF é uma proposta de mudança ao modelo de atenção à saúde, tirando o foco do modelo hospitalar, evoluindo para uma atenção mais próxima das comunidades, estrutura também influenciada, entre outros fatores, por uma mudança no padrão de produção de saúde em nosso contexto(1). Por ser um serviço de saúde, sua organização denota-se como fator que influencia na qualidade da assistência prestada. As equipes de saúde da família, constituídas de uma estrutura multiprofissional, possuem diversas demandas ante o trabalho vivo e o trabalho burocrático, que geram uma necessidade de organização e de gerência. Desta forma, os profissionais inseridos no processo de organização dos serviços de Atenção Básica devem nortear suas ações pelos princípios ideológicos da ESF, de forma a garantir uma assistência integral e de qualidade(2).

A PNAB é a política que estabelece a composição da equipe da ESF, bem como as funções dos profissionais que compõem a equipe. Embora a PNAB não defina o profissional enfermeiro como coordenador das equipes de saúde da família, a literatura atual(2-3) aponta para uma crescente apropriação, por este profissional, dos cargos de gerência e coordenação das Unidades de Saúde da Família (USF). Diante dos diversos profissionais que compõem a equipe básica da ESF, os enfermeiros, acabam exercendo a função de coordenação também, por uma inserção histórica deste profissional na organização dos serviços(3). Na atenção básica, os enfermeiros são os profissionais responsáveis pela coordenação técnica da equipe de enfermagem, como também são referência para os agentes comunitários de saúde(1).

No entanto, o gerenciamento de recursos, não é suficiente para a composição da interface no qual se dá a coordenação de uma USF. A tarefa de coordenar uma USF, em consonância as propostas da ESF no Sistema Único de Saúde, não é simples, exigindo atividades e competências próprias a serem desenvolvidas. Da mesma forma, a literatura atual(3) aponta para as diversas atividades que são exercidas diante ao cargo de coordenação. Além das atividades esperadas de um enfermeiro, àqueles que exercem a função de coordenador da USF são somadas outras funções, dando-lhes um escopo maior de ação, responsabilidade e participação na organização das equipes.

A coordenação de uma USF exige a superação das teorias clássicas de administração, onde o executar estava distante do criar ou comandar. Na atenção básica, a organização do trabalho se dá pela lógica da integração de saberes e relação dialógica entre os membros de um mesmo processo. Assim, a integração da organização ao trabalho, situado nos referenciais da atenção básica, contribuem para modificação do modelo assistencial em consonância com o Sistema Único de Saúde(3). Neste sentido, cabe destacar aqui autonomia do enfermeiro frente às mudanças paradigmáticas, e sua atuação na melhoria dos processos de trabalho (4).

Este somatório de funções e atividades gera uma gama de atribuições a ser cumprida pelos enfermeiros coordenadores. A realização de atividades essencialmente administrativas e burocráticas pelos profissionais enfermeiros vem sendo ponto de discussão quando compõem um conjunto de outras atividades além a prática assistencial(3-5).

Diante destas reflexões iniciais e partindo do objetivo de analisar os desafios e as potencialidades para a coordenação das Unidades de Saúde da Família, realizada por enfermeiros, com base nos referenciais de análise do trabalho em saúde(6), configura-se a seguinte questão de pesquisa: como se configura o processo de coordenação do enfermeiro, nas Unidades de Saúde da Família?

METODOLOGIA

Este estudo trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa(7), delineamento este utilizado para descrever um fenômeno, fazer uma síntese de uma situação de forma sistemática.

A pesquisa foi realizada na Gerência Distrital Norte/Eixo/Baltazar (GDNEB), do município de Porto Alegre/RS. O município está dividido em oito regiões distritais de saúde, as Gerências Distritais, sendo uma delas a GDNEB. O foco de estudo na GDNEB deu-se por ser essa uma das regiões com maior número de unidades com equipe de saúde da família. A GDNEB é composta por 20 Unidades Básicas de Saúde, sendo responsável pela cobertura de 13,5 % da população de Porto Alegre, o equivalente a 195.921 habitantes(8). Das 20 Unidades Básicas de Saúde, 11 possuem equipes de saúde da família, segundo dados do município.

A pesquisa ocorreu em todas as USF da GDNEB, totalizando como sujeitos de estudo oito enfermeiras que exerciam função de coordenação nas unidades de saúde da família. Foram excluídas uma enfermeira que não aceitou participar do estudo, uma que estavam de férias e uma USF que não era coordenada por enfermeiro. A coleta de dados ocorreu no mês de setembro de 2012, onde foi realizada entrevista semi-estruturada, juntamente com observação de um turno de trabalho, registrada em diário de campo, totalizando 36 horas de observação direta. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. Os dados foram analisados por técnica de análise de conteúdo(9), seguindo de forma sistemática as etapas propostas para está técnica: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados obtidos e interpretação.

Na realização do estudo, foram respeitados todos os preceitos da resolução 196/96(10). O projeto desta pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Metodista do IPA, através do parecer 45/12 e no Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através do parecer 808, processo 001.028603.12.5. Todos os sujeitos do estudo assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando sua participação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos dados emergiram três categorias de análise: atividades de coordenação; potencialidades ante ao processo de coordenação; dificuldades ante ao processo de coordenação. A categorização dos dados em análise foi utilizada aqui para constituir classificação prévia dos elementos, agrupando-os de forma a organizar a análise(9).

Atividades de coordenação

A enfermeira, enquanto coordenadora de ESF, assume demandas específicas que estão envolvidas na dinâmica e no funcionamento de um serviço de atenção básica. Como gerente ou coordenador, o enfermeiro aumenta a importância de suas atividades, diante da equipe, pois amplia sua atuação para além do seu núcleo de prática agregando mais atribuições, exercendo papel fundamental no desenvolvimento dos processos de trabalho e atenção à saúde em uma USF. Estudo realizado(5) conclui que os enfermeiros coordenadores de unidades com saúde da família, utilizam maior parte do seu tempo de um dia de trabalho em atividades essencialmente gerências. Resultados semelhantes foram encontrados na presente pesquisa.

Um dos pontos de destaque foi o papel da enfermeira como elo entre a unidade básica e outros níveis de gestão. As falas a seguir ilustram esta questão.

Faço todas as atividades do coordenador, relatórios, controles. Quando dá algum problema que tenha que solicitar ajuda, sou eu que entro em contato. Por exemplo, se tem que ligar para a gerência (E6).

Sou eu que alimento todos os dados para o Ministério da Saúde [...] mesmo delegando o preenchimento do SIAB para alguém, fico em cima, pois é de minha responsabilidade o preenchimento correto, para gerar dados corretos né (E6).

A gente é a voz da nossa unidade na reunião de gerência. Na maioria das vezes e a partir da gente que se sabe como está a qualidade dos serviços (E8).

As enfermeiras, estando ligados a outros níveis de gestão, dão ênfase aos problemas e demandas dos serviços que coordenam. Enquanto coordenadores, são a ligação da gestão da saúde com as unidades que prestam os serviços de saúde. Desta forma, torna-se importante ressaltar a importância da participação destes profissionais na consolidação do SUS, ante a discussão da qualidade de assistência à saúde no Brasil(11 - 12). Logo, as enfermeiras coordenadoras possuem duplo papel, pois de um lado são os responsáveis pele referência da demanda a outros níveis de atenção e gestão a saúde, por outro representam os diversos níveis de gestão frente à equipe.

A realização de relatórios e a manutenção dos sistemas de informação são de grande importância para a execução de estratégias de gestão em consolidação com a realidade dos serviços. As informações geradas dão subsídio ao planejamento das ações de saúde, tanto para os serviços quanto para a gestão(13).

Além das atividades que envolvem o trabalho junto aos processos de gestão em saúde, as enfermeiras que assumem a função de coordenação atribuem ao seu trabalho diversas funções administrativas, atuando nos diversos fluxos de trabalho da unidade e exercendo certa centralidade nas tomadas de decisão na unidade, como apontam as falas a seguir.

A gente é responsável por toda parte administrativa e burocrática (E8).

Faço o controle do RH, do banco de horas, faltas, atestados, gerenciamento de conflitos na unidade [...] também tem a reunião que agente tem que organizar e conduzir [...] (E2).

[...] sei tudo que acontece aqui. Tudo passa pelo coordenador (E6).

As observações realizadas em campo contribuíram na análise deste resultado, demonstrando a execução de atividades de cunho administrativo pelas enfermeiras observadas, onde todos os processos administrativos são executados pelos enfermeiros ou sob sua supervisão. A qualidade dos serviços de atenção básica tem entre seus indicadores de avaliação, os processos de gerência e administração estabelecidos nas unidades, em função da importância destes na qualidade das ações dos serviços de atenção básica(14).

Potencialidades ante ao processo de coordenação

Nesta categoria, as observações realizadas mostraram a forma singular com que cada enfermeira coordena sua equipe e unidade, demonstrando que não há exemplo, fórmula ou maneira previamente estabelecida para coordenar uma equipe de ESF. Entretanto, existem particularidades de organização que influenciam positivamente, facilitando ainda mais o processo de coordenação, conforme os participantes do estudo, quando destacaram as potencialidades particulares que contribuem para a coordenação das USF.

[...] não gosto de mandar, eu lidero, sou uma líder para minha equipe [...] (E7).

[...] é muito trabalho, mais eu gosto muito de ser coordenadora, né, traz muita importância ao nosso trabalho [...] (E8).

[...] tem algumas coisa que só agente pode fazer, mas o que eu puder delegar pros técnico e pros agente, eu faço, se não fico só na frente do computador e não atendo ninguém (E4).

É importante sim fazer escalas, assim não sobrecarrega ninguém. Todo mundo atua em tudo [...] (E1).

A liderança foi um aspecto fortemente apontado pelos participantes deste estudo. Ser líder é influenciar no curso das ações, sendo os facilitador e motivador do trabalho(15). Desta forma, as enfermeiras coordenadoras, como líderes das equipes, exercem papel importante nas práticas e na qualidade de atenção a saúde prestada pela sua equipe.

De mesma forma, a utilização de práticas de organização dos processos de trabalho é um aspecto que se inclui na dinamização e definição das atividades diárias da unidade, sendo delegação de tarefas uma função essencial do enfermeiro. Quando delegadas e distribuídas corretamente, as tarefas e funções facilitam o trabalho em enfermagem e, em alguns casos, motivam os profissionais da equipe. Entretanto, muitas vezes, os enfermeiros devem tomar cuidado ao delegar tarefas à sua equipe evitando erros e sobrecarga de trabalho. Delegar uma tarefa não exclui a responsabilidade do enfermeiro sobre o resultado das tarefas(16). Normalmente, a delegação e distribuição de tarefas pelo enfermeiro se limita aos profissionais de nível médio, tendo maior influência no trabalho destes profissionais.

Quando necessário, o emprego de escalas pode facilitar o trabalho, principalmente da equipe de técnicos em enfermagem, sendo seu emprego tradicional, sobretudo nos serviços hospitalares. Porém, o trabalho na atenção básica, fundamentado na saúde coletiva, não permite a simples repetição do modelo hospitalar. O trabalho na atenção básica se recria, se constrói, se modifica. O trabalho é dinâmico, como a vida das pessoas a qual se propõe a atender; por isso, o uso de escalas de trabalho deve tentar, na medida do possível, evitar trabalho repetitivo e não criativo, dando ênfase ao trabalho vivo, fundamentado na saúde coletiva(6) .

Outra questão em destaque foi a identificação dos enfermeiros com o trabalho de coordenação da unidade. Desde os primórdios da enfermagem moderna, a associação de práticas administrativas e gerenciais é empregada na formação e no escopo das ações desta profissão. Dentro das diversas profissões que compõem a equipe básica da ESF, a enfermagem parece ser aquela que possui maior intimidade com os processos de coordenação. As observações realizadas neste estudo reforçaram a forte agregação de práticas e características administrativas e gerenciais, pelas enfermeiras(16).

No entanto, é importante destacar que o coordenador não pode trabalhar isolado, sem ao menos buscar características mínimas do seu objeto de trabalho. A ligação entre a coordenação das equipes e unidades às atividades assistenciais diretas também emergiram neste estudo.

[...] embora eu seja a coordenadora, não largo a assistência de jeito nenhum. O coordenador que também faz assistência e aquele que conhece direitinho sua comunidade (E2).

Acho importante que a coordenadora atenda também. A coordenação tem que ser da enfermagem mesmo, assim agente consegue juntar os dois no nosso planejamento [...] (E7).

As observações realizadas evidenciaram a importância do conhecimento e envolvimento das coordenadoras com as atividades de assistência direta aos usuários do serviço. Conhecendo o processo trabalho, os usuários, o serviço, o território e o sistema, os coordenadores conseguiram organizar-se de forma mais sólida, reconhecendo as reais necessidades de ação e intervenção no serviço. A organização de um serviço de saúde deve estar pautada nas suas reais necessidades, identificadas a partir da inclusão do organizador nos processos de execução das ações. Em superação as concepções prévias de organização do trabalho, caminhamos para uma atividade de comando mais íntima da execução(15). É importante a integração entre organização e execução do processo de trabalho em enfermagem, porém, a gerência e administração de enfermagem ainda é fortemente influenciada pelas teorias tradicionais de produção e execução do trabalho, baseadas na administração científica(17).

Dificuldades ante ao processo de coordenação

Mesmo com a identificação da sua função de coordenadora pelas enfermeiras entrevistadas, a formação acadêmica foi apontada como insuficiente para dar conta da coordenação de uma USF.

[...] não, a minha formação prévia não foi o que bastou para eu ser coordenadora. Aliás daquelas cadeiras de administração utilizei pouco. É com o tempo que tu vai aprendendo a coordenar. Um jeito de falar, né, uma expressão que tu faz, tudo isso influencia (E3).

Acho que deveria ter tipo uma cadeira de gestão em saúde coletiva, ou básica, para agente entender estes processos. Por que, tipo, gerenciar a equipe tu até faz, mas o difícil no começo era saber fazer toda a parte de coordenadora, fazer relatórios, pedir materiais, programar as atividades da equipe [...] (E7).

A formação do profissional enfermeiro para a execução das atividades administrativas e gerenciais é tema de análise ao longo da construção histórica da profissão(15). O cotidiano do trabalho do enfermeiro envolve necessariamente os processos de gerência e organização dos serviços(16). Logo, pode-se apontar a ligação íntima do profissional enfermeiro com as demandas administrativas e gerenciais dos serviços de saúde. Ser enfermeiro é por natureza ser gerente, seja de uma equipe de enfermagem, ou de uma equipe de saúde da família.

Assim, o exercício das funções profissionais pelo enfermeiro deve estar pautado na reflexão constante acerca da prática de gerência e coordenação, visando a melhoria da assistência em saúde. A formação e preparação dos profissionais enfermeiros em cursos de graduação e pós-graduação está intimamente ligada à execução do trabalho pelas enfermeiras coordenadoras. Diante disso, a graduação em enfermagem deve buscar sua reordenação, promovendo a formação de profissionais que dialoguem com as rápidas transformações da sociedade contemporânea(18).

A literatura é vasta ao apontar a necessidade de constante atualização dos processos e formas de gerência empregados no ensino e formação em enfermagem. A forma de organização do trabalho em saúde deve superar a lógica da produção sistemática e pouco reflexiva, ou seja, a superação do modelo Taylorista de produção. Na saúde, o trabalho deve ocorrer de forma criativa, incluindo e triangulando teorias na coprodução do trabalho em saúde, a produção de saúde das populações(19). Logo, ao longo da formação, os profissionais enfermeiros devem vivenciar experiências crítico-reflexivas, de forma a pontuar em suas análises a junção das teorias em saúde com a execução do trabalho na estratégia de saúde da família(17).

Quanto à preparação dos profissionais para trabalho de coordenação, parece que esta é uma dificuldade em relação à execução das tarefas ligadas a função. Embora a maioria das profissionais tenha afirmado que, ao longo de sua trajetória enquanto coordenadora, tenham aprendido de um jeito ou outro sobre as atividades de coordenação, demandaram preparação prévia à coordenação e isso é identificado como importante dificuldade para o exercício da coordenação por parte dos enfermeiras.

[...] simplesmente me deram o cargo de coordenadora e eu tive que me virar. Eu até gosto de ser coordenadora, sabe, mas tinha muita coisa que eu não entendia no começo, ai tive que aprender tudo meio sozinha, ou pedindo ajuda para minhas colegas que também são coordenadoras (E5).

Hoje sei tudo da coordenação. Mas no começo era bem difícil. Não tive nenhuma capacitação, simplesmente vinham os e-mails cobrando as coisas [...] (E6).

Estas prerrogativas refletem à análise a ser feita sobre a formação do profissional enfermeiro generalista, que parece não ser suficiente para a coordenação de um serviço de atenção básica, devendo a complementação desta formação, ser executada pela gestão em saúde, pensando na qualidade de organização e na exigência de trabalho esperado para o funcionamento dos serviços.

A exigência de trabalho do coordenadora de uma USF, também emergiu como uma dificuldade ante ao processo de coordenação. No serviço em que se insere, o enfermeiro integra o seu trabalho às demandas assistenciais e administrativas, compondo o escopo de suas funções. No entanto, em certas situações como coordenador, o enfermeiro atribui as suas atividades, diversas demandas que sobrecarregam o trabalho, e necessitam de muito tempo de sua atenção diária.

[...] eu só acho que é muita burocracia, muita papelada, isso eu não gosto muito de fazer, demanda muito tempo do meu trabalho em que eu poderia estar fazendo outras coisas [...] (E3).

Dificuldades? É assim, eu ter que assumir as duas atividades. Ao mesmo tempo que eles te cobram os relatórios de coordenador, te cobram produtividade de atendimento. Isso às vezes dificulta um pouco (E4).

Toda a manhã eu perco muito tempo, lendo emails por exemplo. Acho que a comunicação da gerência com a gente podia melhorar um pouco. Tipo, às vezes não tem como responder o email no mesmo dia, mas sei o transtorno que isso gera para eles (E6).

As falas parecem apontar para uma gama de atribuições que são exigidas dos coordenadores. Na descrição das funções do enfermeiro, a PNAB enfoca quase que exclusivamente as tarefas assistenciais vinculadas a políticas específicas de atenção a saúde1. Entretanto, quando o profissional enfermeiro assume a coordenação, lhe são feitas exigências sobre os processos de trabalho que vão além da projeção inicial do trabalho do enfermeiro na atenção básica, visto que a PNAB não afirma o enfermeiro essencialmente como profissional responsável pela coordenação da equipe e da unidade, demandando formação e tempo específico para o exercício de tais funções.

Os resultados encontrados neste estudo identificaram alguns aspectos que perpassam a coordenação de uma unidade de saúde da família. Com um olhar para as enfermeiras que exercem este papel, este estudo teve resultados próximos a pesquisas semelhantes, reafirmando que a coordenação de USF, apresenta-se como uma prática gerencial que faz interface com a atuação assistencial do enfermeiro na ESF.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A qualificação da saúde brasileira passa por um olhar sobre a qualidade dos processos de coordenação presentes na atenção básica. Desta forma, sendo o profissional enfermeiro um ator influente na organização e gerência de uma equipe de saúde, sua formação deve ser pensada no que tange as competências demandadas pelos cargos de coordenação na atenção básica, uma vez que este cenário irá influenciar diretamente nas práticas de saúde.

Neste estudo, tentou-se trazer não apenas as dificuldades do trabalho de coordenação, mas também as potencialidades que as participantes do estudo identificam em sua ação enquanto coordenadoras. Esta pesquisa teve um olhar para a necessidade estruturação de melhores práticas de atenção básica, considerando as experiências já realizadas por profissionais com inserção nos serviços de atenção básica.

De forma geral, os resultados demonstraram a realidade que compõe o trabalho das enfermeiras da ESF no local pesquisado, definido por um panorama duplo: se de um lado a assimilação da coordenação pelas enfermeiras da USF traz uma série de percalços e desafios a serem superados, gerando inclusive carga de trabalho extra, por outro lado, a coordenação destaca o trabalho dos profissionais enfermeiros, gerando ampla participação destes na estruturação de melhores práticas de saúde. As enfermeiras que exercem a função de coordenação devem imprimir em seu trabalho um "olhar" e um "fazer" que afaste práticas hegemônicas e tradicionais de realização do trabalho, evoluindo para uma relação dialógica e ampliada de produção de saúde.

Como sugestões de estudos posteriores, propõe-se a realização de pesquisas que enfoquem as relações de trabalho como campo de produção de saberes e estratégias de saúde, bem como a realização de pesquisas que verifiquem o impacto da coordenação de USF, realizada por enfermeiros nos conceitos de saúde e formas de produção dos outros profissionais de saúde. A realização de revisões teóricas também poderia contribuir para esta temática, uma vez que este assunto já possui certa produção, possibilitando, assim, uma visão mais sistemática do que compõe a coordenação de USF. Assim, ressalta-se a importância de estudos sobre a utilização das competências dos diversos profissionais de saúde que compõem as equipes saúde da família.

Por fim, este estudo reforçou velhos desafios para a coordenação de uma USF e novas perspectivas de olhar para este trabalho, cujas práticas recorrentes na realidade da ESF têm potencial para configurar uma nova prática gerencial do enfermeiro, a partir da articulação indissociável entre gerenciamento e assistência na rede básica de saúde.

Recebido em: 19.04.2013

Aprovado em: 04.10.2013

  • 1 Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF): MS; 2012.
  • 2 Cotta RMM, Schott M, Azevedo CM, Franceschini SCC, Priore SE, Dias G. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa de Saúde da Família. Epidemiol Serv Saúde. 2006;15(3):7-8.
  • 3 Jonas LT, Rodrigues HC, Resck ZMR. A função gerencial do enfermeiro na estratégia de saúde da família: limites e possibilidades. Rev APS. 2011;14(1):28-38.
  • 4 Kraemer FZ, Duarte MLC, Kaiser DE. Autonomia e trabalho do enfermeiro. Rev. Gaúcha Enferm. 2011;32(3):487-494.
  • 5 Weirich CF, Munari DB, Mishima SM, Bezerra ALQ. O trabalho gerencial do enfermeiro na rede básica de saúde. Texto & Contexto Enferm. 2009;18(2):249-257.
  • 6 Merhy EE, Magalhães Júnior HM, Rimoli J, Franco TB, Bueno WS, organizadores. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2007.
  • 7 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010.
  • 8 Porto Alegre (RS), Secretaria Municipal de Saúde. Plano municipal de saúde 2010-2013. Porto Alegre: SMS; 2010.
  • 9 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2012.
  • 10 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 196/96: dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa com seres humanos. Brasília (DF): Conselho Nacional de Saúde; 1996.
  • 11 Puccia MIR. O enfermeiro como assessor federal, estadual e municipal. In: Santos AS, Miranda SMRC, organizadores. A enfermagem na gestão em atenção primária à saúde. Barueri: Manole; 2007. p. 63-80.
  • 12 Linard AG, Chaves ES, Rolim ILTP, Aguiar MIF. Princípios do Sistema Único de Saúde: compreensão dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(1):114-120.
  • 13 Vidor AC, Fisher PD, Bordin P. Utilização de sistemas de informação em saúde em municípios gaúchos de pequeno porte. Rev Saúde Pública. 2011;45(1):24-30.
  • 14 Castanheria ELR, et al. QualiAB: desenvolvimento e validação de uma metodologia de avaliação de serviços de atenção básica. Saúde Soc. 2011;20(4):935-947.
  • 15 Marquis BL, Houston CJ. Administração e liderança em enfermagem. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2010.
  • 16 Kurcgant P, organizadora. Gerenciamento em enfermagem. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011.
  • 17 Hausmann M, Peduzzi, M. Articulação entre as dimensões gerencial e assistencial no processo de trabalho do enfermeiro. Texto & Contexto Enferm. 2009;18(2):258-265.
  • 18 Xavier-Gomes LM, Barbosa TLA. Trabalho das enfermeiras-gerentes e a sua formação profissional. Trab Educ Saúde. 2012;9(3):449-459.
  • 19 Campos GWSC. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad Saúde Pública. 1998;14(4):863-870.
  • Endereço para correspondência:
    Rafael Cerva Melo
    Rua Maris e Barros, 301, Americana
    94820-410, Alvorada, RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      19 Abr 2013
    • Aceito
      04 Out 2013
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: revista@enf.ufrgs.br