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Planejamento reprodutivo e gestação de casais sorodiferentes para o HIV: um estudo fenomenológico

RESUMO

Objetivo:

Compreender o vivido do planejamento reprodutivo e da gestação para casais sorodiferentes para o HIV.

Método:

Estudo qualitativo, na abordagem fenomenológica, referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger. A etapa de campo foi em serviço de referência na atenção a pessoas soropositivas, no Sul do Brasil. A partir de amostra intencional, foi realizada a entrevista fenomenológica com 11 casais entre agosto de 2013 e abril de 2014. A análise foi hermenêutica.

Resultados:

Foi possível compreender, a partir das unidades de significação que: os casais se aceitam e superam juntos a diferença sorológica; vivenciar a gravidez é difícil; há empenho para se ter uma vida normal; o diagnóstico é silenciado pelo preconceito e estigma; vem o alívio do casal após o diagnóstico negativo do filho.

Conclusão:

É necessário reconhecer o casal como uma unidade de cuidado com vistas a uma atenção não fragmentada no campo da saúde sexual e reprodutiva.

Palavras-chave:
Direitos sexuais e reprodutivos; HIV; Gravidez; Filosofia em enfermagem; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To understand the experience of reproductive planning and pregnancy for HIV serodiscordant couples.

Method:

Qualitative study, with phenomenological approach, theoretical-philosophical-methodological framework of Martin Heidegger. The field stage took place in a reference service in the care for people living with HIV, in southern Brazil. From an intentional sample, a phenomenological interview was conducted with 11 couples between August 2013 and April 2014. The analysis was hermeneutic.

Results:

It was possible to understand, from the meaning units that: couples accept and overcome the serological discordance together; experiencing pregnancy is difficult; there is an effort to have a normal life; the diagnosis is silenced by prejudice and stigma; comes the couple’s relief after the child’s negative diagnosis.

Conclusion:

It is necessary to recognize the couple as a unit of care with a view to a non-fragmented care in the field of sexual and reproductive health.

Keywords:
Reproductive rights; HIV; Pregnancy; Philosophy; nursing; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Comprender la experiencia de planificación reproductiva y embarazo de parejas VIH serodiscordantes.

Método:

Estudio cualitativo, en el enfoque fenomenológico, marco teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger. La etapa de campo se llevó a cabo en un servicio de referencia en la atención a personas que viven con VIH, en el sur de Brasil. A partir de una muestra intencional, se realizó una entrevista fenomenológica con 11 parejas entre agosto de 2013 y abril de 2014. Análisis hermenéutico.

Resultados:

Fue posible comprender, a partir de las unidades de significado, que: las parejas aceptan y superan juntos la discordancia serológica; vivir el embarazo fue difícil; hay esfuerzo por tener una vida normal; es silenciado por el prejuicio y el estigma; llega el alivio de la pareja tras el diagnóstico negativo del niño.

Conclusión:

Es necesario reconocer a la pareja como unidad de cuidado con miras a no fragmentar la atención en el campo de la salud sexual y reproductiva.

Palabras clave:
Derechos sexuales y reproductivos; VIH; Embarazo; Filosofía en enfermería; Enfermería

INTRODUÇÃO

Periodicamente, a UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS) publica estimativas e estatísticas globais e regionais acerca da epidemia do HIV. No ano de 2020, cerca de 5000 jovens mulheres com idades entre 15-24 anos foram infectadas com o HIV e representaram 50% de todas as novas infecções semanais11. Programa Conjunto de las Naciones Unidas sobre el VIH/Sida. Estadísticas mundiales sobre el VIH. Ginebra: ONUSIDA; 2021 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/UNAIDS_FactSheet_es.pdf .
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. Além do tratamento antirretroviral (TARV) universal para todas as mulheres, também há as demandas reprodutivas e o direito ao exercício da paternidade e da maternidade, que merecem um planejamento pelos casais, independentemente da condição sorológica, ou seja, de serem soroiguais ou sorodiferentes (aqueles nos quais apenas um dos parceiros é soropositivo)22. Ministério da Saúde (BR) Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Prevenção da Transmissão Vertical do HIV, Sífilis e Hepatites Virais. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/08/miolo_pcdt_tv_08_2019.pdf .
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Estes são desafios para os serviços de saúde passíveis de mediação pela atenção pautada no planejamento reprodutivo, contemplando questões como a reprodução humana assistida, concepção natural de forma segura e métodos anticonceptivos22. Ministério da Saúde (BR) Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Prevenção da Transmissão Vertical do HIV, Sífilis e Hepatites Virais. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/08/miolo_pcdt_tv_08_2019.pdf .
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-33. Centers for Disease Control and Prevention. Elimination of Mother-to-Child HIV Transmission [Internet]. Atlanta: CDC; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://www.cdc.gov/hiv/group/gender/pregnantwomen/emct.html .
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. Mas também há o interesse de compreender a vivência de casais sorodiferentes na manutenção de sua saúde reprodutiva e sexual. Dar voz ao casal reflete o empenho em incluir o homem na atenção reprodutiva, na maioria das vezes posta como responsabilidade da mulher. Um estudo investigando barreiras e facilitadores para participação masculina no pré-natal com a finalidade de testagem voluntária para o HIV indica que eles aceitariam realizar o teste se fosse oferecido e compreendem a necessidade da prevenção em prol da saúde de sua família, mas destacam a falta de envolvimento do homem no planejamento reprodutivo44. Yeganeh N, Simon M, Mindry D, Nielsen-Saines K, Chaves MC, Santos B, et al. Barriers and facilitators for men to attend prenatal care and obtain HIV voluntary counseling and testing in Brazil. PLoS One. 2017;12(4):e0175505. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0175505.
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.

Para avaliar o efeito benéfico do envolvimento dos homens na assistência pré-natal, um estudo de revisão sistemática descobriu que envolver um parceiro do sexo masculino no cuidado pré-natal estava associado ao atendimento qualificado no parto e teve impacto positivo na compreensão da saúde materna55. Suandi D, Williams P, Bhattacharya S. Does involving male partners in antenatal care improve healthcare utilisation? systematic review and meta-analysis of the published literature from low- and middle-income countries. Int Health. 2020;12(5);484-98. doi: https://doi.org/10.1093/inthealth/ihz073.
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Considerando a especificidade da sorodiferença para o HIV, outras questões se somam à vulnerabilização dos casais na vivência dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Entre eles, podem ser citados o receio pela infecção do parceiro/a negativo/a66. Tchakounté C, Nkenfou CN, Tchouangueu TF, Ngoufack NM, Tchuandom SB, Ngono OD, et al. HIV serodiscordance among couples in cameroon: effects on sexual and reproductive health. Int J MCH AIDS. 2020;9(3):330-6. doi: https://doi.org/10.21106/ijma.370.
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e o silenciamento ou a não divulgação da condição sorológica pelo receio de que o filho e quem é soronegativo estejam vulneráveis a situações de preconceito e discriminação por conviverem com quem é soropositivo para o HIV77. Albuquerque JR, Batista AT, Saldanha AAW. Fenômeno do preconceito nos relacionamentos sorodiferentes para o HIV/AIDS. Psicol Saúde Doenças. 2018;19(2):405-21. doi: http://doi.org/10.15309/18psd190219.
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.

Assim, temos como questão de pesquisa: quais são as vivências de casais sorodiferentes para o HIV diante do planejamento reprodutivo e gestação? Dessa forma, o objetivo do estudo é: compreender o vivido do planejamento reprodutivo e da gestação para casais sorodiferentes para o HIV.

MÉTODO

A fenomenológica hermenêutica fundamentou o estudo em tela, ancorado no referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger. O método permite compreender aquilo não mostrado de imediato, velado numa primeira aproximação e que, a partir da análise compreensiva, tem identificados seus significados e leva à interpretação dos sentidos, desvelando o fenômeno88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

Os 11 casais entrevistados foram acessados através de setores que fornecem cuidados integrados aos potenciais participantes, de um hospital universitário (HU), localizado no interior do Rio Grande do Sul, Brasil, o qual é referência para o atendimento às pessoas vivendo com HIV no município e nos demais 31 municípios vinculados à 4ª Coordenadoria Regional de Saúde do Estado. O número de participantes não foi pré-determinado, pois o estudo de natureza fenomenológica considera a essência do que se mostra, a suficiência de significados para responder ao objetivo da pesquisa, e não a quantidade de entrevistas realizadas.

Os critérios de elegibilidade foram: (a) casais heterossexuais, (b) com conhecimento do diagnóstico do/a parceiro/a no momento da entrevista, (c) vivenciaram pelo menos uma gestação na situação de sorodiferença para o HIV. O critério de exclusão foi: (a) quando o homem ou a mulher apresentasse alteração no processo cognitivo de pensamento.

O convite para participar da pesquisa foi realizado pela pesquisadora no serviço de saúde, quando eram apresentados os objetivos e razões para o desenvolvimento da pesquisa. Posteriormente, realizou-se contato via telefone para agendamento da data e do local da entrevista. Estas ocorreram no serviço ou na residência dos participantes, conforme sua preferência e foram registradas com gravador digital e transcritas. Os casais responderam às questões da entrevista juntos, dada a compreensão de que para acessar o fenômeno estudado seria necessário escutá-los juntos. Apenas um casal se recusou a participar da pesquisa devido ao tema sensível.

A técnica para coleta de dados foi a entrevista fenomenológica99. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063.
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, norteada por um roteiro com questões abertas, testadas nas primeiras entrevistas e aplicadas somente após os ajustes. Destaca-se que elas foram pautadas no referencial teórico heideggeriano e no fenômeno de estudo e tiveram início pela seguinte questão orientadora: Como foi para vocês o planejamento e a gestação desse filho? Quando os casais não aprofundaram em seu depoimento a questão da sorodiferença, foi mencionada a segunda questão: Como foi para vocês o planejamento e gestação desse filho na situação de sorodiferença?

A primeira autora, enfermeira pesquisadora, com experiência no tema e no método, conduziu todas as entrevistas, no período de agosto de 2013 a abril de 2014. A entrevistadora não conhecia previamente os participantes. Durante as entrevistas ela projetou uma atitude de escuta aberta às respostas, estando atenta aos modos como os casais se mostraram e ao movimento estabelecido neste encontro por eles. Fez adequações à questão norteadora com questões empáticas convergentes ao objetivo da pesquisa a fim de aprofundar os significados expressos. Houve complementaridade nas falas entre os homens e as mulheres, de forma que nenhum foi suprimido, impedido ou sentiu-se intimidado a falar.

A análise foi realizada concomitantemente à etapa de campo, quando a primeira autora ouviu cada entrevista várias vezes para se apropriar dos dados e determinar a suficiência de significados expressos nas falas dos casais para o alcance do objetivo do estudo99. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063.
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. Além disso, as demais autoras discutiram a necessidade de novas perguntas e, em consenso, determinaram o encerramento da etapa de campo. O método de análise de Martin Heidegger88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.) propõe dois momentos metódicos: (a) Compreensão Vaga e Mediana e (b) Hermenêutica. Para o desenvolvimento do primeiro, realizaram-se leituras e releituras das entrevistas com o objetivo de identificar e grifar as estruturas essenciais, que constituem a significação do fenômeno investigado. Essas estruturas são aquelas expressas pelos casais como vivências ou experiências significativas acerca do fenômeno correspondente ao objetivo da investigação.

Após a elucidação e agrupamento dos significados, foi elaborado o caput da unidade - enunciado, cabeçalho ou título da categoria a posteriori que constitui a Unidade de Significação - (US) respeitando as palavras e expressões ditas pelos casais. As US, juntamente com os discursos fenomenológicos (descrições detalhadas e textuais do conjunto dos significados expressos nas falas dos entrevistados), compõem a compreensão vaga e mediana. Para elaboração dos discursos fenomenológicos, a pesquisadora procurou seguir com rigor a descrição dos significados utilizando palavras e expressões ditas pelos casais.

A compreensão vaga e mediana diz respeito à dimensão ôntica do fenômeno, a qual pode ser percebida de imediato88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Remete aos fatos, ao que está dado e pode ser explicado. Dessa forma, os significados buscados nesse momento metódico podem ser entendidos como o que é factual para o casal heterossexual sorodiscordante para o HIV no vivido da reprodução.

A hermenêutica, segundo momento metódico, contempla a análise interpretativa dos significados apreendidos a partir compreensão vaga e mediana, com vistas à possibilidade de desvelar facetas fenomenais do objeto de estudo investigado. Esse é um movimento hermenêutico que permite caminhar da dimensão ôntica, factual, para ontológica, fenomenal. Na dimensão ontológica é possível ir ao encontro da essência do ser88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

O rigor no desenvolvimento da investigação perpassa o conceito de credibilidade. Para tanto, a etapa da análise foi apoiada pela equipe de pesquisadoras que discutiu os significados e fez a validação dos sentidos desvelados à luz do referencial heideggeriano. Para garantir a confiabilidade, dois membros da equipe de pesquisa revisaram as transcrições e a concordância dos significados para manter o fio condutor para a análise. Na finalização, a análise foi criticamente revisada pela primeira autora, a qual refletiu sobre suas próprias posições teóricas durante o decorrer do estudo para a confirmação do processo de análise. Entendemos que a transferibilidade se configura na descrição das experiências dos casais da amostra1010. Lincoln YS, Guba EG. Naturalistic inquiry. Thousand Oaks, CA: Sage; 1985.. Este processo aprimorou o desenvolvimento da pesquisa e garantiu o rigor empreendido.

O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (parecer: 367.670) e todos os casais forneceram consentimento informado por escrito. Para garantir o anonimato os nomes dos participantes foram substituídos pelos códigos M de mulher, H de homem e F de filho, quando este foi mencionado nos depoimentos pelos pais, seguidos dos números 1 a 11 (M1, H1, F1; M2, H2, F2; sucessivamente). Foram atendidos os aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos seguindo a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

Características dos participantes

Para obtenção destes dados, não se aplicou um instrumento pré-elaborado. Esses foram elaborados a partir do depoimento dos casais, manifestado por eles como fatos significativos no seu vivido. Dessa forma, no Quadro 1, são apresentadas as informações/fatos revelando o que de cada casal e a composição de sua historiografia88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

Quadro 1 -
Informações correspondentes à historiografia dos participantes. Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, 2022

A seguir, serão descritos os discursos fenomenológicos, elaborados a partir da compreensão vaga e mediana, com a intenção de apreender os significados essenciais atribuídos pelos participantes.

Foram desveladas: US1 - Aceitam-se, superaram e se cuidam juntos; US2 - Foi uma gravidez muito difícil, pois tiveram que fazer o tratamento para não passar alguma coisa para a criança e agradecem porque deu tudo certo; US3 - Escondem a situação do HIV e da sorodiferença por causa do preconceito; e US4 - Tentam viver normalmente como se não tivessem a doença, contando com uma melhora da situação após o nascimento do filho.

US1 - Aceitam-se, superaram e se cuidam juntos. Os casais expressam a superação da diferença sorológica relatando as características de cada um e a aceitação do outro. Expressam ser um alívio o/a companheiro/a não ter o HIV e estar bem, pois não se faz necessário carregar tudo sozinho. O companheiro foi muito presente, cuida da companheira e do filho, porque temem acontecimentos futuros. Assim, “vão levando”, amam-se, são felizes e se cuidam juntos. Nesta gestação tudo foi diferente, por precisar fazer o tratamento, que é novidade e abala psicologicamente. O acompanhamento requer esforço e é desgastante, envolve a necessidade de realizar muitos exames, remédios e horários certos. As ilustrações das falas expressaram os significados componentes da US1 e remetem também aos casais 5, 6, 8, 9, 10 e 11.

[...] a gente aceitou ser diferentes [...] a gente se preocupa (M1) a nossa vida é tranquila [...] tudo é muito planejado. Plano de saúde, tudo, pra mim poder defender eles (H1)

a gente teve um trabalho em conjunto [...] nenhum carregou tudo isso sozinho (M3) nesses nove meses de gravidez eu apoiei bastante [...] ajudar ela e depois ajudar meu filho (H3)

única pessoa que eu posso recorrer é só ele, contar só com ele, não posso contar com outras pessoas [...] ele me compreendeu e entendeu (M4) eu amo ela e a gente tem que se cuidar [...] é complicado saber que ela tem e talvez eu não tenha […] já estamos junto há 14 anos [...] um ajuda o outro e vai levando (H4)

US2 - Foi uma gravidez muito difícil, pois tiveram que fazer o tratamento para não passar alguma coisa para a criança e agradecem porque deu tudo certo. Os casais estudam e buscam informações para entender sobre a infecção pelo HIV, gestação, o tipo de parto menos arriscado e os cuidados com o filho. Têm quase certeza de que o filho não terá nada, mas, mesmo com o tratamento e tudo que tem que ser feito, há uma tensão. Quando começam o pré-natal, afirmam pensar que tudo dará certo. Após o filho nascer, precisa fazer o acompanhamento na pediatria e esperar por seis meses para receber alta. Os pais têm paciência, conformam-se e só se tranquilizam ao saber que não passaram nada para o filho. As ilustrações das falas expressaram os significados componentes da US2 e se referem também aos casais 1, 2, 3, 4, 8, 7 e 11.

Eu não contraí nem ela [F5] [...] fiz todos os exames que ela [médica] me pediu [...] porque 6 meses ela [F5] tem os meus anticorpos [...] depois me tranquilizei [...] graças a Deus não teve nada (M5) eu sempre cuidei meu CD4 [...] meu amigo que consulta com infecto particular me passa tudo [...] Eu tinha quase certeza que ela [F5] não ia ter nada e graças a Deus [não teve] (H5)

Ainda bem que nenhum dos dois têm [...] graças a Deus vão tá bem (M9) não consegue viver 100% a alegria da gestação [...] consegui ter essa felicidade plena quando tive a notícia de que ela estaria bem (H9)

Fazendo tratamento direitinho [...]era tudo diferente, tudo novidade [...] mais psicologicamente que eu tava abalada (M10) Nas primeiras semanas tem que começar o tratamento [...] nasceu bem, não teve problema nenhum, o pior já passou [...] (H10)

US3 - Escondem a situação do HIV e da sorodiferença por causa do preconceito. Os casais relatam conversar entre si sobre a reação das pessoas acerca da infecção pelo HIV e percebem o preconceito, por isso tornam o diagnóstico sigiloso até mesmo na família. Em alguns casos, os familiares de quem não tem HIV são quem apoia, dá força para o casal, enquanto os da que tem HIV têm preconceito. Por isso, fazem tudo sozinhos e somente as pessoas do serviço de saúde conhecem a situação. As ilustrações das falas expressaram os componentes da US3 e remetem também aos casais 1, 2, 3, 5 e 6.

Foi muito pior eu ter falado pra mãe, então, eu prefiro ficar só entre nós dois (M8) A gente fica entre nós dois, a gente tenta não contar, por mais que seja uma pessoa de tua confiança (H8)

A única pessoa que sabia era só o H10 [...] minha família ficou sabendo e deu um apoio bem maior sabe (M10) Mas até então a família dela não sabia (H10)

A única coisa que ele pediu é que não contasse pra ninguém [...] a minha família [não me apoia] (M11) É muito preconceito [...] a gente nem fala sobre isso, torna sigiloso porque as pessoas têm preconceito [...](H11)

US4 - Tentam viver normalmente como se não tivessem a doença, contando com uma melhora da situação após o nascimento do filho. Os depoimentos expressam que os casais se acostumam e vivem normalmente, necessitando apenas ter cuidado com os remédios e ir ao hospital para as consultas. Quando o filho nasce, esquecem as coisas ruins (dificuldades para realizar o tratamento e receio acerca da sua eficácia) e se dedicam totalmente a ele, cuidando e fazendo o que for preciso por sua saúde. Para os casais, ter o filho foi um sonho realizado, no qual o esforço e sofrimento resultaram na realização de tê-lo saudável e forte, fazendo-os ver a vida de forma diferente. Sentem alegria de serem pai e mãe. As ilustrações das falas expressaram os significados componentes da US2 e se referem também aos casais 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 10.

Eu esqueço isso [...] tenta viver normal [...] [F1] é a realização [...] ele nos realizou completamente [...] como mãe e como pai [...] dá muito mais sentido na vida (M1) [...] tem que ter o cuidado, não esquecer de tomar os remédios [...] a gente vive 100% normal [...] depois que ele veio foi maravilhoso [...] (H1)

a gente vive normal [...] nós somos pessoas normais [...] Filho pra nós sempre foi bênção (M2) [...] Uns nove anos [que descobriu o diagnóstico], vai fazer três anos que eu tomo remédio e vivo normal [...] a gente vive normal (H2)

Fico pensando no lado positivo, que vai dar certo, que vai ficar tudo bem (M9) Eu evito o máximo tá pensando nisso, [...] eu tenho um motivo também pra me mostrar que as coisas têm que seguir, tenho filha, tenho filho (H9)

DISCUSSÃO

Estudos apontam a frequência das relações afetivas e sexuais entre pessoas sorodiferentes, embora sejam desconhecidas ou ignoradas pela sociedade66. Tchakounté C, Nkenfou CN, Tchouangueu TF, Ngoufack NM, Tchuandom SB, Ngono OD, et al. HIV serodiscordance among couples in cameroon: effects on sexual and reproductive health. Int J MCH AIDS. 2020;9(3):330-6. doi: https://doi.org/10.21106/ijma.370.
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. A prevalência dessas relações permanece igualmente desconsiderada, ao mesmo tempo em que representa uma das principais lacunas de prevenção da infecção, seja horizontal ou vertical1111. Kilembe W, Wall KM, Mokgoro M, Mwaanga A, Dissen E, Kamusoko M, et al. Knowledge of HIV serodiscordance, transmission, and prevention among couples in Durban, South Africa. PLoS One. 2015;10(4):e0124548. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0124548.
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-1212. Chihana ML, Conan N, Ellman T, Poulet E, Garone DB, Ortuno R, et al. The HIV cascade of care among serodiscordant couples in four high HIV prevalence settings in sub-Saharan Africa. S Afr Med J. 2021;111(8):768-76. doi: https://doi.org/10.7196/SAMJ.2021.v111i8.15489.
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. Os avanços clínicos e de acompanhamento em saúde permitiram o reconhecimento da infecção pelo HIV como condição crônica de saúde, possibilitando às pessoas o planejamento de suas vidas, como o afetivo e reprodutivo1313. Lima ICV, Galvão MTG, Pedrosa SC, Cunha GH, Costa AKB. Use of the Whatsapp application in health follow-up of people with HIV: a thematic analysis. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170429. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0429.
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. Entretanto, persistem barreiras como o estigma, o preconceito e a discriminação sobre esses casais77. Albuquerque JR, Batista AT, Saldanha AAW. Fenômeno do preconceito nos relacionamentos sorodiferentes para o HIV/AIDS. Psicol Saúde Doenças. 2018;19(2):405-21. doi: http://doi.org/10.15309/18psd190219.
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. Assim, essa investigação se destaca ao contemplar aspectos relacionais, subjetivos e individuais dos casais sorodiferentes quanto à vivência do planejamento reprodutivo e da gestação, os quais permanecem como desafios para o cuidado à saúde dessa população.

Os participantes relatam não imaginar uma pessoa sem a infecção pelo HIV aceitando uma que tem, mas apontam a sorodiferença como fator de aproximação do casal devido ao companheirismo, especialmente quando a gestação acontece. Logo, a sexualidade e a reprodução de pessoas vivendo com HIV é uma realidade. Porém, a falta de diálogo, especialmente com os profissionais da saúde, pode levar a comportamentos sexuais arriscados na tentativa de engravidar66. Tchakounté C, Nkenfou CN, Tchouangueu TF, Ngoufack NM, Tchuandom SB, Ngono OD, et al. HIV serodiscordance among couples in cameroon: effects on sexual and reproductive health. Int J MCH AIDS. 2020;9(3):330-6. doi: https://doi.org/10.21106/ijma.370.
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. As questões mencionadas indicam a necessidade de explorar a intenção dos casais para engravidar, de modo a fazê-lo com segurança para ambos e de acordo com a sua situação sorológica e clínica22. Ministério da Saúde (BR) Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Prevenção da Transmissão Vertical do HIV, Sífilis e Hepatites Virais. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/08/miolo_pcdt_tv_08_2019.pdf .
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz...
-33. Centers for Disease Control and Prevention. Elimination of Mother-to-Child HIV Transmission [Internet]. Atlanta: CDC; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://www.cdc.gov/hiv/group/gender/pregnantwomen/emct.html .
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. De acordo com um estudo de revisão sistemática da população em geral de países em desenvolvimento, a presença masculina durante o pré-natal está associada a melhores resultados de saúde materna1414. Tokhi M, Comrie-Thomson L, Davis J, Portela A, Chersich M, Luchters S. Involving men to improve maternal and newborn health: a systematic review of the effectiveness of interventions. PLoS One. 2018;13(1):e0191620. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0191620.
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.

Ao analisarmos à luz do pensamento de Heidegger é possível compreender, a partir das manifestações de companheirismo, a caracterização do casal como um ser-com. Este modo de ser-com significa presença e preocupação com o outro, com quem se relaciona nas diferentes possibilidades do cotidiano. Este modo de ser relacional dá sentido ao viver do ser-do-humano88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Neste empenho cotidiano vivido pelos participantes, a situação de sorodiferença é aceita, unindo ambos a partir da descoberta da situação sorológica, caracterizando seu encontro e abertura para a possibilidade de ser-com.

Dessa forma, entende-se a importância da inclusão do companheiro nas consultas de pré-natal, bem como o compartilhamento das responsabilidades do tratamento, considerando o impacto positivo do envolvimento do parceiro nos cuidados à saúde55. Suandi D, Williams P, Bhattacharya S. Does involving male partners in antenatal care improve healthcare utilisation? systematic review and meta-analysis of the published literature from low- and middle-income countries. Int Health. 2020;12(5);484-98. doi: https://doi.org/10.1093/inthealth/ihz073.
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,1515. Langendorf TF, Souza IEO, Padoin SMM, Paula CC, Queiroz ABA, Moura MAV, et al. Possibilities of care for serodiscordant couples for HIV who got pregnant. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1199-205. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0344.
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. Para Heidegger88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011., isso é viver no modo da solicitude libertadora, que estabelece uma relação de cuidado ativo e considera a existência do outro, ajudando-o a se tornar transparente para si mesmo. A aceitação do casal sobre manter a relação na situação de sorodiferença possibilita o enfrentamento conjunto dos desafios, angústias, conflitos e medos relacionados a questões sociais, como preconceito e discriminação, e questões clínicas, como o receio da infecção do parceiro/a negativo/a. Estes desafios explicitam a necessidade de atendimento por equipe multiprofissional com vistas à integralidade do cuidado77. Albuquerque JR, Batista AT, Saldanha AAW. Fenômeno do preconceito nos relacionamentos sorodiferentes para o HIV/AIDS. Psicol Saúde Doenças. 2018;19(2):405-21. doi: http://doi.org/10.15309/18psd190219.
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Neste estudo, a gestação em situação de sorodiferença foi relatada pelos participantes como algo difícil, diferente de uma gestação normal e o casal se mantém ocupado com isso. Para Heidegger, a ocupação é o modo como a pessoa lida no mundo com as coisas no seu entorno, no seu cotidiano, e o que vem ao encontro nesse mundo, denominado instrumento, é aquilo com o que o ser se ocupa88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. O casal se ocupa com o tratamento para a profilaxia da transmissão vertical do HIV durante a gestação e após o parto, ocupando-se com a realização do pré-natal em serviço especializado e com o acompanhamento de saúde do filho após o nascimento. Para tanto, utilizou os instrumentos que estavam à mão para cumprir a rotina de realizar exames diferentes, desconhecidos na gestação anterior, e recomendações específicas para alimentação e outros cuidados do filho, como ingesta medicamentosa e consultas médicas.

A ocupação de ambos, homem e mulher, nos cuidados cotidianos para adesão ao tratamento se configura como fator importante para evitar a transmissão vertical do HIV. Dessa forma, devem ser consideradas as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na comunicação do diagnóstico aos seus parceiros, devido à resistência dos últimos em fazer o teste. No Brasil, em 2019, foi incluído no protocolo clínico a testagem das gestantes e seus parceiros ao ingressarem na maternidade, ampliando a testagem e diagnóstico do parceiro e contribuindo com a minimização deste aspecto de vulnerabilidade às mulheres e seus bebês22. Ministério da Saúde (BR) Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Prevenção da Transmissão Vertical do HIV, Sífilis e Hepatites Virais. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2022 Feb 25]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/08/miolo_pcdt_tv_08_2019.pdf .
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Ao se manter ocupado, o casal repete o que ouviu falar sobre os cuidados necessários neste cotidiano difícil e busca informações para saber mais sobre HIV, sorodiferença e gestação. Informado por esses meios, o casal realiza uma interpretação a fim de compreender aquilo que sabe. Para Heidegger, em determinados fenômenos, o ser está no modo de ser cotidiano da fala, da visão e da interpretação, desvelando o falatório, a curiosidade e a ambiguidade88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

No falatório88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011., a fala pode ser abrangente a ponto de quem está ouvindo não compreendê-la de fato. Ou seja, um entendimento mediano e impróprio, movendo-se para uma ocupação com o que é falado. Isso está presente na fala dos casais, pois contaram ouvir de amigos que são soropositivos e de profissionais da saúde acerca de alguns cuidados que precisam ter. Mas, nesse modo do falatório, apenas repetem o escutado, por exemplo “a necessidade de cuidar do CD4 e que antes dos seis meses de vida o filho tem os anticorpos da mãe”.

Além do que ouve falar, o casal quer saber mais e busca informações sobre esse assunto. Assim, desvela-se a curiosidade, que se mostra como uma estrutura da constituição na cotidianidade88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Curioso, busca tornar próximo e conhecido o dis-tante de si, ou seja, aquilo que não está à mão no mundo circundante. A curiosidade se ocupa em providenciar um novo conhecimento simplesmente para conhecer e não para apreendê-lo88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. O ser-casal se mostra na curiosidade quando diz estudar e buscar informações sobre o HIV para tomar conhecimento dos cuidados necessários e para fazer o tratamento corretamente, conversar com os profissionais de saúde para saber o que pode influenciar na sua saúde e na do filho, como a infecção do/a companheiro/a negativo, os efeitos do tratamento e os cuidados com o filho.

A curiosidade, constantemente renovada para não perder novidades, e o falatório, noção de compreensão advinda do “ouvir falar”, garantem ao ser-no-mundo uma vida enganosamente autêntica. Diante desta pretensão, desvela-se o modo de ser da ambiguidade, explicitando a interpretação daquilo visto e falado de modo a parecer que se compreendeu tudo quando não o fez ou não compreender quando o fez88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

Na ambiguidade, a curiosidade se encarrega do conhecer e o falatório da discussão do que ocorre e, assim, todos sabem falar do que acontecerá. Assim, toda a discussão está posta como algo compreendido autenticamente pela presença88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Então, o ser-casal se mostra na ambiguidade ao parecer entender que ao engravidar na situação de sorodiferença há um tratamento profilático seguro, o qual protege o filho da transmissão vertical do HIV, quando, entretanto, não compreendeu, pois a profilaxia não garante sua eficácia na totalidade dos casos. Também se mostra ambíguo parecendo não compreender quando expressa a tensão e o medo da infecção do filho pelo HIV via transmissão vertical, quando já compreendeu a possibilidade da profilaxia não ser eficaz em todos os casos, mesmo sendo feita corretamente.

A ligação ontológica entre os fenômenos do falatório, da curiosidade e da ambiguidade revela a abertura do ser-no-mundo no seu modo básico de ser na cotidianidade, desvelando a decadência. Com este modo de ser não se pretende uma avaliação negativa de quem assim se mostra, mas indica que, na maior parte das vezes, a presença está junto e no mundo das ocupações e frequentemente se perde, decai no mundo público e impessoal88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

A decadência indica o empenho da presença na convivência e tranquiliza, garantindo que tudo está bem e está certo, pois tudo já foi falado, visto e interpretado. A tranquilidade, tentadora, fortalece a decadência e, ao supor tudo compreender quando não o fez, move a presença para uma alienação do seu poder-ser mais próprio88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

A partir dessa interpretação hermenêutica, compreende-se que os casais encontram na decadência a segurança para vivenciar o cotidiano difícil da gestação na situação de sorodiferença. Entendemos o planejamento reprodutivo como uma estratégia passível de contribuir na redução da insegurança, pois, ao realizá-lo, o casal acessa informações seguras sobre o tratamento da mulher e do bebê, bem como orientações sobre a não amamentação e uso do preservativo para evitar infecções sexualmente transmissíveis. O acesso a essas orientações pode conferir, de forma autêntica, segurança para vivenciar a gestação no contexto do HIV. Além disso, outra estratégia minimizadora dos desafios enfrentados é a participação em grupos nos quais possam compartilhar seus anseios1616. Muthelo L, Mgwenya JP, Malema RN, Mothiba T. How is becoming pregnant whilst HIV-positive? voices of women at a selected rural clinic in Mpumalanga Province of South Africa. SAHARA J. 2020;17(1):30-7 doi: https://doi.org/10.1080/17290376.2020.1857299.
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Ao saber do diagnóstico negativo do filho, o casal se tranquiliza por entender não ser responsável pelo adoecimento ou falecimento do bebê. Alienado de si mesmo, o ser-casal atribui a eficácia da profilaxia da transmissão vertical a Deus e, enquanto não recebe essa graça divina, mantém-se aprisionado em si mesmo não se abrindo à possibilidade e propriedade de viver a alegria da gestação. Nessa perspectiva, não reconhecem seu empenho como sendo um dos principais fatores para o sucesso da profilaxia da TV do HIV, aliado à superação das principais barreiras que influenciam negativamente nesse resultado, como a não adesão ao tratamento. Conforme estudo desenvolvido em país africano, o envolvimento do homem nas ações para prevenção da transmissão vertical do HIV está associado à conclusão do tratamento e ao sucesso da profilaxia1717. Linguissi LSG, Sagna T, Soubeiga T, Gwom LC, Nkenfou CN, Obiri-Yeboah D, et al. Prevention of mother-to-child transmission (PMTCT) of HIV: a review of the achievements and challenges in Burkina-Faso. HIV AIDS (Auckl). 2019;24(11):165-77. doi: https://doi.org/10.2147/HIV.S204661.
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Ao revelarem viver normalmente, os casais buscam nivelar suas diferenças com os outros através das ocupações, fazendo aquilo que todos fazem - trabalhar, divertir-se - como se a doença não existisse. Neste nivelamento o ser-casal se afasta do seu si mesmo em direção ao seu impessoalmente-si-mesmo para parecer como todos, aqueles que não vivem com HIV, são no mundo público. No impessoal, junto ao mundo das ocupações, a presença se revela em fuga do seu si mesmo e do seu poder-ser mais próprio88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

Os modos de ser do impessoal, revelados pelo afastamento de si mesmo, pela medianidade da convivência ao ser e estar com o outro e pelo nivelamento para parecer como os outros, constituem o caráter do público. Nele, há o obscurecimento das coisas, tornando aquilo que foi encoberto como algo propriamente conhecido e acessível a todos88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011..

No impessoal, o ser está num mundo comum a todos, em quem o ser deixa de ser propriamente si mesmo em detrimento de ser como os outros, aos moldes do impessoal88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Eles escutam o que todos falam sobre o HIV, sobre a sorodiferença e elaboram sua compreensibilidade sobre o preconceito. Com isso, silenciam sua situação sorológica e elaboram sua compreensão a respeito do não dito no silêncio88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Somente se pronunciam a respeito disso entre si, com o médico e com alguns poucos familiares. Como possibilidade constitutiva da fala, o silêncio o casal se mostra empenhando na convivência cotidiana e não revelam sua situação sorológica para conviver com os outros sem sofrer preconceito

Neste modo impessoal, o casal expressa esconder a situação do HIV e da sorodiferença devido ao preconceito. Esconde sua situação sorológica e suas demandas e necessidades reprodutivas de si, dos outros e dos profissionais de saúde. As falas dos participantes mostram a possibilidade de compreensão diante da escuta e do silêncio, ambas possibilidades inerentes à fala88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Ao ocultar a situação, o casal desvela-se na silenciosidade, empenhando-se na convivência cotidiana.

Os casais também pensam em falar para o filho, quando ele estiver em uma idade na qual possa compreender o pronunciamento dos pais sobre o HIV, a sorodiferença e sobre esse contexto. Mas, reafirmam a necessidade de se manterem no impessoal pensando na convivência do filho com os outros no mundo público, pois ele também pode sofrer preconceito caso a situação sorológica dos pais seja conhecida.

A fala, como articulação da compreensibilidade, ocorre a partir do fenômeno da escuta, em que o ser-no-mundo está existencialmente aberto enquanto ser-com os outros. Na escuta, o ser tem a possibilidade de alcançar o fenômeno do ouvir, no qual se desvela o modo de ser de uma escuta compreensiva do que se fala88. Heidegger M. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2011.. Na interpretação para a prática, entende-se que, a partir da escuta desse silêncio, os profissionais poderão manifestar o apoio demandado pelo casal para manter o silêncio da situação sorológica. Compreende-se a escuta e a fala como importantes estratégias no cuidado a essa população a partir do reconhecimento da essencialidade da comunicação na atenção à saúde sexual e reprodutiva das pessoas vivendo com HIV1818. Wojcicki JM. Silence sexual and reproductive health discussions and we fuel the rise of HIV/AIDS in sub-Saharan Africa. Reprod Health. 2017;14(1):131. doi: https://doi.org/10.1186/s12978-017-0395-1.
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O casal se coloca diante de si mesmo ao revelar, com o acontecimento da gestação, seu poder-ser mais próprio como casal sorodiferente para o HIV vivenciando a sexualidade e reprodução igualmente às pessoas que não vivem com HIV. Com o nascimento do filho, o qual não foi infectado pelo vírus, o casal mantém encoberto seu poder-ser mais próprio, decaindo no mundo ao fugir do seu si mesmo.

A limitação do estudo, passível de interferência na validade interna, é a natureza sensível do tema, em que o viés de informação não pode ser excluído. Então, para reduzir a potencialidade deste enviesamento, a entrevistadora foi treinada em métodos qualitativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que os casais sorodiferentes vivendo com HIV se ocupam com atividades habituais, empenham-se para ter uma vida considerada normal e mantêm o silêncio em relação ao diagnóstico devido ao preconceito e estigma. A relação entre eles e o filho expressa a vivência compartilhada do planejamento reprodutivo e da gestação como forma de apoio entre o casal.

Como contribuição para a assistência à saúde dessa população, compreende-se necessário o reconhecimento de que as pessoas vivendo com HIV podem exercer seus direitos sexuais e reprodutivos de forma segura. Também se aponta a necessidade de reconhecer o casal como uma unidade de cuidado, de modo a romper com a fragmentação da atenção às questões reprodutivas nos serviços de pré-natal e parto e ampliar o foco de atenção até então restrita à saúde da mulher e à criança.

A fim de contemplar as necessidades no campo da saúde sexual e reprodutiva dos casais sorodiferentes para o HIV, faz-se necessário conhecer as necessidades de saúde desses casais antes da gestação, garantindo que possam realizar seu planejamento reprodutivo. Após a gestação, recomenda-se aliar o acompanhamento para profilaxia da transmissão vertical à atitude profissional de escuta ao casal para o desenvolvimento de possibilidades de cuidado fundadas na subjetividade.

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Editado por

Editor associado:

Cíntia Nasi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
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