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A experiência do outro e o vir a ser cidadão idoso

Resumos

O estudo objetiva descrever a percepção de idosas sobre o exercício da cidadania, à luz do pensamento de Maurice Merleau-Ponty, com base na noção de corpo sexuado e corpo do outro. Desvela-se a partir da participação de 13 idosas, integrantes de grupos de convivência na cidade de Jequié/BA, que produziram descrições vivenciais em três encontros de grupo focal, durante o mês de abril de 2012. Tais descrições foram submetidas à analítica da ambiguidade, técnica que consiste em suspender as teses e perceber as ambiguidades que lhes são inerentes. Dessa análise, emergiram duas categorias: o ser cidadão idoso na expressão do corpo sexuado e o ser cidadão idoso na expressão do corpo do outro. As reflexões mostraram que a inserção de idosas em grupos de convivência e seu desejo de exercer a cidadania ocorrem, principalmente, pela necessidade de serem aceitas na sociedade e reconhecidas como sujeitos de direitos.

Idoso; Participação cidadã; Filosofia em Enfermagem


The study aims to describe the perception of seniors on the exercise of citizenship in the light of the thought of Maurice Merleau-Ponty, based on the notion of the sexed body and the other's body. Discloses was from the participation of 13 elderly, members of acquaintance groups in the city of Jequié/BA, which produced experiential descriptions in three focus group meetings, during the month of April in 2012. Such descriptions were submitted to ambiguity analytics, a technique that consists in suspending the theories and notice the ambiguities inherent in them. From this analysis, two categories have emerged: being an elderly citizen in the expression of the sexed body and being an elderly citizen in the expression of the other's body. The reflections have shown that the inclusion of elderly women in acquaintance groups and their desire to exercise citizenship occur, primarily, by the need to be accepted in society and recognized as subjects of law.

Aged; Citizen participation; Philosophy, Nursing


El estudio tiene como objetivo describir la percepción de las personas mayores en el ejercicio de la ciudadanía, a la luz del pensamiento de Maurice Merleau-Ponty, basado en la noción de cuerpo sexual y el cuerpo de otro. Revela se con la participación de 13 ancianas, miembros de grupos de convivencia en Jequié/BA, que produjeron descripciones vivenciales en tres reuniones de grupos focales, durante el mes de abril de 2012. Tales descripciones fueron sometidas a la analítica de la ambigüedad, técnica que consiste en suspender las teorías y observar las ambigüedades inherentes a ellas. A partir de este análisis, dos categorías surgieron: ser ciudadano anciano en la expresión del cuerpo sexuado y ser ciudadano anciano en la expresión del cuerpo del otro. Las reflexiones demostraron que la inclusión de ancianas en grupos de convivencia y su deseo de ejercer la ciudadanía se producen, principalmente, por la necesidad de ser aceptadas en la sociedad y reconocidas como sujetos de derechos.

Ancianos; Participación ciudadana; Filosofía en Enfermería


INTRODUÇÃO

Em decorrência do envelhecimento populacional, os idosos têm se tornado uma parcela significativa da população, com o potencial de influenciar na vida política do país, o que se faz representar em diferentes instâncias da sociedade( 11. Souza Jr, Kullok AT, Telles, JL. A Agenda 21 global e a agenda 21 brasileira: desafios para a inclusão social dos idosos. Comun Ciênc Saúde. 2006;4(17):291-302. ). Alguns, diante da necessidade de interação com outros idosos, passam a inserir-se em grupos de convivência vinculados a associações.

Como integrante desses grupos, a maioria dos idosos percebe que a rotina de sua vida começa a mudar, principalmente no que refere à reconstrução de vínculos sociais e diminuição da solidão( 22. Leite MT, Coppellari VT, Sonego J. Mudou, mudou tudo na minha vida: experiências de idosos em grupos de convivência no município de Ijuí/RS. Rev Eletr Enf. 2002;4(1):18-25. ). Tão significativos têm sido os efeitos dessa participação que é possível perceber, que as questões relacionadas ao bem-estar físico, psicológico e social dos idosos despertam o interesse de pesquisadores e formuladores de políticas de saúde, educação, trabalho e seguridade social.

Dessa maneira, vários elementos passam a ser apontados como determinantes de bem-estar para esse segmento da população, dentre os quais se destacam a longevidade, a saúde biológica e psíquica, a satisfação, a competência social, a atividade produtiva e de lazer, o status social, a melhoria da renda, a continuidade de papéis familiares e de relações informais em grupos de amigos( 33. Neri AL. Qualidade de vida e idade madura. Campinas: Papirus; 2007. ).

Nesse contexto, os grupos de convivência inscrevem-se como instâncias que objetivam promover o empowerment dos idosos a partir da sensibilização, para que se tornem sujeitos de direitos( 44. Rizzoli D, Surdi AC. Percepção dos idosos sobre grupos de terceira idade. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2010;13(2):225-33. ). Assim, os diversos grupos criados nos últimos anos têm possibilitado o fortalecimento do movimento social de idosos, desmistificando, progressivamente, o preconceito constituído em torno do velho, de maneira a construir, na sociedade, uma concepção segundo a qual ele seja tratado com respeito e dignidade e garanta a efetividade de seus direitos, sob a forma de políticas de proteção.

No entanto, em um levantamento bibliográfico sobre o tema políticas públicas para idosos no Brasil, compreendemos que, apesar da presente década apresentar-se como um período de criação, articulação, integração e consolidação de planos e redes de proteção e de garantia de direitos dessas pessoas, ainda existem lacunas importantes nas políticas implantadas no país, lacunas estas que merecem destaque e atenção por parte, principalmente, do movimento social( 55. Telles JL. A construção das políticas públicas nos espaços democráticos de participação cidadã: a violência contra pessoas idosas na agenda do movimento social. Cienc Saúde Colet. 2010;15(6):2669-71. - 66. Andrade, LM et al. Políticas públicas para pessoas idosas no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2013;18(12):3543-52. ).

Estas inquietações levaram-nos a refletir sobre as ambiguidades existentes no processo de vir a ser cidadãos participativos e engajados em movimentos na busca pelo respeito aos direitos já conquistados e a implantação das políticas públicas específicas para este grupo etário, emergindo a seguinte questão de pesquisa: como os idosos integrantes de grupos de convivência percebem o exercício da cidadania? Assim, o artigo objetiva descrever a percepção de idosas sobre o exercício da cidadania, à luz do pensamento de Maurice Merleau-Ponty, com base na noção de corpo sexuado e corpo do outro.

Em sua obra Fenomenologia da percepção o autor afirma que só podemos "compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo"(7:114). Esse corpo cuja concepção o filósofo, posteriormente, vai aprofundar, estabelecendo a noção de corpo próprio, diferente do corpo anatomofisiológico, refere-se à dinâmica da experiência perceptiva, que acontece pela operação da totalidade dos sentidos dos seres humanos entrelaçados no mundo, ao qual filósofo denominou carne porosa. Desse modo, a percepção humana ou vivência do corpo próprio implica em abertura e intercorporeidade com o semelhante, com as coisas e com o mundo, processo que ocorre em cinco dimensões: corpo habitual, corpo perceptivo, corpo falante, corpo sexuado e corpo do outro.

No presente artigo, ocupamo-nos em estabelecer um diálogo envolvendo as descrições vivencias de idosas acerca de sua cidadania, da noção de corpo sexuado e corpo do outro, e de estudos que tratam do tema do envelhecimento e da participação cidadã na velhice. Desse modo, o estudo oferece uma contribuição nova ao sentido da relação entre ser idoso, grupos de convivência e cidadania.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Trata-se de um de abordagem qualitativa fenomenológica, fundamentado na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, que descreve a percepção como essência do ser humano - experiência dialógica e intersubjetiva que se exprime como generalidade( 77. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. Moura CA, tradutor. São Paulo: Martins Fontes; 2011. ).

O cenário da pesquisa foi a Associação de Amigos, Grupos de Convivência e Universidade Aberta à Terceira Idade (Aagruti) que integra idosos vinculados a grupos de convivência na cidade de Jequié/BA, município que possui, aproximadamente, 17.330 idosos, equivalendo a 11,4% de sua população total, mas que ainda não avançou na implantação de políticas públicas para atender suas demandas socioculturais e de saúde( 88. IBGE. Censo Demográfico Brasil, 2010 [citado 2011 ago 31]. Available in: http://www.censo2010.ibge.gov.br/.
http://www.censo2010.ibge.gov.br/...
).

Participaram da pesquisa 13 idosas, com idade de 60 a 77 anos, integrantes de grupos de convivência vinculados à Aagruti. Para a obtenção das descrições vivenciais (coleta das informações) empregamos a técnica de grupo focal, que ocorreu em três encontros, previamente agendados, com duração, em média, de duas horas, no mês de abril de 2012.

Nos encontros, valorizamos a ludicidade com a apresentação dos temas a serem abordados através da Árvore de Temas, que foram ordenados na sequência: Qual o papel da associação? O que significa pra você, participar de uma associação de idosos? Antes de se associar e fazer parte dos grupos de convivência, o que mudou em sua visão de mundo? Vocês se consideram idosos cidadãos? Para vocês, o que seria exercer a cidadania? Quais são as contribuições para o exercício da cidadania que você tem realizado?

Em cada encontro, apresentávamos um relatório com a síntese do anterior, exceto no primeiro, em que discutimos a ordem dos temas. Após a discussão as idosas avaliavam o momento, a fim de planejarmos o seguinte. Os grupos focais foram gravados e transcritos.

As descrições foram submetidas à analítica da ambiguidade, técnica desenvolvida por Sena( 99. Sena ELS. A experiência do outro nas relações de cuidado: uma visão merleau-pontyana sobre as vivências de familiares cuidadores de pessoas com doença de alzheimer [tese]. Florianópolis (SC): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; 2006.

10. Sena ELS, Gonçalves LHT. Vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas com doença de alzheimer: perspectiva da filosofia de Merleau-Ponty. Texto Contexto Enferm. 2008 abr-jun;17(2):232-40.
- 1111. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. ) para a análise de descrições empíricas em estudos com abordagem fenomenológica. Tem como matriz teórica a fenomenologia de Edmund Husserl e a ontologia da experiência de Maurice Merleau-Ponty. O foco da análise não recai sobre a interpretação de vivências, mas na identificação das ambiguidades que se mostram na experiência intersubjetiva entre pesquisador e participantes do estudo( 1010. Sena ELS, Gonçalves LHT. Vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas com doença de alzheimer: perspectiva da filosofia de Merleau-Ponty. Texto Contexto Enferm. 2008 abr-jun;17(2):232-40. - 1111. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. ).

A discussão dos resultados teve como fundamento o referencial teórico de Merleau-Ponty no que tange à abordagem sobre a percepção na perspectiva do corpo próprio, especificamente as dimensões do corpo sexuado e do corpo do outro.

A pesquisa faz parte de um dos trabalhos originados da dissertação intitulada "Percepção de pessoas idosas integrantes de grupos de convivência sobre o viver/envelhecer cidadão", vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde (PPGES/Uesb)( 1212. Andrade LM. Percepção de pessoas idosas integrantes de grupos de convivência sobre o viver/envelhecer cidadão [dissertação]. Jequié (BA): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; 2012. ). Foi iniciada após provação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da mesma universidade (CEP/Uesb), sob o protocolo de nº 9760. Os participantes assinaram o Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Para preservar o anonimato os participantes escolheram nomes de frutas como codinomes.

O ser cidadão idoso na expressão do corpo sexuado

Embora constituamos teses de que fazer parte de uma associação de idosos significa o envolvimento em um mecanismo de mobilização social que implica em reivindicações da efetivação de direitos e melhoria de condições e qualidade de vida, este estudo mostra as ambiguidades que contornam a dinâmica da percepção humana, o que implica no despertar para novas possibilidades de configuração no contexto do exercício da cidadania e da integração em grupos de convivência.

A operação do corpo sexuado, mostrou-se, no estudo, como efeito nos comportamentos e atitudes dos idosos frente ao movimento gerado pelo processo de transição demográfica, caracterizado pelo aumento da população idosa e das demandas emergentes do fenômeno, significa, portanto, uma abertura à experiência do outro, isto é, a vivência da transcendência. Assim, o corpo sexuado não tem a ver com o genital, mas com o desejo de satisfação na vida, de desenvolver os diversos papéis sociais com prazer, e isso se faz na intersubjetividade com o semelhante, envolvendo a integralidade dos sentidos, a percepção( 77. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. Moura CA, tradutor. São Paulo: Martins Fontes; 2011. ).

Na intersubjetividade que se inscreve na vida dos idosos integrantes de grupos de convivência, a todo o momento se exprime uma nova possibilidade de vida, como um sentido que estava no campo fenomenal e que se desvela por meio da integração ao grupo. Neste sentido, é possível entender que um corpo que vive sozinho e em ambientes restritos tem a sua saúde e vitalidade comprometidas, pois necessita de espaço, movimento e, principalmente, da relação com o outro. "A exclusão privada favorece o processo de descorporificação, o desaparecimento da pessoa, porque sem o corpo não há existência, deixando lugar apenas para o diagnóstico"(13:146).

O fato de conhecer novas pessoas, novos pares com que se identifique, traz o sentimento de pertença e, com ele, surgem os elos de amizade fundamentais no processo de autonomia e construção de novos projetos de vida. Esta relação representa uma forma de renovar a vitalidade, de viver mais e melhor, o que dá sentido à vida que, para alguns, havia se tornado vazia durante a velhice( 1414. Menezes KMG, Frota MHP. O lazer enquanto expressão de vitalidade na velhice: a experiência de um centro de convivência de idosos em Fortaleza-CE. RBSE: Rev Bras Sociol Emoção. 2012;11(32):486-501. ). Esta constatação encontra ressonância nas falas das idosas participantes do estudo:

A Aagruti é uma coisa muito boa para os idosos, que o idoso ficou mais novo[...] A ousadia do velhinho (Uva).

Hoje em dia a gente vê os velhinhos mais alegres: vai pra passeata? Eu digo: vou! Quer dizer, deu aquele sentido na pessoa, né? [...] Eu tenho também que passear (Pêssego).

Hoje eu passei a manhã toda de cama, mas eu digo: eu vou, eu tenho que ir! Agora eu nem tô sentindo mais nada. Olha a diferença, não é isso? (Abacaxi).

Os depoimentos fazem ver que um corpo que se dirige ao mundo em busca de algo, encontra nos grupos uma possibilidade de abertura ao outro, de exercício do corpo sexuado, como projeção a uma nova realidade, a algo que lhe proporciona prazer em ser e fazer, o que configura uma perspectiva diferente daquilo que historicamente se convencionou como sendo o ser cidadão.

A possibilidade de fazer parte de um grupo, em um espaço onde possa realizar diferentes atividades e, ao mesmo tempo, conversar, sorrir e estar com outras pessoas, é referido nas falas como uma experiência renovadora entre os idosos. Este cenário, favorece o aumento da autoestima, da valorização pessoal e faz com que ele exerça livremente a sua cidadania( 44. Rizzoli D, Surdi AC. Percepção dos idosos sobre grupos de terceira idade. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2010;13(2):225-33. ).

No entanto, como toda vivência corporal é ambígua e se mostra sempre em perfil, podemos desvelar os sentimentos que caminham junto com a sensação de prazer por estar no grupo. Quando Uva diz que os idosos ficou mais novo, mostra a necessidade de sentir-se jovem, atribuída, talvez, à busca de uma valorização social que o próprio idoso não reconhece. Afinal, como podemos visualizar o exercício da cidadania das idosas integrantes deste estudo, se, ao invés de se identificar como idosas, personificam-se como jovens?

Estudiosos comentam que, discutir a velhice em um país como o Brasil, que conserva o ideário de ser uma nação jovem, não é tarefa fácil, pois, embora a ciência tenha contribuído para retardar o processo biológico inerente ao envelhecimento, não dá conta de transformar os estereótipos culturalmente atribuídos a essa fase da vida( 1515. Ávila AH, Guerra M, Meneses MPR. Se o velho é o outro, quem sou eu? a construção da auto-imagem na velhice. Pensam Psicológico. 2007;3(8):7-18. ). Nesse contexto, o idoso vive a ambiguidade entre aceitar e negar o envelhecimento, o que se mostrou nas falas como necessidade de sentir-se mais jovem na tentativa de atender uma representação social.

Pêssego fala sobre sua experiência de participar de um grupo de convivência: deu aquele sentido na pessoa, né? E, como é próprio das relações intersubjetivas, Abacaxi corrobora a fala de Pêssego com a expressão de um sentimento de coexistência: agora eu nem tô sentindo mais nada. Olha a diferença, não é isso? Essas descrições desvelam um novo sentido vivenciado pelas idosas integrantes de grupos de convivência, o que favorece sua ressignificação como ser cidadãs. Elas parecem substituir o sofrimento decorrente de doenças e de sentimentos de tristeza por sensação de alegria, satisfação pessoal e capacidade de tornar-se outro.

Desse modo, o estudo conduz-nos à reflexão de que, nos grupos de convivência, os idosos elaboram um sentimento de autonomia social, através do compartilhamento de vivências universais e intersubjetivas, que favorece a abertura ao outro e a operação do corpo sexuado, proporcionando-lhes prazer, satisfação, elevação da autoestima e, por sua vez, o exercício da cidadania na velhice.

O ser cidadão idoso na expressão do corpo do outro

A reflexão sobre o que leva as pessoas idosas a integrar-se em grupos de convivência e o que mudou em suas vidas desde sua inserção nos grupos, conduziu-nos à percepção de que o evento ocorre a partir da necessidade de interação social, mais especificamente, com os pares. Com isso, a maioria dos idosos percebe uma mudança na rotina de vida, em particular, a ruptura com a solidão e com a alienação do meio social( 22. Leite MT, Coppellari VT, Sonego J. Mudou, mudou tudo na minha vida: experiências de idosos em grupos de convivência no município de Ijuí/RS. Rev Eletr Enf. 2002;4(1):18-25. ).

A ressignificação da vida percebida pelas idosas permite a vivência do corpo do outro, especialmente com o reconhecimento e a valorização por parte da sociedade. Os espaços coletivos dos grupos de convivência constituem estratégias indispensáveis para vir a ser cidadão idoso, na medida em que oferecem oportunidade para a experiência intercorporal.

Ao fazer uma leitura das descrições vivenciais das idosas, percebemos a ambiguidade, inerente à percepção, mobilizada por duas dimensões da natureza humana. De um lado, as idosas buscam compartilhar sentimentos de coexistência com os pares, o que constitui uma vivência da impessoalidade. De outro lado, inserem-se nos grupos para ter maior visibilidade e aceitação social, no sentido em que lhes é exigido que sejam idosas ativas e saudáveis, o que se configura como uma vivência reflexiva ou da pessoalidade, ressaltando-se o fato de que as duas motivações contribuem para a experiência do outro. As falas a seguir corroboram a vivência ambígua:

[...] às vezes nós vê uma festa na rua, é toda representada. A gente vê, aqui é o grupo dos idosos, muito bem representado (Caqui).

[...]esses movimentos que se faz aí na praça já é um exemplo, já é uma admiração pelo idoso. Outra coisa são os corais que se apresentam aí nas festas e festivais de torta. Tudo isso já é uma apresentação pra sociedade e um meio dela valorizar esses idosos (Goiaba).

[...]então, a gente não tinha nada disso. A gente desfila na rua, aí cada um com a toalha na cabeça, tudo cheio de bola, unido, né? Só o povo tirando foto (Manga)?

[...]mudou muita coisa né [...] porque tem muita coisa que a gente tem os direitos que não tinha dentro da sociedade (Melão).

[...]Hoje nós temos nossos direitos por onde nós anda, ninguém pode criticar de nós, pois agora, nós temos direito na sociedade (Melancia).

[...]Hoje eu converso na fila, eu pergunto a algumas pessoas. Quer dizer, eu estou me sentindo firme, né? (Pêra).

Uma retomada da leitura das descrições com base na relação figura-fundo permite perceber a ambiguidade do movimento das dimensões que integram a natureza humana. Na fala de Goiaba a figura constitui a expressividade das idosas proporcionada pela intersubjetividade dos grupos, que as levam a mobilizar-se em diversos cenários sociais - praças, festas e festivais - e o fundo, como perfil, revela a necessidade de realizar essas atividades não apenas pela satisfação pessoal, mas para serem valorizadas e reconhecidas pela sociedade.

As descrições vivenciais fizeram-nos ver, ainda, que, se a maioria das idosas condiciona o ser cidadã a seu reconhecimento na sociedade, a capacidade de ajudar os outros, de se mostrarem ativas, jovens e solidárias pode colaborar para tal reconhecimento. Tais potencialidades desvelam-se como uma síntese que se faz do processo intencional, envolvendo: intuição, operação da linguagem e objetivação( 1616. Terra MG, Gonçalves LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty como referencial teórico-filosófico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm. 2009 set;30(3):547-51. ). Assim, a inserção nos grupos permite-lhes refletir sobre o atributo de solidariedade, que se efetiva na ação cidadã coletiva, cumprindo o dever de contribuir para o desenvolvimento social:

Eu acho que a cidadania, eu na minha mente, no meu pensar [...] eu acho que é a melhor cidadania que essa pessoa pode ter é ajudar o próximo, ajudar a sociedade (Laranja).

[...]eu posso dizer que exercer a cidadania é como eu que já ajudei muitas pessoas, nessa maneira, trazer pessoas pra aposentadoria, pegar pessoas, tipo de favores.[...](Morango).

Como resultado do cumprimento de deveres, particularmente com relação à ajuda humanitária, espera-se conquistar maior valorização social, o que pode contribuir, inclusive, para elevar a autoestima e aumentar a preocupação com o cuidado de si. Essa reflexão encontra ressonância em afirmativas de estudiosos do tema, que apontam a necessidade de superação do estigma, historicamente constituído no imaginário popular, que associa velhice à pessoa descuidada, com aparência desagradável, solitária ou diferente daquela considerada bonita, agradável e feliz( 1717. Almeida PM, Mochel EG, Oliveira MSS. O idoso pelo próprio idoso: percepção de si e de sua qualidade de vida. Rev Kairós Gerontol. 2011 mar;13(2):99-113. ). As descrições a seguir revelam a experiência do outro com relação à ruptura de estereótipos atribuídos ao idoso:

[...]eu antes era uma pessoa muito amém e amém. Hoje tô numa ousadia só (risos). Viajo sozinha com o meu grupo[...]E a gente tá assim, diferente, não é? A gente tem uma visão da vida totalmente diferente [...]eu acho que a fisionomia do idoso é diferente [...] olha como estamos mais jovens, não é isso (Banana)?

[...] Pra mim mudou, porque toda vida eu fiz, mas eu fazia com medo, porque tinha repressão. Tanto das leis quanto da própria população. Já hoje, a gente tem abertura. A gente fazia, mas fazia as escondidas, e hoje a gente faz e muitas pessoas criticam. Mas a gente faz sem medo (Maçã).

Pesquisadores ressaltam a importância dos grupos como ambientes de convivência social e de integração, em que os idosos realizam múltiplas atividades, entre elas, trabalhos manuais, exercícios físicos, danças e viagens, permitindo o diálogo, a socialização de informações e conhecimentos, o que ajuda a dissipar a solidão( 22. Leite MT, Coppellari VT, Sonego J. Mudou, mudou tudo na minha vida: experiências de idosos em grupos de convivência no município de Ijuí/RS. Rev Eletr Enf. 2002;4(1):18-25. ).

No entanto, no meio social, o idoso nem sempre consegue superar a ruptura de estereótipos. Quando Maçã relata que: fazia as escondidas, e Banana corrobora dizendo que tem uma visão da vida totalmente diferente, parece-nos que a repressão ainda se faz presente nos sentimentos dessas idosas e que a inserção nos grupos de convivência conduzem-nas a vivenciar uma existência ambígua: por um lado, a felicidade de fazer parte dos grupos diante da socialização que lhe proporciona; por outro, o sentimento de repressão social que é atribuído aos velhos.

O estudo mostra-nos como os estereótipos podem afetar a impessoalidade das idosas, uma vez que, como seres sociais, vivenciam a ambiguidade entre o que sentem de si mesmas e o pensamento do outro em relação a si, ou seja, a perspectiva do mundo cultural, que implica no preconceito social é sempre percebida pelas idosas, mesmo que reflexivamente não se sintam desse jeito. Ser velho em nosso país significa ser inválido, incapaz e inútil.

As idosas participantes do estudo revelaram que as mudanças decorrentes de sua inserção nos grupos de convivência estão relacionadas à capacidade de sentirem-se renovadas, e essa renovação aparece pela retomada da juventude. Desta forma, sob o olhar de Merleau-Ponty, acerca do corpo do outro, o outro se mostra a partir da integração no grupo que, em função da intersubjetividade, permite a transcendência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo possibilitou descrever a percepção sobre o exercício da cidadania de idosas integrantes de grupos de convivência, à luz do pensamento de Merleau-Ponty acerca do corpo sexuado e do corpo do outro. Mostrou que a sua inserção nos grupos e o desejo de exercer a cidadania ocorrem, dentre outras razões, pela necessidade de serem aceitas na sociedade e reconhecidas como cidadãs idosas.

Nesta perspectiva, os profissionais de saúde precisam compreender a pessoa idosa sob uma lógica que desmistifique a ideologia da sociedade ocidental contemporânea que, atribui à palavra velho um sentido pejorativo. Devem valorizar a inserção de idosos em grupos existentes na comunidade que favoreçam seu reconhecimento como protagonistas de suas vidas. Assim, contribuirão para a construção de uma sociedade na qual não seja necessário representar a imagem do idoso jovem para ser aceito pelos demais grupos etários, uma sociedade em que as pessoas sejam respeitadas e valorizadas como cidadãs, independentemente dos papéis sociais que representam e das dificuldades inerentes à idade.

Acreditamos que estudos desta natureza, no contexto da gerontologia, possibilitam a valorização das pessoas idosas, uma vez que buscam compreender descrições vivenciais que fornecem subsídios ao planejamento de ações voltadas para o atendimento mais humanizado no âmbito das políticas públicas sociais e de saúde, no sentido de fortalecer sua inserção social como sujeitos de direitos.

Como limitações para elaboração desta pesquisa, destacamos as dificuldades para realização dos encontros de grupos focais. Um dos motivos se deu em função dos horários das reuniões serem distintos daqueles habituais com seus respectivos grupos de convivência o que causou uma resistência inicial para os seus agendamentos. Outro fator ocorreu no momento dos encontros quando percebemos certo receio das integrantes para emitir algumas opiniões diante de outras idosas. Acreditamos que a metodologia, ao mesmo tempo, em que despertou o diálogo entre o grupo, trouxe-nos a sensação de que ainda há muito a ser desvelado.

Finalmente, ao compreender a dinâmica que envolve a experiência do corpo sexuado e do corpo do outro, como a construção de um conhecimento inacabado, no qual os fenômenos nunca se mostram em si por inteiro, aceitamos não ser possível alcançar todas as suas perspectivas neste ensaio, apresentando esta limitação como a abertura para futuras pesquisas na área da gerontologia com foco na abordagem fenomenológica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2013
  • Aceito
    17 Mar 2014
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