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Percepção de familiares e profissionais de saúde sobre a violência institucional à criança hospitalizada

RESUMO

Objetivo:

Compreender a percepção de familiares e profissionais de saúde sobre a Violência Institucional à criança hospitalizada.

Método:

Estudo qualitativo, exploratório-descritivo, de aproximações com o pensamento foucaultiano, realizado em unidade pediátrica de hospital de grande porte em Salvador/Bahia. Participaram 10 mães e 39 profissionais de saúde. A coleta de dados ocorreu entre novembro/2018 e outubro/2019 através de entrevista semiestruturada. Foi realizada análise de conteúdo dos dados, com auxílio do software NVIVO12. O estudo foi aprovado por um comitê de ética e respeitou a Resolução 466/2012.

Resultados:

A Violência Institucional foi compreendida pelos participantes como: práticas de cuidado abusivas; problemas nas relações entre profissionais, criança e família; precarização da estrutura hospitalar.

Conclusão:

A percepção de familiares e profissionais de saúde sobre a presença da Violência Institucional no cuidado hospitalar infantil demonstra a necessidade de estabelecer ações para o seu enfrentamento para assegurar a dignidade da criança durante a hospitalização.

Palavras-chave:
Maus-tratos infantis; Criança hospitalizada; Cuidado da criança

ABSTRACT

Objective:

To understand the perception of family members and health professionals about institutional violence against hospitalized children.

Methods:

Qualitative, exploratory-descriptive study, used approximations with Foucault's thinking, carried out in a pediatric unit of a large hospital in Salvador - Bahia. 10 mothers and 39 health professionals participated. Data collection took place between November/2018 and October/2019 through semi-structured interviews. Data content analysis was performed with the help of the NVIVO12 software. The study, approved by Ethics Committee, complied with resolution 466/2012.

Results:

The Institutional Violence was understood by the participants evidenced in three categories: abusive care practices; problems in the relationships between professionals, child and family; precariousness of the hospital structure.

Conclusion:

The perception of family members and health professionals about the presence of Institutional Violence in children's hospital care demonstrates the need to establish actions in their confrontation to ensure the dignity of the child during hospitalization.

Keywords:
Child abuse; Child, hospitalized; Child care

RESUMEN

Objetivo:

Comprender la percepción de familiares y profesionales de la salud sobre la violencia institucional contra los niños hospitalizados.

Métodos:

estudio cualitativo, exploratorio-descriptivo, que utilizó aproximaciones con el pensamiento de Foucault, realizado en una unidad de pediatría de un gran hospital de Salvador - Bahía. Participaron 10 madres y 39 profesionales de la salud. La recolección de datos se realizó entre noviembre / 2018 y octubre / 2019 a través de entrevistas semiestructuradas. Data content analysis was performed with the help of the software NVIVO12. El estudio, aprobado por el Comité de Ética, cumplió con la resolución 466/2012.

Resultados:

El Violencia Institucional fue entendido por los participantes evidenciado en tres categorías: prácticas de cuidado abusivo; problemas en las relaciones entre profesionales, niño y familia; precariedad de la estructura hospitalaria.

Conclusión:

La percepción de familiares y profesionales de la salud sobre la presencia de Violencia Institucional en la atención hospitalaria infantil demuestra la necesidad de establecer acciones en su enfrentamiento para asegurar la dignidad del niño durante la hospitalización.

Palabras clave:
Maltrato a los niños; Niño hospitalizado; Cuidado del niño

INTRODUÇÃO

A violência institucional (VI) é definida como uma ação ou omissão cometida nas/pelas instituições que decorre das relações assimétricas de poder entre usuários e profissionais. Dentro dos serviços de saúde, as infrações abrangem desde a falta de acesso até a má qualidade do atendimento, quando este se dá por meio de regras, normas de funcionamento, relações burocráticas e políticas, reproduzindo as iniquidades provenientes das estruturas sociais injustas11. Azeredo YN, Schraiber LB. Institutional violence and humanization in health: notes to debate. Ciênc Saúde Colet. 2017;22(9):3013-22. doi https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13712017
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Ao longo dos anos, a VI vem sendo discutida de forma primária, e fragmentada. Isto ocorre em virtude da escassez de informações, estudos científicos e discussões a este respeito, o que dificulta sua real compreensão e repercute negativamente no engajamento tanto de gestores quanto dos profissionais de saúde22. Finch M, Featherston R, Chakraborty S, Bjørndal L, Mildon R, Albers B, et al. Interventions that address institutional child maltreatment: an evidence and gap map. Campbell Syst Rev. 2021;17:e1139. doi: https://doi.org/10.1002/cl2.1139
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Não obstante, as pesquisas que confirmam a VI em serviços de saúde revelam que esta é praticada por profissionais de diversas áreas (enfermagem, medicina, serviço social, dentre outros) e ainda esclarecem que a VI tem como principais características: violação dos direitos da clientela; peregrinação do usuário a diversos serviços à procura de atendimento; abusos; problemas de comunicação e relacionamento entre usuários e profissionais; proibições durante o período de hospitalização que infringem os direitos dos pacientes; desqualificação da experiência de vida do usuário em detrimento do saber dos profissionais de saúde; negligência; violência física ou qualquer tipo de maltrato de cunho simbólico ou psicológico, praticados no âmbito institucional11. Azeredo YN, Schraiber LB. Institutional violence and humanization in health: notes to debate. Ciênc Saúde Colet. 2017;22(9):3013-22. doi https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13712017
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-33. Marrero L, Brüggemann OM. Institutional violence during the parturition process in Brazil: integrative review. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1152-61. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0238
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,44. Presidência da República (BR). Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial União. 2017 abr 5 [cited 2021 Jul 1];154(66 Seção 1):1-3. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/04/2017&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=232
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.

Com efeito, considerando o resultado de pesquisas nacionais e internacionais que apresentam a VI infantil, estudos revelam que há maior abordagem desta problemática em ambientes educacionais como escolas, creches e orfanatos22. Finch M, Featherston R, Chakraborty S, Bjørndal L, Mildon R, Albers B, et al. Interventions that address institutional child maltreatment: an evidence and gap map. Campbell Syst Rev. 2021;17:e1139. doi: https://doi.org/10.1002/cl2.1139
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-55. Santos LES, Ferriani MGC. A violência institucional em creches e pré-escolas sob a ótica das mães. Rev Bras Enferm. 2009;62(1):45-50. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000100007
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. Por outro lado, em uma pesquisa multicêntrica realizada em 2020 no Nepal66. Kc A, Singh DR, Upadhyaya MK, Budhathoki SS, Gurung A, Malqvist M. Quality of care for maternal and newborn health in health facilities in Nepal. Matern Child Health J. 2020;24(Suppl 1):31-8. doi: https://doi.org/10.1007/s10995-019-02846-w
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, cuja população-alvo era de recém-nascidos, foi constatado que os abusos cometidos dentro de serviços de saúde ocorrem de forma frequente e em número elevado, entretanto, evidenciou-se a lacuna nas pesquisas de VI nos serviços de saúde abrangendo a faixa etária do pré-escolar à adolescência.

Dessa forma, ao considerar a condição de vulnerabilidade da criança, pela imaturidade dos seus sistemas neurocognitivo e motor, a vivência da VI nesta faixa etária pode acarretar consequências ainda mais graves, afetando o desenvolvimento infantil. Corroborando com esta afirmação, pesquisas confirmam que crianças hospitalizadas apresentam maior disposição para desenvolver distúrbios psiquiátricos a médio e longo prazo, como ansiedade, depressão, obesidade e outras doenças crônicas77. Silva VLS, França GVA, Munhoz TN, Santos IS, Barros AJD, Barros FC, et al. Hospitalization in the first years of life and development of psychiatric disorders at age 6 and 11: a birth cohort study in Brazil. Cad Saúde Pública. 2018;34(5):e00064517. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00064517
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-88. Çamur Z, Karabudak SS. The effect of parental participation in the care of hospitalized children on parent satisfaction and parent and child anxiety: randomized controlled trial. Int J Nurs Pract. 2021;27(5);e12910. doi: https://doi.org/10.1111/ijn.12910
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.

Para o filósofo contemporâneo Michel Foucault, o hospital, desde a sua origem, é um lugar disciplinador, estabelecido pela ordem médica, evoluindo para a despersonalização do paciente internado99. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2001. . Neste espaço, o corpo dos indivíduos é considerado ao mesmo tempo alvo de cuidados e objeto de poder11. Azeredo YN, Schraiber LB. Institutional violence and humanization in health: notes to debate. Ciênc Saúde Colet. 2017;22(9):3013-22. doi https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13712017
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-99. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2001. . O profissional controla, prescreve e monitora comportamentos, muitas vezes através de castigos, ameaças, gritos e acessos de raiva. Não obstante, a humilhação e desmoralização têm por finalidade manter o paciente passivo e inofensivo, o que dificulta o enfrentamento deste problema11. Azeredo YN, Schraiber LB. Institutional violence and humanization in health: notes to debate. Ciênc Saúde Colet. 2017;22(9):3013-22. doi https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13712017
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Portanto, faz-se necessário aprofundar os estudos sobre esta temática para melhor compreender a natureza destes abusos em crianças. Assim, apresentamos a seguinte questão norteadora: Como os familiares e profissionais de saúde percebem a VI à criança hospitalizada? Para responder esse questionamento, objetivamos: Compreender a percepção de familiares e profissionais de saúde sobre a Violência Institucional à criança hospitalizada.

A relevância deste estudo encontra-se na possibilidade de que, ao despertar a atenção de familiares e profissionais de saúde para esse assunto, estes sejam capazes de não apenas identificar situações de VI à criança, mas também de promover estratégias para mitigá-la. Ademais, este estudo pretende contribuir para a minimizar a lacuna existente nos estudos de VI infantil em serviços de saúde.

MÉTODO

Estudo qualitativo, exploratório-descritivo, apresentado como parte da pesquisa: “Violência institucional à criança hospitalizada na perspectiva de acompanhantes e profissionais de saúde”, que buscou utilizar aproximações com o pensamento de Michel Foucault.

A coleta de dados ocorreu entre novembro de 2018 e outubro de 2019, em uma unidade pediátrica de um hospital universitário de referência em Salvador/Bahia. Os participantes foram os familiares e os profissionais de saúde da referida unidade. Como critérios de inclusão foram considerados: para os familiares, estar acompanhando a criança por mais de sete dias e ser o acompanhante principal da criança; para os profissionais de saúde, estar atuando na unidade pediátrica que constituiu o campo de pesquisa. Foram considerados como critérios de exclusão: acompanhantes recém-chegados à unidade pediátrica, por terem menos tempo de adaptação ao serviço; e a idade menor que 18 anos. No caso dos profissionais de saúde, foram excluídos os que estavam de licença no período em que as pesquisadoras buscaram contato para marcação da entrevista, ou que possuíam menos de dois anos de atuação em pediatria, por se considerar este como um período mínimo para aquisição de experiências que permitissem melhor aprofundamento das questões abordadas nesta pesquisa.

Os participantes foram selecionados de forma intencional (aqueles que estavam presentes na unidade no momento da coleta de dados), e a entrevista ocorreu mediante agendamento prévio. Os acompanhantes foram escolhidos conforme informações contidas no relatório de enfermagem da unidade, onde constavam nome da criança e do acompanhante, dia da internação e diagnóstico; em seguida, as entrevistadoras se apresentavam aos acompanhantes e os convidavam para participar da pesquisa. No caso dos profissionais de saúde, as entrevistadoras buscavam se apresentar aos que estavam de plantão no momento da coleta de dados, convidavam para participar da pesquisa e realizavam o agendamento da entrevista. Em seguida, os entrevistados indicavam seus colegas e forneciam o contato destes para as pesquisadoras. Na ocasião da abordagem, era-lhes apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), contendo os objetivos da pesquisa e a autorização para participação e divulgação dos dados mediante a preservação do sigilo e anonimato dos participantes. Todos concordaram em participar da pesquisa e, após serem apresentados ao TCLE, realizaram o devido preenchimento e assinatura deste, sendo entregue uma cópia deste documento para o participante e outra cópia para o pesquisador.

No momento da entrevista, os participantes foram conduzidos a um local reservado da própria unidade de pediatria. A técnica utilizada foi a entrevista, que ocorreu guiada por um roteiro semiestruturado. O roteiro da entrevista continha perguntas fechadas, para caracterizar o perfil sociodemográfico dos entrevistados, e perguntas abertas, que permitiam que o entrevistado falasse sobre o tema pesquisado de forma livre.

As perguntas abertas para os familiares foram: Você identificou alguma situação que se caracteriza como VI durante o internamento do(da) seu(sua) filho(a)? Qual ou quais? Seu(Sua) filho(a) e/ou familiares vivenciaram algum problema no período da hospitalização? Qual ou quais? Para os profissionais: Você já identificou algum tipo de VI à criança durante a hospitalização? Qual ou quais?

Durante a coleta de dados também utilizou-se um folder informativo para apresentar a definição e características da VI nos serviços de saúde, considerando-se o não conhecimento acerca do tema. A entrevista foi conduzida por uma equipe de bolsistas de iniciação científica e pós-graduandos previamente treinados. O roteiro semiestruturado foi testado previamente (piloto) para averiguar se havia duplicidade ou distorções nas perguntas e informações.

A coleta de dados foi descrita de acordo com os critérios consolidados para pesquisa qualitativa (COREQ). As entrevistas finalizaram após a saturação dos dados, que ocorreu quando estes se tornaram redundantes e repetitivos. As entrevistas foram gravadas em aplicativo de áudio de aparelho celular e, logo após, transcritas na íntegra, digitadas em arquivo do Word.

Os dados foram analisados através da técnica da análise de conteúdo, tendo-se buscado aproximações com o pensamento foucaultiano para ancorar as discussões da análise. As etapas que seguiram este tipo de análise foram: leitura exaustiva das entrevistas e organização do material. Na fase de categorização, realizou-se a classificação de conjuntos por diferenciação e, posteriormente, fez-se novo agrupamento que originou as categorias de análise. Para auxiliar na categorização foi utilizado o software NVIVO12.

A pesquisa respeitou a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, com submissão e aprovação do Comitê de Ética da instituição proponente (CAAE: 99681518.0.0000.5531) e coparticipante (CAAE: 99681518.0.3001.0049).

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 10 mães e 39 profissionais de saúde (01 assistente social, 06 enfermeiros, 02 farmacêuticos, 05 fisioterapeutas, 01 fonoaudiólogo, 05 nutricionistas, 07 médicos, 01 psicólogo e 11 técnicos de enfermagem). Todos os participantes eram do sexo feminino e tinham idade entre 19 e 64 anos. As mães das crianças tinham, na sua maioria, nível médio completo e renda média de até um salário mínimo. Já os profissionais de saúde tinham, em sua maioria, de 6 a 10 anos de atuação em pediatria e renda média de 5 a 10 salários mínimos.

De acordo com os profissionais de saúde e familiares, a violência institucional à criança hospitalizada está ancorada em três categorias: as práticas de cuidado abusivas, os problemas nas relações interpessoais entre profissionais de saúde, criança e família, e a precarização da estrutura hospitalar.

O Quadro 1 ilustra as características descritas nos relatos dos participantes de acordo com as categorias encontradas no estudo, que evidenciam a presença de VI à criança desde o momento da busca por atendimento até a sua permanência no hospital.

Quadro 1 -
Reconhecimento da VI à criança hospitalizada e suas características de acordo

A despeito da percepção da VI descrita no Quadro 1, foi constatado que a apresentação das três categorias (precarização da estrutura hospitalar, problemas nas relações interpessoais e nas práticas de cuidado abusivas), quando os dois grupos (profissionais e familiares) foram analisados juntamente, se mostrou equilibrada. Entretanto, quando a análise ocorreu separadamente, a VI foi percebida de forma distinta, pois os profissionais referiam que a VI estava mais relacionada aos problemas na precarização da estrutura hospitalar, seguidos de práticas de cuidado abusivas e problemas nas relações interpessoais, enquanto que os familiares deram mais ênfase aos abusos cometidos nas práticas de cuidado, seguidos de problemas nas relações interpessoais e, por último, a precarização da estrutura hospitalar.

Também é importante salientar que alguns participantes (tanto profissionais como familiares) demonstravam não reconhecer situações relacionadas à VI à criança, mesmo quando lhes eram apresentadas a definição e as características desta no folder informativo. Estas percepções podem ser confirmadas pelos relatos abaixo:

Aqui não vejo, eu acho que as crianças são bem assistidas. (Técnica de enfermagem 02)

Na primeira categoria, os participantes compreenderam que a VI à criança hospitalizada era percebida pelas práticas de cuidado abusivas que levam à exposição do corpo infantil pelas múltiplas manipulações, dor, desconforto, privações e determinam falhas na assistência, diagnósticos imprecisos e o aumento da ocorrência de desfechos desfavoráveis.

Os relatos a seguir expressam estas situações:

Essa médica puxou a sonda do meu filho antes do tempo e terminou ferindo a cirurgia dele, depois tive que levar ele pro hospital na cidade onde eu moro[,] porque deu uma infecção que já tava tomando conta dele, se eu não levasse, ele ia morrer. Porque ela fez isso com meu filho, puxou antes do dia. Porque a sonda tava presa, mas ela puxou, forçou, ficou puxando e o menino chorando, saiu sangue, inchou demais o local da cirurgia. (Acompanhante 02)

A gente é cheio de rotina. Horário que faz o medicamento, dá banho, que acorda e a criança não está acostumada com isso, a gente impõem tudo para ela e às vezes elas ficam mais estressadas e às vezes não é só por conta do adoecimento, é por conta de estar tendo que se adequar a tanta coisa nova. Falta sensibilidade da equipe de entender que às vezes o mau humor não é porque ela é mimada ou é birra ou é dengo, é só porque ela tende a expressar o estresse dela dessa forma. (Farmacêutica 01)

A segunda categoria apresenta os problemas nas relações entre profissionais, crianças e famílias. De acordo com os participantes, as situações de VI foram: problemas na comunicação; omissão, pela falta de escuta e atenção; problemas éticos, como perda de autonomia, quebra do princípio da justiça; violência psicológica para com a criança e família. Os trechos a seguir trazem essas constatações:

Às vezes a médica fala pra mim: “Mãe, quero falar com você.”. Aí meu filho fala: “Não, tia, é sobre mim! Eu quero saber!”. Mas, por outro lado, ele não tá preparado para ouvir a realidade. Ele disse: “Não, mas eu não quero! Vocês têm que ouvir o paciente! E o paciente? O paciente não tem voz? Eu sou o paciente!”. Aí eu falei: Mas você é menor de idade, quem manda em você sou eu. (Acompanhante 10)

Tratar com frieza, rispidez, não dar a devida atenção, não levar a sério, não dar a devida importância ao que os pais estão falando. Às vezes se desqualifica essa narrativa porque não é a linguagem que você está acostumada. Tenho lembrança de ter visto pessoas desdenhando da situação, da queixa do paciente. (Nutricionista 02)

Um profissional diz que vai fazer uma conduta com o paciente, outro diz que vai fazer outra, isso é muito recorrente e confunde o paciente, o familiar e dificulta o processo de adesão. (Psicóloga 01)

A precarização da estrutura hospitalar é apresentada como a terceira categoria deste estudo, tendo sido mencionada pelas participantes e atribuída à presença de maior tempo de internação, risco de complicações e agravamento do quadro clínico da criança. Os participantes confirmaram isto em suas falas:

Infelizmente as pessoas acabam por descontar em cima de quem menos precisa receber aquele maltrato, que é aquele paciente, aquele familiar do paciente. Já tive a oportunidade de ver hospitais superlotados, emergências superlotadas, profissionais sobrecarregados que geraram essas coisas. (Enfermeira 01)

Na enfermaria 7, as crianças não têm vaso sanitário. É uma pia que a mãe tem que colocar a criança em cima e, aí, faz lá. É complicado. (Técnica de enfermagem 08)

Ela tem uma endoscopia também pra fazer com ligadura que eu não tô conseguindo marcar aqui, porque tá sem material. (Acompanhante 07)

É muito comum aqui na instituição a gente receber paciente que vem da terceira instituição que o paciente vai peregrinando, porque não tem o exame que precisa ter desde a primeira instituição. Esse é um tipo de violência que a gente percebe quando pega uma criança aqui chateada, aborrecida, porque ela está indo de instituição em instituição. (Médica 01)

DISCUSSÃO

Os relatos dos participantes demonstraram como os familiares e profissionais de saúde percebiam a VI à criança durante o período em que ela se encontra hospitalizada. Também pôde ser evidenciado que a VI se apresenta de maneira distinta (problemas nas práticas de cuidado, na estrutura do serviço e relações interpessoais).

De acordo com o os problemas relacionados às práticas de cuidado abusivas, a existência de múltiplas manipulações do corpo da criança e o desrespeito à privacidade dos indivíduos foram percebidos pela forma automatizada como o atendimento era ofertado, baseado em padrões de queixa-conduta, aprofundando o olhar centrado na doença.

Através dos relatos dos participantes, percebe-se que as práticas hospitalares no cuidado infantil permanecem ainda sob forte influência da visão biomédica, cujas bases teóricas são sustentadas pela medicalização, por meio do exame minucioso, controle dos corpos e da disciplina99. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2001. . Tal compreensão torna as múltiplas manipulações, a não obtenção de consentimento e outras práticas abusivas de saúde como naturais pela frequência com que os profissionais as executam.

Para Foucault, a disciplina é a anatomia política do detalhe, na qual o corpo do indivíduo deve ser excessivamente vigiado e controlado. Por sua vez, a medicina se utiliza da disciplina para realizar diversas práticas que incluem distribuir indivíduos, isolá-los, esquadrinhá-los e controlá-los por meio de regras, adestramento e registros99. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2001. .

Neste estudo, as participantes reconheceram que as práticas de cuidado abusivas ocasionavam falhas na assistência que resultaram em danos físicos e psicológicos à criança. Dentre os danos físicos, mencionaram privações (fome, sono), manipulações excessivas que causavam dor, infecções e piora do quadro de saúde. Já os danos psicológicos resultaram em estresse e ansiedade.

Estudo que estimou a ocorrência de danos em crianças internadas no Reino Unido constatou que uma em cada sete crianças sofre danos durante a internação1010. Fajreldines A, Schnitzler E, Torres S, Panattieri N, Pellizzari M. Measurement of the incidence of care-associated adverse events at the department of pediatrics of a teaching hospital. Arch Argent Pediatr. 2019;117(2):106-9. doi: https://doi.org/10.5546/aap.2019.eng.e106
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. Sobre a ocorrência de erros na assistência à saúde, estudos revelam que é necessário admitir que, na investigação de danos ocorridos durante a internação infantil, é preciso considerar tanto os relatos dos profissionais de saúde, quanto os da criança e família. Corroborando com esta afirmação, pesquisas confirmam que pais de crianças hospitalizadas são capazes de relatar eventos adversos evitáveis em seus filhos que não estão registrados em prontuários, o que demonstra que os registros de agravos resultantes das práticas de cuidado e sua natureza ainda são muito limitados, e que a família, que é uma fonte importante de dados, vem sendo pouco utilizada neste monitoramento1111. Khan A, Furtak SL, Melvin P, Rogers JE, Schuster MA, Landrigan CP. Parent-reported errors and adverse events in hospitalized children. JAMA Pediatr. 2016;170(4):e154608. doi: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2015.4608
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-1212. Peres MA, Wegner W, Cantarelli-Kantorski KJ, Gerhardt LM, Magalhães AMM. Perception of family members and caregivers regarding patient safety in pediatric inpatient units. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0195. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0195
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Nas situações em que foram reconhecidos os problemas nas relações entre profissionais, criança e família, foi possível perceber a presença do abuso de poder. Para Foucault99. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2001. , o poder é caracterizado por um conjunto de práticas que definem como uns devem conduzir e governar a conduta de outros, entretanto, é nesta relação entendida como uma condução de condutas que os jogos de verdade irão produzir saberes para definir que posição os sujeitos devem ocupar em determinado espaço, sobretudo, dentro das instituições.

Nesse aspecto, relacionando o pensamento de Foucault com os achados desta pesquisa, pode-se perceber que o sujeito criança hospitalizada, ao ser formalmente administrado por uma instituição (hospital), é considerado como doente, paciente e, portanto, a tomada de decisão sobre sua saúde deverá estar a cargo do sujeito médico (neste estudo também pode-se considerar nesta posição o profissional de saúde), que conduzirá o tratamento da maneira que julgar ser correto. Desta forma, o modo como ocorrem estas relações entre os indivíduos abre espaço para inúmeros problemas, como: dificuldade de comunicação, perda de autonomia e até mesmo violência psicológica.

Neste estudo, a dificuldade de comunicação foi mencionada pelas participantes como o principal problema no relacionamento entre profissionais, criança e família. As falhas na comunicação foram caracterizadas pela falta ou fragmentação das informações, que ocorriam quando os profissionais não se comunicavam adequadamente entre si e com a criança e família, o que gerou estresse e falhas na assistência.

Corroborando com os dados deste estudo, pesquisas nacionais e internacionais revelam que os problemas na comunicação são muito comuns em unidades de internação pediátrica, estando relacionados ao fato de o profissional geralmente se dirigir à mãe ou acompanhante para fornecer informações sobre o estado de saúde da criança e desconsiderar a necessidade desta de obter conhecimento sobre seu tratamento e prognóstico. Tal situação resulta em perda da autonomia da criança, uma vez que ela se encontra privada de informações essenciais para a tomada de decisão sobre sua saúde1313. Lee SP, Haycock-Stuart E, Tisdall K. Participation in communication and decisions with regards to nursing care: the role of children. Enferm Clin. 2019;29(Suppl 2):715-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.enfcli.2019.04.109
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-1414. Aranha BF, Souza MA, Pedroso GER, Maia EBS, Melo LL. Using the instructional therapeutic play during admission of children to hospital: the perception of the family. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41:e20180413 1. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2020.20180413
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,1515. Biasibetti C, Hoffmann LM, Rodrigues FA, Wegner W, Rocha PK. Communication for patient safety in pediatric hospitalizations. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40(esp):e20180337. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180337
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Como forma de permitir melhor comunicação com crianças e família, é importante a utilização de ferramentas assertivas como o brinquedo terapêutico, que ajuda a reduzir a dor e o estresse de crianças antes da realização de procedimentos dolorosos, fazendo com que estas adotem comportamentos mais colaborativos diante das dificuldades que envolvem a realização de condutas invasivas1414. Aranha BF, Souza MA, Pedroso GER, Maia EBS, Melo LL. Using the instructional therapeutic play during admission of children to hospital: the perception of the family. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41:e20180413 1. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2020.20180413
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A falta de informação e a perda da autonomia da criança estão também fortemente relacionadas ao comportamento de preconceito e discriminação, o que pode se constituir como violência psicológica. A violência psicológica para com a criança, apesar de muito tolerada pela sociedade, inclui toda ação e omissão que resulte em dano à autoestima, identidade e desenvolvimento do indivíduo, uma vez que suas vítimas permanecem submetidas ao poder dos adultos que as coagem para exercerem seus interesses44. Presidência da República (BR). Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial União. 2017 abr 5 [cited 2021 Jul 1];154(66 Seção 1):1-3. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/04/2017&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=232
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-1616. Vahl P, Damme L, Doreleijers T, Vermeiren R, Colins O. The unique relation of childhood emotional maltreatment with mental health problems among detained male and female adolescents. Child Abuse Negl. 2016:62:142-50. doi: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2016.10.008
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Sobre os efeitos dos abusos emocionais, pesquisas confirmam que estes podem ser tão prejudiciais quanto os físicos e sexuais, estando relacionados à ocorrência de problemas mentais, sintomas neurológicos sem explicação médica, obesidade e doenças cardíacas1616. Vahl P, Damme L, Doreleijers T, Vermeiren R, Colins O. The unique relation of childhood emotional maltreatment with mental health problems among detained male and female adolescents. Child Abuse Negl. 2016:62:142-50. doi: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2016.10.008
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-1717. Karatzias T, Howard R, Power K, Socherel F, Heath C, Livingstone A. Organic vs. functional neurological disorders: The role of childhood psychological trauma. Child Abuse Negl. 2017:63:1-6. doi: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2016.11.011
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Neste estudo, os familiares confirmaram situações em que crianças desejavam saber mais sobre seu tratamento, ou mesmo ter informações sobre exames, entretanto, tal condição não era respeitada, pois, de acordo com os participantes, a criança ainda era considerada como alguém que não tinha condições de tomar decisões ou até mesmo de participar destas.

A desvalorização da criança tem suas bases históricas na Doutrina da Situação Irregular, que considerava crianças e adolescentes como objeto de tutela e, por isso, era-lhes ofertado um conjunto de políticas sociais baseado no caráter paternalista, assistencialista e tutelar. Com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as discussões sobre a criança como sujeito de direito avançaram, garantindo-lhes a participação nas decisões e o melhor interesse da criança44. Presidência da República (BR). Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial União. 2017 abr 5 [cited 2021 Jul 1];154(66 Seção 1):1-3. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/04/2017&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=232
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Ademais, ameaça e intimidação neste estudo foram confirmadas durante o cuidado hospitalar pelas mães de crianças hospitalizadas, entretanto, não foram descritas pelos profissionais de saúde. Tal discrepância revela que a maneira do profissional se dirigir à família, em alguns casos, é considerada como autoritária pela família, mas acaba passando despercebida por este, revelando a naturalização dos comportamentos que ora se manifestam como dominação, ora se manifestam pela concepção paternalista. Este dado também é confirmado nos estudos que descrevem a presença da violência de gênero dentro das instituições de saúde33. Marrero L, Brüggemann OM. Institutional violence during the parturition process in Brazil: integrative review. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1152-61. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0238
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A respeito da precarização da estrutura hospitalar, a peregrinação foi destacada pelas participantes como um problema muito comum, o que vem corroborar com dados de outras pesquisas nacionais e internacionais1818. Souza RR, Vieira MG, Lima Junior CJF. The integral child health care network in the Federal District - Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2019:24(6):2075-84. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.09512019
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,1919. Santos DBC, Vázquez-Ramos V, Oliveira CCC, López-Arellano O. Accesibilidad en salud: revisión sobre niños y niñas con discapacidad en Brasil-Perú-Colombia. Rev Latinoam Cienc Soc Niñez Juv. 2019 [citado 2021 jul 1];17(2):1-20. Disponible en: http://www.scielo.org.co/pdf/rlcs/v17n2/2027-7679-rlcs-17-02-00127.pdf
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,2020. Foucault M. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France. 1978-1979. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2008. .

A presença de peregrinação, constituída pela trajetória dificultosa do usuário na busca por atendimento em serviços de saúde, está relacionada à dificuldade de se estabelecer um sistema de referência e contrarreferência eficaz para atender às necessidades de saúde de crianças. Dentre os fatores que dificultam a busca por atendimento em saúde, podem-se citar: a carência de profissionais, falta de infraestrutura dos serviços, redução da oferta de serviços especializados, sobretudo, no atendimento infantil e a falta de organização do serviço no momento do acolhimento1818. Souza RR, Vieira MG, Lima Junior CJF. The integral child health care network in the Federal District - Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2019:24(6):2075-84. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.09512019
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-1919. Santos DBC, Vázquez-Ramos V, Oliveira CCC, López-Arellano O. Accesibilidad en salud: revisión sobre niños y niñas con discapacidad en Brasil-Perú-Colombia. Rev Latinoam Cienc Soc Niñez Juv. 2019 [citado 2021 jul 1];17(2):1-20. Disponible en: http://www.scielo.org.co/pdf/rlcs/v17n2/2027-7679-rlcs-17-02-00127.pdf
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Outros problemas na estrutura descritos pelas participantes tornam ainda mais difícil o atendimento a este público, tais como: escassez de leitos e falta de materiais disponíveis para o cuidado pediátrico. De acordo Foucault, a problemática da escassez pode ser compreendida como uma estratégia da biopolítica, na qual o Estado deve exercer o controle da população com base nos princípios da racionalidade econômica, utilizando taxas de crescimento populacional e estatísticas para manter e definir o que deve ou não existir no âmbito das ações em saúde2020. Foucault M. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France. 1978-1979. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2008. .

Um exemplo a ser citado é o fechamento de unidades de pronto atendimento e hospitais pediátricos, bem como a redução de recursos humanos e materiais em pediatria tendo como parâmetro a queda das taxas de mortalidade infantil e de natalidade. Apesar de lógica, tal ação torna-se falha e repercute em diversas situações, como peregrinação e dificuldades estruturais no atendimento infantil1818. Souza RR, Vieira MG, Lima Junior CJF. The integral child health care network in the Federal District - Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2019:24(6):2075-84. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.09512019
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Portanto, é necessário atentar para o fato de que os modelos de atenção à saúde não estejam alicerçados e enviesados apenas nos desfechos estatísticos que sobressaem no panorama nacional, pois, dessa forma, não conseguirão atender às necessidades e especificidades do público infantil2020. Foucault M. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France. 1978-1979. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2008. .

Para Foucault2020. Foucault M. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France. 1978-1979. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2008. , a lógica da estratégia da biopolítica se forma a partir da população e deve ser compreendida pelo regime geral da verdade econômica dentro da razão governamental. Dessa forma, o mercado (e até mesmo a sociedade) não é um lugar de justiça, mas, sim, de jurisdição, pois o Estado, agindo através da razão governamental, mostra-se mais interessado em construir e desenvolver políticas que sejam baseadas na utilidade social e no benefício econômico, e não nas liberdades e direitos fundamentais dos indivíduos.

Nessa perspectiva, a biopolítica torna-se uma estratégia para racionalizar a prática governamental, utilizando a estatística para controlar, intervir e estabelecer regulação, de modo a gerar uma sensação de equilíbrio ou de segurança, entretanto, não busca mudança na condição do indivíduo. Assim, percebe-se como tal regime tem influenciado a criação de políticas e, talvez, até mesmo o sistema de garantia de direitos dos indivíduos. Ademais, as violações aos direitos infantis demonstram a fragilidade na implementação destes, o que pode estar respaldado pelo princípio da invisibilidade.

Para Foucault, o princípio da invisibilidade é indispensável, uma vez que o bem coletivo não deve ser visibilizado em detrimento do benefício econômico, ou seja, sendo o direito infantil um bem coletivo, a invisibilidade deste é respaldada pela racionalidade econômica, que não permite que o direito seja visibilizado, uma vez que implementar direitos em instituições de saúde custa caro. Desta forma, a invisibilidade serve à racionalidade econômica e a racionalidade econômica serve à violência2020. Foucault M. The birth of biopolitics: lectures at the Collège de France. 1978-1979. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2008. .

Semelhantemente, a negação da VI por parte de alguns participantes, revelada quando estes demonstravam não reconhecer a VI, mesmo quando lhes eram apresentadas suas características e definição, mostrou-se preocupante, na medida em que revela a naturalização da VI nos ambientes de cuidado. Tal evidência confirma a invisibilidade da VI à criança e a necessidade urgente do desenvolvimento de políticas públicas para minimizá-la.

Como limitações do estudo, tendo em vista que este foi realizado em apenas um hospital no Estado da Bahia, salienta-se que esta pesquisa obteve uma restrita representatividade. Como contribuições para o ensino, pesquisa, gestão e cuidado de enfermagem, destaca-se a relevância desta temática, uma vez que, através da identificação e do estudo da violência institucional à criança nos serviços de saúde, é possível atuar de forma assertiva no planejamento de ações para o seu enfrentamento. Desta forma, estudos desta natureza tornam-se fundamentais para o engajamento de usuários e profissionais de saúde no exercício da advocacia em saúde, com vistas à ampliação de um cuidado seguro, humanizado e de qualidade para crianças e seus familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com familiares e profissionais de saúde, a VI à criança hospitalizada foi percebida de forma distinta, evidenciada pelas práticas de cuidado abusivas, problemas nas relações interpessoais entre profissionais, criança e família, bem como pela precarização da estrutura hospitalar.

As evidências da presença de VI enquanto a criança permanece hospitalizada encontradas neste estudo reforçam a necessidade de ações intersetoriais e interdisciplinares, uma vez que este tipo de violência se apresenta de forma silenciosa, naturalizada, o que dificulta o engajamento de profissionais, gestores e usuários no seu enfrentamento.

Assim, é premente que profissionais de saúde e familiares reconheçam, reflitam e intervenham na promoção de estratégias no enfrentamento da VI como forma de preservar a humanização e qualidade do cuidado infantil, para assegurar a dignidade e o adequado desenvolvimento de crianças enquanto estas permanecerem em instituições hospitalares.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2021
  • Aceito
    18 Nov 2021
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