Acessibilidade / Reportar erro

Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019

Resumo:

Este artigo analisa as transformações nas condições de trabalho na atividade canavieira à luz da legislação brasileira nas últimas duas décadas, período em que o setor se expandiu e adotou novas soluções tecnológicas e caminhos gerenciais. Um tema central é compreender os efeitos da mecanização do corte da cana, que chegou a 90% da safra nacional, em média. Foram catalogados 15.488 autos de infração trabalhistas, emitidos pelos fiscais do governo federal entre 2000 e 2019, contra os 280 grupos empresariais autorizados pela ANP, tanto em suas operações agrícolas quanto industriais. Para permitir comparações, dividiu-se o país em três regiões – São Paulo, Nordeste e Demais UFs. O artigo demonstra que as irregularidades mais comuns se referem a saúde e segurança do trabalhador, descanso obrigatório, jornada e remuneração. A emissão de autos registrou tendência de alta até 2013, diante da expansão canavieira e da estratégia das autoridades em pressionar o setor e melhorar a imagem do etanol brasileiro. A aplicação de multas passou a cair em 2014. Entre as principais causas, intensificação da colheita mecanizada, que reduziu a quantidade de trabalhadores no corte manual, etapa na qual se concentravam irregularidades, e redução do ímpeto da fiscalização, diante da crise fiscal do país.

Palavras-chave:
autos de infração; fiscalização; sustentabilidade

Abstract:

This article analyses changes in working conditions in sugarcane in the light of Brazilian legislation in the 20 years, when the sector expanded and adopted new technological solutions and management paths. A central theme is understanding the effects of harvesting mechanization, which reached 90% of the national production on average. In total, 15,488 notices of violation were analysed, issued between 2000 and 2019 against the 280 business groups authorized by the ANP (National Agency for Petroleum, Natural Gas and Biofuels) to produce fuel ethanol from sugarcane, both in their agricultural and industrial operations. For comparisons purposes, the country was divided into three major producing regions – São Paulo, Northeast and Other States. The most common irregularities refer to workers’ health and safety, mandatory rest, working hours, and pay. Notices of violation saw an upward trend until 2013, given the expansion of sugarcane throughout the country and authorities’ strategy to pressure the sector and improve Brazilian ethanol’s international reputation. The number of fines began to fall in 2014. Among the causes, intensification of mechanized harvesting reduced the number of workers in manual cutting – where irregularities were concentrated – and reduction in the impulse towards enforcement, given the Brazilian government’s fiscal crisis.

Keywords:
labour fines; inspection; sustainability

Introdução

A indústria da cana-de-açúcar viveu um intenso período de expansão e transformações nas duas primeiras décadas do século XXI. A área plantada da cultura mais do que dobrou no Brasil entre 2000 e 2019, principalmente para atender a maior demanda interna por etanol. Áreas do centro-sul brasileiro foram ocupadas por novos empreendimentos, com usinas construídas do zero e abastecidas por plantações nas quais o corte é mecanizado. Grupos estrangeiros chegaram ao país para investir no setor, incentivando processos de fusões e aquisições.

O novo boom canavieiro, só comparável ao visto após o lançamento do Proálcool, nos anos 1970, ocorreu no marco de um fortalecido debate global sobre sustentabilidade. Em 1992, no Rio de Janeiro, as principais nações do mundo assinaram um tratado para estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera – a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Ela serviu de base para o Protocolo de Quioto, firmado em 1997, que determinou aos signatários que reduzissem suas próprias emissões.

O governo brasileiro e lideranças empresariais vislumbraram o potencial do etanol nesse novo cenário. O fato de ser renovável, com base produtiva instalada distante da Amazônia, deveria facilitar a entrada do combustível em países que precisavam de opções para substituir derivados do petróleo. Mas diversos entraves foram levantados na primeira década deste século, não só quanto ao etanol produzido no Brasil, mas quanto aos biocombustíveis em geral, sob o argumento de que a equação da sustentabilidade não estava resolvida. Desmatamento, mudança do uso da terra, concorrência com alimentos, escassez de recursos hídricos e condições precárias oferecidas a trabalhadores foram alguns dos riscos apontados.

A respeito da questão trabalhista relacionada à produção de cana no Brasil, investigações a têm abordado do ponto de vista do sistema produtivo e estrutura organizacional (Scopinho et al., 1999Scopinho, R. A., Eid, F., Vian, C. E. F., & Silva, P. R. C. (1999). Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Cadernos de Saude Publica, 15(1), 147-161.; Alves, 2006Alves, F. (2006). Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, 15(3), 90-98.), da interação com o sistema legal (Oliveira, 2003Oliveira, M. A. (2003). Tendências recentes da negociação coletiva no Brasil. In M. W. Proni & W. Henrique (Eds.), Trabalho, mercado e sociedade. Campinas: Unesp.; Mendes 2007Mendes, M. M. B. (2007). Justiça do trabalho e mercado de trabalho: trajetória e interação judiciário e a regulação do trabalho no Brasil (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.), ou ainda a partir de suas raízes históricas (Santos, 2015Santos, A. M. F. T. (2015). Cana doce, trabalho amargo: o trabalho escravo na expansão territorial do agronegócio sucroenergético no estado de Goiás (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Goiás, Goiânia.; Campos, 2019Campos, M. R. (2019). Formas contemporâneas de trabalho escravo no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Franca.). Em pesquisas elaboradas sob o arcabouço teórico da economia do trabalho, a discussão é sustentada segundo informações oficiais sobre a evolução dos salários e a oferta de vagas pelas empresas (Hoffmann & Oliveira, 2007Hoffmann, R., & Oliveira, F. C. R. (2007). Remuneração e características das pessoas ocupadas na agroindústria canavieira no Brasil, de 2002 a 2006. Piracicaba: Gemt Esalq-USP.; Baccarin 2017Baccarin, J. G. (2017). Mudanças administrativas e tecnológicas de empresas sucroalcooleiras e os impactos na ocupação canavieira no estado de São Paulo, Brasil. In 55º Congresso da Sober. Santa Maria.). O tema das condições de trabalho também surge em estudos de casos (Guanais, 2010Guanais, J. B. (2010). No eito da cana, a quadra é fechada: estratégias de dominação e resistência entre patrões e cortadores de cana em Cosmópolis (SP) (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Favoretto, 2014Favoretto, T. M. (2014). Máquinas de empobrecimento: impactos da mecanização do corte da cana sobre trabalhadores canavieiros em Barrinha-SP (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas), os quais, por retratarem situações extremas, podem estar distantes do ponto médio do problema.

Algumas pesquisas também têm utilizado informações produzidas pelos auditores fiscais do governo federal para analisar as condições de trabalho (Figueira & Prado, 2009Figueira, R. R., & Prado, A. A. (2009). O trabalho escravo por dívida: discussões e persistência. In M. H. Versiani, I. Maciel & N. M. Santos (Eds.), Ciclo cidadania em debate. Rio de Janeiro: Jauá.; Almeida, 2011Almeida, A. A. (2011). Marcados pela desigualdade: o trabalho escravo na cana-de-açúcar no Estado de São Paulo (1995-2010) (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.; Rodrigues, 2014Rodrigues, D. A. (2014). Acidentes graves fatais no trabalho de corte mecanizado de cana-de-açúcar: o olhar através do método mapa (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu.), mas sem aprofundar a análise sobre as categorias de infração e a dinâmica de emissão das multas (Capitani et al., 2021Capitani, D. H. D., Gomes, M. S., Walter, A. C. S., & Leal, M. R. L. V. (2021). Condições de trabalho na atividade canavieira brasileira. Revista de Política Agrícola, 2, 64-77. é a exceção). Apesar de ser uma base de dados pública, ela também não é compartilhada de forma sistematizada quando se deseja analisar segmentos econômicos específicos. Nesse caso, os chamados autos de infração trabalhista precisam ser consultados um a um para, em seguida, serem catalogados. Trata-se de um material, porém, que fornece um substancial retrato sobre o que se passa com o trabalhador dentro de uma lavoura ou indústria.

Para contribuir com a discussão sobre a evolução das condições de trabalho no setor canavieiro, este artigo reporta os resultados obtidos da análise dos autos de infração emitidos contra a indústria sucroenergética ao longo de vinte anos (2000 a 2019). Mais especificamente, o objetivo foi posto no entendimento das mudanças nas condições de trabalho diante das transformações produtivas vistas no período, em particular a mecanização do corte da cana.

1. Fundamentação teórica

As mudanças nas relações e condições de trabalho na indústria da cana-de-açúcar têm sido estudadas a partir de diferentes referenciais teóricos. Nesta pesquisa, as guias principais são as reflexões desenvolvidas no marco da economia do trabalho e da função das instituições nas relações econômico-sociais.

A economia do trabalho investiga como os mercados de trabalho funcionam, como respondem a variações de oferta e demanda, e quais fatores exógenos ao salário podem influenciar um trabalhador a aceitar ou não uma vaga (Borjas, 2012Borjas, G. J. (2012). Economia do trabalho (5ª ed.). Nova Iorque: AMGH Editora.). No caso da cana-de-açúcar, a expansão da atividade atraiu por décadas contingentes de migrantes às zonas produtoras, em busca de vagas, ainda que temporárias. No interior de São Paulo, o avanço da monocultura da cana nos anos 1970 acentuou a sazonalidade da ocupação agrícola e determinou um ritmo industrial ao trabalho, com impacto direto nas condições de trabalho (Graziano da Silva, 1980Graziano da Silva, J. (1980). Progresso técnico e relações de trabalho na agricultura paulista (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

A intensidade laboral aumentou, com a atividade de corte passando a ser comandada pelo ritmo do processamento da matéria-prima na usina. Naquela época, empresários optaram pelo chamado trabalho volante, porque era uma forma de valorizarem seu capital mais eficazmente, diante de opções mais dispendiosas como a parceria, o colonato ou o trabalho assalariado permanente (Gonzales & Bastos, 1977Gonzales, E. N., & Bastos, M. I. (1977). O trabalho volante na agricultura brasileira: capital e trabalho no campo. São Paulo: Hucitec.). A mecanização do corte da cana, massificada mais recentemente, eliminou posições no corte manual, mas manteve a tendência de aumento da produtividade e intensificação laboral (Scopinho & Valarelli, 1995Scopinho, R. A., & Valarelli, L. L. (1995). Modernização e impactos sociais: o caso da agroindústria sucroalcooleira da região de Ribeirão Preto (SP). Rio de Janeiro: Fase.).

Esse processo de mudanças sociais e econômicas ocorreu sob influência do ambiente institucional. Ao definir leis, financiar o setor privado com seus recursos, taxar com impostos ou sancionar criminalmente empresas, o Estado é capaz de fazer progredir ou regredir empresas, como ocorre no setor canavieiro, que tem longa tradição de dependência e intervenção de órgãos estatais (Vian & Belik 2003Vian, C. E. F., & Belik, W. (2003). Os desafios para a reestruturação do complexo agroindustrial canavieiro do Centro-Sul. Economía, 4(1), 153-194.). Relações de emprego e condições de trabalho são determinadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e uma série de normas regulamentadoras editadas pelo governo federal. Eventuais violações podem ser levadas para apreciação da Justiça do Trabalho, que cumpre o papel de institucionalizar a relação entre o Estado, a empresa e o trabalhador (Mendes, 2007Mendes, M. M. B. (2007). Justiça do trabalho e mercado de trabalho: trajetória e interação judiciário e a regulação do trabalho no Brasil (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

Apesar dessa relação histórica com o Estado, o setor canavieiro passou a depender mais de governança privada a partir da segunda metade dos anos 1980. Enquanto na política brasileira houve um processo de democratização e aumento da transparência, a economia foi marcada pela crise fiscal e o fim de formas de regulação baseadas no poder central, gerando uma lógica em que grupos mais fortes impuseram seus interesses. Essa liberalização, ainda que tenha gerado novas estruturas competitivas e aberto mais fronteiras para a cana, mostrou-se incapaz de solucionar os problemas relacionados às condições de trabalho (Vian & Belik, 2003Vian, C. E. F., & Belik, W. (2003). Os desafios para a reestruturação do complexo agroindustrial canavieiro do Centro-Sul. Economía, 4(1), 153-194.).

A mecanização do corte da cana pouco avançou no Brasil nas duas últimas décadas do século XX. As estimativas apontavam que ela não passava, no estado de São Paulo, de 5% nos anos 1980 (Graziano da Silva, 1980Graziano da Silva, J. (1980). Progresso técnico e relações de trabalho na agricultura paulista (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.), e de 20% nos anos 1990 (Veiga Filho, 1998). Entre os motivos, o custo mais baixo de se colher cana manualmente, a necessidade de adaptar os canaviais, com as linhas dos talhões mais longas para receber máquinas, e o desenvolvimento tecnológico ainda insuficiente das colhedeiras (Veiga Filho, 1998; Baccarin, 2017Baccarin, J. G. (2017). Mudanças administrativas e tecnológicas de empresas sucroalcooleiras e os impactos na ocupação canavieira no estado de São Paulo, Brasil. In 55º Congresso da Sober. Santa Maria.).

A mecanização só ganhou terreno a partir dos primeiros anos do novo milênio, quando essas dificuldades começaram a ser superadas. A chegada das máquinas foi possível porque os canaviais começaram a ser preparados para elas. Houve mudanças organizacionais tanto na ocupação de solos com topografia irregular, quanto na logística de operação do processo produtivo agrícola e de suas interfaces com o carregamento, o transporte e a recepção da cana. Com mais crédito disponível, desenvolveu-se um mercado de máquinas agrícolas em um contexto de maior pressão por resultados ambientais positivos (Maeda, 2012Maeda, F. (2012). Influências do Protocolo Ambiental do setor sucroalcooleiro na produção de açúcar, álcool e energia: estudo de caso em uma usina no interior de São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu.; Baccarin, 2017Baccarin, J. G. (2017). Mudanças administrativas e tecnológicas de empresas sucroalcooleiras e os impactos na ocupação canavieira no estado de São Paulo, Brasil. In 55º Congresso da Sober. Santa Maria.).

Houve pressão também do Estado. Desde os anos 1990, as usinas vinham enfrentando uma série de ações ajuizadas pelo Ministério Público contra as queimadas, obtendo decisões desfavoráveis em algumas delas. Em julho de 1998, a Presidência da República publicou o Decreto 2.661, determinando o fim da queimada da cana em um prazo de vinte anos nas áreas mecanizáveis – ou seja, até 2018. Diante da nova regra, as empresas aceitaram assinar com o governo do estado de São Paulo o Protocolo Agroambiental do Setor Sucroenergético, em 2007 (Instituto de Economia Agrícola, 2014Instituto de Economia Agrícola – IEA. (2014). Protocolo agroambiental do setor sucroenérgetico paulista: dados consolidados das safras 2007/08 a 2013/14. São Paulo. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de http://www.iea.sp.gov.br/Relat%C3%B3rioConsolidado1512.pdf
http://www.iea.sp.gov.br/Relat%C3%B3rioC...
). O acordo determinou o fim da despalha da cana por meio do uso de fogo em 2014, nas áreas mecanizáveis, e 2017 em áreas não mecanizáveis. Versões do Protocolo foram firmadas em outros estados, como Minas Gerais.

O movimento em prol das máquinas avançou também motivado pelas condições favoráveis do mercado de etanol naquele momento. Em 2003, foi lançado o carro flex no país, movido a gasolina e etanol, ajudando a atrair mais investimentos para o setor sucroenergético. O Brasil também passou a exportar parte de sua produção de etanol, e o setor almejava transformar o produto numa nova commodity, mais sustentável e alternativa à gasolina.

A mecanização do corte da cana-de-açúcar tornou-se, assim, o principal vetor de transformação do trabalho na atividade canavieira. Desde 2016, o corte mecanizado tem se mantido em um patamar acima de 89% do total da safra nacional, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) (Figura 1). Considerando uma produção estimada de 592 milhões de toneladas em 2020/21, isso significa que em torno de 527 milhões foram colhidos por máquinas, e apenas 65 milhões dependeram do uso do podão. Na safra 2007/08, quando a Conab passou a medir a taxa de mecanização no país, ela respondia por apenas 24% do corte.

Figura 1
Corte mecanizado de cana no Brasil (% da safra colhida). Fonte: Boletim da Safra de Cana-de-açúcar da Conab (agosto de 2021)

Com uma máquina colhedeira fazendo o trabalho de vários trabalhadores, o impacto sobre a ocupação foi brutal (Tabela 1). Entre 2006 e 20191 1 A nova metodologia adotada pela Rais e pelo Caged, a partir de 2006, recomenda que a data inicial para comparações dentro da série histórica comece nesse mesmo ano. , o número de canavieiros formalizados caiu de 291,6 mil para 156,1 – uma perda de 135 mil postos (-46,5%). O número de vagas relacionado à operação das máquinas aumentou, mas não a ponto de compensar o recuo no trabalho manual: passou de 32,7 mil pessoas, em 2006, para 64,5 mil, em 2019 (+97,1%). Houve ainda um incremento significativo nas chamadas atividades administrativas e de apoio, com 54,4 mil novas vagas (+42,5%). Mas o saldo final é que, apesar de ter ampliado a produção, a agricultura e a indústria da cana perderam 41,1 mil vagas entre 2006 e 2019 (-7,9%).

Tabela 12 2 Tabela construída com base na metodologia do boletim Ocupação formal no setor sucroalcooleiro em São Paulo, projeto de extensão da Unesp Jaboticabal (Universidade Estadual Paulista, 2021).
Número e variação de pessoas ocupadas em grupos e subgrupos profissionais em empresas sucroenergéticas, no Brasil, de 2006 a 2019

Além dos efeitos sobre a oferta de postos de trabalho, a mecanização impactou aspectos relacionados à qualidade do emprego na atividade canavieira. O novo cenário abriu oportunidades para mais profissionais qualificados, não apenas nas próprias fazendas e usinas, mas também na indústria de insumos e no setor de serviços (Moraes, 2007Moraes, M. A. F. D. (2007). O mercado de trabalho da agroindústria canavieira: desafios e oportunidades. Economia Aplicada, 11(4), 605-619.). Um operador de máquina colhedeira geralmente precisa frequentar vários cursos de formação para cumprir sua função. O efeito de todo esse processo é que os salários do setor aumentaram acima da inflação, entre 2006 e 2019 (Tabela 2).

Tabela 2
Rendimento médio real em grupos e subgrupos profissionais em empresas

Nesse período, a remuneração média mensal do setor no país saltou para R$ 2.480, em valores já corrigidos (+32,7%). As maiores elevações ocorreram entre aqueles profissionais contratados por empresas sucroenergéticas que não trabalhavam diretamente na atividade principal, como professores e telefonistas, que também são contratados por usinas. Nesse caso, o salário chegou a R$ 2.174 (+35,9%). A remuneração de um empregado na área agrícola mecanizada é 78,9% superior, em média, à recebida por um trabalhador envolvido com o corte manual – R$ 2.396 ante R$ 1.339, segundo dados da Rais e do Caged.

Além da questão da renda, há outros aspectos relacionados à qualidade do emprego que devem ser considerados, como saúde e segurança do trabalhador, jornada diária e direito ao descanso semanal. Com menos funcionários expostos ao corte manual, desde a exigência física do trabalho em local aberto ao modelo de pagamento baseado na produção diária, seria de se esperar que essas condições melhorassem diante do avanço do sistema mecanizado.

Mas diversas investigações alertaram que problemas não deixariam de ocorrer e não passariam de um “mito” difundido pelo setor, na medida em que os mecanismos de exploração do trabalhador continuam presentes, ainda que em nova roupagem, agora sob a forma de metas e participação nos lucros. Por essa visão, os riscos e o trabalho pesado pouco mudaram. Nas áreas mecanizadas, haveria problemas relacionados ao cumprimento de jornadas intensas de trabalho, ao acúmulo de funções, ao uso indiscriminado do banco de horas, ao tempo de trabalho just in time e ao trabalho noturno (Barreto, 2018Barreto, M. J. (2018). Novas e velhas formas de degradação do trabalho no agrohidronegócio canavieiro nas Regiões Administrativas de Presidente Prudente e Ribeirão Preto (SP) (Tese de doutorado). Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.).

Quanto aos caminhões que transportam a cana colhida, usinas realizam o que é chamado de operação bate-e-volta – caminhões do tipo “cavalo” permitem o engate de caçambas que recebem a cana do transbordo. Essa estratégia otimiza o uso dos recursos ao economizar tempo, custo do transporte e o desgaste dos equipamentos. Colhedeiras funcionam quase que ininterruptamente, e o operário fica submetido a um ritmo intenso de trabalho (Eid, 1996Eid, F. (1996). Progresso técnico na indústria sucroalcooleira. Informações Econômicas, 26(5), 29-38.; Scopinho et al., 1999Scopinho, R. A., Eid, F., Vian, C. E. F., & Silva, P. R. C. (1999). Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Cadernos de Saude Publica, 15(1), 147-161.), sob risco, inclusive, de acidentes fatais (Rodrigues, 2014Rodrigues, D. A. (2014). Acidentes graves fatais no trabalho de corte mecanizado de cana-de-açúcar: o olhar através do método mapa (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu.).

Assim, com as colhedeiras e um novo tipo de gestão do corte da cana, a usina teria conseguido retomar para si o controle sobre o trabalhador, intervindo na lógica do modelo de pagamento por produção, no qual o ritmo de corte dependia do esforço de cada indivíduo (Baccarin, 2017Baccarin, J. G. (2017). Mudanças administrativas e tecnológicas de empresas sucroalcooleiras e os impactos na ocupação canavieira no estado de São Paulo, Brasil. In 55º Congresso da Sober. Santa Maria.). Há muitos depoimentos de trabalhadores envolvidos com o corte mecanizado que ressaltam o estresse com o dia a dia e a frustação com promessas de que as agruras do corte manual ficariam para trás (Cover & Menezes, 2015Cover, M., & Menezes, M. A. (2015). Trabalhadores migrantes nos canaviais do Estado de São Paulo: formas de resistências e movimentos espontâneos. In A. Riella & P. Mascheroni (Eds.), Asalariados rurales en América Latina (pp. 213-235). Buenos Aires: Clacso.).

2. Metodologia

Esta pesquisa teve como ponto de partida (i) a análise da literatura disponível sobre condições de trabalho na atividade canavieira, em particular concernente aos impactos da mecanização, e foi especificamente desenvolvida (ii) a partir do entendimento do contexto, com o conhecimento de fatos observados e registrados no curso de entrevistas e investigação de campo, e da (iii) avaliação dos autos de infração trabalhista emitidos pelos auditores fiscais do governo federal.

Da literatura, buscou-se compreender o histórico das transformações recentes no trabalho na produção de cana, com especial interesse sobre mecanismos de causa e efeito. São reflexões a partir das quais se formulam hipóteses para, a seguir, testá-las em análises quantitativas e qualitativas. Essa estratégia de estudo causal (Gil, 2008Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (5ª ed.). São Paulo: Atlas.) é de grande valia para sistematizar fenômenos complexos em que o processo de mudanças pode ter diversas origens.

Metodologicamente também foi utilizada a abordagem descritiva (Richardson, 2017Richardson, R. J. (2017). Pesquisa social: métodos e técnicas (3ª ed.). São Paulo: Atlas.). Normalmente empregada em investigações das ciências humanas, ela é útil em esforços de observação de grupos específicos e fenômenos sociais e econômicos (Prodanov & Freitas, 2013Prodanov, C. C., & Freitas, E. C. (2013). Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas de pesquisa e do trabalho acadêmico (2ª ed.). Novo Hamburgo: Feevale.). Os resultados podem ser generalizados, ao serem amparados em conjuntos de dados e informações coletadas.

Para melhor conhecimento da realidade, e para que dúvidas fossem dirimidas, foram realizadas entrevistas com representantes da indústria da cana, como trabalhadores, sindicalistas e lideranças da indústria. Também foram ouvidos membros do poder público envolvidos com a inspeção rural, em particular auditores responsáveis pelas operações de campo e procuradores do trabalho que apresentaram ações contra empresas do setor3 3 Entrevistas foram realizadas em parceria com a jornalista Poliana Dallabrida. .

As entrevistas foram conduzidas de forma não estruturada, seguindo tópicos de discussão definidos previamente. A abordagem foi adotada porque não se pretendia gerar dados quantitativos a partir dos resultados, mas focar na interpretação das informações sobre condições de trabalho que já haviam sido obtidas junto a órgãos oficiais (Richardson, 2017Richardson, R. J. (2017). Pesquisa social: métodos e técnicas (3ª ed.). São Paulo: Atlas.). Todos os entrevistados mencionados no texto solicitaram condição de anonimato, razão pela qual não é indicada a fonte de informação.

Os registros dos autos de infração foram obtidos em uma página na internet (Brasil, 2020bBrasil. Ministério do Trabalho e Previdência. Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. (2020b). Banco de dados de autos de infração. Brasília. Recuperado em 9 de abril de 2020, de http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emitir.seam
http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emit...
), da Secretaria de Inspeção do Trabalho do atual Ministério do Trabalho e Previdência, destinada a empresas que buscam informações sobre os autos de infração trabalhista emitidos contra si. Foram obtidos dados dos 15.488 autos emitidos contra os 280 grupos empresariais autorizados pela ANP a processarem cana no país. Na definição dos grupos industriais foram utilizados os registros de autorização de 2020. Os autos correspondem a irregularidades observadas tanto em suas operações agrícolas quanto industriais. O período coberto na base construída é 2000–2019.

O processamento da informação da forma como é disponibilizada correspondeu a um trabalho relativamente árduo, que foi feito pelos autores computacionalmente. As informações foram organizadas a depender da justificativa legal para a infração, divididas por ano de emissão, e alocadas entre três regiões representativas da atividade canavieira do país, conforme a localização da unidade produtiva sancionada: o maior polo produtor, em São Paulo; o polo mais antigo, no Nordeste; e a região de expansão mais recente, a qual denominamos de Demais UFs (unidades da federação).

Como exemplo, a Raízen, maior grupo sucroenergético do país, possui unidades produtivas em São Paulo, Goiás e Mato Grosso do Sul. Os autos de infração emitidos para unidades localizadas em São Paulo ficaram alocados no estado. Já os autos destinados às unidades goiana e sul-mato-grossense da empresa foram posicionados na região chamada Demais UFs.

Um auto de infração trabalhista é um documento fiscal lavrado por um auditor fiscal do trabalho, uma função pública exclusivamente controlada pela administração federal. O documento traz a descrição da infração à legislação trabalhista identificada na empresa. Ele pode ser emitido tanto no local da inspeção quanto posteriormente, se houver algum risco para o auditor. Para cada auto, é fixado um valor de multa a ser pago pela empresa, que tem prazos para recorrer em um processo administrativo que tramita no próprio ministério.

O governo federal não concede acesso total às informações contidas em um auto de infração, mas apenas a algumas de suas informações principais. Por exemplo, para um auto emitido contra a Biosev S.A. em 2018, é possível identificar o CNPJ da unidade da empresa sancionada (15.527.906/0007-21), o número do processo (46300.002812/2017-62), o motivo da infração registrada (Registro e CTPS) e o dispositivo legal violado (Art. 41, ‘caput’ da CLT). É possível ainda consultar o andamento processual, mas não o valor da multa aplicada.

O governo federal também não oferece acesso a dados mais antigos, por exemplo, da década de 1990, quando boa parte das informações ainda não era digitalizada. Em trabalho de pesquisa anterior que também investigou a emissão de autos de infração no setor canavieiro, parte das informações sobre os autos teve de ser coletada diretamente dos livros de inspeção guardados em escritórios do então Ministério do Trabalho e Emprego, em São Paulo (Capitani et al., 2021Capitani, D. H. D., Gomes, M. S., Walter, A. C. S., & Leal, M. R. L. V. (2021). Condições de trabalho na atividade canavieira brasileira. Revista de Política Agrícola, 2, 64-77.).

O sistema de consulta do governo federal também não agrega autos de empresas que foram adquiridas por outros grupos ou que participaram de processos de fusão ou outros câmbios societários que alterassem seus dados fiscais. Por isso, há menos dados do que o esperado para São Paulo referentes à primeira década deste século, quando tal processo de fusões e aquisições ocorreu de maneira intensa.

Apesar de não compreender os produtores independentes de cana, que também são passíveis de serem fiscalizados e punidos com multas, a amostra analisada nesta pesquisa é relevante porque inclui os canaviais próprios cultivados pelas usinas e também as áreas arrendadas por elas, cobrindo uma área que compreende a maior parte da produção no país. Ainda sobre a amostra, vale dizer que estatísticas anteriores a 2000 e posteriores a 2019 não estavam disponíveis no sistema do governo na data em que elas foram coletadas (9 de abril de 2020).

Além dos autos de infração, esta pesquisa também utilizou registros da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), mantidos pelo Ministério do Emprego e Previdência. As duas bases fornecem dados socioeconômicos de ocupação e renda no setor da cana, que foram utilizados para contextualizar a análise sobre evolução das condições de trabalho. Não há, porém, um aprofundamento analítico sobre o tema, o que já foi feito em outros estudos na academia.

3. Resultados e discussão

3.1 Fiscalização trabalhista na atividade canavieira

Como dito anteriormente, foram emitidos 15.488 autos de infração trabalhista dentro da amostra dos 280 grupos empresariais canavieiros do país, nos vinte anos compreendidos entre 2000 e 2019. As empresas do setor estão expostas a um forte marco regulatório que busca regular as condições de trabalho. No período analisado, foram emitidos 57 tipos diferentes de autos, baseados tanto na CLT per se quanto nas normas regulamentadoras (NRs), que estabelecem regras sobre as mais diferentes questões, como operação de máquinas, ergonomia, trabalho em altura ou em área externa.

O auto de infração mais emitido no período estudado referiu-se à NR-31, com 3470 registros, o equivalente a 22% do total (Figura 2). Essa norma regulamentadora passou a valer em 2005. Sua origem está numa antiga reivindicação4 4 Íntegra da norma pode ser acessada em Brasil (2020a). da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que demandava regulamentação específica de segurança e saúde para os setores madeireiro e sucroenergético, devido ao elevado número de acidentes fatais registrados nessas atividades.

Figura 2
Total de autos emitidos entre 2000 e 2019 – por tipo de infração. Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência

Além da NR-31, outras 27 normas regulamentadoras foram utilizadas pelos fiscais para embasar autos de infração. As mais utilizadas foram a NR-7 (obrigação de manter permanente avaliação dos riscos de acidente de trabalho), NR-9 (exposição do trabalhador a riscos de agentes químicos, físicos e biológicos), NR-12 (risco na operação de máquinas, inclusive colhedeiras), NR-13 (risco em áreas de caldeiras, tanques e tubulações) e NR-24 (estrutura para segurança e conforto de trabalhadores, complementando a NR-31).

Entre os autos de infração embasados diretamente na CLT, estão violações ao direito de descanso semanal (Art. 71, que prevê a parada por ao menos 24 horas consecutivas) e jornada diária (Art. 59, caput c/c art. 61, sobre pagamento de horas extras). Merecem destaques, também, os recorrentes autos de infração relacionados a irregularidades na remuneração do trabalhador. Em 2013, foram registradas 294 infrações relacionadas a salários pagos pelas empresas da amostra (Art. 459, § 1º da CLT, sobre regras para pagamento), um recorde anual só superado pelas multas de NR-31. Há ainda recorrentes violações ao recolhimento de FGTS (Art. 23, § 1º, I da Lei nº 8.036/90).

A emissão de autos experimentou tendência de alta até 2013, quando passou a cair (Figura 3). Na primeira parte desse ciclo (2000-2013), o crescimento das multas acompanhou o aumento da área plantada de cana no país (+109%; Figura 4), e também respondeu a uma estratégia do governo federal de agir contra o problema para melhorar a imagem do etanol brasileiro no mundo, uma vez que via o ativo como um produto central em sua diplomacia econômica e ambiental – como explicou um diplomata envolvido com o tema no Itamaraty, que concedeu entrevista, mas pediu anonimato. Para isso, o governo criou novas normas e incentivou as ações de fiscalização.

Figura 3
Autos de infração emitidos, por ano, contra as empresas da amostra. Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência
Figura 4
Área plantada de cana (em hectares) entre 2000 e 2020. Fonte: Produção Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Produção agrícola municipal 1974-2020. Rio de Janeiro. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas
https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/t...

O lançamento da NR-31, em 2005, também ajudou a elevar os índices oficiais de inconformidade da indústria na cana no Brasil, na medida em que os fiscais passaram a autuar sistematicamente situações de risco à saúde e à segurança dos trabalhadores, como falta de água potável e ausência de sanitários ou de área para refeições no ambiente de trabalho. Na visão de dois auditores fiscais entrevistados no curso de pesquisa, a NR-31 tinha como objetivo elevar a pressão sobre as empresas no sentido de que elas evitassem violações graves à dignidade dos trabalhadores, as quais poderiam, inclusive, configurar situação análoga a escravidão. Em 2007, o número de autos baseados na NR-31 chegou a 419 (Figura 5), representando 42% de todos os 987 autos emitidos contra os 280 grupos econômicos analisados nesta pesquisa.

Figura 5
Principais infrações registradas contra as empresas da amostra, por ano. Fonte: A partir de dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência

No segundo ciclo (2014-2019), a emissão de autos na atividade canavieira caiu. A tendência é condizente com a estabilização da área plantada de cana (Figura 4), que ocorreu concomitantemente ao intenso avanço do corte mecanizado. Vale lembrar, esse processo eliminou 135 mil vagas entre os trabalhadores rurais da cana entre 2006 e 2019, a maioria deles vinculados ao corte manual (Tabela 1), atividade que justamente concentrava a ocorrência de irregularidades.

Esse segundo ciclo também foi marcado pela redução do ímpeto da fiscalização do trabalho5 5 Mais informações sobre como a crise fiscal atingiu a fiscalização estão disponíveis em Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (2018). . A crise fiscal vivida pelo país após 2015 reduziu as verbas disponíveis para a inspeção, a ponto de ações terem sido suspensas por falta de combustível em carros oficiais, como relatou em entrevista, em 2018, um coordenador da fiscalização baseado no interior de São Paulo. Houve episódios entre 2016 e 2018 nos quais os auditores dependeram de repasses feitos pelo Ministério Público do Trabalho para executarem ações fiscalizatórias, quando não tiveram de usar recursos próprios para pagar contas nas viagens.

Segundo dados do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait), diante de aposentadorias e afastamentos, apenas 2.154 das 6276 vagas existentes no quadro de auditores estavam preenchidas em janeiro de 2020. Concursos públicos para o cargo não são realizados desde 2013. A situação ficou ainda mais difícil quando os remanescentes realizaram greves e mobilizações entre 2015 e 2017, reivindicando melhores salários e condições de trabalho, o que prejudicou ainda mais os resultados das inspeções. Em 2020, como explicitou um outro auditor baseado em Brasília, a pandemia gerada pelo novo coronavírus levou muitos deles ao trabalho remoto e a abandonarem temporariamente as operações de campo, uma vez que se trata de uma carreira pública com muitos membros de idade mais avançada.

Para compreender melhor a evolução da emissão de autos, dois indicadores foram estimados. O primeiro, aqui chamado Índice A, indica o número total de autos por área plantada de cana, em todo o Brasil, por ano. O objetivo é entender se a emissão de autos cresceu ou diminuiu proporcionalmente ao avanço da área plantada, ou se teve uma dinâmica particular. Como pode ser observado na Figura 6, até 2013 o número de autos emitidos cresceu mais do que a área plantada, que também cresceu no período. A partir de 2014, mesmo com a estabilização da área plantada, a quantidade de autos emitidos passou a cair quase que continuamente.

Figura 6
Índice A: autos de infração por área plantada de cana (número de autos por milhão de hectares), em todo o Brasil. Fonte: A partir de dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência e da Produção Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Produção agrícola municipal 1974-2020. Rio de Janeiro. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas
https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/t...
.

Já o chamado Índice B é a relação entre o número de autos emitidos e a área com corte de cana mecanizado em todo o país. Os resultados apresentados na Figura 7 indicam que até 2010, com o aumento da área mecanizada (ver Figura 1), o número de autos aplicados pelos fiscais, por área mecanizada, tinha na média tendência de queda. No período de 2010 até 2013, o índice de emissão de autos se elevou, mesmo com a área de cana mecanizada saltando de 55,1% para 74,0% no país. Esse resultado sugere que a mecanização por si só não foi capaz de reduzir o número de inconformidades laborais na atividade canavieira.

Figura 7
Índice B: número total de autos de infração por área de cana com colheita mecanizada no Brasil (número de autos por milhão de hectares), no período 2007-2019. Fonte: A partir de dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência e da Conab

A literatura publicada tem refletido esse aspecto de que apenas a mecanização não é capaz de melhorar as taxas de conformidade laboral e a satisfação do trabalhador com seu emprego. Enquanto Scopinho et al. (1999)Scopinho, R. A., Eid, F., Vian, C. E. F., & Silva, P. R. C. (1999). Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Cadernos de Saude Publica, 15(1), 147-161. detalham os riscos enfrentados pelo trabalhador, Guanais (2010)Guanais, J. B. (2010). No eito da cana, a quadra é fechada: estratégias de dominação e resistência entre patrões e cortadores de cana em Cosmópolis (SP) (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. explica que a operação das máquinas que cortam cana devolveu ao usineiro o controle sobre a mão de obra, na medida em que a produtividade passa a responder ao ritmo da colhedeira, e não mais do cortador manual. Essa intensificação do ritmo de trabalho não só trouxe descontentamento ao trabalhador, como concluiu Favoretto (2014)Favoretto, T. M. (2014). Máquinas de empobrecimento: impactos da mecanização do corte da cana sobre trabalhadores canavieiros em Barrinha-SP (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas a partir de uma série de entrevistas de campo, mas também gerou, segundo Rodrigues (2014)Rodrigues, D. A. (2014). Acidentes graves fatais no trabalho de corte mecanizado de cana-de-açúcar: o olhar através do método mapa (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu., acidentes mais graves e até fatais na operação agrícola.

Entrevistados no curso desta pesquisa, três trabalhadores canavieiros envolvidos com operação de maquinário na região de Bebedouro (SP) e uma liderança sindical de Guariba (SP) destacam o desalento trazido a eles e aos colegas pela redução da oferta de vagas em companhias sucroenergéticas. Ainda que cursos de requalificação profissional tenham sido oferecidos pelas empresas e pelo Estado, muitos não tinham condições de fazê-los, diante do baixo nível escolar e também da necessidade de se manter empregado e sustentar a família. Eles ainda reclamaram de que o eventual aumento de salário ocorrido em áreas mecanizadas pouco compensava o fato de que, no corte manual, ganhar mais também era uma opção, se o trabalhador, por sua própria vontade, intensificasse o ritmo do corte da cana.

Para analisar mais detalhadamente o perfil e a dinâmica de emissão de autos de infração, os 280 grupos empresariais da amostra foram divididos em três grandes áreas, tendo por referência a base de operação: São Paulo, o maior polo produtor do país, com 101 grupos; Nordeste, o polo mais tradicional do país, com 57 grupos; e Demais UFs, que é a principal área de expansão das usinas greenfield, com 122 grupos. Os grupos localizados em São Paulo receberam 2.838 autos de infração entre 2000 e 2019, tanto para suas operações agrícolas quanto industriais. Os grupos do Nordeste, 4.328 autos. E, finalmente, os grupos das Demais UFs, 8.322 autos, sempre no mesmo período.

3.2 Resultados da fiscalização em São Paulo

O estado de São Paulo é o maior produtor de cana-de-açúcar do país. Em 2020, a área plantada chegou a 5,51 milhões de hectares, respondendo por 62% das áreas de lavoura do estado, e a colheita atingiu 431,52 milhões de toneladas (+128% entre 2000 e 2020). Nas duas últimas décadas, São Paulo viveu forte transformação em seu parque sucroenergético, com a mecanização de 98% da lavoura. Esse processo levou a uma enorme perda de vagas no trabalho rural, com 53,9 mil vagas fechadas entre 2006 e 2019 (56,9% do total em 2006, Tabela 3), segundo dados da Rais e do Caged.

Tabela 3
Número e variação de pessoas ocupadas em grupos e subgrupos profissionais em empresas sucroenergéticas, em São Paulo, de 2006 a 2019

Outro movimento intenso registrado em São Paulo foi a entrada de grupos estrangeiros no setor. Entre os maiores negócios realizados, a Louis Dreyfus Commodities (LDC) comprou uma série de usinas paulistas na primeira década deste século, a maior delas a Santelisa Vale, localizada em Sertãozinho. O grupo passou a se chamar Biosev e se tornou um dos maiores do país. Em 2011, foi a vez da Cosan criar uma joint-venture com a petroleira Shell. Nasceu a Raízen, atualmente a maior fabricante brasileira de etanol de cana-de-açúcar e a maior exportadora individual de açúcar de cana no mercado global. Ao lado desses grupos, muitos outros fizeram investimentos na atividade canavieira paulista, como BP, Cofco, Tereos, Bunge e Cargill. Em 2021, a Raízen absorveu as operações da Biosev.

O fato de ter havido tantas mudanças societárias nas empresas paulistas “limpou” o histórico de multas trabalhistas de muitas operações. Como são grupos formalmente mais jovens, apenas 108 autos aparecem registrados entre 2000 e 2010. A partir de 2011, porém, com o mercado de fusões e aquisições mais estável, o número de autos de infrações cresceu – foram registrados 2.730 deles entre 2011 e 2019 (Figura 8). Por causa das intensas mudanças societárias, São Paulo apresenta um baixo número de infrações na comparação com as outras regiões: 28,1 autos por grupo empresarial, no período de vinte anos. É muito menos do que o visto no Nordeste (75,9) e nas Demais UFs (68,2).

Figura 8
Autos de infração emitidos em São Paulo e no Brasil, no período 2000-2019. Fonte: A partir de dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência

Assim como no restante do país, o auto mais emitido em São Paulo corresponde a violações da NR-31: foram 1.205 multas associadas entre 2000 e 2019, o equivalente a 21,6% do total. Os fiscais puniram empresas que não forneciam água potável, não dispunham de sanitários ou áreas de vivência para os trabalhadores, inclusive aqueles envolvidos com o corte mecanizado. O transporte de trabalhadores através de tratores, principalmente na época do plantio, e a exposição irregular a agrotóxicos também foram questões recorrentes.

No caso específico dos empregados envolvidos com a operação mecanizada, houve muitos registros de autos baseados na NR-12 – 249 no total. Entretanto, esta norma tem sido utilizada não apenas por riscos identificados em máquinas colhedeiras, mas também no maquinário existente no laboratório das usinas para medir o teor de sacarose da cana, como picador, desfibrador e betoneira.

Por fim, outros dois autos relacionados ao horário de trabalho se destacaram. Houve 423 registros relacionados à não concessão de descanso para o trabalhador, e outros 255 relacionados a irregularidades na jornada de trabalho. Um sindicalista da região de Ribeirão Preto explicou que, muitas vezes, usinas obrigam os trabalhadores a finalizarem o corte de determinados talhões antes de poderem ir para a casa, mesmo que intempéries climáticas ou outros problemas interfiram no andamento da atividade.

3.3 Resultados da fiscalização no Nordeste

A Região Nordeste se destaca na emissão de autos lastreados na NR-31, quando comparada ao restante do Brasil. Houve registro de 1.205 multas do tipo entre 2000 e 2019, o equivalente a 27,8% do total de autos emitidos na região. Esse índice ficou em 19,8% no grupo Demais UFs, 21,6% em São Paulo, e 22,4% na média do país. A região apresenta taxas de mecanização mais baixas e, portanto, um maior contingente de trabalhadores envolvidos com o corte manual, onde se concentram irregularidades de saúde e segurança. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (2021)Companhia Nacional de Abastecimento – Conab. (2021). Boletim da safra de cana-de-açúcar. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana
https://www.conab.gov.br/info-agro/safra...
, na safra 2019-2020 menos de 25% da colheita de cana no Nordeste foi feita com máquinas, quando a média nacional foi 89,2% (foi quase 98% em São Paulo).

Segundo dados oficiais (Tabela 4), o número de trabalhadores na mecanização subiu apenas 3,4% na região entre 2006 e 2019, enquanto no país a alta foi de 102,4%. Já o número de empregados envolvidos com as chamadas operações canavieiras, como o corte manual, caiu 39,5%, abaixo do recuo registrado nacionalmente, de 44,6%.

Tabela 4
Número e variação de pessoas ocupadas em grupos e subgrupos profissionais em empresas sucroenergéticas, no Nordeste, de 2006 a 2019

O Nordeste é a mais antiga região produtora de cana-de-açúcar do país, remontando ao período do início da colonização portuguesa, no século XVI (Lima, 2021Lima, J. R. T. (2021). Colheita mecanizada da cana-de-açúcar: o que nos revelam os especialistas do setor sobre as motivações e impeditivos da sua adoção na realidade canavieira de Alagoas? Estudos Sociedade e Agricultura, 29(1), 219-245.). Os estados que lideram a produção são Alagoas e Pernambuco, onde a atividade, apesar de responder com dificuldades às pressões modernizantes do século XXI, permanece como importante fonte geradora de emprego e renda para a sociedade local.

Em Alagoas, a área plantada foi de 270,53 mil hectares em 2020, para uma colheita de 15,29 milhões de toneladas (queda de 45% em relação ao ano 2000). Ali, a colheita mecanizada ficou em 22,2% do total na safra 2020/21 (Companhia Nacional de Abastecimento, 2021Companhia Nacional de Abastecimento – Conab. (2021). Boletim da safra de cana-de-açúcar. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana
https://www.conab.gov.br/info-agro/safra...
). Já em Pernambuco, a área plantada atingiu 261,08 mil hectares em 2020, com uma produção de 14,82 milhões de toneladas (menos 2% sobre o registrado em 2000). O índice de mecanização é ínfimo, avaliado em 1,2% no período 2020/21. Entre os fatores responsáveis por esse cenário, estão a disponibilidade de mão de obra barata, dificuldades econômicas enfrentadas por usinas para investir nas máquinas, e a topografia irregular das áreas onde está instalada boa parte dos canaviais (Lima, 2021Lima, J. R. T. (2021). Colheita mecanizada da cana-de-açúcar: o que nos revelam os especialistas do setor sobre as motivações e impeditivos da sua adoção na realidade canavieira de Alagoas? Estudos Sociedade e Agricultura, 29(1), 219-245.).

Além da NR-31, os autos de infração mais emitidos no Nordeste, entre 2000 e 2019, contra os 57 grupos identificados na região foram devido ao descanso (439 multas), FGTS (338), jornada de trabalho (251) e remuneração (227). A tendência de emissão de autos é similar à registrada no país, com elevação até 2013 (ainda que registrando queda substancial em 2010 e 2011) e recuo no período de 2014 a 2019 (Figura 9).

Figura 9
Autos de infração emitidos no Nordeste e no Brasil, no período 2000-2019. Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência (Brasil, 2020bBrasil. Ministério do Trabalho e Previdência. Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. (2020b). Banco de dados de autos de infração. Brasília. Recuperado em 9 de abril de 2020, de http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emitir.seam
http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emit...
).

3.4 Resultados da fiscalização nas Demais UFs

Na região definida no escopo desta pesquisa como Demais UFs, reunindo todos os estados brasileiros à exceção de São Paulo e dos Estados nordestinos, Minas Gerais figura como maior produtor de cana-de-açúcar, com destaque para regiões de expansão da cultura no chamado Triângulo Mineiro, fronteira com o norte do estado de São Paulo. Minas Gerais registrou 1,00 milhão de hectares plantados em 2020, para uma produção de 78,38 milhões de toneladas (+318% entre 2000 e 2020).

O segundo maior produtor do grupo é Goiás, com 937,63 milhões de hectares cultivados em 2020 e uma colheita de 76,48 milhões de toneladas de cana (+656% entre 2000 e 2020). E em terceiro lugar posiciona-se Mato Grosso do Sul, com área plantada de 666,44 milhões de hectares e uma produção de 47,89 milhões de toneladas (+724% entre 2000 e 2020).

Polo de expansão canavieira, sobretudo nas áreas mais planas do Cerrado de Minas Gerais e dos estados do centro-oeste, a região Demais UFs foi o destino de muitos investimentos para a construção de novas usinas, que já nasciam com sua operação agrícola mecanizada. Em Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul, a LCD construiu uma nova unidade da Biosev, hoje em posse da Raízen. A British Petroleum (BP), ao lado de sócios brasileiros, comprou a usina Tropical, em Edeia, em Goiás, e mais tarde ampliaria sua participação no mercado com a compra do grupo CNAA, em 2011, que possuía plantas em Minas Gerais e Goiás.

Por conta da expansão mais recente da atividade canavieira, muitas vezes implantada em operações mecanizadas desde seu início, a atividade não dependeu de grandes contingentes de trabalhadores rurais, e incentivou processos migratórios em uma escala mais suave do que a verificada no interior de São Paulo. No acumulado entre 2006 e 2019, a região ampliou o número de vagas no setor em 25,2% (Tabela 5) e, em estados como Mato Grosso do Sul, o contingente de empregados registrados nas tarefas mecanizadas chega a ser maior do que na atividade denominada canavieira (4.256 ante 2.679 em 2019, respectivamente).

Tabela 5
Número e variação de pessoas ocupadas em grupos e subgrupos profissionais em empresas sucroenergéticas, em Demais UFs, de 2006 a 2019

No que diz respeito aos autos de infração (Figura 10), os estados da região Demais UFs são base do maior número de grupos econômicos (122) entre os três blocos selecionados no escopo desta pesquisa, e também receberam o maior número de autos de infração (8.322). O alto índice de mecanização no corte não impediu que a infração mais recorrente se relacionasse à NR-31. Foram 1.652 multas do tipo dentre 2000 e 2019, o equivalente a 19,8% do total de autos – só um pouco abaixo do índice verificado em São Paulo (21,6%) e no Brasil (22,4%).

Figura 10
Autos de infração emitidos em Demais UFs e no Brasil, no período 2000-2019. Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência (Brasil, 2020bBrasil. Ministério do Trabalho e Previdência. Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. (2020b). Banco de dados de autos de infração. Brasília. Recuperado em 9 de abril de 2020, de http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emitir.seam
http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emit...
).

Entre os autos de infração embasados nas normas regulamentadoras mais emitidos na região Demais UFs, além da NR-31, estão as NR-7 (336 vezes), NR-9 (467), NR-12 (695), NR-13 (285) e NR-24 (275). Já entre os autos embasados diretamente na CLT, estão violações ao direito de descanso semanal (881 vezes) e jornada diária (562). Vale destacar, também, os recorrentes autos de infração relacionados a irregularidades no pagamento de salário do trabalhador, com multas referentes à remuneração (425) e à quitação do FGTS (228).

O fato de ser uma região de ocupação mais recente, em grande parte com operações já mecanizadas na origem, não impediu que os grupos econômicos baseados nas Demais UFs cometessem um número substancial de infrações às leis trabalhistas. Como apresentado, entre as três regiões estudadas é onde foram registradas mais irregularidades, e a região onde ocorreu o pico do número de autuações em 2013.

Em 2011, 39 pessoas que operavam máquinas colhedeiras foram resgatadas6 6 Mais informações em Pyl (2011). de condição análoga à de escravo, pela fiscalização, em uma fazenda na cidade de Goiatuba (GO). Os trabalhadores cumpriam jornadas de 24 horas ininterruptas, que, somadas às três horas do percurso até o local, totalizavam 27 horas de trabalho. O grupo intercalava as longas jornadas com 21 horas de descanso. A fazenda fornecia matéria-prima para uma usina do grupo Vital Renewable Energy Company (VREC).

Proporcionalmente, o maior número de autos nas Demais UFs acaba por definir mais claramente a tendência verificada no conjunto do país, de crescimento até 2013, e queda a partir de então. No período entre 2014 e 2019, o número de autos de infração por NR-31 foi ainda o mais recorrente, com 281 multas, ficando bem próximo do verificado nas emissões por NR-12, aplicadas 271 vezes. Como mencionado, a NR-12 regula a operação de máquinas e é utilizada para identificar irregularidades em operações mecanizadas.

Chama atenção nas Demais UFs a emissão de autos referentes à NR-9, por 172 vezes no período entre 2014 e 2019. Essa norma concede a um engenheiro ou técnico de segurança do trabalho a tarefa de elaborar um plano de ação que preserve a saúde e a integridade do trabalhador, o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA). Usinas multadas ou apresentavam falhas nesse plano, ou sequer possuíam um. No mesmo período também foram identificadas 91 multas baseadas na NR-7, que trata da saúde dos empregados. As empresas devem manter atualizado o chamado Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional (PCMSO), realizando exames médicos periódicos. Em caso de inconsistências, também podem ser autuadas pela fiscalização do trabalho.

Conclusões

Este artigo está baseado no inventário de multas trabalhistas emitidas entre 2000 e 2019 contra os 280 grupos empresariais autorizados pela ANP a operarem usinas de cana no país. Foram identificados dois períodos distintos: num primeiro, entre 2000 e 2013, houve aumento da emissão de autos de infração trabalhistas, enquanto a partir de 2014 o número de multas aplicadas passou a cair.

Uma conclusão geral a partir da análise dos autos de infração trabalhista emitidos contra a indústria sucroenergética indica que a mecanização da colheita ajudou a reduzir as irregularidades relacionadas à saúde e à segurança do trabalhador canavieiro.

Um dos fatores que explicam a tendência de aumento da emissão de autos no primeiro período é a expansão dos canaviais e do número de trabalhadores no setor. Apenas entre 2006 e 2011, o total de empregados formais em empresas sucroenergéticas cresceu 22%, mas em um período um pouco maior – 2006 a 2013 – o número de trabalhadores no campo caiu 20,5%. No entanto, ainda que a emissão total de autos tenha crescido entre 2000 e 2013, proporcionalmente ela caiu em associação a irregularidades em saúde e segurança, um tema coberto pela NR-31. A emissão de autos desse tipo recuou de um pico de 42% do total de multas aplicadas, em 2007, para 19%, em 2013.

Isso ocorreu quando a mecanização do corte da cana já avançava significativamente no país. Pode-se supor, portanto, que esse processo ajudou a evitar um aumento ainda maior na emissão de autos no primeiro período.

A partir de 2014, a emissão de autos começou a cair em números absolutos para todos os tipos de irregularidades: descanso, jornada de trabalho, remuneração, saúde e segurança, operação de máquinas, entre outros. O avanço da mecanização, que chegou na média nacional a 91% na safra 2019/20, é mais uma vez um dos fatores que explicam essa tendência, em especial no contexto em que a área de cana no país se estabilizou. Entre 2013 e 2018, mais de 70 mil vagas do subgrupo canavieiro (trabalho no campo) foram eliminadas no setor, o equivalente a 30% do registrado em 2013.

Além do avanço da mecanização, a queda abrupta na aplicação de multas é também explicada por agentes do setor como fruto da redução da força da fiscalização rural no país, diante da crise fiscal do governo. Houve restrições materiais e humanas para o trabalho de inspeção, indicando que irregularidades podem ter acontecido, ainda que em intensidade menor do que no passado, mas faltaram fiscais para registrá-las. Ressalte-se que violações à legislação continuam a ser configuradas mesmo em áreas mecanizadas, como tem sido apontado na literatura, ou ainda em atividades – como o plantio da cana – e espaços – indústrias e escritórios – que não são afetados diretamente pelas máquinas colhedeiras.

Os resultados da pesquisa aqui apresentada têm a limitação da base de dados publicamente disponibilizada, que é incompleta quanto a informações das infrações, e que elimina o registro dos autos de infração de companhias que deram origem a um grupo resultante de fusões e aquisições. Para contornar o problema, seria preciso reconstruir a base de dados de trabalho a partir da identificação de todos os grupos que deram origem ao grupo objeto de análise. Mesmo com limitações, ao trazerem detalhes sobre tipo e prevalência de irregularidades, os dados permitem compreender melhor os efeitos de transformações recentes no setor sucroenergético, colaborando para que o debate sobre sustentabilidade social seja feito sobre bases mais sólidas.

  • 1
    A nova metodologia adotada pela Rais e pelo Caged, a partir de 2006, recomenda que a data inicial para comparações dentro da série histórica comece nesse mesmo ano.
  • 2
    Tabela construída com base na metodologia do boletim Ocupação formal no setor sucroalcooleiro em São Paulo, projeto de extensão da Unesp Jaboticabal (Universidade Estadual Paulista, 2021Universidade Estadual Paulista – Unesp. (2021). Boletim ocupação formal no setor sucroalcooleiro em São Paulo, projeto de extensão da Unesp Jaboticabal. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.fcav.unesp.br/#!/departamentos/economia-rural/docentes/jose-giacomo-baccarin/boletim-ocupacao-sucroalcooleira-em-sao-paulo/
    https://www.fcav.unesp.br/#!/departament...
    ).
  • 3
    Entrevistas foram realizadas em parceria com a jornalista Poliana Dallabrida.
  • 4
    Íntegra da norma pode ser acessada em Brasil (2020a)Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência. (2020a). Norma regulamentadora nº 31 (NR-31). Brasília. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/norma-regulamentadora-no-31-nr-31
    https://www.gov.br/trabalho-e-previdenci...
    .
  • 5
    Mais informações sobre como a crise fiscal atingiu a fiscalização estão disponíveis em Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (2018)Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT. (2018). Número de ações contra trabalho escravo cai 23,5% em 1 ano; total de resgatados é o menor desde 1998. Brasília. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.sinait.org.br/site/noticia-view?id=15286%2Fnumero+de+acoes+contra+trabalho+escravo+cai+23%2C5%25+em+1+ano%3B+total+de+resgatados+e+o+menor+desde+1998
    https://www.sinait.org.br/site/noticia-v...
    .
  • 6
    Mais informações em Pyl (2011)Pyl, B. (2011, dezembro 20). Operação inédita flagra escravidão em colheita mecanizada. Repórter Brasil. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://reporterbrasil.org.br/2011/12/operacao-inedita-flagra-escravidao-em-colheita-mecanizada/
    https://reporterbrasil.org.br/2011/12/op...
    .
  • Como citar: Gomes, M., & Walter, A. (2023). Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, 61(2), e257923. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.257923pt
  • JEL Classification: J81, Q16

Referências

  • Almeida, A. A. (2011). Marcados pela desigualdade: o trabalho escravo na cana-de-açúcar no Estado de São Paulo (1995-2010) (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Alves, F. (2006). Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, 15(3), 90-98.
  • Baccarin, J. G. (2017). Mudanças administrativas e tecnológicas de empresas sucroalcooleiras e os impactos na ocupação canavieira no estado de São Paulo, Brasil. In 55º Congresso da Sober Santa Maria.
  • Barreto, M. J. (2018). Novas e velhas formas de degradação do trabalho no agrohidronegócio canavieiro nas Regiões Administrativas de Presidente Prudente e Ribeirão Preto (SP) (Tese de doutorado). Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.
  • Borjas, G. J. (2012). Economia do trabalho (5ª ed.). Nova Iorque: AMGH Editora.
  • Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência. (2020a). Norma regulamentadora nº 31 (NR-31). Brasília. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/norma-regulamentadora-no-31-nr-31
    » https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/norma-regulamentadora-no-31-nr-31
  • Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência. Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. (2020b). Banco de dados de autos de infração. Brasília. Recuperado em 9 de abril de 2020, de http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emitir.seam
    » http://cdcit.mte.gov.br/inter/cdcit/emitir.seam
  • Campos, M. R. (2019). Formas contemporâneas de trabalho escravo no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Franca.
  • Capitani, D. H. D., Gomes, M. S., Walter, A. C. S., & Leal, M. R. L. V. (2021). Condições de trabalho na atividade canavieira brasileira. Revista de Política Agrícola, 2, 64-77.
  • Companhia Nacional de Abastecimento – Conab. (2021). Boletim da safra de cana-de-açúcar. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana
    » https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana
  • Cover, M., & Menezes, M. A. (2015). Trabalhadores migrantes nos canaviais do Estado de São Paulo: formas de resistências e movimentos espontâneos. In A. Riella & P. Mascheroni (Eds.), Asalariados rurales en América Latina (pp. 213-235). Buenos Aires: Clacso.
  • Eid, F. (1996). Progresso técnico na indústria sucroalcooleira. Informações Econômicas, 26(5), 29-38.
  • Favoretto, T. M. (2014). Máquinas de empobrecimento: impactos da mecanização do corte da cana sobre trabalhadores canavieiros em Barrinha-SP (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas
  • Figueira, R. R., & Prado, A. A. (2009). O trabalho escravo por dívida: discussões e persistência. In M. H. Versiani, I. Maciel & N. M. Santos (Eds.), Ciclo cidadania em debate Rio de Janeiro: Jauá.
  • Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (5ª ed.). São Paulo: Atlas.
  • Gonzales, E. N., & Bastos, M. I. (1977). O trabalho volante na agricultura brasileira: capital e trabalho no campo São Paulo: Hucitec.
  • Graziano da Silva, J. (1980). Progresso técnico e relações de trabalho na agricultura paulista (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Guanais, J. B. (2010). No eito da cana, a quadra é fechada: estratégias de dominação e resistência entre patrões e cortadores de cana em Cosmópolis (SP) (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Hoffmann, R., & Oliveira, F. C. R. (2007). Remuneração e características das pessoas ocupadas na agroindústria canavieira no Brasil, de 2002 a 2006 Piracicaba: Gemt Esalq-USP.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Produção agrícola municipal 1974-2020. Rio de Janeiro. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas
    » https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas
  • Instituto de Economia Agrícola – IEA. (2014). Protocolo agroambiental do setor sucroenérgetico paulista: dados consolidados das safras 2007/08 a 2013/14. São Paulo. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de http://www.iea.sp.gov.br/Relat%C3%B3rioConsolidado1512.pdf
    » http://www.iea.sp.gov.br/Relat%C3%B3rioConsolidado1512.pdf
  • Lima, J. R. T. (2021). Colheita mecanizada da cana-de-açúcar: o que nos revelam os especialistas do setor sobre as motivações e impeditivos da sua adoção na realidade canavieira de Alagoas? Estudos Sociedade e Agricultura, 29(1), 219-245.
  • Maeda, F. (2012). Influências do Protocolo Ambiental do setor sucroalcooleiro na produção de açúcar, álcool e energia: estudo de caso em uma usina no interior de São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu.
  • Mendes, M. M. B. (2007). Justiça do trabalho e mercado de trabalho: trajetória e interação judiciário e a regulação do trabalho no Brasil (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Moraes, M. A. F. D. (2007). O mercado de trabalho da agroindústria canavieira: desafios e oportunidades. Economia Aplicada, 11(4), 605-619.
  • Oliveira, M. A. (2003). Tendências recentes da negociação coletiva no Brasil. In M. W. Proni & W. Henrique (Eds.), Trabalho, mercado e sociedade Campinas: Unesp.
  • Prodanov, C. C., & Freitas, E. C. (2013). Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas de pesquisa e do trabalho acadêmico (2ª ed.). Novo Hamburgo: Feevale.
  • Pyl, B. (2011, dezembro 20). Operação inédita flagra escravidão em colheita mecanizada. Repórter Brasil Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://reporterbrasil.org.br/2011/12/operacao-inedita-flagra-escravidao-em-colheita-mecanizada/
    » https://reporterbrasil.org.br/2011/12/operacao-inedita-flagra-escravidao-em-colheita-mecanizada/
  • Richardson, R. J. (2017). Pesquisa social: métodos e técnicas (3ª ed.). São Paulo: Atlas.
  • Rodrigues, D. A. (2014). Acidentes graves fatais no trabalho de corte mecanizado de cana-de-açúcar: o olhar através do método mapa (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual Paulista, Botucatu.
  • Santos, A. M. F. T. (2015). Cana doce, trabalho amargo: o trabalho escravo na expansão territorial do agronegócio sucroenergético no estado de Goiás (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
  • Scopinho, R. A., & Valarelli, L. L. (1995). Modernização e impactos sociais: o caso da agroindústria sucroalcooleira da região de Ribeirão Preto (SP). Rio de Janeiro: Fase.
  • Scopinho, R. A., Eid, F., Vian, C. E. F., & Silva, P. R. C. (1999). Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Cadernos de Saude Publica, 15(1), 147-161.
  • Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT. (2018). Número de ações contra trabalho escravo cai 23,5% em 1 ano; total de resgatados é o menor desde 1998. Brasília. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.sinait.org.br/site/noticia-view?id=15286%2Fnumero+de+acoes+contra+trabalho+escravo+cai+23%2C5%25+em+1+ano%3B+total+de+resgatados+e+o+menor+desde+1998
    » https://www.sinait.org.br/site/noticia-view?id=15286%2Fnumero+de+acoes+contra+trabalho+escravo+cai+23%2C5%25+em+1+ano%3B+total+de+resgatados+e+o+menor+desde+1998
  • Universidade Estadual Paulista – Unesp. (2021). Boletim ocupação formal no setor sucroalcooleiro em São Paulo, projeto de extensão da Unesp Jaboticabal. Recuperado em 3 de novembro de 2021, de https://www.fcav.unesp.br/#!/departamentos/economia-rural/docentes/jose-giacomo-baccarin/boletim-ocupacao-sucroalcooleira-em-sao-paulo/
    » https://www.fcav.unesp.br/#!/departamentos/economia-rural/docentes/jose-giacomo-baccarin/boletim-ocupacao-sucroalcooleira-em-sao-paulo/
  • Veiga Filho, A. A. (1998). Mecanização da colheita da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo: uma fronteira de modernização tecnológica da lavoura (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Vian, C. E. F., & Belik, W. (2003). Os desafios para a reestruturação do complexo agroindustrial canavieiro do Centro-Sul. Economía, 4(1), 153-194.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2021
  • Aceito
    27 Fev 2022
Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural Av. W/3 Norte, Quadra 702 Ed. Brasília Rádio Center Salas 1049-1050, 70719 900 Brasília DF Brasil, - Brasília - DF - Brazil
E-mail: sober@sober.org.br