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A dívida externa: mercado ou conflito* * Traduzido por Fernando de Arruda Sampaio

External debt: market and conflict

RESUMO

Este ensaio sugere que a dívida externa dos países latino-americanos deve ser considerada como uma forma de conflito. Isso significa que o confronto de poderes relativos deve ser reconhecido. Como conflito, torna-se um processo no qual as relações de credores e devedores se desenvolvem por meio do estabelecimento de diferentes estratégias. O tratamento convencional do endividamento externo o toma como problema e busca sua solução. Como tal, a sua natureza tende, em última análise, a ser considerada como um fenômeno de mercado. Propõem-se então medidas técnicas e administrativas para fazer face à “crise da dívida”. Mas, de fato, a negociação torna-se a principal característica do conflito. Cria-se então uma situação de dissuasão financeira para evitar a ruptura dos fluxos financeiros internacionais. O poder desigual dos participantes fixa os limites do confronto, assim como os incentivos para a cooperação.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; crise da dívida

ABSTRACT

This essay suggests that the external debt of the Latin-American countries should be considered as a form of conflict. This means that the confrontation of relative powers has to be acknowledged. As a conflict, it turns into a process in which the relations of creditors and debtors develop through the establishment of different strategies. Conventional treatment · of external indebtedness takes it as a problem and searches for its solution. As such, its nature tends ultimately to be considered as a market phenomenon. Technical and administrative measures are then proposed to cope with the “debt crisis •. But in fact, negotiation becomes the main characteristic of the conflict. A situation of financial deterrence is then created to prevent a rupture in international financial flows. The unequal power of the participants fixes the limits of the confrontation as well as the incentives for cooperation.

KEYWORDS:
External debt; debt crisis

Passados quase cinco anos desde o desencadeamento da assim chamada “crise da dívida”, sua administração não permite que nos furtemos à imagem de estarmos instalados em um labirinto. O rumo assumido pelos acontecimentos econômicos e políticos na América Latina lembra as surpresas propositais de um labirinto. As dificuldades da política econômica, o comportamento dos diversos agentes sociais, o retrocesso na atividade produtiva-com a significativa deterioração dos níveis de vida da maioria da população -, o enfrentamento com os atores externos e os desafios aos regimes políticos são traços das sociedades da região que tornam cada vez mais complexa a crise atual.

A comprovação das deteriorações físicas e sociais e a constatação dos desafios políticos colocados obrigam a uma reflexão renovada acerca dos acontecimentos e dos conhecimentos de que dispomos.

Tanto a nível da gestão político-administrativa da questão da dívida externa quanto a nível da análise do tema, grande parte dos esforços tem sido orientada por uma lógica que se expressa em uma equação cujos termos são, de um lado, a especificação do problema e, do outro, o levantamento de suas possíveis soluções. Nesse âmbito tem surgido uma série - que cresce constantemente - de propostas para o enfrentamento do problema da dívida. Estas “soluções” provêm de entidades governamentais, organismos internacionais, bancos transnacionais e setores acadêmicos (tanto ortodoxos quanto não-ortodoxos).

Quais as implicações da equação problema - solução? Não questionarei aqui a própria possibilidade de um problema ser bem formulado e disto se poder derivar sua solução. Em todo caso, parece-me necessário afirmar que um problema constitui um obstáculo, tanto para o desenvolvimento das relações sociais (como no caso da dívida externa), como para o próprio avanço do pensamento. O ponto concreto que se pode propor a esse respeito consiste em indagar se o marco da equação formulada pode ser definido antes de definir o problema a ser examinado. Uma boa formulação do problema não garante sua solução, ainda que possa constituir um grande auxílio.

Cabe perguntarmo-nos se no transcurso destes anos logramos identificar os elementos constitutivos do fenômeno do endividamento, se conseguimos apreendê-lo por sua raiz e se as soluções que têm sido propostas expressam posições políticas e técnicas congruentes. Uma proposta para a discussão consiste em indagar se formular a questão da dívida externa como um problema satisfaz às exigências analíticas postas pela situação de crise atualmente vigente.

Proponho que, concebida como um problema, a dívida externa corresponda a uma questão que se tem que resolver. Pensar a dívida como um problema significa passar por três etapas: a primeira corresponde à constatação de uma situação visível; a segunda, a seu discernimento, vale dizer, à construção do objeto; e a terceira, ao delineamento dos problemas concretos em estudo. A partir deste último momento pode-se, então, formular as possíveis soluções. Uma das dificuldades que surgem no transcurso desse procedimento consiste em que em cada um dos passos assinalados perdem-se e ganham-se elementos analíticos para o entendimento do fenômeno do endividamento. Em todo caso, o que resulta é uma determinada formulação do problema cujo objetivo é permitir a proposição de uma solução.

Uma forma alternativa de encarar o fenômeno econômico e político da dívida consiste em concebê-lo como uma situação de conflito, ou seja, como uma luta entre poderes relativos. Assim abre-se à possibilidade de pensar em termos de uma confrontação, incorporando-se as posições e propostas estratégicas dos atores envolvidos. Encarar a dívida externa como um conflito permite tornar explícitos os antagonismos que se desenvolvem em várias frentes e nos quais participam diferentes atores, que têm interesses e necessidades distintos. É no caráter conflituoso da questão da dívida que reside seu desenvolvimento como um processo, e esse caráter confere certas características a seu estudo-o que não significa que necessariamente (e isto é importante) o conflito possa ser superado ou resolvido.

O conflito da dívida define diversos espaços. O mais aparente e que tem sido mais explorado publicamente é o do enfrentamento entre os devedores e seus credores externos. Outro, geralmente evitado, consiste na disputa criada entre os diversos setores dentro das fronteiras nacionais. Por outro lado, o conflito abrange várias esferas das relações sociais; afeta sensivelmente a produção e a distribuição e exacerba os processos políticos. A noção de conflito permite incorporar essas dimensões e tratá-las - talvez de maneira extremada - segundo a concepção de que não condizem com uma formulação de soluções, mas adequam-se a um exame da determinação das estratégias que surgem no decorrer do processo.

Quero sugerir que abordar o fenômeno do endividamento externo enquanto um conflito, com diversas expressões econômicas e políticas, conduz a reflexão por rumos distintos e mais ricos em possibilidades analíticas, precisamente por se poder integrar explicitamente as posturas e ações estratégicas dos atores. Essas posições estão relacionadas com as capacidades diferenciadas e possibilidades relativas de negociação dos diversos poderes. Um conflito, como já assinalamos, não tem necessariamente uma solução, e menos ainda uma de tipo quantitativo; portanto, o componente técnico da administração do processo tende a tornar-se menos importante, ainda que, é claro, não desapareça. Intervém, em compensação, outra gama de considerações um tanto alheias ao raciocínio econômico convencional, mais ainda daquele dotado de um viés tradicional que tende a formalizar as situações como problemas e colocá-las em termos de uma solução necessária. As condições de um conflito impõem a ação negociadora e requerem a incorporação de noções tais como as relações de poder entre as partes que se enfrentam. O conflito se dá entre interesses diferentes e não entre distintas racionalidades; o conflito é racionalizado ex post e com um alto grau de influência ideológica.

Na literatura econômica mais recente sobre o tema da dívida existe um grande número de trabalhos que analisam a concessão de empréstimos internacionais pelos bancos privados. Nestes trabalhos incorpora-se explicitamente o elemento de risco acarretado pela possibilidade de que os devedores repudiem unilateralmente seus compromissos de pagamento. Disto deriva-se um conjunto de argumentos, que é importante para o exame da forma pela qual são determinadas a oferta e a demanda de empréstimos para os países em desenvolvimento. Estas considerações de natureza teórica se tornam especialmente relevantes no quadro de uma crise como a atual, em que se contrapõem as posições dos devedores e dos credores. Nestas circunstâncias tornam-se patentes as condições em que o sistema bancário internacional opera e que conduzem a um eventual racionamento do crédito; situação esta que, em boa medida, deflagra a crise de pagamentos internacionais e define seus principais traços, conduzindo ao cenário da renegociação das dívidas.

Essas análises correspondem a estimativas do tipo custo-benefício, das quais se pretende derivar as possíveis ações que os bancos e os “devedores soberanos” possam empreender. No entanto, as condições criadas na crise são difíceis de se estimar com alguma precisão; por exemplo: até que ponto a impossibilidade de pagar corresponde a uma condição de falta de liquidez ou propriamente a uma insolvência. Inicialmente, o diagnóstico geralmente oferecido enfatizava a primeira situação e propunha uma estratégia para administrar a crise baseada na manutenção dos fluxos financeiros e no estabelecimento de condições que permitissem ganhar tempo, enquanto se recriavam as possibilidades de pagamento por meio do acesso aos mercados voluntários de crédito (Cline, 1983Cline (1983), International Debt and Stability of the World Economy, Washington, Institute for International Economics . ).

Os supostos que tinham de ser adotados para sustentar essa postura já demonstraram sua debilidade. Tanto as condições sumamente restritivas do ajuste interno como a evolução das variáveis externas têm sido desfavoráveis ou ao menos insuficientemente favoráveis para alterar a crescente dificuldade de manutenção do atual esquema de renegociação, marcado pela contração creditícia e por transferências líquidas ao exterior.1 1 O que se propunha era “examinar a evolução esperada do balanço de pagamento e do endividamento dos grandes países devedores a médio prazo. O conceito utilizado é o do balanço de pagamentos “potencial” ou ex-arte, admitindo-se certa taxa mínima aceitável de crescimento para esses países. Se os déficits externos esperados são tão elevados que se revela impossível financiá-los dado o severo estado de choque dos mercados internacionais de crédito, o diagnóstico deverá ser o de insolvência. Se esses déficits projetados são de uma magnitude consistente com montantes razoáveis déficit-exportações mostrando uma tendência a melhorar, o diagnóstico é de falta de liquidez.

Recentemente a distinção entre iliquidez e insolvência tornou-se muito mais difusa. Agora se reconhece que pode ocorrer uma ação agressiva da parte dos devedores - eles podem decidir não cumprir com suas obrigações financeiras, visando a obter vantagens. As formulações a respeito da relação entre devedores e credores podem tornar - se mais realistas ao incorporarem esta consideração; contudo, ainda assim não seriam capazes de satisfazer às exigências da análise requerida pela situação atual das economias devedoras.

Quando confrontados com uma atitude de repúdio ao pagamento do serviço da dívida, os modelos existentes tendem rapidamente a situar-se do lado dos credores e a considerar o caráter de suas possíveis reações (ver, por exemplo, a resenha de J. Eaton e L. Taylor, 1986Eaton, J. e L. Taylor (1986), “Developing Country Finance and Debt”, Journal of Development Economics, 22. ). Dada a existência de sanções ao cumprimento dos pagamentos, estas devem ser mantidas num nível superior ao dos desembolsos devidos. Quando essa relação se inverte cabe esperar que cresça o incentivo a declarar moratória. Considera-se que é precisamente a expectativa de incorrer em altos custos em caso de descumprimento o que torna possível a existência de créditos internacionais. Mas neste ponto faz-se necessário incorporar a questão da incerteza com relação à possibilidade de manterem-se vigentes as condições nas quais os custos da moratória superam seus benefícios.

Levando em conta explicitamente o fator de incerteza, os modelos que tratam da relação entre devedores e credores se enriquecem. Disto se deduz que, quando as condições que prevalecem numa economia com alto nível de endividamento externo impossibilitam o prosseguimento das operações financeiras em condições “normais” de mercado, os credores deverão agir. Eles estarão dispostos, num quadro de negociação em que é forçoso reconhecer o conflito, a oferecer recursos que impeçam a moratória. Surge assim um conjunto de acordos que ambas as partes preferirão diante dessa opção extrema. Dessa maneira, determinam-se duas situações: uma em que o devedor obtém os recursos mínimos que lhe permitem manter seus pagamentos; e outra em que os credores comprometem recursos até o limite em que estão dispostos a permanecer no esquema de renegociação. Entre estes dois pontos estabelecem-se diferentes alternativas quanto ao montante dos empréstimos, já definidos como involuntários ou defensivos, que representam o valor conferido à opção de prevenir a moratória e de preservar a possibilidade de pagamento no futuro (P. Krugman, 1985Krugman, P. (1985), “International Debt Strategies in an uncertain world”, G. W. Smith e J. T. Cuddington (orgs.), Washington, The World Bank. ). ·

Esse modo de formular o problema tem a virtude de permitir que sejam avaliadas as dificuldades inerentes ao estabelecimento de relações entre devedores quando o mercado não se encontra em suas condições normais. Essas dificuldades derivam do fato de que os agentes entram em conflito - conflito que se expressa no fato de que, ao procurar obter um resultado favorável, cada uma das partes pode estabelecer posições de negociação que induzam a demandas mínimas que contrariem seus próprios interesses (econômicos e políticos) e que, por isso, permitam um acordo mutuamente benéfico. Ao considerar a questão de qual estratégia deve ser adotada no caso de uma situação cheia de grande incerteza, esse esquema postula que a reestruturação da dívida constitui uma forma de mediação até um período de nova normalidade no funcionamento do mercado (ibidem). Com isto, no entanto, não se aprofunda de maneira suficiente a conceitualização do problema da dívida, ainda que se esteja pensando em termos de um conflito. A análise baseada nos mecanismos de mercado tem grandes limitações quando examina situações de conflito (percebe-se isto, por exemplo, observando-se as dificuldades dessa linha analítica para elaborar uma teoria do oligopólio).

Diante de uma perspectiva de riscos crescentes, os bancos limitam o montante de recursos oferecidos e buscam estabelecer condutas que indiquem quais serão suas posturas frente à necessidade de renegociar os empréstimos. As características assumidas pelo funcionamento do mercado de créditos à medida que avançava o processo de endividamento dos países em desenvolvimento e também nas rodadas de renegociação mostram o poder dos credores para transferir os custos ao devedor (Folkerts-Landau, 1985Folkerts-Landau, D. (1985), “The changing role of international Bank Lending in Developing Finance”, IMF Staff Papers, vol. 32, n.º 2, jun. ).

As condições atuais das economias da América Latina são por demais conhecidas; no entanto, não se pode deixar de ressaltar que desde 1982 foram transferidos ao exterior recursos líquidos da ordem de US$ 132 bilhões (CEPAL, 1986CEPAL (1986), Balance Preliminar de la Economia Latino - Americana, Santiago, dez. ). Esse fato torna, sem dúvida, atrativa a possibilidade de declarar a moratória, e então é forçoso indagar por que os países devedores (especialmente os maiores) mantêm-se dentro do esquema de negociação sob as regras fixadas pela comunidade financeira internacional. Também com relação a esta questão a teoria convencional fornece algumas considerações. A moratória impõe custos nos campos do consumo, do investimento e das transações comerciais com o exterior - isso está claro. Contudo, seria preciso comparar esses custos com aqueles que já estão sendo causados pelo ajuste recessivo a que estão sendo sujeitadas as economias, e o resultado dessa comparação não é tão claro. Podem-se distinguir duas vertentes na estratégia global estabelecida para a administração da dívida externa dos países em desenvolvimento. A primeira propõe as soluções de mercado como meio de se conseguir manter o serviço da dívida e de se lograr incorporar os países ao financiamento por meio dos créditos internacionais privados. A segunda advoga soluções de caráter administrativo que atuem sobre a organização do sistema financeiro, abarcando tanto as instituições multilaterais quanto os bancos transnacionais. O leque disponível dessas diferentes alternativas é enorme e continua crescendo, sem que até agora se tenha conseguido modificar sensivelmente o esquema adotado para enfrentar a crise (ver, por exemplo, o compêndio de S. Griffith-Jones, 1986Griffith-Jones, S. (1986), “Soluciones a la crisis de la deuda “, Comercio Exterior, vol. 36, n.º 11, nov. ). Uma das propostas mais contundentes vinculadas à estratégia que apoia o funcionamento dos mecanismos de mercado foi apresentada por um dos principais bancos. Nela afirma-se que “os defensores da dívida (debt relief) confundem de maneira crassa a natureza dos mercados e reivindicam, essencialmente, que a água flua para cima (World Financial Markets, 1986World Financial Markets (1986), set. ). Porém, além de indicar os desplantes com que se pretende justificar intransigentemente o funcionamento livre dos mercados, é preciso ressaltar, a esta altura, que a estratégia articulada pelos bancos - e que tem sido avalizada pelos governos dos países industrializados, além de contar com a ativa intermediação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial - representa, na realidade, uma simulação de se estar operando no quadro das forças de mercado. Isso é denotado pelas numerosas intervenções das agências do governo dos EUA nas sucessivas crises de pagamento dos países devedores2 2 Argumenta-se, com relação a esta questão, que enquanto os bancos privados têm recebido grandes transferências líquidas dos países devedores, os credores oficiais (governos e instituições multilaterais) têm transferido recursos a esses países. É assim que do ponto de vista operacional os credores oficiais têm efetivamente “salvado os bancos”. Há que se considerar, ademais, o manejo da regulação bancária, que vem permitindo manter o valor escritural da carteira colocada em países com problemas de dívida e contabilizar as entradas por pagamento de juros como receitas, apesar de estarem em grande parte sustentadas por empréstimos involuntários concedidos pelos próprios bancos (J. Sachs, 1986). , bem como pelas novas formas de condicionalidade cruzada estabelecidas pelos organismos multilaterais. O círculo se fecha ao se constatar que, por seu lado, as soluções administrativas formuladas também pretendem referendar o mercado como meio de alocação dos recursos financeiros. Trata-se, em última instância, de propiciar os mecanismos que permitem incrementar as transferências líquidas de recursos dos devedores, enquanto eles se sujeitam à disciplina do ajuste para restaurar as condições propícias para o crescimento. Não obstante suas diferenças, as propostas Baker e Bradley pertencem a esse conjunto de soluções, assim como o extenso rol de alternativas consideradas em diversos estudos (ver, especialmente, Bergsten, Cline e Williamson, 1985Bergsten, C. F. . W. Cline e J. Williamson (1985), Bank lending to developing countries: the policy alternatives, Washington, Institute for International Economics. ).

O tratamento do fenômeno da dívida externa como um problema torna-se, dessa maneira, compatível com sua conceituação em termos da operação dos mecanismos de mercado. Tanto nas propostas explicitamente livre - cambistas quanto nas propostas de aplicação de medidas administrativas (neste caso, de maneira indireta), o mercado continua sendo concebido como o mecanismo alocador por excelência do financiamento externo. Essa forma de abordar o problema da dívida converteu-se em um componente importante daquilo que se poderia denominar, segundo Galbraith, com a sabedoria convencional com respeito à crise dos países devedores. Essas duas posturas mediante as quais transcorre a administração da dívida - as soluções de mercado e as soluções administrativas - conseguiram estabelecer tamanha aceitação e credibilidade ao circular entre governantes, banqueiros, administradores e acadêmicos, que se tornou fácil predizer os argumentos que serão apresentados ao debate.

Porém, os acontecimentos registrados nos países devedores são um questionamento incessante da estratégia com que se vem enfrentando a “crise da dívida” (crise dos devedores e dos credores). Essa estratégia tem provocado um enorme ajuste das economias latino - americanas cujos custos - muito mal distribuídos - são extremamente elevados em termos sociais (o caráter constante dessa deterioração econômica e social é demonstrado pelas informações estatísticas disponíveis; por exemplo: CEPAL, 1986CEPAL (1986), Balance Preliminar de la Economia Latino - Americana, Santiago, dez. , e Fundo Monetário Internacional, 1986Fundo Monetário Internacional (1986), World Economic Outlook, Washington, abr. ). As repercussões dessa estratégia também podem ser avaliadas verificando-se as limitações para a instrumentalização da política econômica, que - não obstante as diferenças existentes entre os países da região - permanece muito vulnerável à evolução das variáveis externas. Nas condições atuais, a dívida externa continua sendo um grande obstáculo para a recomposição das condições econômicas.

A renegociação da dívida não representa uma confrontação de interesses de diversos agentes no âmbito do mercado; na realidade, constitui um conflito em que se contrapõem poderes desiguais. Nem os credores nem os devedores são entidades homogêneas, e este é um fator relevante quando se examinam a natureza do conflito e as exigências da negociação. No quadro da negociação estabelecem-se condições que podem apresentar-se como elementos de um esquema dissuasivo com o qual se pretende evitar ações agressivas do oponente que levem a uma escalada do conflito. Os extremos da dissuasão estão dados pela declaração unilateral da moratória pelos devedores e pela recusa dos credores a manter o fluxo de recursos. Dentro do espaço assim delimitado desenvolvem-se as estratégias de cada uma das partes. Como prevalece a incerteza com relação à possibilidade de manter os parâmetros da dissuasão, confronta-se um conjunto de objetivos, os quais se modificam no curso do processo e geram percepções também mutáveis do conflito. É por isso que se pode conceber o conflito da dívida como um continuum de negociação que se converte no espaço onde se desenvolve a dissuasão financeira (L. Bendesky e V. Godínez, 1985, 1986Bendesky, L. e V. Godínez (1986), “Deuda y disuasión financiera, México 1982 - 1985”, EURAL, Crisis y regulación estatal: dilemas de política en América Latina y Europa, Buenos Aires, GEL. ).

Diferentemente do que ocorre no mercado, onde os agentes econômicos podem reconhecer-se como tais, em um conflito estão contrapostos distintos poderes. Uma característica importante dos enfrentamentos entre poderes consiste em sua natureza demarcatória, cuja efetividade depende das capacidades relativas para impor condições. Os credores e devedores têm poderes de demarcação distintos, e isso reverte nos processos de negociação. No curso real da renegociação da dívida externa, os credores têm exercido seus poderes mediante diversas ações, das quais destacam-se: as diferentes modalidades de condicionalidade, a aplicação de restrições comerciais de caráter protecionista e o manejo de um conjunto de preços, especialmente a taxa de juros. Para os devedores o poder na negociação tem sido depositado nas mãos do Estado, que surge como único interlocutor no conflito. Paradoxalmente, no âmbito interno podem-se identificar outros poderes que debilitam a capacidade negociadora dos Estados.

No quadro do conflito surgido do endividamento externo existe oposição entre os participantes, mas existe também um alto grau de interdependência. Essas circunstâncias determinam que ao se estabelecerem as estratégias tenha-se que considerar, necessariamente, a negociação como uma forma de influenciar as expectativas e o comportamento das partes. A lógica do conflito implica que se tenha que analisar as limitações enfrentadas no estabelecimento das respectivas estratégias, assim como os fatores que estimulam a cooperação. E o próprio desenrolar do conflito - o seu processo - que define as opções e as possibilidades dos devedores e credores em função de seu poder relativo.

Estas reflexões, advertimos, propõem-se a apresentar alguns elementos para a discussão. Pretendem transmitir, de maneira pessoal, algumas perplexidades que possivelmente não provêm da natureza do problema e das soluções: distingo até onde posso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bendesky, L. e V. Godínez (1986), “Deuda y disuasión financiera, México 1982 - 1985”, EURAL, Crisis y regulación estatal: dilemas de política en América Latina y Europa, Buenos Aires, GEL.
  • Bergsten, C. F. . W. Cline e J. Williamson (1985), Bank lending to developing countries: the policy alternatives, Washington, Institute for International Economics.
  • CEPAL (1986), Balance Preliminar de la Economia Latino - Americana, Santiago, dez.
  • Cline (1983), International Debt and Stability of the World Economy, Washington, Institute for International Economics .
  • Eaton, J. e L. Taylor (1986), “Developing Country Finance and Debt”, Journal of Development Economics, 22.
  • Folkerts-Landau, D. (1985), “The changing role of international Bank Lending in Developing Finance”, IMF Staff Papers, vol. 32, n.º 2, jun.
  • Fundo Monetário Internacional (1986), World Economic Outlook, Washington, abr.
  • Griffith-Jones, S. (1986), “Soluciones a la crisis de la deuda “, Comercio Exterior, vol. 36, n.º 11, nov.
  • Krugman, P. (1985), “International Debt Strategies in an uncertain world”, G. W. Smith e J. T. Cuddington (orgs.), Washington, The World Bank.
  • Sachs, J. (1986), “Managing the LDC Debt Crisis”, Brookings Papers an Economic Activity, n.º 2.
  • World Financial Markets (1986), set.
  • 1
    O que se propunha era “examinar a evolução esperada do balanço de pagamento e do endividamento dos grandes países devedores a médio prazo. O conceito utilizado é o do balanço de pagamentos “potencial” ou ex-arte, admitindo-se certa taxa mínima aceitável de crescimento para esses países. Se os déficits externos esperados são tão elevados que se revela impossível financiá-los dado o severo estado de choque dos mercados internacionais de crédito, o diagnóstico deverá ser o de insolvência. Se esses déficits projetados são de uma magnitude consistente com montantes razoáveis déficit-exportações mostrando uma tendência a melhorar, o diagnóstico é de falta de liquidez.
  • 2
    Argumenta-se, com relação a esta questão, que enquanto os bancos privados têm recebido grandes transferências líquidas dos países devedores, os credores oficiais (governos e instituições multilaterais) têm transferido recursos a esses países. É assim que do ponto de vista operacional os credores oficiais têm efetivamente “salvado os bancos”. Há que se considerar, ademais, o manejo da regulação bancária, que vem permitindo manter o valor escritural da carteira colocada em países com problemas de dívida e contabilizar as entradas por pagamento de juros como receitas, apesar de estarem em grande parte sustentadas por empréstimos involuntários concedidos pelos próprios bancos (J. Sachs, 1986Sachs, J. (1986), “Managing the LDC Debt Crisis”, Brookings Papers an Economic Activity, n.º 2. ).
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    Traduzido por Fernando de Arruda Sampaio
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    JEL Classification: H63; F34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1988
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