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Do homem medieval ao liberal: ciclos e crises do liberalismo - tendências autoritárias recentes

From Medieval to Liberal Man: Cycles and Crises of Liberalism - Recent Authoritarian Tendencies

RESUMO

O estudo começa coletando evidências relativas a eventuais ciclos de regulação/desregulação entre as décadas iniciais do séculos XX e XXI. Depois, analisa a passagem do Homem Medieval para o Homem Liberal na Europa, onde foca no impacto econômico e político desses eventos desde o Liberalismo Clássico até o Neoliberalismo. Segue-se uma busca de respostas para o atual quadro de desarranjos e tendências autoritárias no mundo derivadas, em essência, do Neoliberalismo dominante e especulações são feitas acerca do futuro desse sistema.

PALAVRAS-CHAVE:
Economia política clássica; neoliberalismo; conservadorismo; ciclos políticos; tendências autoritárias

ABSTRACT

This paper starts gathering historical evidence related to eventual regulation/deregulation cycles in the two first decades of the XXth and XXIth centuries. Following, an analysis on the passageway of the Medieval Man to a Liberal Man in Europe, and on the economic and political features of the Classical Liberalism in its path to Neoliberalism. Later on, a search for answers to the recent disarrangements and authoritarian trends in the world. Many critics were made to Neoliberalism as well as speculations on the future of this system.

KEYWORDS:
Classical political economy; neoliberalism; conservativeness; political cycles; authoritarian trends

INTRODUÇÃO

Este texto procura entender como o atual quadro de desarranjos globais tem levado pensadores contemporâneos a enfrentar o porquê da falta de soluções concretas aos problemas da vida real e das tendências autoritárias urbi et orbi. Por que isso acontece? Estaria o capitalismo se aproximando de seu final histórico? O espírito do tempo teria enfraquecido a capacidade de a classe trabalhadora se levantar e aprofundar direitos conquistados por seus ancestrais, ao invés de assistir passivamente à eliminação progressiva desses direitos? A tecnologia estaria destruindo empregos a passos largos, aprofundando o fosso entre os assimiláveis na nova era, os empreendedores, e a vasta população de não assimiláveis? De onde estariam partindo as tendências autoritárias que põem em risco democracias antes vistas como consolidadas?

A primeira seção levanta a hipótese de que eventos históricos - crises econômicas, sanitárias e guerras - mostram similaridades entre as primeiras décadas dos séculos XX e XXI. Estaria a História se repetindo mecanicamente? Estaria ocorrendo algo parecido com ciclos econômicos ou políticos de regulação e desregulação?

A segunda seção revisita o desenvolvimento da principal instituição dos séculos XVIII e XIX, o Liberalismo Clássico. Ela começa com o advento de três tipos de indivíduos - o homem racional, o conservador liberal e o conservador reacionário ou anti-indivíduo - na Europa na era pós-medieval. Seguem-se os estudos que levaram à criação da teoria do valor-trabalho de Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx.

A terceira seção discute a transformação do Liberalismo Clássico no que hoje se entende por Neoliberalismo, a partir da ascensão de Ronald Reagan à Presidência dos Estados Unidos, em 1981. Seu programa de governo estava encharcado das ideias de seu assessor econômico, Milton Friedman, e de Friedrich Hayek.

A quarta faz críticas ao Neoliberalismo. As novas formas de organização social que ocorreram na passagem para a modernidade capitalista estão representadas pelo escritos de Zygmunt Bauman, Richard Sennett, Umberto Eco, Fernando Rugitsky, Alexandre Abdal e Douglas M. Ferreira. Na quinta, o futuro do capitalismo serve de tema de especulação para Paul Mason pensar um eventual pós-capitalismo.

Essas críticas servem como transição para o final, onde são abordados alguns ecos desses movimentos que têm levado o mundo a grandes desconfortos e crises de ansiedade, com crescentes reposicionamentos nas hostes da extrema direita.

1. A HISTÓRIA SE REPETE?

Cerca de cem anos atrás, o mundo vivia as incertezas do fim de uma era. O regime do padrão-ouro naufragava e, com ele, toda a ordem econômica mundial. É comum falar-se que uma ordem qualquer, mesmo que ruim, é melhor que nenhuma ordem. Na falta dela, os países procuraram se defender da concorrência desenfreada que se instalou nos mercados. A expressão “Beggar thy Neighbour” voltou a ser usada, desde que Adam Smith afirmou que uma doutrina mercantilista de extração de máximo benefício privado se opunha ao interesse das nações e levava ao “empobrecimento de seus vizinhos”. Ou seja, quando uma nação procurava remediar seus males sem levar em conta os interesses das demais nações, o resultado final seria sempre pior para todos.

Centrada na questão colonial, a Grande Guerra começou em 1914 e levou à morte milhões de soldados e civis. Em 1917, a Revolução Soviética balançou com força o espaço liberal. Em 1918, a Gripe Espanhola iniciou seu périplo pelo mundo a partir da volta para casa dos militares infectados nas trincheiras do conflito. Mais adiante, foi a vez da Crise de 1929, que rompeu as cadeias produtivas e lançou outros milhões de indivíduos ao desemprego e à desesperança. Resultado: mais outra guerra mundial, pior ainda que a primeira. Recheada de conflitos ideológicos - fascismos, liberalismos e socialismos -, a humanidade finalmente percebeu a extensão do abismo aberto com o domínio da energia nuclear e deu um basta à falta de autoridade.

Em suma, o fim do padrão-ouro deu início a um período de desregulação, que favoreceu o surgimento de guerras, pandemias e crises. Deixado às próprias forças, o capitalismo se mostrou o sistema existente mais dinâmico e produtivo, mas incapaz de controlar o rumo das crises, que sempre acabam em desastres sociais. Essa é a hora em que os governos são chamados a intervir para colocar ordem nos mercados.

O New Deal (iniciado em 1933) e o Acordo de Bretton Woods (1944) redesenharam a ordem econômica do pós-Segunda Guerra Mundial. O fortalecimento de sindicatos laborais trabalhou para a valorização e inserção de vastas camadas de desempregados ao mercado de trabalho, ao tempo em que o comércio mundial foi liberalizado para além da velha ordem colonial. Trinta anos dourados de prevalência do capitalismo industrial norte-americano e de reconstrução das potências destruídas na guerra propiciaram alguma desconcentração da renda, que trouxe ganhos ao trabalhador, inclusive por meio de avanços em programas sociais (welfare states).

Ao apontar para o fim desse ciclo, a década de 1970 foi tumultuada. O dólar, a moeda mundial, já não se mostrava tão sólido quanto no fim da guerra e, em resposta à pressão de outras potências e à Guerra do Vietnã, ele se desvalorizou e perdeu sua cotação fixa com o ouro entre 1971 e 1973. Choques de petróleo em 1973 e 1979 também contribuíram para desenhar um quadro sombrio para a economia mundial.

O presidente Reagan, sob influência de seu assessor Milton Friedman, deu início a seu governo dos Estados Unidos em 1981, com a promessa de ampla e geral desregulamentação dos mercados. Simbolicamente, esse ano parece ter sido o marco inicial do Neoliberalismo, que é caracterizado pela ampla abertura de todos os mercados. O maior beneficiário do novo paradigma foi o capital financeiro que era um ator menor que o capital industrial e que galopou para a liderança do sistema.

A consequência direta dessa fase do capitalismo invadiu o século XXI e deu causa ao surgimento da Crise Financeira em 2007-2008, que acrescentou batalhões de novos miseráveis. A relação pode não parecer direta, mas é lícito aventar a hipótese de que a crise financeira se transmutou em crise econômica e favoreceu o aparecimento da pandemia de COVID que assola o mundo desde 2020. E, se faltava uma guerra, Putin e o Ocidente resolveram embaralhar as cartas do jogo no Leste Europeu, em 2022.

2. O LIBERALISMO CLÁSSICO

I. O filósofo e teórico político conservador inglês Michael Oakeshott (1901-1990), escreveu três ensaios que foram juntados no livro Conservadorismo: Racionalismo na Política, em 1947; Ser Conservador, em 1956; e As Massas em uma Democracia Representativa, em 1961. Ali, ele criou três tipos de indivíduos que retratariam a Europa pós-renascentista.

O primeiro é um ser racionalista, voltado às coisas do futuro, que defende a independência da mente em todas as ocasiões e enfrenta qualquer autoridade, exceto a “autoridade da razão” (1947:10-15). Esse uomo singolare que começou uma grande onda de individualidade teria surgido na Itália, no final do século XIII. Dotado de alto teor de autodeterminação, ele foi progressivamente se desgarrando de seus companheiros e, aos poucos, conquistou a Europa. “Ele se instalou nas artes, na religião, na indústria, no comércio e em todo tipo de relacionamento humano” (1961:81-83). A dissolução dos laços comunais e sua substituição por uma associação de indivíduos gestou a moderna democracia representativa, um tipo de governo que precisava ser único e supremo, ter autoridade para abolir velhas leis e criar novas e, para tanto, ser poderoso.

O segundo é um ser conservador, rival do racionalista, voltado às coisas do tempo presente. É um tipo que “prefere o familiar ao estranho, o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna” (1956:115-118). Uma bela síntese para um homem muito “humano” e numeroso, mas... de ambições limitadas.

O terceiro é um subproduto do conservador. Oakeshott o denominou indivíduo manqué, um ser irrelevante, também produto da “dissolução dos laços comunais”. Sua incapacidade de se integrar e mesmo de entender a revolução social em curso o levou a se manter prisioneiro do passado. A princípio, esse indivíduo procurou viver em comunidades isoladas; depois, teria se dado conta de que pertencia à classe mais populosa da sociedade. Nesse momento ele se transformou no homem massa. “As massas tal como surgem na história da Europa moderna não são compostas de indivíduos; são feitas de anti-indivíduos reunidos em uma repulsa à individualidade” (idem:91-95).

A análise de Oakeshott começou com o movimento racionalista que engolfou a Europa pós-renascentista e culminou no Iluminismo. Compreendeu que o surgimento da individualidade na Europa era inevitável, natural e gradual. Ela destruiu os antigos laços comunais do medievo e abriu espaço para o surgimento de um indivíduo focado em temas como o fim do regime aristocrático e o exercício de liberdades políticas, econômicas e individuais, assim como a valorização da razão e da ciência. Compromissado com o tempo presente, o conservador-liberal está no campo do centro democrático e na esfera do costumeiro. Seu espaço na política seria importante no enfrentamento do que lhe parece ser um estado de espírito inquieto dos racionais, sempre em busca de algo novo.

O conservador-reacionário é um negacionista. Ele costuma ficar por muito tempo escondido nos porões da História e aproveita momentos de instabilidade política para se apresentar como representante de largas fatias da população, que nada têm a acrescentar ao debate político. Prevalece sua vocação passadista, irrealista, vazia de quaisquer propostas de conteúdo social. Pondé (Folha, 18/9/2022Pondé, Luiz Felipe (2022). O “homem-massa” é o homem médio cheio de ideias fixas sobre tudo. Folha de São Paulo, 18.9.2022.) também aborda o tema do homem-massa, conceito central de A Rebelião das Massas, de 1930, do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955). “Ele não é o pobre. Ele não é a classe operária. Nem o ignorante do conhecimento formal. Ele é o medíocre que se fechou sobre si mesmo. [Segue-se que] ele não quer ser excepcional, mas que todo mundo seja vulgar como ele”.

II. Os Arquétipos de Oakeshott se mostram importantes na análise do período entre os séculos XVI e XIX, que foi de grande turbulência política e econômica na Europa. À medida que se encerrava a Idade Média e se afirmava o Mercantilismo e, depois, o Capitalismo Industrial, filósofos com orientação política e outros mais focados na economia travaram grandes duelos intelectuais acerca dos papéis do Estado e da Igreja.

Jean Bodin (francês, 1530-1596) foi um pensador revolucionário para seu tempo, ao declarar que “o fundamento da investigação social era a relação do homem com o homem e não a relação do homem com Deus” (Roll, 1977Roll, Eric (1977). História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. :72). Nessa passagem se encontram ecos das discussões do Renascimento florentino no campo da artes plásticas. Não é que o uomo singolare da Florença do século XV tenha “matado” Deus em suas pinturas e esculturas. Ele apenas voltou seu olhar mais para o próprio homem. Com isso, inevitavelmente, o paraíso foi afastado um pouquinho mais para longe. Em 1576, Bodin já advogava a necessidade de uma autoridade soberana central secular.

Francis Bacon (Inglaterra, 1561-1626), ao contrário, defendeu a ideia que a monarquia era uma instituição natural e prestar-lhe obediência um dever natural. Manteve a doutrina do direito divino dos reis e deu ao absolutismo um poderoso sustentáculo teórico. Suas ideias eram próximas às de Nicolau Maquiavel (1469-1527), para quem o príncipe sempre deveria se guiar pela necessidade e não pela virtude.

O século XVII gerou dois gigantes ingleses: Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704). Hobbes (2019Hobbes, Thomas (1651 [2019]). Leviatã. São Paulo: Edipro .:156 e 170) abandonou o conceito de direito divino dos reis, mas fortaleceu o princípio da soberania do Estado. Uma vez surgido o Estado, detinha este a soberania absoluta, à qual se deveria prestar completa obediência. Ele reconhecia que o indivíduo era guiado pelo interesse pessoal, sob a ótica do princípio do utilitarismo, para o qual sempre se deveria agir de modo a produzir a maior quantidade de bem-estar. Por isso, esse ser racional era a força que se deveria suprimir, dada sua tendência de constituir um poder paralelo ao do soberano. Só o Leviatã, o Estado absolutista, poderia se contrapor a esse indivíduo liberal ambicioso.

Mais para o final do século, Locke (1632-1704) defendeu que o interesse pessoal é a força motriz da conduta dos homens. Não compartilhava com Bacon a ideia de rei por direito divino, nem com Hobbes o Leviatã. Seu racionalismo encontrou expressão política na monarquia constitucional. A liberdade só deveria ser restringida para que se pudesse conservá-la. Foi considerado o pai do liberalismo, para quem o Estado era criatura do poder econômico, não o seu amo (Roll, 1977Roll, Eric (1977). História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. :77).

As ideias não se restringiram ao plano das discussões filosóficas e econômicas. Na Inglaterra, ocorreu a Revolução Puritana na década de 1640, movimento que contrapôs a Coroa ao Parlamento, culminou com a decapitação do rei católico Carlos I e com a ascensão de Oliver Cromwell ao comando dos destinos da nação. Nos próximos cinquenta anos, o país se viu engolfado por guerras civis. Em 1688, a Revolução Gloriosa destituiu e exilou o rei Jaime II. Os reis continuaram a existir, mas o poder constitucional passou para o Parlamento e o poder econômico para a burguesia. Cerca de cem anos depois, deu-se o advento da Revolução Industrial, enquanto do outro lado do Canal a Revolução Francesa de 1789 enterrou o que restava da sociedade medieval.

Adam Smith e David Ricardo erigiram os pilares da Economia Política Clássica. Seus estudos colocaram ordem na confusão de ideias que campeavam pela Europa, por conta das profundas mudanças sociais: novas formas de produção, de relações sociais, de governo e de pensamento social (Roll, 1977Roll, Eric (1977). História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. :127). Não era difícil, à época, identificar mercados a liberdade e Estado a opressão.

Smith (1980Smith, Adam (1776 [1980]). Riqueza das Nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian .:119-121) fez contribuições essenciais ao entendimento do funcionamento de uma economia capitalista nos primórdios da primeira Revolução Industrial em seu livro Riqueza das Nações, de 1776. É conhecida sua admiração pela alta produtividade propiciada pela divisão do trabalho humano em uma fábrica de tachas e pregos. Ele cedo entendeu que “o trabalho é a verdadeira medida do valor de troca de todos os bens”. Mencionando Hobbes, para quem riqueza era poder, Smith complementou: “A riqueza consiste no poder de adquirir trabalho”. Como, porém, o trabalho é difícil de medir, “o valor não é normalmente calculado em trabalho”.

Ao contrário do senso comum à época, em que os preços se formavam no encontro das forças opostas da oferta e da demanda, Smith propôs um processo de formação dos preços dos bens a partir dos custos. O preço final seria a representação do trabalho humano, indicado pelo salário; somado ao lucro, a contribuição do capital; e à renda, considerada como o preço pago pela utilização da terra. Nessa formulação, salários, lucros e renda remuneravam os fatores de produção, não havendo qualquer confronto entre os agentes do processo produtivo. Uma contradição evidente entre a percepção de que só o trabalho gerava valor e a apropriação de parte desse valor pelo capital e pela renda. De todo modo, esse processo só podia ser equilibrado se houvesse plena liberdade de funcionamento dos mercados. “No seu conjunto, as vantagens e as desvantagens das diferentes utilizações do trabalho e do capital, [...] devem, ou igualar-se perfeitamente, ou tender constantemente para a igualdade (idem:231).

O papel dos governos tinha a ver com finalidades não próprias à iniciativa privada. Público e privado se complementavam. Os quatro grandes objetivos da lei nacional seriam a justiça (defesa contra ofensas), a polícia (segurança e limpeza), as receitas (preço dos bens, moeda, impostos e dívida pública) e as armas (a necessidade de exércitos permanentes). Resumindo, a análise das despesas do governo envolveria os vários tipos de organização militar, os tribunais, a conservação de obras públicas e a educação como a dos aprendizes dos ofícios, dentre poucos outros itens (idem:19-34).

Cerca de quarenta anos depois, em 1817, Ricardo (1978Ricardo, David (1817 [1978]). Princípios de Economia Política e de Tributação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.:73-85) retomou a teoria do valor-trabalho e fez uma crítica importante que, ao contrário da visão harmoniosa de Smith, trouxe luz ao conflito entre capital e renda da terra: “A renda é aquela parte do produto da terra que é paga ao senhorio pelo uso das potencialidades originárias e indestrutíveis do solo”. Ela era entendida como qualquer soma paga anualmente pelo agricultor ao senhorio. Um aluguel, um ganho financeiro, que não se confundia com juro ou com lucro do capital. Renda assim definida diferia das matérias-primas que entravam na composição dos bens, cujo valor era dado pelo trabalho dos agricultores. Os bens representavam custos de produção e entravam na composição dos preços, mas “a renda não pode entrar de modo nenhum como componente deste preço”.

Na esfera da política, o irlandês Edmund Burke (1729-1797) escreveu suas Reflexões sobre a Revolução na França em 1790. No livro, ele usou de retórica plena de adjetivação para desqualificar a jovem revolução, se comparada com a Revolução Gloriosa inglesa. Leviandade e ferocidade, ao lado de crimes e loucuras, explicariam o caminho do movimento francês no rumo do Terror.

Uma primeira característica de seu trabalho se destaca na crítica a Smith. Para este, os aspectos econômicos derivados do trabalho humano, em sua constante busca de aumento da produtividade, levavam ao aumento da riqueza nacional. A divisão do trabalho e o comércio eram as forças motrizes para o desenvolvimento das maneiras, da cultura e do esclarecimento. Para Burke, o sentido seria o inverso: a derrocada da religião e da nobreza - os protetores naturais da sociedade com suas maneiras - implicaria a destruição da própria possibilidade do comércio (2019:20).

Por isso, a Revolução Francesa não teria um caráter burguês, mas seria uma regressão não civilizatória de um país que teria abandonado sua própria história, ao se desfazer de seus reis e de sua religião. Numa era em que reis eram depostos e eventualmente mortos, que tipo de governo poderia ter legitimidade se não o fosse por meio de eleições diretas? Esta era uma das discussões na França. Na Inglaterra, a sucessão de conflitos levou o Parlamento a refutar a ideia do “direito divino, hereditário e irrevogável” da Coroa. Só os elementos reacionários da sociedade ainda defendiam este ponto, por serem “escravos”, por assim dizer, de uma velha tradição de achar que os tempos antigos eram sempre melhores que os atuais. O próprio Burke ironizava essa fixação idílica e tola. Por outro lado, não lhe parecia correto apresentar como solução a eleição direta dos governantes. Com isso, se perderia todo um conjunto de instituições e conhecimentos trazidos do passado, que mantinham de pé os valores sociais. Por isso, a revolução inglesa adotou o “direito de destituir por má conduta os governantes”, mas manteve o princípio da linhagem na escolha do soberano. Esta foi a primeira revolução efetivamente burguesa da história (2019:48-51).

Outro ponto em Burke parece mais substantivo. Seus principais alvos de crítica foram os setores que mais teriam se beneficiado da revolução: os monied interest (os burgueses enriquecidos na negociação dos títulos de dívida da Coroa gastadora e da Igreja) e as gens de lettres (em geral, filósofos e políticos). Os primeiros mostravam-se ressentidos por não serem reconhecidos pela nobreza e por não poderem se sentar à sua mesa. Os segundos eram mais bem equipados intelectualmente e não ligados à produção de mercadorias. Fora dessas duas categorias ficaram os produtores agrícolas, geralmente incapazes de se agrupar e organizar e, portanto, de exercer qualquer influência. “É evidente que, nas cidades, todas as coisas que conspiram contra o fidalgo do campo se unem a favor dos que administram e manejam o dinheiro” (2019:206-207).

Sempre se pode criticar Burke, porque ele incorre no aparente hábito dos povos dominantes, que acham que suas próprias decisões devem ser tomadas como “leis universais”; isto é, franceses deveriam agir como se ingleses fossem. Além disso, o fato de a França ter guilhotinado parte de sua nobreza e de sua burguesia, a partir de 1792, não significa que a Inglaterra também não tenha usado de instrumentos semelhantes, ainda que mais seletivamente. Qual o sentido, então, que Burke dava ao Conservadorismo? Ele se sentia à vontade em pugnar por lentas mudanças na atuação dos governos, desde que sempre sob a orientação da Coroa e da Igreja, além da submissão aos valores familiares respeitáveis. Não parece distante de Locke.

Falar da teoria do valor-trabalho de Marx em poucos parágrafos é um desafio. Não se irá além, neste texto, de parcos comentários acerca de sua teoria do valor, que se opõe à teoria quantitativa da moeda e à teoria utilitarista. No primeiro caso, passados cinquenta anos desde Ricardo, o conflito de classes já estava claramente transferido do capital vs renda para capital vs trabalho. A questão do excedente gerado pelo trabalho e apropriado pelo capitalista abriu uma fenda no pensamento de Smith e Ricardo e dominou parte expressiva do mundo a partir de então.

No segundo caso, sua análise em O Capital parte da mercadoria e não da busca de alguma forma invariável de valor, que servisse como moeda. A mercadoria é valor de uso, determinado qualitativa e quantitativamente. É trabalho concreto e particular. É trabalho natural e meio de subsistência, fruto de um esforço privado. Na sua passagem de valor de uso para valor de troca o tempo é a variável-chave. Assim, no valor de uso o trabalho é materializado, é particular e tem caráter determinado. No valor de troca, o trabalho se torna abstrato, geral e social. O valor de troca tem a ver, portanto, com o dispêndio de trabalho geral abstrato necessário à produção de uma mercadoria.

Na sequência, Marx trata do dinheiro, que recebe uma definição funcional: é dinheiro tudo aquilo que serve para medir valor (unidade de conta), meio de circulação (meio de pagamento) e reserva de valor (tesouro). A complementaridade e o sequenciamento das três funções devem ser respeitados: a primeira é ligada ao processo de formação de preços das mercadorias, onde o dinheiro é apenas idealizado; a segunda trata da necessidade de dinheiro concreto para a realização do processo de compra/venda dessas mercadorias; a última pressupõe as duas anteriores e compatibiliza a quantidade de dinheiro existente (ouro, em sua época) com a quantidade de dinheiro em circulação.

Logo, para Marx, a mercadoria enquanto valor de troca é precificada no nascedouro para, só depois, demandar um volume de dinheiro que permita sua realização. A visão neoclássica, ao contrário, é usualmente representada por inúmeras equações quantitativas, que destacam o estoque de moeda e a velocidade de sua circulação, com o nível de preços e a quantidade de mercadorias. Nessas abordagens fica borrado o sentido de causalidade das variáveis, mas se toma como certo que é a quantidade de moeda que determina o nível de preços. Essa crença ainda subsiste, mesmo numa era de economia monetária de produção com moeda fiduciária, tão bem teorizada também por Keynes.

Uma outra contribuição à crítica da economia capitalista e de sua inexorável tendência à crise é aquela que ressalta que o propósito do capital é o de buscar sua valorização, por meio da sua concentração e da sua centralização. Essa linha de raciocínio jamais poderia ser aceita pelo liberalismo dominante. Foi-lhe funcional, então, o desenvolvimento de uma teoria utilitarista do valor, com ênfase na produtividade do capital (Roll, 1977Roll, Eric (1977). História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. :310), não do trabalho. Foi, portanto, ao longo do século XX que a teoria do valor-trabalho foi enterrada, em favor de uma ciência econômica pretensamente neutra. Saiu de cena a atenção dada à produção de mercadorias, sua oferta e custos. Entraram as questões de preferências de consumo, a demanda e sua utilidade.

3. A ASCENÇÃO DO NEOLIBERALISMO

Keynes se colocou noutra esfera de análise, praticamente setenta anos depois de Marx. Centrado nas questões monetárias e de investimento, ele foi influenciado pelas consequências da depressão econômica iniciada em 1929. Em debate com seus colegas da academia, ele confrontou o pensamento econômico dominante, que continuava preso às leis que comandavam o extinto sistema do padrão-ouro e sua inerente Teoria Quantitativa da Moeda. Ao romper com esse paradigma, ele se aproximou de Marx, ainda que não conhecesse sua obra. Sua formulação de um princípio de demanda efetiva se mostrou consistente com o funcionamento de uma economia monetária de produção, onde prevalecia uma moeda fiduciária. Decorre daí sua defesa de déficits orçamentários associados a projetos de obras públicas, sempre que fosse necessário tirar uma economia da depressão. Sua crítica se insere nos parâmetros do liberalismo e o matiza, ao defender o gasto público. A fragilização das finanças públicas daí decorrente deveria ser enfrentada tão logo o investimento privado voltasse ao normal. O impacto causado por seus escritos das décadas de 1920-1930 foi enorme. A reação do monetarismo foi forte.

Um adendo: é interessante observar que, passados quase noventa anos da edição da Teoria Geral, os mercados financeiros brasileiros ainda se apeguem ao “perigo inflacionário” imediato em meio a uma recessão, com impactos sociais profundos. Keynes aplaudiria economistas mais lúcidos que entendem que o momento é de gerar déficit orçamentário para enfrentar o empobrecimento e a fome da população. E, num futuro próximo mais ameno, buscar superávits primários que permitam a redução da dívida pública, mas não com os juros praticados usualmente pelo Banco Central.

Passados somente dois anos da publicação da Teoria Geral de Keynes (1936Keynes, John Maynard (1936 [1983]). Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro. São Paulo: Abril Cultural .), a palavra “neoliberalismo” foi cunhada no Colóquio Walter Lipmann, em 1938, por um grupo de acadêmicos cujo pensamento é “associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigável para investidores estrangeiros”. Anos depois, eles ficaram conhecidos como “Sociedade Mont Pèlerin” (Brown, 2019Brown, Wendy (2019). Nas Ruínas do Neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia.:28).

Em 1973, tais políticas foram adotadas por Augusto Pinochet no Chile. Ainda naquela década, elas passaram a fazer parte do receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI) para países do Hemisfério Sul, dentro de seus programas de “ajuste estrutural”, que tratavam dos processos de reestruturação de empréstimos e de dívida. Na virada para os anos 1980, Margaret Thatcher e Ronald Reagan as levaram para o Hemisfério Norte, de onde elas se espalharam pela Europa Ocidental. Até o Bloco Soviético, quando entrou em colapso, fez uma rápida passagem do comunismo de Estado para o capitalismo neoliberal em menos de meia década.

Uma crítica de corte econômico afirmou que isso se deu como resultado de uma concepção globalizadora em que a soberania econômica dos Estados nacionais foi substituída por regras e acordos firmados em organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o FMI e o Banco Mundial. O objetivo era desmantelar as barreiras aos fluxos internacionais de capital, estabelecidas em 1944 pelo Acordo de Bretton Woods. O discurso era o de que fluxos livres de capital levariam a maior crescimento da economia mundial, mas no fundo o que se pretendia era, tão somente, abrir os mercados à acumulação de capital. Uma guinada e tanto, já que FMI e Banco Mundial foram o resultado das ideias de Keynes, em Bretton Woods, com a finalidade de melhor estabilizar os desequilíbrios dos balanços de pagamentos dos países em crise, de recuperar as economias arrasadas na Segunda Guerra Mundial e de estabelecer limites estreitos aos fluxos internacionais de capitais.

Uma crítica de corte político foi apresentada pelo filósofo Michel Foucault, para quem o neoliberalismo pretendia ir além das questões econômicas. Sim, os mercados competitivos eram necessários, mas não eram autossuficientes porque necessitavam de suporte político e de uma nova forma de “governamentalização” do Estado. Os governos precisariam ser reformatados de modo a servir aos mercados. Logo, o neoliberalismo diverge do liberalismo clássico, porque ele pretende “se instalar em todos os lugares, empreendedorizando o sujeito, convertendo o trabalho em capital humano e reposicionando e reorganizando o Estado” (Brown, 2019Brown, Wendy (2019). Nas Ruínas do Neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia.:30-31). Submeter o Estado ao mercado, não mais dividir competências para melhor se complementar.

Em contraposição às até então dominantes políticas keynesianas, dois nomes se tornaram importantes no debate monetarista, a partir dos anos 1950: Milton Friedman (1912-2006), economista norte-americano, e Friedrich Hayek (1899-1992), economista e filósofo austríaco, um dos fundadores da Sociedade Mont Pèlerin.

Pode-se ver marca dos dedos de Friedman, conselheiro econômico de Ronald Reagan (1911-2004), no discurso de posse na Presidência dos Estados Unidos, em 1981: “Na crise atual, o governo não é a solução para o nosso problema; o governo é o problema”. Por crise, se entendiam as políticas keynesianas dos presidentes Kennedy e Jonhson, na década de 1960, que teriam gerado inflação, desemprego, um sistema tributário que penalizava as iniciativas privadas e que não cobria o gastos públicos. Na esfera monetária, Friedman avançou para uma percepção de que as políticas monetárias dos bancos centrais não teriam o poder de estabilizar os preços por meio da variação da oferta de moeda. Poderiam controlar a quantidade da moeda, mas deveriam fazê-lo de maneira estável; isto é, aplicando uma taxa de crescimento constante. Num escopo de capitalismo estável, em que a quantidade produzida de bens era previsível e a velocidade de circulação da moeda era estável, bastaria aprovar uma lei que determinasse automaticamente a taxa de crescimento da oferta de moeda para controlar a inflação de preços. Para que, então, a existência dos bancos centrais, entidades emissoras e controladoras da moeda, uma das poucas funções exclusivas do Estado?

Quanto a Hayek, que se dizia um defensor do liberalismo clássico, impressionam suas noções das questões sociais e da desnacionalização (privatização) da moeda. A expressão “justiça social” lhe parece vazia de sentido. Justiça teria a ver com comportamento individual e nenhuma regra geral a esse respeito é capaz de levar a um padrão de distribuição de recursos prédefinido. Brown (2019Brown, Wendy (2019). Nas Ruínas do Neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia.:41/42) acusa: “De todos os intelectuais neoliberais, foi Friedrich Hayek quem criticou de forma mais sistemática a noção de social e de sociedade [...] Ele considera a própria noção de social falsa e perigosa, [...] uma ‘fraude semântica’. A preocupação com o social é a assinatura de todas as tentativas mal concebidas de controle da existência coletiva, o símbolo da tirania”. Por isso, a “interdependência complexa na modernidade [...] não surge do sentimento comum ou da busca comum organizada, mas de indivíduos que seguem regras de conduta que emanam dos mercados e das tradições morais”. Quanto à moeda, Friedman preferia uma emissão que obedecesse a um padrão automático e impessoal, mas Hayek já defendia a cunhagem de moedas privadas e a introdução de sistema bancário livre de regulamentação. Fried­man e Hayek revolucionários? Melhor situá-los no campo dos contrarrevolucionários, aqueles que, ao largo dos avanços políticos e econômicos, dão meia-volta e avançam para o passado.

4. NEOLIBERALISMO E CONTEMPORANEIDADE

É conhecida a metáfora de Bauman (2000:7/24) que explica o nome de várias de suas obras, como: Tempos Líquidos, Vigilância Líquida e vários outros, como este Modernidade Líquida. É como se o mundo fosse dividido em sólidos e líquidos. Os sólidos, pela natureza das ligas que unem seus átomos, “têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante)”. Sólidos se definem no espaço. Líquidos se definem no tempo, porque se movem facilmente, contornam obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. “A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de ‘leveza’.” Assim é que, “quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos”.

A metáfora serve para definir a modernidade. Não foi ela que provocou o “derretimento dos sólidos”, de que também nos deram conta os autores do Manifesto Comunista, Marx e Engels, quando afirmaram que “Tudo que é sólido desmancha no ar”? E não foi para contrapor o “espírito moderno” à estagnação do mundo antecedente?

Bauman (idem:10) alegou que “Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar [foram] as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”. Do escombro dos valores familiares e das lealdades sociais nada restou, a não ser o Dinheiro, a síntese perfeita da racionalidade dos negócios. Três exemplos envolvem velhos valores: (I) a família, (II) a empresa e (III) a segurança e a guerra.

I. Alguns intelectuais começaram a falar de uma “segunda modernidade”, uma modernidade voltada sobre si mesma, que criou novas categorias, as “categorias zumbi”, onde os mortos ainda se mexem e parecem vivos. “A família, a classe e o bairro [são os] principais exemplos do novo fenômeno”. A família patriarcal já se desfez em divórcios crescentes, mas como os filhos continuam a existir, os avós tiveram de complementar os pais que laboram sem contar com antigos “direitos”, também já desfeitos.

II. Para entender os exemplos da organização das firmas e do modo como as guerras são conduzidas, importa trazer novo conceito: a palavra “panóptico”, que Jeremy Bentham criou em 1785 para representar a “penitenciária ideal”, em que um único supervisor via o conjunto de presos, mas não era visto por eles. Bauman cita Michel Foucault, que teria utilizado o projeto do panóptico como representativo do poder moderno. Tudo se passa como se os prisioneiros, os trabalhadores, estivessem isolados atrás de grossos e altos muros. O vigia poderia ser um só. Ele seria visto como o único homem livre naquele sistema, mas seria tão livre assim? Uma penitenciária envolve tarefas administrativas de construção e manutenção dos edifícios e de responsabilidades no bem-estar geral. Não seria ele um escravo, também?

A invenção do celular mostrou que nele reside mais poder que no conjunto de computadores que monitoraram a viagem do primeiro homem à Lua. Ele acelerou a velocidade do movimento e, hoje, o vigia já não precisa estar prisioneiro de um espaço físico. Ele mobiliza trabalho de qualquer lugar onde esteja. A organização das firmas não está mais dependente da existência de nenhum vetusto edifício que impunha respeito, apenas por seu aspecto exterior, aos jovens empregados. O vigia-diretor comanda de qualquer lugar e os prisioneiros-funcionários obedecem ao receber as ordens nos terminais de seus computadores.

Em outro livro, Bauman (2011Bauman, Zygmunt (2011 [2022]). Danos Colaterais. Rio de Janeiro: Schwarcz S.A. :64) fala da destruição de estruturas tradicionais que instabilizaram os mercados de trabalho e trouxeram consequências de longo alcance. Ali onde as palavras de ordem são volatilidade, fluidez, flexibilidade e curta duração e onde os vínculos profissionais, como alianças e colaborações, podem ser feitos e desfeitos segundo as circunstâncias, o que se pode esperar? Um ambiente dessa natureza melhor se ajusta a um mundo “ambíguo, vago, plástico, incerto, paradoxal, até caótico”.

A consequência natural para essa percepção sugere que os novos gerentes evitem a manutenção de regras de conduta estáveis e permanentes. A fluidez das possibilidades leva-os a participar do “jogo da incerteza” e a buscar o caos, não a ordem. Fora, então, com a rotina ordeira do passado e que venha o caos e a incerteza crônica, que melhor se ajustam ao tipo de globalização hoje praticado. Consistente com o neoliberalismo praticado, pode-se afirmar que a nova filosofia gerencial é a da desregulamentação abrangente (Bauman, 2011Bauman, Zygmunt (2011 [2022]). Danos Colaterais. Rio de Janeiro: Schwarcz S.A. :65-66). O mundo passa a ser um campo de caça, onde investimentos são feitos em países de baixas taxas salariais, que são abandonados, quando novos locais se mostram mais rentáveis ou menos arriscados. Rachman (Valor, 14-16/12023Rachman, Gideon (2023). Geopolítica ameaça destruir o mundo de Davos. Financial Times/Valor Econômico, 14/16.01.2023; p.A12. :A12) fala que é imprudente para as empresas “depender de cadeias de suprimentos complexas ou vulneráveis a doenças, à guerra ou a outras emergências”. A Apple, por exemplo, que se gabava de montar na China produtos criados na Califórnia, “passou a produzir cada vez mais na Índia e no Vietnã”.

Tal ambiente polarizado de trabalho favorece o aumento da desigualdade. Bauman (idem: 66-67) usa dados do principal economista do Banco Mundial para dizer que “No início do século XXI, os 5% mais ricos da população recebe 1/3 da renda global total, a mesma proporção que os 80% mais pobres”. Resumindo: “Sob condições de desregulamentação das movimentações de capital em âmbito planetário, o crescimento econômico não se traduz em crescimento da igualdade. Pelo contrário: é um dos principais fatores de enriquecimento dos ricos e de crescente pauperização dos pobres”.

O conjunto da obra de Bauman é mergulho na compreensão da modernidade. Entendê-lo é perceber que não existe mais aquele homem que havia estudado com afinco na universidade onde se formou com méritos. Não foi difícil para ele arranjar um bom emprego em uma firma em ascensão. As probabilidades de ser mandado embora eram baixas e, por isso, ele se dedicou a encontrar uma boa mulher. Com ela se casou e teve filhos, educados com carinho e saúde. As perspectivas da família nuclear repousavam quase na certeza de que, no futuro, eles ficariam melhores que seus pais, porque era dominante a visão de crescimento sempre presente na economia do país. Esse homem era a síntese do WASP, o acrônimo inglês para branco-anglo-saxão-protestante. Olhem ao redor e procurem algo que ao menos se aproxime disso.

Outros trabalhos incorporaram elementos de análise a um sistema que tem levado ao desemprego estrutural e a desequilíbrios crescentes de renda e de riqueza. Sennett (2008Sennett, Richard (2008). A Corrosão do Caráter - consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record.:13-51), professor de sociologia, enfrentou a questão das condições de trabalho das empresas norte-americanas, com relação àquelas do século passado, fazendo um contraponto entre a maior flexibilidade atual e a monotonia e insalubridade da linha de montagem. Para ele, o fator que melhor define o trabalho contemporâneo é a ênfase no curto prazo, que se opõe ao longo prazo que fundamentava o tempo anterior, o tempo do capitalismo industrial. Elaboração e execução de projetos de desenvolvimento tomavam muito tempo, um tempo em que se criavam e ampliavam relações de confiança, comprometimento e ajuda mútua, qualidades essenciais para a formação do caráter dos indivíduos. A perda da estabilidade no mundo teria provocado a corrosão do caráter e trazido uma incerteza singular porque não associada a qualquer desastre histórico iminente. A perda da noção de longo prazo seria desorientadora, porque “afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento”.

Tudo bem, em alguns casos a flexibilidade é positiva, porque permite aos trabalhadores exercitarem sua criatividade para enfrentar novos desafios, ao contrário das rotinas asfixiantes do fordismo. Algumas etapas do lançamento do telescópio espacial James Webb, certamente. Esse é o projeto científico mais ambicioso e caro em muito tempo. Como parece que já deu certo, a compreensão do universo aumentará muito, mas só a mobilização de recursos públicos de longo prazo de agências norte-americanas, europeias e canadenses conseguiu enfrentar um programa de tal complexidade.

III. Impactos também se mostram evidentes nos aspectos ligados à segurança pessoal e nacional. O capitalismo continua a estimular o consumismo, mas suas contradições o levam a assumir, paulatinamente, um novo papel: o enfrentamento do medo e da insegurança. Como os estranhos são vistos como perigosos, toda a estratégia dos governos das nações avançadas se desviou para a segurança pessoal e nacional.

No caso da segurança pessoal, campo do inimigo interno, Bauman (2011Bauman, Zygmunt (2011 [2022]). Danos Colaterais. Rio de Janeiro: Schwarcz S.A. :82--84) menciona os condomínios fechados da cidade de São Paulo, que se torna, cada vez mais, uma cidade murada, com barreiras físicas por toda parte, que impõem uma nova lógica de vigilância. Grades separam os “guetos voluntários” para os ricos de dentro e os “guetos involuntários” para os de fora. Ameaças ao corpo e às propriedades justificam a busca de proteção pessoal e se condensam em impulsos segregacionistas e exclusivistas.

Vive-se, também, a paranoia da segurança nacional, que é o campo do inimigo externo. As guerras se transformaram radicalmente. No passado, ainda que canhões, aviões e navios fossem usados, a última palavra era sempre dada pela infantaria. Para dominar um espaço geográfico visto como estratégico, era preciso tirar de lá seus defensores, o que só ocorria nas batalhas corpo a corpo, baionetas contra baionetas. E, depois da vitória, era necessário manter a conquista, o que envolvia responsabilidade sobre os sobreviventes, os novos prisioneiros. Novamente, vitoriosos e perdedores se tornavam escravos do sistema. Agora não. Um filme norte-americano de poucos anos atrás mostrou um especialista militar, que morava com a família numa cidade meio desértica do Centro-Oeste do país, saindo para o trabalho diário. Este consistia em comandar mísseis balísticos para ataques a inimigos situados a milhares de quilômetros de distância. Ao final do dia, após eliminar vários indivíduos, ele voltava ao lar para as atividades rotineiras de sua família de classe média. Tudo limpo, nenhum sangue respingado e nenhuma obrigação de gastos com construções e manutenção de prédios na área atacada. Nenhuma responsabilidade pelo destino daqueles povos.

Há quem diga que a modernidade acabou com a guerra entre países. Agora, só existiriam guerras internas ou localizadas em áreas conflagradas por etnias próximas no sangue e distantes na alma. Para as potências detentoras de tecnologia de destruição em massa, tudo não passaria de “jogos de guerra”. O conflito entre Rússia e Ucrânia não parece alterar o diagnóstico; ele apenas recupera o conceito de “guerra de velho estilo”.

Tratando do mesmo assunto, Eco (2006Eco, Umberto (2006 [2022]). A Passo de Caranguejo - guerras quentes e o populismo da mídia. Rio de Janeiro: Editora Record Ltda. :17-38) faz uma diferenciação entre Paleoguerras e Neoguerras. Pode-se dizer que as Paleoguerras são as guerras tradicionais, que buscam derrotar os inimigos para lhes infligir uma perda, geralmente territorial. Para tanto, é aceitável contar com perdas de vidas humanas, desde que inferiores às do inimigo. Este é conhecido e se sabe onde ele se encontra, de modo que o confronto é “frontal e envolve dois ou mais territórios reconhecíveis”. A guerra Rússia vs Ucrânia parece caber neste grupo.

A transição para as Neoguerras se fez por meio da Guerra Fria, que eliminou a diferença entre os beligerantes, muitos dos quais detentores da tecnologia nuclear. Neste caso, havia uma tensão de paz beligerante ou de beligerância pacífica, de equilíbrio do terror, que garantia estabilidade no centro e instabilidade na periferia, onde ocorriam Paleoguerras marginais (Vietnã, Oriente Médio, Estados Africanos etc.). “No fundo, a Guerra Fria garantia a paz ao Primeiro e Segundos Mundos, à custa de algumas guerras de temporada ou endêmicas no Terceiro” (idem:18).

Quais as características deste novo tipo de conflito? Em primeiro lugar, a guerra não é frontal e é incerta a identidade do inimigo. Onde ele está? Muitos deles podem residir em nossos próprios países, assim como os nossos também podem estar nos territórios deles. O inimigo está na nossa retaguarda. O foco mudou para levar o terror para o público em geral. A guerra se tornou midiática. Bin Laden levou ao pânico a maior potência ao destruir as torres gêmeas, não porque elas fossem um alvo militar, mas por seu impacto psicológico. Se Eles conseguiram alcançar Manhattan, quem protegerá nosso país? As respostas vieram ao longo de anos em que viajar para o exterior implicou a aceitação de uma série de medidas de segurança, que incomodavam e prejudicavam seus interesses. Em nome da segurança nacional, as grandes potências se dedicaram a eliminar os inimigos à distância, contando com imagens de satélites e misseis intercontinentais sem precisar invadir territórios.

Esse é o pano de fundo do mundo atual. Todos têm seus inimigos naturais. Os da Inglaterra pré-Brexit, eram os poloneses, que roubavam seus empregos; os da Rússia, os ucranianos; os dos Estados Unidos, a China, que não consegue se entender com Taiwan. Mesmo dentro de países menores, grupos de nacionais são tratados como se fossem externos, como os ciganos para os húngaros.

Tudo parece apontar para uma nova Guerra Fria entre o Ocidente e o Oriente. A política produtivista de Biden busca trilhar o caminho da desglobalização, ao tentar atrair de volta à casa as empresas que foram para a China e ao impor proibição de vendas de circuitos integrados avançados para seu rival. A China reage e investe pesadamente em busca de autonomia de tecnologia de ponta e ameaça Taiwan, maior produtora mundial dos desejados circuitos. As duas maiores potências econômicas do mundo gostariam de se divorciar, mas não sabem como dividir o patrimônio comum. A dependência econômica mútua os leva a manter um casamento de fachada, odioso, mas inevitável.

Talvez se possa dizer, então, que os fundamentos da insatisfação generalizada devem ser procurados nas práticas de um Neoliberalismo estéril, que estimula o homem ao consumismo fútil, ao tempo em que o amedronta com o apocalipse da guerra final.

Para finalizar a seção, mais recentemente, outros dois economistas fizeram aportes significativos ao debate acerca do futuro do Neoliberalismo. Rugitsky (2020Rugitsky, Fernando (Oct.23, 2020). The Decline of Neoliberalism: a play in three acts. Brazilian Journal of Political Economy, vol42, nº 4, outubro. dezembro /2022. https://doi.org/101590/0101-31572020-3202.
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), por exemplo, defendeu a ideia de debacle do Neoliberalismo a partir da crise financeira mundial de 2008 e do advento da pandemia de COVID. Seu artigo começou pela explicitação do desmonte da articulação do mercado mundial que prevalecia até 2008. Essa articulação, caracterizada por um padrão de desequilíbrios econômicos, envolvia três tipos de atores: no primeiro grupo, estariam os países deficitários ou geradores líquidos de demanda, basicamente Estados Unidos e Reino Unido; no segundo, os países exportadores de manufaturas, China e Alemanha, principalmente; no terceiro, os países exportadores primários de commodities, aí incluídos a Rússia e o Brasil.

Apesar das fortes medidas mundiais de combate à crise, os países mais afetados foram os do primeiro grupo devido ao forte aumento dos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, Reino Unido e periferia da Zona do Euro. As pesadas consequências econômicas e políticas da crise provocaram uma onda global de protestos e deslocamentos eleitorais, que são evidências de uma crise da hegemonia neoliberal. A esse respeito, o autor diferencia políticas neoliberais, que ainda estão sendo implementadas, mesmo durante a pandemia, de hegemonia neoliberal, cujo projeto já teria se esgotado. Em poucas palavras, o neoliberalismo “ainda mantém sua capacidade de dominar, mas perdeu a habilidade de persuadir”.

O enfraquecimento dos partidos centristas refletiu a polarização de suas estruturas de classe, fenômeno que já vinha ocorrendo há décadas devido a políticas neoliberais. Nos Estados Unidos, tais práticas permitiram a apropriação de renda pelo 1% do segmento mais rico, ao tempo em que eliminou empregos para os grupos de salários intermediários e concentrou as classes trabalhadoras nas indústrias mais precárias, ampliando suas perdas salariais e aumentando sua insegurança econômica. Na Zona do Euro, a reação foi mais sutil: não se mexeu nas políticas nacionais, mas a decisão de manter o Neoliberalismo foi tomada pela tecnocracia europeia, totalmente aliada ao establishment econômico.

Lembrando que o artigo foi escrito durante a pandemia, a principal conclusão de Rugitsky é que a COVID, que veio pouco depois da crise de 2008, poderia apontar para algo novo que possibilitasse maior ativismo do estado na economia, mas que não necessariamente implicaria perdas para as políticas neoliberais. O que importa para esse sistema é a manutenção de mecanismos que canalizem o superávit para o topo e o alargamento do aparato repressivo para a base. Ou seja, a questão não é simplesmente de retorno ao ativismo do estado, mas de implantar um nova direção, um novo caráter, desse ativismo a favor de restringir os mecanismos que impeçam a competição no mercado.

Abdal e Ferreira (2021Abdal, Alexandre e Ferreira, Douglas M (Feb.21, 2021). Deglobalization, Globalization, and the Pandemic. Journal of World-Systems Research, vol. 27, Issue 1, p. 202-230.:202-230) partem dos mesmos objetivos de Rugitsky, ao estudar os impactos de curto, médio e longo prazos da Crise Financeira de 2007- -2008 e da pandemia na trajetória do economia capitalista mundial. Eles se perguntam se esses eventos levaram ao abandono do projeto de globalização norte-americano e se isso fortaleceu a emergência da China como poder econômico e geopolítico, enquanto enfraqueceu a hegemonia norte-americana. Mais: nos Estados Unidos, a liderança contra a globalização vem de forças populistas autoritárias. Sua agenda incluiria, por um lado, a repatriação de indústrias e o protecionismo comercial, mantidas as finanças desregulamentadas; por outro, autoritarismo, supremacismo e racismo. Um programa desta natureza caracterizaria os Estados Unidos como um elemento desestabilizador da ordem global onde ele dominaria, nas não teria hegemonia. “Isto é, [disporia de] meios desproporcionais de violência sem capacidade legítima de liderança.”

Esses dois últimos textos apontaram para alguma esperança de mudanças nas políticas econômicas pós-pandemia; alguma forma, talvez, de cooperação internacional nas esferas econômica e sanitária com traços social-democratas. Isso ainda não está claro.

5. O PÓS-CAPITALISMO

Há quem creia num retorno no tempo e que os próximos anos também podem refletir algo parecido com o ocorrido no século XX: o Estado Nacional retomará o controle da situação e imporá seu poder ao Neoliberalismo destrutivo das melhores facetas do caráter humano. Uma variante, talvez, da forma com que Roosevelt o fez com o New Deal, que propiciou as garantias de um estado assistencialista, com o surgimento de sindicatos fortes e empresas que atuavam em grande escala, tudo isso combinado de modo a produzir uma nova era de estabilidade.

Paul Mason (2017Mason, Paul (2017). Pós-capitalismo - um guia para nosso futuro. SP: Cia das Letras.:9-26) não aceita essa hipótese. O autor afirma que o neoliberalismo é a doutrina de mercados sem controle, onde indivíduos sem escrúpulos abrem seu caminho para a prosperidade. Esses indivíduos defendem as ideias de que o Estado deve ser pequeno e que a especulação financeira e a desigualdade são boas. Apesar disso e de ter reavivado uma desigualdade econômica que não se via há cem anos, o Neoliberalismo teria suscitado o maior desenvolvimento do mundo, particularmente em tecnologias centrais de informação. Bem, essa é uma afirmação bastante duvidosa. Pode-se dizer que houve uma coincidência temporal entre transformações tecnológicas e Neoliberalismo, mas não necessariamente que tenha ­havido uma relação de causa e efeito. O surto tecnológico recente é resultado da engenhosidade de uma geração de engenheiros e tecnólogos, cujos projetos encontraram financiamento adequado.

Há que se concordar, porém, com a tendência de concentração de renda. Usando os dados das contas nacionais dos Estados Unidos, medidos pelo Federal Reserve, no ano de 1950 a remuneração do trabalho, que inclui salários e contribuições patronais e dos empregados para a seguridade social, era da ordem de 59% do total da renda nacional. O período de forte crescimento industrial do pós-guerra desconcentrou a renda dos trabalhadores que, em 1980, se apropriavam de 68% da renda nacional. A partir desse ano marcante do domínio do Neoliberalismo, nova reconcentração da renda do trabalho implicou uma queda de cinco pontos percentuais, para 63%, no ano 2000.

O capitalismo é visto como “um sistema complexo, que opera fora do controle de indivíduos, governos e mesmo superpotências. [...] é também um organismo em aprendizado: ele se adapta de modo contínuo, e não apenas em pequenos aperfeiçoamentos. [...] E seu instinto de sobrevivência mais básico é propulsar mudanças tecnológicas”. Só que as tecnologias criadas não se compatibilizam com o capitalismo, particularmente a tecnologia de informação, que reduziu a necessidade de trabalho e obscureceu as fronteiras entre trabalho e tempo livre, com isso afrouxando a relação entre trabalho e salário. Além disso, “os bens de informação estão corroendo a capacidade do mercado de formar preços corretamente, porque os mercados se baseiam na escassez, ao passo que a informação é abundante”. O mecanismo de defesa do sistema é formar monopólios numa escala nunca vista nos últimos duzentos anos - no entanto, eles não podem durar. “[Finalmente], porque estamos assistindo à ascensão espontânea de produção cooperativa: estão aparecendo bens, serviços e organizações que não mais respondem aos ditames do mercado e da hierarquia gerencial” (Mason (2017Mason, Paul (2017). Pós-capitalismo - um guia para nosso futuro. SP: Cia das Letras.:15-18). Após a crise financeira iniciada em 2008, começaram a aparecer nichos de mercado, que a mídia denominou de “economia de compartilhamento”, que vêm agregando a seus negócios novas formas de propriedade, de empréstimo e de contratos legais.

Mason (2017Mason, Paul (2017). Pós-capitalismo - um guia para nosso futuro. SP: Cia das Letras.:18-19) não vê retorno possível a fases pretéritas de organização social da produção. “O terreno do capitalismo mudou [com relação ao projeto socialista, capitaneado pelo Estado]: ele é global, fragmentário, ajustado a escolhas de pequena escala, trabalho temporário e múltiplos conjuntos de capacidade. No novo terreno, o velho caminho se perdeu. Mas um caminho diferente se abriu. A produção cooperativa, usando tecnologia em rede para produzir bens e serviços que só funcionam quando são livres ou compartilhados, define a rota para fora do sistema de mercado. Ela precisará que o Estado crie a moldura, e o setor pós-capitalista talvez coexista com o setor de mercado por décadas ainda. Mas está acontecendo.”

6. ECOS DAS MUDANÇAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS PARA O MUNDO

Algumas perguntas foram feitas na introdução, questionando a capacidade de os governos darem respostas concretas aos problemas da vida real.

Uma tem a ver com a hipótese de existência de uma eventual natureza cíclica, que a levaria a alternar períodos de regulação e de desregulação da economia. A seção 1 abordou essa questão. Não parece exagerado achar que essa hipótese se sustenta. As características do início dos séculos XX e XXI foram parecidas, mas as suas consequências políticas e econômicas ainda não estão claras. As crises econômicas e humanitárias do século XX, fruto da quebra da ordem mundial que levou cada nação a “tratar de si”, tiveram como consequência a reposição de uma ordem intervencionista do Estado sobre as forças do mercado. As mesmas crises do século XXI seguem caminhos diversos: contesta-se a globalização dos mercados, mas o Neoliberalismo que lhes deu origem segue firme. Rugitsky diria que as políticas neoliberais se mantêm, mas não a esgotada hegemonia neoliberal, o poder de convencer. Como poderia fazê-lo à luz, por exemplo, da falta de qualquer contribuição mundial expressiva no combate à COVID nos países pobres? No Brasil, país de renda média, o esforço foi arcado pelo Sistema Único de Saúde, apesar de suas conhecidas limitações financeiras.

Lá atrás, a crise abriu espaço à mudança. O fortalecimento do Estado Nacional propiciou os trinta anos dourados (1944-1973) do capitalismo industrial norte-americano, que permitiu desconcentração da renda em favor dos salários e a consequente melhoria das condições de vida do trabalhador. Nas jornadas atuais, não há mudança estrutural desse quilate e os donos do poder continuam os mesmos; logo, as soluções apresentadas são as mesmas: mais liberdade ao capital, particularmente o financeiro. Melhor dizendo: o que a não ordem propõe são não soluções.

Outra questão é se o capitalismo estaria se aproximando de seu final histórico, ainda que talvez fosse melhor explicitar se tratar do futuro do Neoliberalismo. Mason afirma que sim, porque haveria incompatibilidade entre o capital e a tecnologia de informação e porque os bens de informação estariam corroendo a capacidade de o mercado formar preços corretamente. Quando o sistema perde a capacidade de usar a tecnologia a seu favor, sua defesa habitual é a de impor barreiras aos competidores, políticas que têm alcance limitado no tempo. Bons argumentos.

O que não está claro é a extensão da produção cooperativa. Sim, estão surgindo organizações que “não mais respondem aos ditames do mercado”, mas, quando elas crescem e começam a incomodar, acabam sendo compradas ou incorporadas pelos gigantes do mercado. Soa ingênuo achar que o futuro será construído por seres criativos e generosos, que abririam mão dos ganhos de monopólio derivados de suas inovações. Sempre houve oposição contrária ao modo dominante de produção. Marginal, em geral.

Uma terceira questão é se a tecnologia teria enfraquecido a capacidade de a classe trabalhadora enfrentar a perda de direitos conquistados no passado. Estaria a tecnologia destruindo empregos a passos largos, aprofundando o fosso entre os assimiláveis na nova era e a vasta população de não assimiláveis? A resposta é sim, se pensarmos na modernidade líquida em Bauman e no curtoprazismo em Sennett.

Hayek, por exemplo, professava um neoliberalismo que não deveria se intrometer nas questões sociais e, por isso, a expressão “justiça social” lhe parecia uma miragem que representava grave ameaça aos valores de uma civilização livre (Brown, 2019Brown, Wendy (2019). Nas Ruínas do Neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia.:41-42). Ele enfatizava a defesa dos valores morais da família tradicional para o sucesso do Neoliberalismo. À luz das constatações de Bauman, acerca da crise terminal do casamento e dos valores sociais, e de Sennett, acerca da perda de confiança entre os trabalhadores com o advento da flexibilização do trabalho, como ficaria hoje a credibilidade de Hayek ao afirmar a importância da família tradicional?

Uma quarta questão é de onde partem as atuais tendências autoritárias? Há vida pensante e perigosa por traz dos anti-indivíduos ou conservadores reacionários. Coutinho (Folha, 07/12/2021Coutinho, João Pereira (2021). “É a Ideologia, Estúpido!”. Folha SP, 07.12.2021, p. C7.:C7) diz: esqueçam Hayek e Friedman, porque “é preciso escavar mais fundo para achar o espírito da nova direita radical”. Ele menciona o alemão Oswald Spengler, o italiano Julius Evola e o francês René Guénon como nomes preferidos dessa direita. Em comum, todos eles nasceram no final do século XIX, foram conservadores de extrema-direita e partilharam valores como tradicionalismo, racismo, fascismo, esoterismo, ódio ao mundo moderno, ao liberalismo e ao globalismo. Schwartsman (Folha, 17/04/2022Schwartsman, Hélio (2022). “Um livro de meter medo”. Folha SP , 17.04.2022, p.A2.:A2) vai na mesma direção ao criticar outros pensadores de extrema direita. Além de Spengler e Evola, já mencionados, os norte-americanos Francis Parker Yockey e Samuel Francis, além do francês Alain de Benoist, nascidos no século XX. O cardápio é o mesmo: racismo, ódio à democracia e ao igualitarismo. Será que Olavo de Carvalho (1947-2022), pensador esotérico brasileiro, envolvido com astrologia e alquimia, iliberal e radical de direita, os conhecia?

Em síntese, aqui se entende que os ciclos de regulação/desregulação; a prevalência do Neoliberalismo, que exacerba as incompatibilidades entre tecnologia e capitalismo e favorece a paranoia da segurança interna e externa, que distrai a atenção da enorme apropriação privada de capitais pelos mais ricos; e o enfraquecimento do trabalho ante o capital estão na raiz do crescente desconforto das populações do mundo atual. Eles também têm responsabilidade pelas tendências autoritárias que se notam em governos que apontam para a extrema direita, assim como para mudanças na geopolítica mundial, com a eventual perda de hegemonia dos Estados Unidos, em favor de uma mudança no eixo geográfico do mundo no rumo da Ásia.

Finalizando, o texto voltou até ao século XVI para tentar entender a grande criação da Europa: o homem racional, confiante, autossuficiente, individualista. Um ser poderoso, liberal, que pretendeu enterrar em vala profunda as gerações passadas que valorizavam os laços comunais. Sua vitória foi ampla, mas não decisiva. Ampla, porque pondo o foco no futuro, ele soube afirmar a necessidade de mobilização política em torno de seus projetos pessoais de mudança. Não decisiva, porque o conservador liberal também foi criado na modernidade europeia. Esse indivíduo põe foco no presente e se satisfaz com projetos menos maiúsculos: tirar da vida aquilo que ela pode oferecer... agora. Para Oakeshott e Burke, seria esse o homem numericamente majoritário, não o liberal dominador.

O conservador reacionário, também tenta se afirmar na sociedade ao se apegar a um passado idílico, onde tudo era melhor que hoje. Ele primeiro foi visto como um ser irrelevante, talvez um pobre coitado no meio de um mundo que não compreendia. Depois, com a consciência adquirida de fazer parte de um grupo numeroso, mostrou ser um anti-indivíduo, que engrossou as massas iletradas e ressentidas. Desde então, ele vagueia por aí, como se fosse “um personagem à procura de um papel”, como se costuma dizer, mas tem feito um estrago enorme. Vide o 8 de janeiro em Brasília!

Os neoliberais têm assento cativo nessa turma da saudade: educação privada é assunto para os pais, não para o Estado; criptomoedas sem qualquer garantia governamental convivem com governos fracos que propõem regulamentação para o que devia ser proibido; políticas sociais decadentes em nome da preservação dos direitos dos endinheirados. Serão os neoliberais apenas uma radicalização do Liberalismo Clássico? Não! O Liberalismo Clássico exibiu componentes revolucionários ao enfrentar a aristocracia estéril e buscar substituí-la pela emergente burguesia industrial como polo dinâmico da economia. Os neoliberais não fazem nada parecido nessa época de capitalismo financeiro. Não é factível achar que as mudanças tecnológicas devam algo a esse movimento cada vez mais ideológico e reacionário.

Entrados no século XXI, já se teve uma crise econômica global, que começou em 2008 e só deixou de ser comentada uns dez anos depois. Na sequência, a ­COVID assumiu o centro do palco e hesita em sair de cena. Agora, uma guerra de estilo tradicional, por enquanto, no seio da Europa. O que mais? A Fortaleza Europa se sente acuada em face do suposto envelhecimento de suas instituições democráticas enquanto vê crescer tendências autoritárias dentro de seus próprios muros? O Oriente emergente mostra as garras e cobra um espaço de relevância na geopolítica internacional? Os Estados Unidos piscaram ante o avanço tecnológico da China? Estariam eles pressionados pelo poder por ora perdido de Trump? Interrogações, muitas interrogações... Na busca de respostas, a humanidade conseguirá se livrar da estupidez?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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