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Desigualdade e acumulação de capital no capitalismo periférico* * Notas que Raúl Prebisch preparou, em inglês, para uma comunicação perante o Instituto das Américas, em dezembro de 1984. Traduzido por Jalmar Nordin Carlson.

Inequality and capital accumulation in peripherical capitalism

RESUMO

O artigo argumenta que nos países em desenvolvimento as mudanças nas relações políticas e sociais assim como o progresso técnico criam uma tendência sistemática para um desequilíbrio dinâmico entre consumo e investimento. Nessas condições, a continuidade do crescimento requer uma política macroeconômica voltada para o aumento da taxa de acumulação por meio da redução do consumo agregado tanto das classes capitalistas quanto das classes trabalhadoras. Politicamente, esse tipo de política regulatória deve ser visto como uma oportunidade para a classe trabalhadora aumentar sua participação na propriedade da riqueza.

PALAVRAS-CHAVE:
Desigualdade; crescimento econômico; demanda efetiva; produtividade

ABSTRACT

The paper argues that in developing countries the changing political and social relations so as the technical progress create a systematic tendency for a dynamic disequilibrium between consumption and investment. Under these conditions, continued growth requires a macroeconomic policy directed to increase the rate of accumulation through a reduction in the aggregate consumption of both capitalist and working classes. Politically this kind of regulatory policy should be seen as an opportunity for the working class to increase its share in the wealth ownership.

KEYWORDS:
Inequality; economic growth; effective demand; productivity

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para comentar dois fenômenos de nosso processo de desenvolvimento que são motivos de grande preocupação: a tendência a excluir dos benefícios do desenvolvimento grandes massas da população e a tendência do sistema· para conflitos entre aqueles grupos da sociedade que partilham estes benefícios, embora com grandes disparidades.

Grandes disparidades na distribuição de renda constituem uma característica persistente de nosso capitalismo. Na verdade, o sistema se baseia na desigualdade social. E a tentativa de corrigir isto com medidas de distribuição de renda além de um certo limite tem consequências dinâmicas sérias. Acho ser este o grande fracasso do capitalismo periférico.

Tentarei explicar-lhes por que isso ocorre. Os frutos da produtividade tendem a se concentrar nas mãos dos grupos de alta renda. E esta é a fonte principal de acumulação do capital necessário para a introdução do progresso técnico. Refiro-me ao capital reprodutivo, tanto em bens materiais como em capacitação humana, que multiplica o emprego e a produtividade.

Esse processo é acompanhado por importantes modificações na estrutura da sociedade e nas relações de poder. Ao longo do tempo, estas modificações estruturais tendem a debilitar a taxa de acumulação. E a isto devemos acrescentar as agudas contradições que caracterizam a penetração do progresso técnico.

Vejamos primeiro as modificações estruturais. Em primeiro lugar, a apropriação de grande parte da crescente produtividade do sistema pelos grupos sociais melhor situados é um fenômeno estrutural, devido ao considerável poder econômico, social e político destes grupos, em cujas mãos está concentrada a maior parte dos meios de produção. Chamemos de excedente econômico a parte dos frutos da produtividade que não é transferida proporcionalmente à força de trabalho.

O excedente econômico tem um papel dinâmico de suma importância; papel que pode ser cumprido regularmente enquanto a força de trabalho mantém-se passiva e o Estado tem influência menor sobre o desenvolvimento. Isto, no entanto, não dura para sempre. Realmente, com as modificações na estrutura da sociedade e o avanço no processo democrático, o poder dos grupos de alta renda passa a ser enfrentado pelo poder sindical e político da força de trabalho e pelo crescente poder do Estado. Ao longo do tempo, estas novas formas de poder redistributivo interferem com a taxa de crescimento do excedente e da acumulação do capital reprodutivo é, consequentemente, com as taxas de crescimento do emprego e da produtividade.

Mas isso não é suficiente para explicar a crise do capitalismo periférico: Devemos agora introduzir as contradições na penetração do progresso técnico. Os países latino-americanos, até o final da década de 70, registraram muitos anos de elevadas taxas de produtividade devidas à introdução de técnicas produtivas provenientes de centros capitalistas desenvolvidos. Ao mesmo tempo, porém, imitamos - em alguns casos freneticamente - as formas avançadas de consumo que estes centros estimulam continuamente através de inovações técnicas que diversificam e difundem bens e serviços graças às influências dominantes dos meios de divulgação. Mas isto não é tudo. Enquanto a taxa de acumulação do capital tende a diminuir, a taxa de crescimento da população atinge valores extraordinários graças aos avanços científicos e tecnológicos: mais uma aguda contradição do progresso. Não esqueçamos os efeitos adversos da ambivalência do progresso técnico, cuja correção geralmente também requer uma taxa maior de investimento de capital.

Obviamente, isso é prejudicial à acumulação de capital reprodutivo, diferente da acumulação para fins de fruição característica da sociedade consumidora privilegiada, formada pelos grupos favorecidos na distribuição de renda.

Detenhamo-nos um momento na reflexão sobre a importância fundamental desses fatos. O curso do desenvolvimento é deformado por um fenômeno dúplice. Por um lado, o crescente poder da força de trabalho e do Estado reduz a taxa de crescimento do excedente. Por outro lado, a pressão do consumo também tem um efeito desfavorável sobre a acumulação reprodutiva.

O capitalismo periférico está longe de ser austero. A sociedade consumidora privilegiada é uma negação cabal da austeridade. Deveras, assim como os grupos de alta renda estão prontos a aumentar seu consumo, o mesmo acontece, em menor escala, quando a redistribuição de renda melhora os ganhos dos trabalhadores, exceção feita às grandes massas deixadas para trás. Mais ainda, o consumo social cresce através do Estado, e a isto se somam os gastos civis e militares em expansão.

Acontece que o aumento dessas formas adicionais de consumo e gastos não se dá à custa do consumo pelos grupos favorecidos de renda elevada da sociedade, mas se sobrepõe a ele, em detrimento da taxa de acumulação do capital reprodutivo.

Não é de se estranhar que haja uma tendência de excluir essas grandes massas da população dos benefícios do desenvolvimento. Mas isto não explica plenamente as tendências conflituosas do sistema.

Tenho que dizer algumas palavras sobre esse aspecto. O progresso técnico penetra através de sucessivos níveis de produtividade. No entanto, as empresas que investem em novos níveis de produtividade, mais elevados que os previamente existentes, não pagam à força de trabalho adicional empregada salários plenamente correspondentes a essa produtividade mais elevada. A explicação é bastante simples. Isto se deve ao fato de que a concorrência da mão-de-obra já empregada com a produtividade menor impede a melhoria dos ganhos dos recém-empregados com maior produtividade. A intensidade dessa concorrência depende, por um lado, da proporção de força de trabalho empregada com produtividade inferior e da taxa de aumento da força de trabalho e, por outro lado, da taxa de acumulação do capital.

Isto significa que a austeridade poderia fortalecer consideravelmente a capacidade da força de trabalho de partilhar do incremento da produtividade. Mas nosso capitalismo está longe de ser austero.

No entanto, se proporção considerável da produtividade é apropriada pelas empresas, por que a concorrência entre elas não produz uma redução dos preços através da difusão social dos frutos do desenvolvimento?

Tentarei responder a esta questão de um modo esquemático. Se a famosa lei de Say estivesse correta, os preços cairiam. Realmente, a oferta de produtos finais chegando ao mercado num certo período de tempo criaria sua própria demanda, graças à renda paga à força de trabalho.

No entanto, como a força de trabalho não recebe o total do incremento da produtividade, a demanda se revela insuficiente.

Se é assim, de onde vem a demanda adicional para absorver o aumento total da produtividade? Isto requer uma explicação dinâmica. A produção não é estática. Num processo de crescimento, a demanda por produtos finais num período dado de tempo vem da renda que está sendo paga à força de trabalho no processo de produção de uma quantidade de produtos finais futuros maior que a quantidade de produtos finais entrando no mercado no mesmo período. Em outras palavras, a demanda surge de emprego em maior escala e de salários mais elevados, e deste modo o aumento de produtividade não transferido à força de trabalho é absorvido pelas empresas sob forma de excedente adicional.

Consequentemente, há duas variáveis significativas num processo dinâmico: aumento da demanda, por um lado, e aumento da produtividade, por outro. O primeiro deveria pelo menos igualar o segundo para assegurar o crescimento regular do excedente e a continuação do processo produtivo.

O que ocorre então quando a taxa de aumento de salários é empurrada além da taxa de aumento da produtividade? A demanda revela-se maior que a oferta e os preços sobem. Se a autoridade monetária aplicasse uma política restritiva, poderia forçar as empresas a absorver o aumento de salários em detrimento da taxa de crescimento do excedente, ou mesmo do próprio excedente, com recessão ou depressão como resultado. Pelo contrário, se a autoridade monetária segue uma política expansionista, a espiral inflacionária torna-se inevitável quando os salários igualam o aumento de preços.

Aconteça o que acontecer, a culpa recai sobre a autoridade monetária. A regulação macroeconômica da moeda poderia ter êxito em etapas estruturais passadas do desenvolvimento. Mas não quando o poder distributivo do trabalho e do Estado se torna mais e mais eficaz. Devo acrescentar que empurrar a taxa de salários além da taxa de produtividade deve-se ao desejo legítimo dos trabalhadores não só de participar em maior medida dos frutos da produtividade, mas também de recuperar o que o trabalho perdeu por conta de impostos e contribuições sociais que pesam sobre seus ombros.

Quando a espiral vai muito longe, a autoridade monetária não tem outro recurso senão uma intensa restrição do crédito, com a correspondente queda do emprego e contração da atividade, até que mais cedo ou mais tarde os salários reais sejam reduzidos, criando condições favoráveis à restauração do excedente econômico.

As consequências econômicas e sociais são bastante pesadas, bem como as implicações políticas. E, além disto, o aspecto ético do processo de reajuste é inaceitável. Em nossos países, onde a democracia não repousa em fundamentos muito sólidos, a inflação e a contração prejudicam seriamente o processo político de qualquer ponto de vista. Caminhos e meios devem ser encontrados para promover o funcionamento regular e equânime do sistema.

Em resumo, as modificações na estrutura da sociedade, as alterações correspondentes nas relações de poder e as contradições do progresso técnico estimulam uma tendência para um desequilíbrio dinâmico entre consumo e investimento reprodutivo que não pode ser corrigido pela regulação monetária. Outras formas de regulação macroeconômica são necessárias para corrigi-lo. É necessário restringir o consumo dos grupos de alta renda para aumentar a taxa de acumulação do capital e também mudar sua composição. E limitar igualmente o aumento do consumo pela força de trabalho à medida que melhoram seus ganhos. Isto dá aos trabalhadores a oportunidade de participar na acumulação, como alternativa a acumular somente por meio do aumento do excedente dos grupos de alta renda, o que agrava a desigualdade na propriedade da riqueza.

O tempo me impede de tratar de outra tendência a um desequilíbrio dinâmico, de caráter externo. Esta reapareceu com intensidade, agravada pela carga intolerável da dívida externa, uma expressão clara de irresponsabilidade de ambas as partes.

Devemos enfrentar decididamente problemas políticos que são realmente difíceis. A força de trabalho conquistou considerável poder no curso do desenvolvimento, seja diretamente, seja através do Estado. Mas ela ainda não se mostrou capaz de usar esse poder para transformar o funcionamento do sistema, fortalecendo a igualdade e o processo democrático. As ideias estão atrasadas em relação aos acontecimentos. Novas ideias e novas formas de ação são urgentemente necessárias.

Os liberalismos, político e econômico, nasceram juntos da mesma fonte filosófica, mas agora já se separaram bastante. A transformação do sistema deveria restaurar sua unidade original. Tal é a grande síntese que devemos perseguir: como combinar a regulação macroeconômica do sistema com o correto funcionamento das leis de mercado.

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    Notas que Raúl Prebisch preparou, em inglês, para uma comunicação perante o Instituto das Américas, em dezembro de 1984. Traduzido por Jalmar Nordin Carlson.
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    JEL Classification: E21; E25; O43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1987
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