Acessibilidade / Reportar erro

A nova ortodoxia do desenvolvimento: uma crítica do debate em torno da visão do Banco Mundial e elementos para uma abordagem alternativa neo-schumpeteriana* * Agradecemos o proveitoso intercâmbio de ideias com Fabio Stefano Erber. Como de praxe, os pensamentos desenvolvidos são de responsabilidade do autor, fazendo parte do programa de pesquisa para o doutorado.

The new development orthodoxy: a critique of the debate around the World Bank’s vision and elements for an alternative neo-Schumpeterian approach

RESUMO

O objetivo deste artigo é criticar o debate sobre a nova visão hegemônica do processo de desenvolvimento proposta pelo Banco Mundial. Primeiro, apresenta a insuficiência teórica do debate centrado no conceito de falhas de mercado, apontando que a abordagem neoclássica domina seus termos. Segundo, são apresentados alguns elementos teóricos de uma visão neo-schumpeteriana alternativa que rompe radicalmente com os fundamentos neoclássicos, incorporando história, instituições e mudanças tecnológicas na análise do processo de desenvolvimento, independentemente dos conceitos de falhas de mercado ou ideais.

PALAVRAS-CHAVE:
Desenvolvimento econômico; análise neo-schumpeteriana; globalização

ABSTRACT

The purpose of this paper is to criticize the debate about the new hegemonic view of the development process as proposed by the World Bank. First, it presents the theoretical insufficiency of the debate centered upon the concept of market failures, pointing that the neoclassical approach dominates its terms. Second, some theoretical elements of an alternative neo-Schumpeterian view are presented which breaks radically with the neoclassical foundations, embodying history, institutions and technological change in the analysis of the development process, independently of either optimum or market failures concepts.

KEYWORDS:
Economic development; neo-Schumpeterian analysis; globalization

1. INTRODUÇÃO

A questão do desenvolvimento e do papel do Estado na economia, em particular para os casos de industrialização tardia, tem sido debatida no período recente tendo como pano de fundo a experiência do leste asiático confrontada com a experiência de outras regiões, com destaque para a América Latina. Através do estudo dessas experiências, o sucesso dos países do leste asiático e o fracasso dos países latino-americanos lastreariam as distintas acepções teóricas acerca das causas essenciais do desenvolvimento econômico e das possibilidades de catch-up por partes dos países menos desenvolvidos, conferindo uma base normativa para se pensar o papel do Estado neste processo.

Este procedimento tem sido adotado tanto por parte dos enfoques neoclássicos mais ortodoxos como por parte dos enfoques menos convencionais ou heterodoxos.1 1 No primeiro enfoque, pode-se citar Bela Balassa e Anne Krueger como autores representativos e, no segundo, Alice Amsden, Robert Wade e Sanjaya Lall. Dependendo da interpretação das experiências mencionadas e dos elementos selecionados para análise, chega-se a conclusões distintas sobre o papel do Estado relativamente às forças de mercado. Curiosamente, as mesmas experiências são apresentadas como fundamento de concepções radicalmente distintas, refletindo uma insuficiência teórica na abordagem do tema.

Em termos políticos mais concretos, gestou-se, no período recente, um consenso capitaneado pelo Banco Mundial, que tem se constituído na visão hegemônica sobre o tema em praticamente todos os países desenvolvidos e em desenvolvimento.

A seguinte passagem ilustra bem a visão de que se formou um consenso em torno dos fatores essenciais para o desenvolvimento:

In the past twenty years a consensus has emerged among economists on the best approach to economic development. This consensus was discussed at length in World Development Report 1991 [...] The Report highlighted the importance of a healthy private sector, which results from investments in people, a much reduced role for government, openness to (and so com­petitiveness with) the rest of the world, and macroeconomic stability. These ideas have crystallized into what is now called the “market friendly” approach. (The World Bank, 1993THE WORLD BANK (1993) The East Asian Miracle: Economic Growth and Public Policy. New York, Oxford University Press.: 85)

Este trabalho do BIRD de 1993, intitulado The East Asian Miracle: Economic Growth and Public Policy, muito mais do que um estudo voltado para o entendimento da experiência dos países asiáticos de alta performance (referidas como as High Performance Asian Economies), foi concebido com a finalidade de conferir substância teórica, histórica e empírica ao consenso mencionado. Sua dimensão tornou-se, assim, essencialmente normativa, constituindo-se na base de uma nova concepção ortodoxa acerca do papel do Estado para o desenvolvimento, que supera em muito uma visão meramente acadêmica.

O debate teórico e empírico gerado em torno desta nova ortodoxia aparece de forma clara em um suplemento da revista World Development (1994), organizado especialmente para discutir o trabalho. Neste debate, a despeito de contribuições importantes na crítica da visão hegemônica, a mencionada insuficiência teórica para tratar o desenvolvimento e a concepção associada de políticas públicas mostra-se de forma nítida.

Isso posto, este artigo pretende mostrar, em primeiro lugar, como o debate acabou sendo reduzido em termos teóricos, restringindo o âmbito do pensamento crítico aos termos propostos pela nova ortodoxia. Em segundo lugar, procura-se mostrar que o enfoque neo-schumpeteriano oferece uma alternativa teórica para se pensar o desenvolvimento, podendo constituir-se num programa de pesquisa mais rico para se tratar processos de tal complexidade, prescindindo do referencial neoclássico.2 2 Como pano de fundo desta discussão, está a preocupação com o papel do Estado na retomada do desenvolvimento brasileiro a longo prazo, a partir da crítica da visão do BIRD, que tem sido hegemônica também no contexto nacional.

2. A VISÃO DO BANCO MUNDIAL E O DEBATE RECENTE

A visão do Banco Mundial, conforme expressa no trabalho acima mencionado e na síntese efetuada por Page (1994PAGE, J. M. (1994) “The East Asian Miracle: An Introduction”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle “.), pretende constituir-se numa terceira via em relação às abordagens neoclássicas típicas e à abordagem dita revisionista, definindo-se como um “market friendly approach”.3 3 Na realidade, tanto a primeira como esta última são claramente neoclássicas, pois compartilham a abordagem marginalista, os princípios de maximização e o referencial de equilíbrio sem qualquer restrição (sobre a delimitação conceitual do método neoclássico, vide Possas, 1995). Talvez se poderia diferenciá-las, mais apropriadamente, como uma visão neoliberal pura, que minimiza por completo o papel do Estado, e uma visão liberal mais tradicional, que permite uma maior flexibilidade para a intervenção nos casos de falhas de mercado. Para uma caracterização das distintas visões vide, por exemplo, Colclough (1991). Enquanto a abordagem neoclássica descartaria o papel do Estado no desenvolvimento mesmo no caso de falhas de mercado - uma vez que as falhas de governo seriam ainda mais perniciosas - e a visão revisionista desconsideraria, em grande medida, o mercado como o elemento básico da eficiência econômica em situações de desenvolvimento tardio - sugerindo um papel ativo de políticas industriais seletivas -, o “market friendly approach” entende como benéfica uma intervenção voltada para estimular o funcionamento dos mecanismos de mercado, enfatizando as políticas governamentais funcionais.

Partindo da identificação das economias que apresentaram as mais altas taxas de crescimento da renda per capita entre 1965 e 1990 (superior a 5% ao ano), delimita-se o grupo das High Performance Asian Economies, constituído por oito países (Japão, os Tigres - Coréia do Sul, Formosa, Cingapura, Hong-Kong - e as novas economias emergentes - Malásia, Indonésia e Tailândia). A despeito da diversidade deste grupo, procura-se estabelecer uma visão geral dos fatores explicativos do sucesso, que pode ser sumariada a partir dos seguintes tópicos.

  1. Tomando como base a função neoclássica de produção (Solow, 1957SOLOW, R.M. (1957) “Technical Change and The Aggregate Production Function”. The Review of Economics and Statistics 39 (3).), enriquecida com o capital humano, o crescimento é explicado pelo ritmo de acumulação de capital (físico e humano), pela alocação eficiente dos fatores e pelo catch-up tecnológico, sendo representado tanto pela evolução natural ao longo da função de produção, com o incremento relativo da dotação de capital, como pelo seu deslocamento progressivo ascendente na direção da fronteira tecnológica. Enquanto a acumulação de capital físico e humano respondeu, em média, por 2/3 do crescimento, a contribuição dos fatores tecnológicos situou-se em 1/3, havendo um elevado Fator de Produtividade Total (Total Factor Productivity) na maior parte dos países da região (incluindo Japão, Coréia e Formosa). Estes ganhos de produtividade são explicados tanto pelo catch-up tecnológico como pela alocação eficiente dos fatores produtivos. Em suma, propõe-se uma abordagem funcional do crescimento, na qual o papel do Estado e da pressão competitiva são analisados a partir de seu impacto nas três fontes básicas do crescimento (acumulação, alocação e evolução tecnológica).4 4 Seguindo Solow (1957), partindo de uma função de produção na forma Q = A f (KF, KH, T), onde Q é o volume produzido; KF, o capital fisico; KH, o capital humano; T, o trabalho; e A, o fator tecnológico, a contribuição deste último aparece como um resíduo do crescimento que seria explicado pelo aumento de insumos, refletindo tanto a mudança tecnológica stricto sensu como ganhos alocativos (como proposto pelo BIRD), como qualquer outra variação não explicada na taxa de crescimento do produto. Constitui, assim, muito mais uma medida da ignorância ou limitação teórica acerca do processo de desenvolvimento do que um fator explicativo fundamentado.

  2. O Estado teve um papel decisivo através da garantia dos fundamentos (fundamentais) econômicos e institucionais requeridos ao comportamento eficiente dos agentes e dos mercados, notadamente a estabilidade macroeconômica, um elevado investimento em capital humano, um sistema financeiro seguro e eficiente, um ambiente favorável ao acesso à tecnologia estrangeira e preços não distorcidos em virtude de decisões políticas, respeitando a dotação de fatores.

  3. Assume-se que houve intervenções seletivas - e este seria o grande avanço em relação à visão neoclássica tradicional - consubstanciadas numa série de instrumentos de política econômica e industrial, notadamente no Japão, Coreia, Formosa e Cingapura, que utilizaram, em maior ou menor grau, crédito seletivo com controle de juros (repressão financeira), proteção discricionária a setores industriais específicos e incentivos às exportações. Não obstante, e surpreendentemente, as políticas seletivas respeitaram os sinais de mercado, evitando distorções consideráveis de preços (vis à vis os shadow prices), não alterando a base e a evolução natural das vantagens comparativas e permitindo uma canalização eficiente dos investimento. Quando os governos limitavam a concorrência no mercado, introduziam, geralmente, formas institucionais de intervenção com forte indução à contestabilidade, através de regras rígidas quanto ao desempenho das atividades protegidas. A “punição” e os incentivos governamentais substituíram o mercado como mecanismo indutor de comportamentos eficientes. As falhas de mercado, notadamente as falhas de coordenação, foram o critério básico da intervenção seletiva, gestando-se, assim, um ambiente de cooperação entre os agentes, sem restringir a pressão competitiva, seja pela via do mercado ou pela via institucional.

  4. Especificamente no que toca à política industrial, entendida (pelo BIRD) como a política governamental voltada para alterar a estrutura industrial visando o aumento da produtividade, considera-se que foi ineficaz, sendo sua concepção descartada como fator indutor do desenvolvimento. Os setores promovidos (numa análise a dois dígitos) não teriam nem aumentado sua participação na estrutura industrial nem contribuído mais do que os demais setores para o incremento da produtividade. A realidade do mercado e da dotação de fatores teria se imposto sobre os desejos da política.

  5. O viés exportador dos estímulos (considerado não muito pronunciado e genérico) desempenhou um papel-chave, havendo uma convergência positiva tanto dos fundamentais como da intervenção seletiva. Por um lado, a necessidade de um desempenho exportador favorável foi um dos critérios mais importantes para que os agentes usufruíssem os incentivos governamentais, compensando os efeitos negativos sobre a competitividade das políticas de proteção do mercado interno e mesmo das estratégias de substituição de importações que, por exemplo, caracterizaram as fases de industrialização pesada do Japão e da Coreia. Por outro lado, a presença no mercado internacional tanto impunha uma atualização tecnológica da produção asiática como facilitava a troca e negociação de conhecimentos necessários a uma estratégia de catch-up assentada, pelo menos em sua fase inicial, na transferência internacional de tecnologia.

  6. Finalmente, enfatiza-se a base política e institucional das economias asiáticas que permitiu a concretização de uma intervenção econômica bem-sucedida, consoante com o funcionamento de uma economia de mercado. A burocracia pública pôde manter-se insulada dos interesses políticos e corporativos, evitando - ou pelo menos reduzindo - ações discricionárias descoladas dos critérios de eficiência econômica e o gasto dos recursos e esforços privados para a obtenção dos favores públicos (rent-seeking). Esta relativa autonomia do aparelho estatal, por sua vez, foi beneficiada pela legitimidade dos Estados nacionais da região, que garantiram condições favoráveis em termos de equidade social, tendo também tido um papel positivo em questões como educação, distribuição da propriedade da terra, entre outras. A questão do modelo autoritário de organização do Estado e da sociedade não é aprofundada.

Isso posto, a visão que representa a posição do Banco Mundial com respeito ao desenvolvimento (e que hoje se configura como um novo consenso ortodoxo, sendo a contraface do que ficou conhecido como o “Consenso de Washington” para as reformas estruturais da América Latina - Williamson, 1990WILLIANSON, J. (1990) “Latin American Adjustment: How Much Has Happened”. Washington, Institute for International Economics.) procura sair de uma concepção neoliberal simplista para analisar as experiências do Leste Asiático, uma vez que se tornava cada vez mais insustentável a simples negação da intervenção. A saída foi, por um lado, apontar para o peso mais decisivo do papel clássico do Estado na garantia das condições externas, econômicas e institucionais, requeridas ao bom funcionamento do mercado, garantindo os fundamentos de sua operação eficiente (estabilidade macroeconômica, recursos humanos, sistema financeiro etc.). Por outro lado, enfatizou-se que condições especialíssimas, dificilmente reprodutíveis, foram responsáveis por uma intervenção seletiva que respeitou o mercado - atuando onde este era falho - e que forjou condições de concorrência, mesmo nos casos em que beneficiou áreas ou atividades particulares. A estratégia de criação de contestabilidade na obtenção do apoio público, em conjunto com o viés exportador, desempenhou o papel característico das forças de mercado. Deste modo, e analogamente ao modelo de Baumol e outros (1982BAUMOL et al. (1982) Contestable Markets and the Theory of Industry Structure. Orlando, HBJ.) - que formulam a possibilidade de obtenção de máxima eficiência econômica mesmo em configurações monopólicas ou oligopólicas -, a despeito da existência de estruturas econômicas conglomeradas (Japão e Coreia), de políticas industriais seletivas ( em quase todos), de restrições ao capital estrangeiro (Japão, Coreia, Formosa, principalmente), as economias do Leste Asiático teriam operado muito próximo do ótimo paretiano, respeitando as vantagens comparativas convencionais.

A proposição, no que toca ao papel do Estado no desenvolvimento econômico, e que constitui o pano de fundo e o propósito básico do estudo do BIRD, se concentra nos fundamentos, não fugindo, portanto, das concepções neoclássicas tradicionais, que somente justificam uma intervenção estatal genérica, focalizando os bens públicos, as externalidades e os monopólios naturais. O avanço advindo do reconhecimento da necessidade de uma intervenção funcional - para superar sobretudo falhas de coordenação -, além de bastante qualificado, aparece como uma forma de não desconsiderar a forte intervenção presenciada, incorporando, pretensamente, a contribuição crítica dos revisionistas

No geral, enfatiza-se que a ação do Estado, tanto seletiva como funcional, ocorreu em condições político-institucionais específicas à região, que não poderiam ser pensadas como um modelo normativo geral. Frente ao risco de uma intervenção seletiva, efetuada por uma burocracia ineficiente e sujeita às pressões corporativas, o melhor seria evitá-la, somente se admitindo um moderado e genérico viés exportador. A América Latina - e o Brasil em particular - forneceria um bom exemplo dos efeitos danosos (ineficiência produtiva, rent-seeking generalizado etc.) de uma estratégia que não respeitou o mercado, quando foi seletiva, que não assegurou os fundamentos requeridos ao comportamento eficiente dos agentes e que, ainda por cima, privilegiou uma substituição forçada de importações em detrimento de uma estratégia assentada no desempenho exportador

Enfim, a conclusão é a de que a garantia dos fundamentos e o estímulo exportador são as formas principais em que o Estado pode contribuir para um crescimento a longo prazo assentado nas forças de mercado. As políticas industriais devem ser descartadas enquanto meios de se atingir o desenvolvimento. O sucesso do leste asiático forneceria uma importante ilustração destas proposições, uma vez que teria tido como base a estabilidade macroeconômica e institucional e a orientação exportadora, não havendo qualquer contribuição relevante dos estímulos de política industrial.

As visões críticas a esta “nova” ortodoxia, tal como se depreende do debate apresentado no World Development (op. cit.), em geral têm se pautado pelas ideias de que há uma forte tendenciosidade nos dados apresentados, de que se abstraiu os condicionantes sócio-político-institucionais específicos aos países da região - abrindo-se mão de uma abordagem de economia política - e que se deu um tratamento inadequado à questão das falhas de mercado, particularmente em situações de desenvolvimento industrial tardio.

Quanto aos dados utilizados pelo estudo, parte-se da constatação de que não é possível negar que economias como Japão, Coreia e Formosa (as de maior peso econômico) tiveram sua trajetória de crescimento fortemente assentadas num padrão seletivo e discricionário de intervenção, envolvendo políticas que se contrapõem aos manuais normativos da ortodoxia, tais como restrição ao capital estrangeiro, proteção do mercado interno com barreiras tarifárias e não-tarifárias - as estratégias exportadoras geralmente foram antecedidas por estratégias substitutivas de importações -, políticas de crédito seletivas - envolvendo muitas vezes bancos estatais e repressão financeira - e estratégias de crescimento acordadas fora do mercado entre grandes conglomerados e a burocracia pública (Japão e Coreia). A conformação deste padrão a um padrão neoclássico de desenvolvimento seria fruto da necessidade ideológica do Banco para justificar sua orientação política frente a experiências que rompem com todas as boas regras de gestão econômica. Como mostram Kwon (1994KWON, J. (1994) “The East Asia Challenge to Neoclassical Orthodoxy”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle’’.) e Yanagihara (1994YANAGIHARA, T. (1994) “Anything New in The Miracle Report? Yes and No”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle”.), partindo-se de enfoques metodológicos distintos, pode-se chegar a resultados opostos que mostram o impacto das políticas industriais seletivas tanto na alteração da estrutura da indústria, com incremento da participação dos setores mais intensivos em capital, como no aumento da produtividade da economia, refletindo um padrão de crescimento que não respeitou as vantagens comparativas. A distorção do sistema de preços - em desacordo com a escassez relativa de produtos e fatores - teria acarretado ganhos dinâmicos em termos de crescimento e, porque não, de bem-estar.

Com respeito aos condicionantes sócio-político-institucionais, questiona-se uma abordagem que trata a região em bloco e que, amplificando o erro, extrai regras normativas gerais, independentemente dos atores sociais e políticos e do padrão de inserção internacional dos diferentes países. Perkins (1994PERKINS, D. H. (1994) “There Are at Least Three Models of East Asian Development”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle “.) desloca a questão de se a intervenção respeitou o mercado para a questão de como foi possível uma intervenção de tal magnitude com apoio social, a partir de uma burocracia com autonomia suficiente para orientar os investimentos privados e cobrar os resultados. A partir dos condicionantes internos e externos, não se poderia sequer colocar num mesmo corpo analítico economias tão díspares como Hong-Kong e Cingapura (dominadas por atividades comerciais), Indonésia, Malásia e Tailândia (assentadas em recursos naturais) e economias industriais do porte do Japão, Coreia e Formosa. A ameaça externa a que os países da região estão submetidos, em particular, seria um elemento decisivo para a vinculação explícita e assumida entre o desenvolvimento econômico e o poder político, rompendo-se a cisão liberal entre Estado e mercado (Shapiro & Taylor, 1990SHAPIRO, H & TAYLOR, L. (1990) “The State and Industrial Strategy”. World Development 18 (6).). Neste sentido, se há um modelo asiático de desenvolvimento, o candidato natural seria o Japão que desde a revolução Meiji (Kwon, 1994KWON, J. (1994) “The East Asia Challenge to Neoclassical Orthodoxy”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle’’.) teve no desenvolvimento econômico um objetivo de afirmação do Estado nacional.

Finalmente, no que se refere a questão do tratamento insuficiente das falhas de mercado, coloca-se (Amsdem, 1994AMSDEM, A. H. (1994) “Why Isn’t the Whole World Experimenting with The East Asian Model to Develop?: Review of The East Asian Miracle”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle“., e Lall, 1994LALL, S. (1994) “The East Asian Miracle: Does the Bell Toll for Industrial Strategy?”. World Development 72 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle”., em especial) que o sucesso da experiência asiática, assentado num padrão com forte presença do Estado (algo como um “state led pattern”), não foi casual. As situações de desenvolvimento industrial tardio simplesmente não podem ser superadas com base nos mecanismos de mercado. As falhas de mercado são generalizadas numa situação de atraso, requerendo uma forte presença estatal, tanto no nível macro como microeconômico, Questões como o desenvolvimento tecnológico em setores particulares, a obtenção de economias de escala e de escopo, estáticas e dinâmicas, a disponibilidade de recursos humanos qualificados, entre outras, somente poderiam ser superadas fora do mercado, uma vez que este não fornece os sinais requeridos a um crescimento dinâmico de acordo com uma estratégia de longo prazo. As falhas de mercado seriam contextuais, dependendo fundamentalmente da posição competitiva relativa de um país (ou do seu grau de atraso) e de seu projeto de desenvolvimento. A natureza e abrangência das falhas de mercado seriam relativas a uma situação desejada frente à realidade socioeconômica e institucional presente (Lall, 1994LALL, S. (1994) “The East Asian Miracle: Does the Bell Toll for Industrial Strategy?”. World Development 72 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle”.).

Na realidade, as diferentes visões acerca do papel do Estado e, em especial, da política industrial são decorrentes das distintas concepções acerca das falhas de mercado.5 5 Para uma excelente síntese das diferentes visões acerca das falhas de mercado associadas à industrialização, ver Mesquita Moreira (1995). A visão neoliberal pura (definida pelo Banco Mundial como neoclássica) concebe as falhas de mercado como acarretadas pela interferência indevida das instituições - incluindo as organizações sociais como os sindicatos - no mercado. É esta interferência que cria fricções para o bom funcionamento dos mercados, tornando-os falhos na alocação de recursos. A melhor política industrial é a de “sair” do mercado e evitar que a sociedade entre, ferindo sua lógica de maximização.

O “market friendly approach” admite a presença de falhas em situações de atraso, especialmente em funções essenciais para a acumulação de capital e para o aumento da produtividade, tais como a disponibilidade de um sistema educacional eficiente de nível básico e de um mercado de capitais que promova a intermediação requerida a uma alocação eficiente dos investimentos. O desdobramento político-normativo desta visão é a admissão de uma intervenção funcional do Estado, necessariamente cuidadosa e limitada, evitando qualquer prática discricionária ou seletiva.

Já na visão dita revisionista, as falhas de mercado são vistas como generalizadas, sobretudo num contexto de desenvolvimento e de progresso tecnológico, justificando políticas industriais abrangentes e seletivas. A presença de falhas de mercado no desenvolvimento tardio vai muito além das falhas funcionais genéricas, abrangendo externalidades, situações de retornos crescentes e especificidades do processo de aprendizado tecnológico que são setorialmente determinados. Estas situações - entre outras não citadas - somente poderiam ser superadas mediante uma intervenção do Estado, de sorte a interferir nos mecanismos alocativos.

O conceito de falhas de mercado, assim, de um lado, diferencia os distintos enfoques; porém, de outro lado, os unifica num mesmo arcabouço analítico, sendo um dos fatores que explica a limitação teórica no tratamento da questão do desenvolvimento, do papel do Estado e das políticas industriais, tornando a questão da intervenção pública - ou sua limitação - dependente da interpretações conjecturais acerca da presença e abrangência das falhas.

Deste modo, se bem que o pensamento crítico heterodoxo - aqui representado pelos “revisionistas” - forneça uma importante contribuição para a refutação das visões ortodoxas, sejam elas as neoliberais puras ou levemente modificadas (como o “market friendly approach”), não rompem com os termos da discussão. Na realidade, estabelece-se uma diferenciação que depende do grau em que o mercado falha. Tem-se por pressuposto essencial a concepção de que o mercado competitivo é preferencial da eficiência econômica, dado pelos pressupostos de maximização e do equilíbrio.

A discussão torna-se, em grande medida, tautológica. Se o desenvolvimento de um determinado país foi superior, logo, os agentes econômicos atuaram de modo mais próximo ao que seria um comportamento eficiente de um mercado competitivo. Alternativamente - e este seria o elemento essencial que distingue a heterodoxia - o Estado teria intervido corretamente no sentido de corrigir as falhas de mercado, tornando sua operação mais próxima do ótimo paretiano. Assim, assume-se, aprioristicamente, que o mercado competitivo fornece o padrão de referência para o desenvolvimento econômico, seja como algo já dado desde o início do processo ou como algo a ser atingido através de uma intervenção estatal que permita superar as restrições à eficiência competitiva associadas ao atraso econômico. E mais, como todos concordam que nos casos de falhas justifica-se a intervenção estatal, o debate torna-se absolutamente conjectural. Se o Estado atuou e deu certo é porque agiu corretamente nas falhas de mercado ou porque não interferiu no seu funcionamento. Se deu errado é porque as falhas de mercado não foram corrigidas ou porque o funcionamento do mercado foi prejudicado pela intervenção estatal.

Com isto, não surpreendente que o leste asiático seja o paradigma das duas visões polares. Numa, parte-se do princípio de que o próprio mercado garante o desenvolvimento a longo prazo. Portanto, se houve intervenção, foi segundo um padrão “market conforming”. Na outra concepção, parte-se da ideia que o desenvolvimento envolve falhas de mercado. Portanto, o sucesso pode ser explicado por um padrão de intervenção que foi eficiente, focalizando precisamente as falhas do mercado. Embasando teoricamente as duas visões, há um mercado idealizado que opera de forma ótima, com plena racionalidade sobre o presente e sobre futuro, sem assimetrias e diferenças permanentes entre os setores e empresas e convergindo sempre para situações de equilíbrio, mesmo que intertemporal.

Caberia perguntar se na raiz desta discussão não está uma insuficiência do arcabouço teórico tanto da nova ortodoxia como de sua crítica mais presente. Talvez o tema do desenvolvimento - por envolver de forma não desprezível a história, as instituições, o desconhecimento sobre o futuro, a tendência a heterogeneidade e a articulação não trivial do Estado, da política e do mercado - ponha em evidência mais do que qualquer outro a insuficiência de uma teoria econômica que deixou de ser economia política.6 6 Certamente os autores heterodoxos aqui citados (com destaque para Alice Amsden) incorporam, de forma importante, uma visão de economia política, na medida em que, ao assumirem que as falhas são generalizadas, acabam tratando com bastante seriedade o Estado, a sociedade, as instituições e as políticas governamentais, oferecendo contribuições decisivas para a compreensão dos processos de desenvolvimento em discussão. O que se está indicando é que a ruptura precisaria ser mais profunda, atingindo os fundamentos da concepção neoclássica.

Reconhecendo que as respostas que rompem com o referencial dominante ainda são bastante insuficientes, pois existe um longo caminho analítico a ser perseguido, se buscará indicar, no tópico seguinte, algumas das contribuições da abordagem neo-schumpeteriana que partem da crítica aos pressupostos neoclássico, oferecendo elementos teóricos que podem vir a se constituir na base de um programa alternativo de pesquisa para o tratamento da questão do desenvolvimento.

3. A PERSPECTIVA NEO-SCHUMPETERIANA

A questão do desenvolvimento na perspectiva neo-schumpeteriana não se restringe ao simples crescimento quantitativo da produção e do emprego dos insumos; mas, fundamentalmente, das mudanças qualitativas em termos tecnológicos, organizacionais e institucionais (Nelson, 1994NELSON, R. (1994) “The Co-Evolution of Technology, Industrial Structure and Supporting Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).). Deste modo, a abordagem é mais ampla do que a superação do atraso por parte dos países menos desenvolvidos na direção das funções de produção situadas na fronteira tecnológica, abarcando também o processo de transformação no âmbito dos países desenvolvidos. O foco é voltado para a própria evolução competitiva dos diferentes países, envolvendo o encurtamento ou ampliação das defasagens tecnológicas e econômicas, a mudança nas posições de liderança e do ranking competitivo internacional e situações de crônico atraso ou de vantagens permanentes dificilmente superáveis.

Ao contrário das concepções neoclássicas, e mesmo considerando as menos simplistas que supõem a convivência de distintas funções de produção - a da fronteira e a dos países menos desenvolvidos (Pack, 1993PACK. H. (1993) “Technology Gaps Between Industrial and Developing Countries: Are There Dividends for Latecomers?”. Proceedings of The World Bank Annual Conference on Development Economics 1992. The World Bank. Washington.) -, não existiriam funções de produção padrão que representariam a tendência natural de evolução produtiva, tanto no âmbito setorial como no internacional. A concorrência schumpeteriana é centrada no progresso técnico, que constitui a forma principal de obtenção de rendas monopolistas (ou quase-rendas). Está, portanto, no âmago do processo competitivo a concorrência entre distintas tecnologias, implicando na convivência - nos termos neoclássicos - de distintas funções de produção que competem entre si e que se alteram incessantemente. Abstrair esta dinâmica do progresso técnico seria abstrair o essencial da concorrência capitalista. É, por conseguinte, neste espaço definido pelo progresso tecnológico que se dá a discussão sobre a questão do crescimento e do desenvolvimento econômico.

O argumento desenvolvido a seguir partirá do enfoque microeconômico da abordagem neo-schumpeteriana, como base da análise das questões atinentes ao desenvolvimento econômico dos distintos Estados nacionais e de suas relações no mercado internacional, procurando também incorporar a dimensão institucional e, portanto, histórica.7 7 Os conceitos centrais deste enfoque foram desenvolvidos a partir dos trabalhos de Nelson e Winter (1982) e Dosi (1984), que inauguraram o que é hoje um vasto programa de pesquisas em torno dos fundamentos microeconômicos da evolução econômica de corte schumpeteriano. Alguns destes conceitos serão retomados, apesar de já terem sido intensamente tratados pela literatura neo-schumpeteriana, uma vez que são essenciais para a argumentação desenvolvida.

O progresso técnico é tratado no âmbito das estratégias empresariais num con­texto de incerteza do tipo keynesiana (ou seja, não passíveis de cálculos probabilísticos). Os agentes, a despeito de seus esforços, não possuem capacidade cognitiva suficiente tanto para avaliar as condições do presente - a complexidade dos resultados da interação entre os agentes - como para prever os acontecimentos futuros. A busca pela maximização de lucros pode até ser tentada, mas faltam elementos cognitivos que permitam uma avaliação ex-ante de qual seria a estratégia maximizadora. Em suma, os agentes trabalham sob racionalidade limitada (bounded rationality).

Para lidar com esta realidade, são adotadas regras de decisão rotineiras que, assentadas na história dos agentes, conformam padrões comportamentais definidos. No caso particular do progresso técnico, estas regras se expressam em determinadas rotinas de busca por inovações, envolvendo, por exemplo, o gasto de uma determinada fração do faturamento em P&D, estratégias de prospecção tecnológica, formas de importação e atualização de tecnologias e atividades de engenharia reversa.

A partir destas rotinas ocorre o processo de evolução tecnológica. No entanto, este processo não é aleatório. Existem determinados paradigmas (na formulação de Dosi ou regimes tecnológicos na de Nelson e Winter) que representam o universo cognitivo embutido num certo conjunto relacionado de tecnologias (microeletrônica, biotecnologia, química fina, por exemplo). Este universo tecnológico delimita o programa de pesquisa e desenvolvimento, definindo onde os esforços tecnológicos dos agentes serão concentrados. Não existe uma fronteira de possibilidades de produção dada pelas tecnologias disponíveis na qual os agentes se moveriam de acordo com o preço dos fatores. A concentração de esforços em um conjunto limitado de atividade tem como consequência o fato de que o progresso técnico apresenta uma forte característica de cumulatividade, sendo o resultado obtido num período dependente do estágio do desenvolvimento alcançado no período anterior. Se conformariam assim trajetórias tecnológicas naturais que possuem tanto uma dimensão cognitiva (seriam os caminhos de avanço vistos como mais promissores para a concentração de esforços) como concreta, uma vez que o progresso obtido a cada momento é o resultado estocástico do progresso alcançado no passado, gestando-se trajetórias reais de evolução tecnológica (por exemplo, a crescente miniaturização dos circuitos integrados).

A cumulatividade do progresso técnico é fruto da concentração dos esforços numa determinada direção, não sendo esta necessariamente a que apresentaria resultados mais eficientes. Ou seja, a entrada num universo tecnológico particular significa a exclusão de outros universos (lock-in effects) que dificilmente fariam parte das estratégias de busca adotadas, mesmo que se mostrassem tecnicamente mais promissores num momento posterior.

Isso posto, o progresso técnico não obedece nenhum pressuposto de maximização.

Além da tomada de decisão ocorrer em condições que não permitem avaliar qual a estratégia maximizadora, após a adoção de um certo paradigma tecnológico, este torna-se, em grande medida, irreversível enquanto as oportunidades tecnológicas que oferece forem promissoras, bloqueando - ou pelo menos restringindo - a busca de opções superiores (ou “maximizadoras”).

O mercado opera como um ambiente seletivo que, através da lucratividade (ou prejuízo) relativa obtida pelos agentes em concorrência, define os paradigmas e trajetórias que vão se tornando hegemônicos, quer seja em termos das diferentes taxas de crescimento empresarial, quer seja em termos do mecanismo de entrada e saída das firmas nos mercados.

O objetivo da busca tecnológica é a obtenção de vantagens sobre os concorrentes em termos de custos e/ou qualidade (incluindo novos produtos) de forma a se obter maiores lucros. Dada a cumulatividade do progresso técnico e sua apropriabilidade - seja em virtude do componente tácito envolvido ou através de mecanismos regulatórios como patentes - a obtenção de vantagens também tende a apresentar características cumulativas. A concorrência é, fundamentalmente, o processo de geração de vantagens de uns agentes sobre os demais, da tentativa de sua preservação e ampliação e da busca de superação de eventuais situações de desvantagens. Não existe um mercado otimamente organizado para o qual convergem os preços, a tecnologia e o tamanho das firmas. O processo competitivo visa gerar assimetrias e diferenças. Há uma tendência à heterogeneidade e não à homogeneidade. Dependendo do vigor de um determinado paradigma tecnológico e da intensidade da cumulatividade que apresenta, as vantagens de uns agentes sobre os demais tenderão a se ampliar, gerando estruturas concentradas. Em outras palavras, o aprendizado tecnológico das firmas manifesta-se sob a forma de retornos crescentes, gestando-se economias de escala dinâmicas - que se somam às estáticas - que criam barreiras à entrada nos mercados e barreiras à mobilidade em seu interior (Dosi, 1988DOSI, G. (1988) “Sources, Procedures and Microeconomic Effects of Innovation”. Journal of Economic Literature 26, September.; Dosi e Orsenigo, 1988DOSI, G & ORSENIGO, L. (1988) “Coordination and Transformation: An Overview of Structures, Behavior and Change in Evolutionary Environments”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.). Estas barreiras nada mais são do que a representação, em termos da economia industrial, das assimetrias presentes entre as firmas atuantes em um determinado mercado e destas com as concorrentes potenciais, estando assentadas no processo de aprendizado tecnológico. O processo capitalista é, assim, inerentemente, um processo de geração, manutenção e busca de ampliação de divergências, de configuração de situações em que existem ganhadores e perdedores, o que obviamente possui desdobramentos em termos do desenvolvimento relativo das firmas, dos setores de atividade econômica e dos países.

Ampliando o foco da análise, o impacto de novos paradigmas tecnológicos e das trajetórias associadas não necessariamente se restringe à órbita setorial microeconômica. Como já desenvolvido em outro trabalho (Gadelha, 1994GADELHA, C.A.G. (1994) “Paradigmas tecnológicos, estratégias empresariais e mudança estrutural”. Anais do XXII Encontro Nacional (ANPEC).), a abrangência do impacto de um novo paradigma tecnológico depende de sua capacidade de superação dos paradigmas dominantes, do grau de penetração intra e intersetorial e da intensidade da ruptura que representa em termos dos padrões competitivos e da evolução tecnológica. Em função desses condicionantes, as estratégias tecnológicas das firmas em um determinado setor de atividade podem se desdobrar, afetando a atividade macroeconômica em seu conjunto e as trajetórias nacionais de crescimento e desenvolvimento. Precisando melhor, existem setores-chave para o desenvolvimento dos novos paradigmas que, por sua vez, podem exercer impactos decisivos na evolução econômica como um todo. Este, certamente, é o caso do momento atual, no qual o desenvolvimento da microeletrônica se concentra em algumas indústrias cruciais (computadores, semicondutores, telecomunicações, entre outras), que tanto se apresentam como as mais dinâmicas - elevando o peso do complexo eletrônico na estrutura industrial - como exercem um impacto dinâmico em praticamente todos os setores de atividade econômica.

O importante a enfatizar é que, de modo ainda mais acentuado nos momentos de ruptura paradigmática, as vantagens das firmas apresentam-se como vantagens setoriais em termos de dinamismo econômico e tecnológico que, por sua vez, impactam na competitividade das economias nacionais como um todo.8 8 Procurando relacionar este enfoque neo-schumpeteriano microeconômico com o sistêmico, pode-se dizer que estes seriam os momentos definidos por Freeman e Perez (1988) como de mudança nos paradigmas técnicoeconômicos da sociedade. Vale dizer, a liderança em um grupo particular de setores possui efeitos dinâmicos que envolvem tanto retornos crescentes como externalidades tecnológicas, condicionando fortemente o desenvolvimento econômico a longo prazo

Essa visão representa uma total inversão da concepção tradicional de comércio centrada nas vantagens comparativas. Os fatores determinantes do dinamismo econômico também determinam o padrão de inserção comercial dos países. Este não obedece à dotação relativa de fatores em um determinado momento; mas sim às diferenças nacionais em termos de capacitações tecnológicas (ou seja, as funções de produção seriam diferenciadas). Essas capacitações, por sua vez, estão em constante evolução, fruto do esforço de aprendizado, que constitui a variável-chave para a compreensão da evolução do padrão de inserção internacional.

Países que se capacitam e se tornam líderes nos setores associados aos paradigmas tecnológicos mais dinâmicos, simultaneamente, apresentam altas taxas de crescimento e um elevado dinamismo no comércio internacional. Em outras palavras, o que se ajusta nas relações internacionais não são os preços e as quantidades de produtos, conforme a dotação ex-ante dos fatores de produção; mas sim a taxa de crescimento dos setores (ou segmentos) mais dinâmicos e, por conseguinte, o desempenho macroeconômico de longo prazo. Logo, o padrão de especialização setorial possui desdobramentos dinâmicos para o desenvolvimento econômico. O ajuste é de natureza keynesiana e não ricardiana: é a taxa de crescimento do produto que varia e não simplesmente a distribuição da produção entre os distintos países. A eficiência estática, em termos da alocação internacional da produção, pode ser danosa para a eficiência dinâmica, reduzindo o bem-estar a longo prazo. Crescimento macroeconômico e comércio internacional tornam-se dimensões distintas do fenômeno de mudança tecnológica (Dosi e Soete, 1988DOSI, G. & SOETE, L. (1988) “Technical Change and International Trade”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.).

Tendo por base esse contexto geral do processo evolutivo, o conceito central para se pensar o diferencial do desenvolvimento das nações e as possibilidades de catch-up, em particular, é o de aprendizado tecnológico. Todavia, não se trata de um aprendizado genérico, embutido no vago conceito de capital humano ou dependente apenas de uma base educacional genérica. O conceito de aprendizado relevante é aquele particular a (e, portanto, condicionado por) certos paradigmas tecnológicos e a dinâmicas setoriais específicas. Neste sentido, o aprendizado tecnológico envolve tanto uma base genérica de conhecimentos quanto a capacitação tecnológica e industrial em setores específicos, remetendo para questões atinentes à política industrial. Em suma, o processo de aprendizado é um processo complexo que envolve desde uma dimensão tecnológica e setorial específica até uma dimensão histórica e institucional, que não se reduzem à questão educacional.

Do ponto de vista da firma, a cumulatividade do progresso técnico ocorre a partir de uma base de conhecimentos que possui um forte componente tácito. As trajetórias cumulativas não são difundidas facilmente entre os agentes econômicos a partir da transferência de informações. A firma, como unidade econômica básica, é sobretudo uma unidade que sabe como produzir produtos e serviços específicos. É uma unidade que possui conhecimentos que são, em grande medida, idiossincráticos e específicos e que definem suas áreas de competência (Winter, 1991WINTER, S.G. (1991) “On Coase, Competence, and the Corporation”. In Williamson, O. E. & Winter, G. S. (1991) The Nature of The Firm. Origins, Evolution, and Development. New York, Oxford: Oxford University Press.). A aquisição de novas tecnologias e, em especial, a capacidade para evoluir a partir de uma certa base tecnológica depende, assim, de muito mais do que a obtenção de informações na forma de manuais técnicos, patentes ou outros veículos. Depende, fundamentalmente, de um esforço para a montagem de uma estrutura de capacitações específicas que permitam construir um universo particular de conhecimentos, sem o qual as tecnologias adquiridas podem apresentar um desempenho insatisfatório. Além disso, e sendo ainda mais decisivo, a base de aprendizado determina a capacidade de obtenção de melhorias subsequentes, afetando a competitividade dinâmica dos agentes.

As inovações tecnológicas também estão associadas a novas formas de organização da produção. A entrada em novos paradigmas tecnológicos geralmente requer novas estruturas organizacionais que representam rupturas com rotinas consolidadas associadas aos paradigmas anteriores. Não dá para pensar, por exemplo, a progressiva superação das firmas inglesas pelas americanas e alemãs, a partir do final do século passado, somente com base na superioridade das tecnologias de processamento contínuo (na química, por exemplo) e de linhas de montagem (automobilística) utilizadas, ignorando a organização das atividades de busca e aprendizado tecnológico em departamentos de P&D e a estrutura multidivisional das firmas (ver Freeman, 1995FREEMAN, C. (1995) “The National System of Innovation in Historical Perspective”. Cambridge Journal of Economics 19., entre vários outros trabalhos). Analogamente, a liderança japonesa em microeletrônica - e de outras economias do Leste Asiático - também deve ser pensada em conjunto com mudanças substantivas nos padrões organizacionais (maior flexibilidade, introdução de metodologias de qualidade total, estabelecimento de redes de cooperação econômica e tecnológica etc.). As estruturas organizacionais prévias e sua capacidade de transformação frente aos novos paradigmas são, portanto, elementos condicionantes do desempenho tecnológico empresarial.

Finalmente, o aprendizado tecnológico associa-se a formas institucionais de organização das economias nacionais como um todo, tendo peso decisivo, por exemplo, a estruturação e o funcionamento dos sistemas educacionais, o papel e a capacidade de intervenção dos Estados nacionais e o modo de organização das atividades empresariais (estruturas mais ou menos conglomeradas, participação do capital estrangeiro etc.). Estas distintas formas institucionais são captadas no que hoje é conhecido como os diferentes Sistemas Nacionais de Inovações (Nelson, 1993NELSON, R.R. (ed.) (1993) National Innovations Systems. A Comparative Analysis. New York, Oxford: Oxford University Press.; Lundvall, 1992LUNDVALL, B. (1992) National Systems of Innovation. Toward a Theory of Innovation and Interactive Learning. London: Pinter Publishers.; Freeman, 1995FREEMAN, C. (1995) “The National System of Innovation in Historical Perspective”. Cambridge Journal of Economics 19.). A organização institucional destes sistemas remonta a própria constituição dos Estados nacionais. Numa perspectiva evolucionista, as instituições não podem ser pensadas ou como parâmetros dados (visão neoclássica tradicional) ou simplesmente como fruto de uma busca de organização eficiente da atividade econômica (como fazem os autores que enfatizam os custos de transação). Sua configuração está relacionada a um processo histórico evolutivo que, simultaneamente, se transforma pela ação dos agentes e condiciona seu comportamento e, portanto, suas estratégias tecnológicas.

Estas dimensões - da firma, organizacional e do ambiente institucional - possuem uma determinação concreta no contexto competitivos em que estão inseridas, ou seja, nos mercados particulares. Um novo (ou mesmo antigo) paradigma tecnológico traz consigo uma institucionalidade setorialmente específica. Surgem associações de classe, organiza-se o lobby político, alteram-se as formas de intervenção estatal, a relação de trabalho, entre muitas outras mudanças (Nelson, 1994NELSON, R. (1994) “The Co-Evolution of Technology, Industrial Structure and Supporting Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).; Dosi et al., 1994DOSI, G., FREEMAN, C. & FABRINI, S. (1994) “The Process of Economic Development: Introducing Some Stylize Facts and Theories on Technologies, Firms and Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).).

Deste modo, há um processo no qual a evolução dos mercados - e, portanto, a dinâmica industrial - ocorre conjuntamente com a evolução institucional. Em particular, torna-se essencial pensar o processo de desenvolvimento considerando a evolução do Estado e sua interação com as dinâmicas setoriais específicas. Ou seja, mais do que pensar se a política industrial é ou não “market conforming”, torna-se pertinente avaliar as formas institucionais de organização dos mercados, os padrões competitivos, os fatores de sua evolução e o papel dos atores econômicos e políticos. Ou seja, a empresa capitalista é o motor do progresso técnico e da evolução, porém sua existência se dá em estruturas competitivas, paradigmas tecnológicos e em institucionalidades específicas. Deste modo, o próprio corte entre políticas funcionais ou genéricas e políticas seletivas é enganoso. Políticas genéricas concretizam-se em ambientes competitivos e institucionais diferenciados, tendo, portanto, um impacto também diferenciado e, logo, seletivo.

A natureza específica, idiossincrática e tácita do processo de aprendizado - incrustado nas firmas e nas instituições - contribui em muito para se pensar a formação de trajetórias nacionais e não somente o processo de catching-up. Mesmo no interior dos países desenvolvidos se verifica a conformação de áreas de competência em determinados setores e paradigmas tecnológicos (Patel & Pavitt, 1994PATEL, P & PAVITT, K. (1994) “Uneven (and Divergent) Technological Accumulation Among Advanced Countries: Evidence and a Framework of Explanation”. Industrial and Corporate Change 3 (3).). É esta força ou fraqueza em determinadas áreas, em conjunto com a capacidade de transformação da base tecnológica herdada, que explica, em grande parte, o dinamismo a longo prazo das economias nacionais.

De um ponto de vista macro-institucional, Zysman (1994ZYSMAN, J. (1994) “How Institutions Create Historically Rooted Trajectories of Growth”. Industrial and Corporate Change 3 (1).) oferece uma importante contribuição para compreensão desta relação entre Estado e mercado, afirmando que existem diferentes formas de organização do mercado que embutem diferentes padrões de desenvolvimento enraizados na história (ou trajetórias nacionais). Estes padrões estariam associados à capacidade de ação dos Estados nacionais, envolvendo especialmente sua capacidade de, nos momentos de ajustamento relacionados às mudanças estruturais, arbitrar ou negociar os ganhos e as perdas. A crise de estratégias de desenvolvimento estaria associada a situações em que uma forma específica de organização do mercado, incluindo a capacidade estatal de regulação, entra num impasse político no qual não se consegue definir prioridades e novas estratégias de desenvolvimento requeridas à entrada nos novos paradigmas.9 9 Este parece ter sido o caso vivenciado pelo Brasil ao longo dos anos 80. A questão não seria a de se o mercado é falho. O mercado é politicamente constituído, e, portanto, a questão pertinente é a de como os agentes públicos e privados conseguem definir estratégias hegemônicas que apontem para o desenvolvimento numa determinada direção, prescindindo-se de qualquer noção de trajetória maximizadora ou de equilíbrio.

O desenvolvimento, assim, é um processo complexo que envolve desde características específicas aos novos paradigmas, às firmas e aos setores produtivos até características socioinstitucionais, que interagem e moldam o processo de aprendizado (Dosi et al., 1994DOSI, G., FREEMAN, C. & FABRINI, S. (1994) “The Process of Economic Development: Introducing Some Stylize Facts and Theories on Technologies, Firms and Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).). Esta complexidade do objeto obviamente impõe dificuldades em sua formalização, especialmente no que se refere à dimensão socioinstitucional (Nelson, 1994NELSON, R. (1994) “The Co-Evolution of Technology, Industrial Structure and Supporting Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).). Todavia, entre a elegância formal e a relevância teórica, entende-se que esta última deve ser priorizada.

Retomando a questão específica do desenvolvimento a partir de situações tardias, a visão neo-schumpeteriana mostra-se extremamente rica para explicar a crescente divergência e polarização no crescimento e no desenvolvimento econômico entre os países ricos e pobres (vide evidências em Foray e Freeman, 1993FORAY, D. & FREEMAN, C. (1993) Technology and Wealth of Nations. The Dynamic of Constructed Advantage. London, New York: Pinter Publisher.; e em Dosi et al., 1994DOSI, G., FREEMAN, C. & FABRINI, S. (1994) “The Process of Economic Development: Introducing Some Stylize Facts and Theories on Technologies, Firms and Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).). A natureza cumulativa do progresso técnico, seu caráter tácito e indivisível, que se manifestam no âmbito das empresas, setores e países, tende a criar crescentes disparidades entre o pequeno grupo dos países mais capacitados e o grande número de países menos desenvolvidos. A convergência, assim, não é um processo natural decorrente da lógica de mercado. A norma é a ampliação das distâncias, em especial nos momentos de mudança paradigmática. O que tem que ser explicado são as condições excepcionais que contribuem para a compreensão de um eventual catch-up, como o ocorrido em alguns países do Leste Asiático. Estas situações, geralmente, dependem da convergência histórica de fatores tecnológicos, políticos e institucionais, que não podem ser abstraídos em nome de um modelo geral e a-histórico de desenvolvimento?10 10 Nesta perspectiva, Canuto (1994) mostra como, ao longo dos anos 80, houve esta convergência na Coreia e não no Brasil, onde a crise do Estado esteve na raiz do processo de estagnação.

Com base nesses elementos, entre outros, a análise das experiências do Leste Asiático deveria considerar as condições peculiares em que ocorreu o salto em termos de desenvolvimento tecnológico, crescimento e inserção no mercado mundial. Especialmente, não se poderia deixar de analisar o momento tecnológico específico: o do surgimento do novo paradigma microeletrônico com elevado poder de penetração no tecido produtivo como um todo. Este momento pôde ser aproveitado com base em condições econômicas, políticas e institucionais prévias extremamente peculiares (é neste contexto que é pertinente a ideia das “windows of opportunities” de Freeman e Perez, 1988FREEMAN. C. & PEREZ, C. (1988) “Structural Crisis of Adjustment, Business Cycles and Investment Behavior”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.).

A partir deste contexto tecnológico historicamente determinado, uma abordagem de corte neo-schumpeteriano dos países do leste asiático deveria privilegiar as seguintes questões específicas a cada formação social: as bases da capacidade e autonomia dos Estados nacionais para implementar políticas industriais e tecnológicas fortemente seletivas (o que certamente foi favorecido pelo contexto de permanente ameaça externa); o grau de coesão e organização dos agentes privados (conglomerados japoneses e coreanos, por exemplo) e destes com o Estado - que foram fatores cruciais para a definição de prioridades e de estratégias de reestruturação-; a base do aprendizado e o papel dado à formação de recursos humanos nos setores estratégicos dos novos paradigmas; a estratégia japonesa de hegemonia na região, constituindo tanto o modelo como a fonte da transferência das tecnologias de fronteira; a elevada prioridade dada à constituição de uma base endógena de desenvolvimento tecnológico nos novos paradigmas; e a complementaridade entre as estratégias de desenvolvimento do mercado interno e as de penetração no mercado internacional, de acordo com uma estratégia mais ampla de desenvolvimento tecnológico, crescimento econômico e de inserção internacional nos segmentos de maior valor adicionado.11 11 Obviamente, seguindo o referencial teórico apresentado, teria que se fazer uma série de especificações sobre cada um dos países do grupo dos países do leste asiático considerado. Dificilmente, se poderia analisar conjuntamente, por exemplo, o Japão e Hong-Kong. Isso, no entanto, estaria além dos propósitos deste trabalho, que visa fundamentalmente discutir as diferentes concepções de desenvolvimento explicitadas a partir da experiência asiática.

Efetivamente, é espantosa a proliferação de interpretações simplistas do desenvolvimento do Leste Asiático, que procuraram fazer um corte entre o mercado e o Estado, entre estratégias voltadas para o mercado interno e para o externo, e entre a aquisição de tecnologia estrangeira e o desenvolvimento endógeno, entre outras simplificações.

É neste contexto, a um só tempo histórico e teórico - o macro contexto do aprendizado individual, setorial e coletivo -, que se deveria analisar a experiência do Leste Asiático, confrontando-a com a experiência latino-americana, e não tendo por pressuposto um mercado idealizado que, em certas situações conjecturais, apresenta falhas. Deste modo, pode-se gestar um programa de pesquisa em torno do desenvolvimento e do papel do Estado que não recaia nem numa discussão infindável sobre as virtudes e as falhas do mercado, nem num voluntarismo estatal que desconsidera o peso da história política e institucional e da estrutura industrial e tecnológica herdada sobre as possibilidades de evolução futura.

4. CONCLUSÃO

Este artigo procurou mostrar como se conformou, no período recente, um consenso em torno da questão do desenvolvimento e do papel do Estado capitaneado pela visão do Banco Mundial, com base na experiência do Leste Asiático. Por um lado, desenvolveu-se a ideia de que esta visão se diferencia marginalmente do enfoque neoclássico tradicional, uma vez que se restringe a fazer qualificações nas falhas de mercado normalmente aceitas como justificativa para a intervenção estatal. Por outro lado, a partir do debate em torno dessa visão, reconhece-se a relevância da crítica heterodoxa, que mostra a parcialidade dos dados utilizados, a desconsideração da abrangência e profundidade das falhas de mercado em situações de desenvolvimento tardio e a necessidade de uma abordagem menos simplista da relação entre o Estado e o mercado.

Todavia, o pensamento crítico não rompe com os fundamentos teóricos neoclássicos, tendo ainda um mercado idealizado como a referência básica da eficiência econômica, assentada nos princípios de equilíbrio e de maximização. Deste modo, o debate acaba sendo conjectural, concentrando-se na questão da abrangência e relevância das falhas de mercado. A discussão torna-se essencialmente tautológica, partindo-se aprioristicamente da suposição de que nos casos de sucesso o mercado operou segundo as normas do mercado clássico competitivo, seja por uma intervenção “market conforming” ou por uma atuação precisa nas falhas existentes.

No tópico final, apresentou-se os elementos de uma abordagem alternativa neo­schumpeteriana que procura avançar com relação à crítica heterodoxa, rompendo com os fundamentos da economia neoclássica. O processo de evolução tecnológica é colocado no centro da análise, indicando-se suas especificidades no nível das firmas, dos setores e das economias nacionais. Indo mais além, mostrou-se a artificialidade do corte Estado-mercado, enfatizando que o processo de desenvolvimento é um processo coevolutivo, no qual a evolução do Estado e do mercado devem ser pensados conjuntamente. As trajetórias de desenvolvimento, assim, dependem da convergência dos atores públicos e privados em torno de uma determinada direção, conformando uma certa institucionalidade mais ou menos favorável ao processo de desenvolvimento. Dependendo do sucesso destas trajetórias em termos dos paradigmas tecnológicos dominantes é que se pode pensar os casos de sucesso e de fracasso ou de estagnação no desenvolvimento econômico.

Em suma, objetivou-se fundamentar a ideia de que é possível a conformação de um programa de pesquisa acerca do processo de desenvolvimento que rompa de forma radical com os fundamentos da teoria neoclássica e com a referência normativa de um mercado idealizado que opera segundo o ótimo paretiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AMSDEM, A. H. (1994) “Why Isn’t the Whole World Experimenting with The East Asian Model to Develop?: Review of The East Asian Miracle”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle“.
  • BAUMOL et al. (1982) Contestable Markets and the Theory of Industry Structure. Orlando, HBJ.
  • CANUTO, O. (1994) Brasil e Coreia do Sul: os (des)caminhos da industrialização tardia. São Paulo, Nobel.
  • COLCLOUGH, C. (1991) “Structuralism versus Neo-Liberalism: An Introduction”. In Colclough, C. and Manor, J. (eds.) (1991) States or Markets? Neo-Liberalism and the Development Policy Debate. NewYork/Oxford: Oxford University Press.
  • DOSI, G. (1984) Technical Change and Industrial Transformation. London, MacMillan.
  • DOSI, G. (1988) “Sources, Procedures and Microeconomic Effects of Innovation”. Journal of Economic Literature 26, September.
  • DOSI, G & ORSENIGO, L. (1988) “Coordination and Transformation: An Overview of Structures, Behavior and Change in Evolutionary Environments”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.
  • DOSI, G. & SOETE, L. (1988) “Technical Change and International Trade”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.
  • DOSI, G., FREEMAN, C. & FABRINI, S. (1994) “The Process of Economic Development: Introducing Some Stylize Facts and Theories on Technologies, Firms and Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).
  • FORAY, D. & FREEMAN, C. (1993) Technology and Wealth of Nations. The Dynamic of Constructed Advantage. London, New York: Pinter Publisher.
  • FREEMAN, C. (1995) “The National System of Innovation in Historical Perspective”. Cambridge Journal of Economics 19.
  • FREEMAN. C. & PEREZ, C. (1988) “Structural Crisis of Adjustment, Business Cycles and Investment Behavior”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.
  • GADELHA, C.A.G. (1994) “Paradigmas tecnológicos, estratégias empresariais e mudança estrutural”. Anais do XXII Encontro Nacional (ANPEC).
  • GADELHA, C.A.G. (1995) “O debate recente em torno da experiência do leste asiático: uma crítica neo-schumpeteriana”. Anais do XXIII Encontro Nacional (ANPEC).
  • KWON, J. (1994) “The East Asia Challenge to Neoclassical Orthodoxy”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle’’.
  • LALL, S. (1994) “The East Asian Miracle: Does the Bell Toll for Industrial Strategy?”. World Development 72 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle”.
  • LUNDVALL, B. (1992) National Systems of Innovation. Toward a Theory of Innovation and Interactive Learning. London: Pinter Publishers.
  • MESQUITA MOREIRA, M. (1995) Industrialization, Trade and Market Failure: The Role of Government Intervention in Brazil and South Korea. New York, St. Martin’s Press Inc.
  • NELSON, R.R. (ed.) (1993) National Innovations Systems. A Comparative Analysis. New York, Oxford: Oxford University Press.
  • NELSON, R. (1994) “The Co-Evolution of Technology, Industrial Structure and Supporting Institutions”. Industrial and Corporate Change 3 (1).
  • NELSON, R.R. & WINTER, S. (1982) An Evolutionary Theory of Economic Change. Cambridge, Mass.: Havard University Press.
  • PACK. H. (1993) “Technology Gaps Between Industrial and Developing Countries: Are There Dividends for Latecomers?”. Proceedings of The World Bank Annual Conference on Development Economics 1992. The World Bank. Washington.
  • PAGE, J. M. (1994) “The East Asian Miracle: An Introduction”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle “.
  • PATEL, P & PAVITT, K. (1994) “Uneven (and Divergent) Technological Accumulation Among Advanced Countries: Evidence and a Framework of Explanation”. Industrial and Corporate Change 3 (3).
  • PERKINS, D. H. (1994) “There Are at Least Three Models of East Asian Development”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle “.
  • POSSAS, M.L. (1995) “A cheia do ‘mainstream’: comentários sobre os rumos da ciência econômica”. Texto para Discussão nº 327. IE-UFRJ.
  • SHAPIRO, H & TAYLOR, L. (1990) “The State and Industrial Strategy”. World Development 18 (6).
  • SOLOW, R.M. (1957) “Technical Change and The Aggregate Production Function”. The Review of Economics and Statistics 39 (3).
  • THE WORLD BANK (1993) The East Asian Miracle: Economic Growth and Public Policy. New York, Oxford University Press.
  • WILLIANSON, J. (1990) “Latin American Adjustment: How Much Has Happened”. Washington, Institute for International Economics.
  • WINTER, S.G. (1991) “On Coase, Competence, and the Corporation”. In Williamson, O. E. & Winter, G. S. (1991) The Nature of The Firm. Origins, Evolution, and Development. New York, Oxford: Oxford University Press.
  • YANAGIHARA, T. (1994) “Anything New in The Miracle Report? Yes and No”. World Development 22 (4). Special Issue on “The East Asian Miracle”.
  • ZYSMAN, J. (1994) “How Institutions Create Historically Rooted Trajectories of Growth”. Industrial and Corporate Change 3 (1).
  • 1
    No primeiro enfoque, pode-se citar Bela Balassa e Anne Krueger como autores representativos e, no segundo, Alice Amsden, Robert Wade e Sanjaya Lall.
  • 2
    Como pano de fundo desta discussão, está a preocupação com o papel do Estado na retomada do desenvolvimento brasileiro a longo prazo, a partir da crítica da visão do BIRD, que tem sido hegemônica também no contexto nacional.
  • 3
    Na realidade, tanto a primeira como esta última são claramente neoclássicas, pois compartilham a abordagem marginalista, os princípios de maximização e o referencial de equilíbrio sem qualquer restrição (sobre a delimitação conceitual do método neoclássico, vide Possas, 1995POSSAS, M.L. (1995) “A cheia do ‘mainstream’: comentários sobre os rumos da ciência econômica”. Texto para Discussão nº 327. IE-UFRJ.). Talvez se poderia diferenciá-las, mais apropriadamente, como uma visão neoliberal pura, que minimiza por completo o papel do Estado, e uma visão liberal mais tradicional, que permite uma maior flexibilidade para a intervenção nos casos de falhas de mercado. Para uma caracterização das distintas visões vide, por exemplo, Colclough (1991COLCLOUGH, C. (1991) “Structuralism versus Neo-Liberalism: An Introduction”. In Colclough, C. and Manor, J. (eds.) (1991) States or Markets? Neo-Liberalism and the Development Policy Debate. NewYork/Oxford: Oxford University Press.).
  • 4
    Seguindo Solow (1957SOLOW, R.M. (1957) “Technical Change and The Aggregate Production Function”. The Review of Economics and Statistics 39 (3).), partindo de uma função de produção na forma Q = A f (KF, KH, T), onde Q é o volume produzido; KF, o capital fisico; KH, o capital humano; T, o trabalho; e A, o fator tecnológico, a contribuição deste último aparece como um resíduo do crescimento que seria explicado pelo aumento de insumos, refletindo tanto a mudança tecnológica stricto sensu como ganhos alocativos (como proposto pelo BIRD), como qualquer outra variação não explicada na taxa de crescimento do produto. Constitui, assim, muito mais uma medida da ignorância ou limitação teórica acerca do processo de desenvolvimento do que um fator explicativo fundamentado.
  • 5
    Para uma excelente síntese das diferentes visões acerca das falhas de mercado associadas à industrialização, ver Mesquita Moreira (1995MESQUITA MOREIRA, M. (1995) Industrialization, Trade and Market Failure: The Role of Government Intervention in Brazil and South Korea. New York, St. Martin’s Press Inc.).
  • 6
    Certamente os autores heterodoxos aqui citados (com destaque para Alice Amsden) incorporam, de forma importante, uma visão de economia política, na medida em que, ao assumirem que as falhas são generalizadas, acabam tratando com bastante seriedade o Estado, a sociedade, as instituições e as políticas governamentais, oferecendo contribuições decisivas para a compreensão dos processos de desenvolvimento em discussão. O que se está indicando é que a ruptura precisaria ser mais profunda, atingindo os fundamentos da concepção neoclássica.
  • 7
    Os conceitos centrais deste enfoque foram desenvolvidos a partir dos trabalhos de Nelson e Winter (1982NELSON, R.R. & WINTER, S. (1982) An Evolutionary Theory of Economic Change. Cambridge, Mass.: Havard University Press.) e Dosi (1984DOSI, G. (1984) Technical Change and Industrial Transformation. London, MacMillan.), que inauguraram o que é hoje um vasto programa de pesquisas em torno dos fundamentos microeconômicos da evolução econômica de corte schumpeteriano. Alguns destes conceitos serão retomados, apesar de já terem sido intensamente tratados pela literatura neo-schumpeteriana, uma vez que são essenciais para a argumentação desenvolvida.
  • 8
    Procurando relacionar este enfoque neo-schumpeteriano microeconômico com o sistêmico, pode-se dizer que estes seriam os momentos definidos por Freeman e Perez (1988FREEMAN. C. & PEREZ, C. (1988) “Structural Crisis of Adjustment, Business Cycles and Investment Behavior”. In Dosi, G. et al. (1988) Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publisher.) como de mudança nos paradigmas técnicoeconômicos da sociedade.
  • 9
    Este parece ter sido o caso vivenciado pelo Brasil ao longo dos anos 80.
  • 10
    Nesta perspectiva, Canuto (1994CANUTO, O. (1994) Brasil e Coreia do Sul: os (des)caminhos da industrialização tardia. São Paulo, Nobel.) mostra como, ao longo dos anos 80, houve esta convergência na Coreia e não no Brasil, onde a crise do Estado esteve na raiz do processo de estagnação.
  • 11
    Obviamente, seguindo o referencial teórico apresentado, teria que se fazer uma série de especificações sobre cada um dos países do grupo dos países do leste asiático considerado. Dificilmente, se poderia analisar conjuntamente, por exemplo, o Japão e Hong-Kong. Isso, no entanto, estaria além dos propósitos deste trabalho, que visa fundamentalmente discutir as diferentes concepções de desenvolvimento explicitadas a partir da experiência asiática.
  • 12
    JEL Classification: B52; O31; O14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1998
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br