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A crise econômica contemporânea

The contemporary economic crisis

RESUMO

Um sistema econômico não é uma simples constelação de mercados cuja lógica pode ser explicada pelo comportamento da teoria dos agentes individuais. Pressupõe a existência de um quadro institucional e de um poder regulador capaz de arbitrar os conflitos que sempre se manifestam sobre a apropriação e atribuição de riquezas escassas. Segundo o autor, os mecanismos de regulação encontram-se hoje seriamente prejudicados em consequência da nova conformação que as economias capitalistas têm vindo a assumir. Para resolver a crise econômica contemporânea, novas formas de organização política precisarão ser inventadas para conciliar a aspiração à preservação da identidade cultural com as exigências da tecnologia moderna e a emersão do poder transnacional. No entanto, avançar desta forma não deve privar a capacidade autorreguladora daqueles países para os quais a modernização da estrutura interna é uma prioridade.

PALAVRAS-CHAVE:
Sistema capitalista; instituições; regulação

ABSTRACT

An economic system isn’t a simple constellation of markets whose logic can be explained by the behaviour of individual agents’ theory. It presupposes the existence of an institutional framework and a regulator power capable of arbitrating the conflicts which always manifest about the appropriation and allocation of scarce riches. According to the author, the mechanisms of regulations are today seriously prejudiced as a consequence of the new conformation that the capitalist economies have been assuming. In order to resolve the contemporary economic crisis, new forms of políticaL organization will need to be invented to conciliate the aspiration on the preservation of the cultural identity with the exigencies of the modem technology and the emersion of transnational power. However, bringing forward on this way should not deprive the auto-regulator capacity of those countries for which the internal structure’s modernization is a priority.

KEYWORDS:
Capitalist system; institutions; regulation

Repete-se com frequência em nossos dias que, mais do que uma crise econômica, vivemos uma crise da ciência econômica. Se não somos capazes de compreender o mundo em que estamos inseridos, como agir racionalmente sobre ele?

O esforço de várias gerações de economistas permitiu construir uma teoria das decisões fundada no pressuposto de que cada agente consumidor cinge o seu comportamento a normas que podem ser cabalmente explicadas. A partir de pressupostos fundados na evidência, seria possível construir um modelo axiomático do qual derivar uma teoria explicativa do comportamento do consumidor, ponto de partida da ordenação das atividades econômicas. Estaria assim aberta a via real de acesso a uma ciência econômica de sólidas fundações. Mas o comportamento social não se deixa traduzir facilmente em termos de preferências individuais, por mais que ampliemos e refinemos o quadro das hipóteses de base. Daí o deslocamento para o eixo político - polo oposto na visão dos processos econômicos - e a ênfase dada à ideia de sistema.

A realidade econômica seria, acima de tudo, a resultante da ordenação imposta por uma estrutura de poder ao comportamento dos agentes consumidores e produtores. Observar isoladamente esses agentes é reduzir problemas econômicos a questões de psicologia ou de organização. O estudo dos mercados pressupõe a identificação do sistema econômico no qual eles estão inseridos, e este não existe fora de um contexto político. O que mais importa, por conseguinte, é conhecer as formas como são reguladas as atividades econômicas que, inserindo-se em sistemas abertos, constituem uma realidade particularmente complexa.

A macroeconomia é um simples esforço de configuração dos conjuntos econômicos organizados politicamente. Ela trabalha com variáveis, simples agregados heterogêneos, que estão longe de poderem ser definidas a partir de pressupostos axiomatizáveis. A isso se deve que, por muito tempo, se haja pretendido dissolver a macro na microeconomia, o que permitiria fundar em bases logicamente consistentes esse ramo da ciência econômica. Mas, com esse reducionismo, apenas se conseguiu restringir o alcance explicativo dos modelos macroeconômicos em troca de um falso rigor.

Se pretendemos calçar com fundamentos epistemológicos as variáveis macroeconômicas, devemos fazê-lo não a partir de hipóteses sobre a consistência lógica do comportamento de agentes isolados, mas do próprio acontecer social. A ideia freudiana de que a civilização é uma dupla limitação, no âmbito da ação e da consciência, nos proporciona uma abordagem para este problema. O comportamento social traduz, por um lado, a busca da convivência, sem a qual não seria possível o desenvolvimento do homem. Por outro, ele enfeixa os condicionantes impostos ao indivíduo, tanto no plano cognitivo como no da ação, pelas estruturas de poder. A legitimação para esse comportamento pode ser encontrada no que Habermas chamou de razão comunicativa, ou intersubjetiva.

Em realidade, existe sempre um elemento de consenso no comportamento social, sem o que toda ordem política seria demasiado frágil. Se pretendemos, por exemplo, definir a variável consumo social (macroeconômica) a partir das preferências dos consumidores, somos obrigados a somar elementos totalmente heterogêneos. Mas, se a definimos com base no grau de consenso que existe em torno das regras de apropriação dos bens e serviços disponíveis para consumo, poderemos fazê-lo com relativo rigor. A inflação outra coisa não é senão a explicitação de um limitado grau de aceitação dessas regras. As variáveis macroeconômicas são, por conseguinte, expressão do equilíbrio existente entre as forças sociais que disputam a apropriação da renda ou, visto de outro ângulo, a conformação imposta a essas forças pelo sistema de dominação social.

Portanto, um sistema econômico não é uma simples constelação de mercados cuja lógica possa ser explicada com base na teoria do comportamento de agentes individuais. Ele pressupõe a existência de um quadro institucional e um poder regulador capaz de arbitrar os conflitos que se manifestam a todo momento em torno da apropriação e da alocação de recursos escassos. Foi a institucionalização desse poder regulador que permitiu ampliar o espaço de diálogo entre agentes representativos de forças sociais crescentemente organizadas, o que conduziu à formação de uma ampla área de consenso e a fortiori a uma maior eficácia na utilização dos recursos.

Quando observamos as economias em sua primeira fase de industrialização faz-se evidente a tendência à concentração da renda. Estando o poder em mãos da classe de proprietários de terra e de bens de produção, ao abrir-se o processo de elevação de produtividade era de esperar que o incremento do produto fosse apropriado pelos que monopolizavam o poder. As crises de subconsumo, ou a incapacidade para realizar o excedente, logo se manifestaram, dando lugar a grande desperdício de recursos. A Inglaterra encontrou uma saída para esse estrangulamento na exportação de capitais, o que lhe permitiu financiar sua impetuosa expansão imperialista da era vitoriana. Mas esse modelo de desenvolvimento tendeu a ser substituído por outro, fundado na ampliação do mercado interno, ou seja, na realização interna do excedente, graças a um forte crescimento do consumo causado pela maior propensão a consumir dos assalariados, cuja participação na renda social estava aumentando.

Foi este o curso que prevaleceu na evolução do capitalismo moderno, o que se deve ao desenvolvimento social, ou seja, à ampliação da área de diálogo e consenso, e não prioritariamente ao avanço da tecnologia ou ao desenvolvimento das forças produtivas. Houvesse prevalecido a tendência inicial, e a configuração da economia mundial seria bem diversa da atual, pois a penetração da técnica moderna nas áreas periféricas teria sido mais rápida, e a distribuição da renda nas áreas centrais, mais desigual. Também é provável que o avanço nas técnicas de regulação macroeconômica houvesse sido mais lento.

Pode-se, portanto, argumentar que a evolução do capitalismo industrial no sentido da sofisticação dos meios de regulação - graças à qual foi possível obter uma mais eficaz utilização dos recursos escassos e crescente homogeneização dos padrões de consumo - teve como contrapartida uma mais lenta difusão extramuros do progresso técnico. A realização interna do excedente exigiu a criação de sistemas crescentemente autorreguláveis. Somente assim as pressões sociais não chegariam a comprometer as estruturas de dominação, cuja transformação era lenta. Por outro lado, esse modelo de desenvolvimento contribuiu para aprofundar o fosso entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas.

Ora, esses mecanismos de regulação hoje se encontram seriamente comprometidos, em razão da nova conformação que vêm assumindo as economias capitalistas.

A ninguém escapa que as deslocações causadas pela Segunda Guerra Mundial provocaram considerável concentração do poder político, passando os Estados Unidos a exercerem função tutelar no vasto mundo das nações capitalistas. Emergiu uma confrontação política bilateral em escala planetária, ao mesmo tempo que o financiamento da invenção tecnológica, transformada em ponta-de-lança nessa confrontação, era em grande parte assumido por esse poder político. O alcance dessas mudanças fundamentais no plano da ordenação e regulação das atividades econômicas ainda não foi captado em sua plenitude.

Basta considerar que as instituições reguladoras das relações internacionais concebidas no imediato pós-guerra - o Fundo Monetário Internacional e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento-, fundavam-se no princípio da eficácia da regulação interna, portanto pressupunham a existência de economias nacionais perfeitamente delimitadas. A regulação interna de cada sistema nacional deveria sobrepor-se às relações externas, cujos desequilíbrios, considerados de natureza conjuntural, seriam corrigidos mediante intervenção de órgãos multilaterais. Um pouco de cooperação internacional seria suficiente para evitar os desarranjos que haviam caracterizado o mundo do imediato pré-guerra. O importante era que as economias nacionais resistissem às pressões recessivas externas com medidas expansionistas internas, do contrário as forças recessivas tenderiam a prevalecer.

Ora, o que se observou no pós-guerra foi a crescente integração dos sistemas produtivos nacionais, e, em seguida, dos sistemas financeiros e monetários. A progressiva abertura para o exterior das economias nacionais - o coeficiente de comércio exterior dos países capitalistas industrializados dobrou ou triplicou - trouxe consigo transformações qualitativas no comércio internacional e no papel por este desempenhado na dinâmica das economias nacionais.

O intercâmbio tradicional de manufaturas por produtos primários, ou provenientes de climas diversos, vinha sendo erodido pelo progresso técnico com seu fluxo crescente de produtos sintéticos e uma rápida penetração nas atividades agrícolas. A nova vaga de comércio internacional assumiria a forma de intercâmbio de manufaturas por manufaturas, apoiando-se em economias de escala de produção e na diversificação da oferta ali onde era mais rápido o avanço da tecnologia do produto. Esse tipo de intercâmbio facilitou a difusão das inovações técnicas, pois os novos produtos podiam ser introduzidos simultaneamente em um grande número de mercados nacionais. Dessa forma, o avanço da tecnologia passou a ser um instrumento privilegiado de penetração no exterior, ao mesmo tempo que o comércio internacional ocupava o primeiro plano como fator de dinamização das economias nacionais.

Para ir mais a fundo nesse problema é necessário ter em conta a situação privilegiada em que se encontraram os Estados Unidos no imediato pós-guerra, situação que lhes permitiu criar facilidades de financiamento para as economias de mercado devastadas pela guerra, assim como estimular o desmantelamento das velhas estruturas coloniais. Tudo foi feito para rebaixar as barreiras tarifárias e facilitar a implantação das firmas norte-americanas no exterior.

O rápido avanço das técnicas de informação e telecomunicação deu às empresas maior abrangência espacial, aumentando sua margem de manobra em face das pressões sindicais em seus países de origem. Esse seria o ponto de partida de profundas transformações estruturais da economia dos Estados Unidos, cuja capacidade de autorregulação foi seriamente comprometida.

A abertura para o exterior assumiu nos Estados Unidos, de preferência, a forma de transnacionalização das empresas, passando as transações entre matrizes e respectivas subsidiárias localizadas no exterior a responder por parcela crescente das relações econômicas externas desse país. Como as subsidiárias, via de regra, utilizam tecnologia já amortizada, e reproduzem no todo ou em parte a gama de produtos da matriz, seus custos de produção são mais baixos, o que explica a formação de um fluxo crescente de exportações, em direção do mercado norte-americano, no âmbito das próprias empresas.

Em sua forma tradicional, as exportações de capital tendiam a fortalecer a balança de pagamentos do país exportador, pois geravam influxos de juros e dividendos. É sabido que no final dos anos 20 mais de uma terça parte das importações inglesas eram pagas com rendimentos financeiros obtidos no exterior. Ora, a transnacionalização de um sistema produtivo de elevados custos de mão-de-obra, como é o norte-americano, conduziria necessariamente a resultado inverso. Os lucros obtidos no exterior tenderam a ser aí reinvestidos, em razão das mais altas taxas de retorno. A redução consequente da taxa de investimento interno repercutiu negativamente na absorção de novas técnicas, em detrimento da competitividade das indústrias dos Estados Unidos, tanto no exterior como em seu próprio mercado. A conjunção desses fatores está na origem das mudanças estruturais que engendraram um considerável déficit na conta corrente da balança de pagamento de uma economia que, até recentemente, havia sido grande exportadora de capitais.

As projeções dessas mudanças estruturais no plano financeiro foram de considerável alcance. Como as firmas norte-americanas continuavam investindo no exterior, e ainda buscavam recursos no mercado financeiro de seu próprio país, onde por muito tempo as taxas de juros permaneceram relativamente baixas, ao modificar-se a posição da balança de pagamentos foi necessário conciliar situações antinômicas. Os Estados Unidos se tomavam importadores de capital, sendo ao mesmo tempo exportadores. Essa situação paradoxal foi resolvida na prática retendo no exterior parte dos dólares gerados pelas exportações das subsidiárias em direção do mercado dos Estados Unidos. Esses dólares iam alimentar as reservas dos bancos centrais ou permaneciam circulando nas praças internacionais, constituindo o ponto de partida da formação do mercado dos eurodólares, em início da década de 60.

Por trás do aparente paradoxo a que nos referimos, o que em realidade estava ocorrendo era a transnacionalização dos grandes bancos norte-americanos. Ao organizarem suas atividades num espaço plurinacional - o que lhes permitia combinar fatores localizados em vários países - os conglomerados industriais procuravam escapar do controle das autoridades monetárias norte-americanas, transferindo para praças de conveniência (off shore) recursos financeiros. A gestão dessa massa de liquidez internacional, que escapa a toda forma de controle de autoridades monetárias, resultou ser um negócio de alta lucratividade, incitando os bancos a instalar agências no exterior.

Nesse mundo de bancos privados transnacionalizados as transferências de capital entre países escapam a todo controle. Dispor de liquidez internacional constitui considerável fonte de poder, pois a simples transferência desses recursos entre agências de um mesmo banco, localizadas em países distintos, pode ameaçar a estabilidade de determinada moeda. Ademais, os bancos transnacionalizados, ao se financiarem mutuamente, capacitam-se para criar nova liquidez. Dessa forma, emergiu um novo sistema de decisões no plano internacional que tem como contrapartida menor liberdade de ação dos governos nacionais.

A partir do momento em que as subsidiárias de uma empresa localizadas no exterior têm acesso ao mercado financeiro internacional, reduz-se a possibilidade de submeter a matriz a uma política de crédito de âmbito nacional, ou seja, fundada em equilíbrios macroeconômicos internos. Com efeito, sempre que lhe convenha, a empresa-matriz pode obter recursos financeiros de suas filiais.

Urna observação atenta do ocorrido nos últimos decênios produz ampla evidência de que as transformações estruturais trazidas à economia dos Estados Unidos pela transnacionalização de grande número de suas empresas estão a exigir nova conceituação da economia desse país, que já não pode ser concebida como simples sistema econômico nacional. Seus problemas de regulação terão, portanto, que ser de outra ordem.

Em face dos constrangimentos criados pelo processo de transnacionalização, as autoridades norte-americanas são forçadas a escolher entre uma política de taxas de juros altas - o que significa agravar o desemprego - e uma acumulação indefinida de saldos em dólares no exterior, o que ameaça a estabilidade do sistema financeiro internacional. A política tradicional de baixas taxas de juros, instrumento privilegiado para a ativação da economia desse país, foi inviabilizada pelo processo de transnacionalização, porquanto acelera a saída de capitais, agravando a posição da balança de pagamentos. Por outro lado, a política de desvalorização do dólar, destinada a intensificar as exportações, facilita a penetração de firmas estrangeiras, criando outra fonte de pressão sobre a balança de pagamentos. Com efeito, as firmas estrangeiras que investem nos Estados Unidos orientam-se, de preferência, para o mercado interno desse país. Impõe-se, portanto, a conclusão de que novas formas de regulação terão que ser inventadas, o que requer mecanismos de cooperação internacional distintos dos atuais.

Em realidade, essas transformações estão exigindo uma revisão dos conceitos com que abordamos a problemática das relações econômicas e financeiras internacionais. Os esquemas tradicionais de intercâmbio entre sistemas nacionais com capacidade de autorregularão estão sendo substituídos por múltiplas outras formas de relacionamento que emergem no âmbito das empresas. Mas, se é evidente a redução da capacidade de autorregularão dos sistemas nacionais, estamos longe de poder falar de sistema econômico global, mesmo no que se refere ao mundo capitalista. A ninguém escapa que novas estruturas estão em processo avançado de formação, mas não seria fácil prefigurar o seu formato. Já existem empresas organizadas em escala planetária, sem que se possa afirmar que elas constituem elementos de um sistema econômico emergente da mesma abrangência. O que não existe são instituições atuando no plano internacional com uma percepção clara das transformações em curso.

Alcançamos, assim, o ponto nodal de nossa argumentação. Um sistema econômico é essencialmente um conjunto de dispositivos de regulação, voltados para o aumento da eficácia no uso de recursos escassos. Ele pressupõe a existência de uma ordem política, ou seja, uma estrutura de poder fundada na coação e/ou no consentimento. No presente, a ordem internacional expressa relações, consentidas ou impostas, entre poderes nacionais, e somente tem sentido falar de racionalidade econômica se nos referimos a um determinado sistema econômico nacional. A suposta racionalidade, mais abrangente, que emerge no quadro de uma empresa transnacionalizada, não somente é de natureza estritamente instrumental, como também ignora custos de várias ordens, internalizados pelos sistemas nacionais em que ela se insere. Em realidade, a empresa transnacional não passa de um corte horizontal nas estruturas nacionais de poder, cuja capacidade de autorregularão é, em consequência, reduzida. Sua única legitimidade se funda no fato de que os serviços que ela presta aumentam a eficiência dos sistemas nacionais em que opera.

Vamos admitir que esse aumento de eficiência seja real, vale dizer, resista a um cálculo de custos que tenha em conta as partidas contabilizadas ou não. Caberia, então, indagar: até que ponto pode um sistema econômico nacional beneficiar-se da transnacionalização de segmentos de sua economia, sem perder a capacidade de autorregularão? Olhando o problema de outro ângulo: até que ponto a necessidade de preservar a autorregularão impede determinada economia nacional de ter acesso à tecnologia em poder das empresas transnacionalizadas? Não se trata apenas, se bem que isto seja importante, de economias de escala de produção; trata-se, igualmente, de reconhecer que parte importante da tecnologia moderna está sob o controle dessas empresas.

O problema da autorregularão é particularmente relevante nos países chamados em vias de desenvolvimento, uma vez que neles os custos não contabilizados das decisões empresariais são em geral elevados. Mais heterogênea a estrutura social, maior o excedente estrutural de mão-de-obra, mais acentuadas tendem a ser as discrepâncias entre critérios micro e macroeconômicos de produtividade. E essas discrepâncias, originárias dos próprios mercados, somente podem ser minoradas, ou corrigidas em seus efeitos antissociais, pela ação reguladora do sistema político.

Na medida em que a propagação da técnica moderna busca o caminho da transnacionalização, maiores são as dificuldades que se apresentam aos países em desenvolvimento para conciliar o acesso a essa técnica com a autonomia de decisão de que necessitam no enfrentamento dos graves problemas sociais que os afligem. Muitos desses problemas surgem do próprio desenvolvimento tardio, que combina um consumismo exacerbado com uma insuficiência estrutural de criação de emprego.

Mas não se trata apenas dos países em vias de desenvolvimento. A questão de fundo tem alcance bem mais geral, pois se refere às consequências da transnacionalização tanto na difusão da tecnologia como na alocação de capitais. A construção da Comunidade Econômica Europeia constitui, sem dúvida, uma tentativa de resposta a esse duplo desafio. Às economias nacionais da Europa Ocidental tornaram-se altamente dependentes do comércio exterior para crescer, sendo que grande parte deste comércio é interno à região. A integração regional, ao internalizar grande parte do comércio externo, privilegiou as empresas da região e limitou o impacto da transnacionalização. Mas isto somente foi possível porque a CEE é o embrião de um sistema político, portanto de um governo, se bem que sua área de ação ainda seja limitada. As decisões que dela emanam são de direito interno em cada país-membro, e não de Direito Internacional. É nesse quadro que se está formando um verdadeiro sistema econômico, cuja complexidade, derivada das discrepâncias sub-regionais, a ninguém escapa.

A capacidade autorreguladora do sistema econômico multinacional que é a CEE ainda é pequena, porquanto os circuitos monetários e financeiros não foram adequadamente integrados, mas, mesmo assim, já restringiu sensivelmente a autonomia de decisão dos centros nacionais. A essa transição se deve que a Europa Ocidental enfrente dificuldades particularmente grandes em face da crise econômica atual: o governo comunitário ainda não está suficientemente estruturado e os governos nacionais perderam muito de sua autonomia para agir. Mas não pode haver dúvida de que a construção da CEE constitui a resposta historicamente mais significativa aos grandes desafios lançados no pós-guerra pela evolução da economia internacional.

As tensões que nesta se manifestam, e que são responsáveis pelas recessões intermitentes iniciadas na metade dos anos 70, têm sua origem nas mudanças estruturais que conduziram a perda de poder regulador a níveis nacional e internacional. O ponto de partida, muito possivelmente, se situou na mudança política que, ao colocar os Estados Unidos em posição privilegiada, facilitou às suas empresas organizarem-se em escala planetária. Não menos importante, contudo, foi a emergência do processo de transnacionalização, o qual abriu espaço às empresas para abrigar-se das pressões sociais e dos constrangimentos do poder estatal em seus países de origem. O processo de transnacionalização teve particularmente êxito nos campos da tecnologia e dos recursos financeiros. Com efeito, são as empresas que produzem ou controlam conhecimentos, e aquelas que manipulam os meios monetários e financeiros, as que mais facilmente abrem e consolidam os espaços transnacionais. O poder dessas empresas busca legitimar-se pela qualidade de serviços que prestam, mas as normas que asseguram sua expansão são parte de uma ordem internacional tutelada pelos Estados Unidos.

O primeiro foco de tensão a identificar está nas deslocações causadas à própria economia norte-americana, cuja capacidade de autorregularão foi drasticamente reduzida pelas facilidades de que se beneficia graças à posição internacional privilegiada que ocupa. Existe, portanto, um problema básico de clarificação das relações externas da economia norte-americana, a começar pelo plano monetário.

O segundo foco provém da perda de eficácia das agências internacionais criadas para corrigir desequilíbrios nas relações entre sistemas econômicos nacionais. Ao reduzir-se o poder de autorregularão destes últimos, os desequilíbrios se ampliaram desmedidamente, retirando toda significação aos meios de intervenção das referidas agências. Cabe, por conseguinte, redefinir o papel dessas agências tendo em conta as transformações estruturais advindas da transnacionalização.

Se admitimos que o funcionamento regular de todo sistema econômico pressupõe a existência de um sistema político, devemos reconhecer que somente sairemos dos impasses atuais se caminharmos para a construção de novos sistemas políticos, de maior abrangência, e/ou se restituirmos aos antigos sistemas políticos nacionais a eficácia que perderam. O fundo do problema está em que, dadas as diferenças de níveis de desenvolvimento das economias contemporâneas, os caminhos a trilhar não são necessariamente os mesmos, ainda que os objetivos estratégicos sejam similares. Uma ordem internacional voltada para a difusão do progresso técnico sob o controle das grandes empresas transnacionalizadas pode assegurar a expansão do comércio internacional e, por esse meio, o dinamismo das economias industrializadas. Mas, uma tal ordem, ao reduzir a autonomia de decisão dos países de desenvolvimento retardado, poderá agudizar nestes as tensões sociais e a instabilidade política.

O objetivo comum é, certamente, reforçar a esfera política, ou seja, aumentar o poder regulador das atividades econômicas, única forma de colocá-las a serviço da satisfação das necessidades sociais legitimamente reconhecidas. A eficácia na utilização dos recursos e o crescimento econômico não são mais do que meios para alcançar essa meta. Da mesma forma, a integração econômica e a construção de sistemas políticos mais abrangentes visam ao mesmo objetivo de assegurar estabilidade e crescimento em um mundo em que a tecnologia e o capital são crescentemente controlados por organizações privadas transnacionais.

Na situação presente, tanto podemos caminhar para frente pela rota da integração multinacional, como pelo caminho aparentemente inverso, do reforçamento do poder de decisão e autorregulação nacional. Novas formas de organização política - a exemplo desse governo multi soberano que é a CEE - terão de ser inventadas para conciliar a aspiração à preservação da identidade cultural com as exigências da tecnologia moderna e a emergência do poder transnacional.

Novas formas de cooperação internacional, que permitem estabelecer efetiva regulação em um mundo crescentemente interdependente, somente serão alcançadas com base em novas formas de poder político, capazes de aglutinar os Estados nacionais de pequenas e médias dimensões. Mas, o avanço por esse caminho não deve privar de capacidade autorreguladora os países em que o prioritário é a modernização estrutural interna.

Vivemos uma época em que se superpõem dois tempos históricos. Em um, se procura recuperar o atraso na construção do sistema político que deve regular atividades econômicas que já se estruturam em escala planetária; em outro, se busca eliminar formas anacrônicas de organização social que condenam milhões de criaturas humanas a condições abjetas de vida. Falhar em uma ou outra dessas duas tarefas é condenar a humanidade a continuar trilhando a via da instabilidade e da incerteza.

  • 1
    JEL Classification: P16; P10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1988
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