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Um quadro teórico alternativo para as interações Estado-economia nas economias em processo de transformação

An alternative theoretical framework for the state-economy interactions in transforming economies

RESUMO

Este artigo parte da premissa de que estruturas de representação e visões de mundo são importantes para reflexão e decisão na formulação de políticas econômicas, tornando-se mais importantes à medida que as apostas são altas e o futuro é incerto, como nos países da Europa Central e Oriental. Parece haver um sentimento crescente de discrepância entre os erros cometidos, embora baseados em um corpo bastante unificado de teoria econômica científica, e pontos de vista diferentes que defendem mais pragmatismo e menos excesso de confiança na análise econômica. Estas últimas, entretanto, estão dispersas e sofrem com a ausência de uma estrutura teórica unificada, embora compartilhem várias características básicas que não são percebidas. Este artigo tenta refletir sobre essa alternativa.

PALAVRAS-CHAVE:
Mudança estrutural; desenvolvimento econômico; planejamento econômico

ABSTRACT

This paper is built on the premise that frameworks of representation and worldviews are important for reflection and decision in economic policymaking, becoming more important as the stakes are high and the future is uncertain, as in Central and East European countries. There appears to be a growing feeling of discrepancy between the errors that were made, though based on a rather unified body of scientific economic theory, and differing views advocating more pragmatism and less overconfidence in economic analysis. The latter however are scattered and suffer from the absence of a unified theoretical framework although sharing several basic features which are not perceived. This paper attempts to reflect on such alternative.

KEYWORDS:
Structural change; economic development; economic planning

1. INTRODUÇÃO

Este artigo se fundamenta na premissa de que quadros de representação e visões de mundo são importantes para a reflexão e a tomada de decisões no planejamento econômico. Tornam-se ainda mais importantes quando os interesses em jogo são grandes e o futuro é incerto. Parece razoável considerar que essas características descrevem a atual situação de transformações estruturais profundas em curso nos países da Europa Central e Oriental (PECOs). No entanto, parece existir um crescente senso de discrepância entre, por um lado, os erros cometidos, embora tenham sido baseados num conjunto bastante unificado de teorias econômicas científicas (Portes, 1994PORTES, R. (1994) “Transformation traps”. The Economic Journal 104: 1.178-189.) e, por outro, visões divergentes que advogam mais pragmatismo e menos confiança excessiva na análise econômica. Estas últimas, porém, são dispersas e se veem prejudicadas pela ausência de um quadro teórico unificado. É nossa opinião que algumas dessas visões divergentes merecem ser examinadas a fundo. A razão disso é que elas possuem vários pontos básicos em comum, que esses pontos em comum não são percebidos - ou o são apenas parcialmente - e que, vistos em conjunto, eles oferecem um fundamento teórico consistente para algo que pode levar a conclusões diferentes sobre o planejamento econômico. As evidências disso podem ser tiradas de uma comparação sistemática entre a visão dominante recebida e o que aparece como uma alternativa a ela. Neste paper procuramos refletir sobre tal alternativa.

Algumas pessoas poderiam perguntar por que é necessário passar tanto tempo com coisas que parecem ser praticamente óbvias, quando vistas separadamente. Nesse ponto vale a pena, com certeza, destacar que fatos evidentes, bom senso e discernimento não bastam por si sós. Sua relevância não se sustenta sozinha. É necessário teorizar. Um exemplo pode ilustrar isso. Uma economia é um todo sistêmico. Aquilo que emerge em nível global nunca é uma soma linear de componentes, e vice-versa. E o que nos interessa é a articulação entre esses níveis e o que acontece nas duas extremidades. Essa compreensão é tarefa das teorias de planejamento econômico. Nosso objetivo é modesto. Não pretendemos propor receitas substanciais de política econômica. Isso certamente está além do alcance de qualquer análise, dada a complexidade da situação que se apresenta. Nosso objetivo é tentar demonstrar que existe um enfoque teórico consistente, diferente do enfoque padrão, que nos capacita a tirar conclusões processivas (relativas a procedimentos) e substanciais e a evitar alguns dos pontos fracos das receitas atualmente em uso.

Em nossa opinião, a falha principal da abordagem econômica padronizada às transformações é o fato de que ela está adaptada a uma classe estreita de fenômenos pertencentes às situações de equilíbrio ou de quase equilíbrio. Ela não se adapta a situações de transformações estruturais de grande escala. É movida pelo estado final (end-state driven) e é restrita demais. Assim, faz-se necessária uma compreensão melhor de como as variadas interações afetam os mecanismos econômicos. Parece razoável considerar que, numa transformação estrutural, o número e a variedade de interações que se tornam relevantes são maiores do que em uma situação estável ou quase estável. Assim, precisamos de um quadro mais amplo, capaz de abranger tanto essa multidimensionalidade quanto as variáveis econômicas puras. A ironia é que a literatura não ignora esses pontos. Há uma abundância de visões alternativas à visão padronizada. O problema é que elas se encontram espalhadas. Naturalmente, faria pouco sentido acreditar que elas pudessem compor um conjunto coerente. Afirmamos, porém, que é possível relacionar várias dessas visões a um fio condutor comum. Esse fio condutor pertence ao que se pode qualificar como uma perspectiva evolutiva.

Restam poucas dúvidas de que uma das principais forças motrizes das transformações nos PECOs tem sido e continua sendo a comparação com as economias ocidentais. Ela implica uma disposição de imitá-las. Mas esse avanço poderoso em direção às economias orientadas ao mercado é dependente de uma representação teórica global e uniformizada de uma economia de mercado, que deixa pouco espaço para as diferenças entre as chamadas economias lideradas pelo mercado. Embora essas diferenças sejam reconhecidas como sendo aspectos da realidade, considera-se mais frequentemente que a teoria da economia de mercado está melhor sem elas. Assim, são vistas de facto como fenômenos históricos e contingentes que permanecem periféricos à interpretação central dos mecanismos econômicos. Uma consequência disso é que nenhum status teórico é atribuído a essas diferenças. Elas estão praticamente ausentes das representações teóricas. Vem daí o fascínio que carrega a noção de convergência. Nosso argumento, que contraria o de outros economistas, é que essas diferenças são relevantes. O que está faltando é uma representação integrada que leve em conta tanto as semelhanças quanto as diferenças. É uma tarefa imensa, naturalmente. Neste artigo pretendemos oferecer material para traçar um quadro que possibilite levar em conta as duas dimensões da diferença. Uma delas diz respeito ao tempo; é a transformação. A outra se dá através do espaço. Acreditamos que uma abordagem evolutiva da vida econômica, por um lado, e do modo de interação entre Estado e economia, por outro, constituem passos nessa direção.

Assim, o desafio teórico consiste em teorizar tanto a transformação estrutural quanto as diferenças. Na seção 2, argumentamos que uma teoria de tipo evolutivo pode constituir um quadro interessante para teorizar sobre transformações estruturais. Na seção 3, propomos uma maneira de levar em conta as diferenças estruturais e de articular a diferença e a mesmice. Em cada caso nossa estratégia é confiar numa contribuição representativa - a perspectiva padronizada, no primeiro caso, e a de North, no segundo - e mostrar o que é acrescentado por meio de uma comparação sistemática. A seção 4 aborda o modo de interação entre o Estado e a economia e na última seção são feitos alguns comentários finais.

2. O DESAFIO

Uma contribuição recente de Portes (1994PORTES, R. (1994) “Transformation traps”. The Economic Journal 104: 1.178-189.) sobre as armadilhas da transformação oferece uma base interessante de reflexão. Trata-se de um impressionante exercício de honestidade profissional que menciona, em síntese, alguns “êxitos iniciais” (liberalização, estabilização, ajustes de preços, mudanças institucionais substanciais - “mitigadas por consequências ao nível da distribuição”) - e destaca erros cometidos nas análises dos economistas e nas políticas dos PECOs, considerando-os como armadilhas a serem evitadas no futuro. Assim, oferece uma reflexão sobre o que os economistas deveriam ter evitado nos últimos cinco anos e o que devem fazer agora e no futuro.

Erros cometidos

Portes relaciona nove erros de planejamento iniciais mais importantes. Esses erros se enquadram ou na categoria dos maus conselhos (quase todas as previsões foram excessivamente otimistas) ou na da falta de informações adequadas (subestima dos obstáculos, subestima das especificidades das economias em transformação dos PECOs), e também da confiança excessiva nas fontes espontâneas de transformação. Eles podem ser reagrupados em seis tópicos principais. Em primeiro lugar, os programas de restituição de propriedades físicas aos proprietários do período anterior às nacionalizações, que geraram incertezas e desencorajaram investimentos. Em segundo, a ênfase excessiva nas políticas macroeconômicas em detrimento das microeconômicas, ênfase essa que foi em parte reflexo do papel relevante assumido pelo FMI e de sua condicionalidade macroeconômica, baseada na doutrina de que a estabilização macroeconômica constitui condição necessária para as reformas estruturais e a abertura da economia ao comércio internacional. Existem evidências de que essa doutrina é falsa. Em terceiro lugar, a adoção de políticas monetárias excessivamente rígidas. A inesperada queda na produção resultou da combinação de contração monetária excessiva, maior do que seria necessário à estabilização, e uma resposta de fornecimento insuficiente - ela própria devida aos microfundamentos inadequados -, em face das mudanças na demanda que exigiam ser realocadas. Em quarto lugar, erros foram cometidos devido à desvalorização excessiva, a uma política inadequada de taxa de câmbio e à dissolução deliberadamente precoce do CMEA. O quinto tópico diz respeito às empresas estatais e à privatização. Subestimou-se e não se compreendeu o comportamento e as capacidades das estatais. O que se seguiu foi o abandono do Estado (Portes, 1993PORTES, R. (1993) “Economic Transformation in Central Europe: a progress report”. London, Centre for Economic Policy Research, and Luxemburg, European Commission.), quando o essencial era pôr fim aos subsídios irrestritos e criar incentivos. Os planos de privatização das estatais foram excessivamente complexos e ambiciosos. Em sexto lugar, foram cometidos erros de sequenciamento, especialmente no setor de financiamentos. O fato de não se haver procedido à “faxina” financeira urgente (recapitalização dos bancos, cancelamento das dívidas das estatais) é visto por Portes como o mais importante erro isolado do sequenciamento. Também houve falta de ênfase na redução da dívida (excetuando o caso da Polônia) e demora excessiva em todos os países, erro este cometido pelos responsáveis pelos planejamentos nacionais e pelos bancos e instituições financeiras internacionais.

Achamos importante complementar essa lista com um erro ao qual já se aludiu e mais dois outros. Em primeiro lugar, o corolário da dependência excessiva na capacidade espontânea dos mercados em impelir as variáveis econômicas num caminho favorável. É a rejeição exagerada da ação governamental que se manifestou na corrida para descartar as cotas de importação e reduzir as tarifas a níveis desprezíveis, evitando explicitamente quaisquer políticas industriais, mesmo as restritas, como a promoção da indústria, e no já mencionado abandono do Estado. Como será mostrado na próxima seção, é possível relacionar esse corolário à simplificação excessiva do papel do Estado, visto através de uma espécie de dicotomia entre Estado e mercado. Em segundo lugar, temos o descaso ao qual foi relegada a composição institucional e organizacional de uma economia, em considerações sobre as perspectivas de transformações e reformas. Ele cria condições iniciais, elas próprias restritas pela história. Os modos de libertar-se da economia de comando provavelmente irão depender dessas condições e diferir de uma economia a outra (Stark, 1992STARK, D. (1992) “Path dependence and privatization strategies in East Central Europe”. East European Politics and Societies 6, (1): 17-54.). Finalmente, não se pode deixar de notar como a economia política da reforma, que havia sido praticamente excluída da maior parte dos conselhos econômicos, está voltando (Gelb et al., 1993GELB, A., JEFFERSON, G & SINGH, I. (1993) “Can communist economies transform incrementally? The experience of China”. Economics of Transition, 1 (3): 401-35.; Roland, 1994ROLAND, G. (1994) “On the speed and sequencing of privatization and restructuring”. The Economic Journal 104: 1.158-168.).

O que fazer?

O que se pode fazer? Continuemos confiando na análise de Porter. Até agora o que vimos foram erros no desenho da transformação. Eles apontam alguns dos perigos presentes no caminho que temos pela frente. Ademais, Porter nos avisa que devemos rejeitar rótulos (“radical”, “gradualista”). Tampouco devemos buscar ajuda entre os neoliberais (ou quaisquer outros tipos de “neo”), keynesianos, planejadores, institucionalistas ou evolutivistas. Estes últimos evocam os criacionistas, a chamada escola “bouillabasse” (sopa provençal de peixe), para cujos integrantes é possível, apesar de tudo, “reconstruir o aquário a partir da sopa de peixe, desde que você o faça devagar” (Portes, 1994PORTES, R. (1994) “Transformation traps”. The Economic Journal 104: 1.178-189., p. 1.179). Embora não tenhamos “nenhuma teoria geral da transformação, nenhum caminho ótimo ou ponto final bem definido”, ele nos diz que não devemos nos preocupar com isso, já que “dispomos, sim, de uma ampla gama de instrumentos úteis”, entre os quais figura “um quadro apropriado de equilíbrio geral” (Portes, 1994PORTES, R. (1994) “Transformation traps”. The Economic Journal 104: 1.178-189.).

Nesse ponto ficamos com uma espécie de visão aparentemente eclética, segundo a qual o benefício da visão retrospectiva, após cinco anos de experiência de transformação, e o uso contínuo das ferramentas que já foram utilizadas no passado devem ajudar a melhorar o desempenho do “nós” a quem Portes alude (“nós estávamos enganados”).

O que sobra para o leitor é a ideia de que o melhor a se fazer ainda é confiar no conjunto de ferramentas, utilizado independentemente de qualquer referência às teorizações. O equilíbrio geral é apresentado como ferramenta, não como estando ligado a qualquer teoria. Nessa visão, parece que o problema é uma questão da competência dos técnicos-economistas no uso das “ferramentas”. Parece um ecletismo. Mas a ênfase atribuída na conclusão à obtenção de “convergência” e em fazer as economias pós-socialistas se tornarem “economias normais”(Portes, 1994PORTES, R. (1994) “Transformation traps”. The Economic Journal 104: 1.178-189., p. 1189) é ainda mais surpreendente, à medida que esses conceitos não são definidos. Percebe-se claramente, aqui, a presença de uma norma e de um ponto final do processo de transformação. Será que isso significa que não existe alternativa a essa maneira de enxergar as coisas? Ou o que nos resta é uma rejeição da utilidade de qualquer fio condutor teórico? O conhecimento especializado, as intuições dos políticos e uma boa avaliação seriam necessários e suficientes. Nossa posição é a de que embora isso certamente seja necessário, não é de modo algum suficiente. As decisões podem ser tomadas com base em informações diferentes, obtidas a partir de teorizações diferentes.

Murrell (1990, p. 8) observa que “uma das maneiras mais profundas e sutis pela qual um paradigma pode influenciar uma análise é ditando as próprias categorias do discurso. A análise das economias socialistas recebe forte influência nesse sentido, vinda da economia neoclássica”. Isso possivelmente também se aplique, em grande medida, às transformações atuais, como será demonstrado na próxima seção. As escolhas são feitas no decorrer do processo de reformas, e só uma perspectiva teórica pode informar quais os pontos de equilíbrio entre elas. Mas, como também observa Murrell, “na batalha entre as diferentes visões de reforma econômica, o paradigma da mão invisível comanda uma posição forte. É a única perspectiva teórica que confere a possibilidade de declarar a superioridade de um conjunto de práticas - os mercados livres e irrestritos” (Murrell, 1991MURREL, P. (1991) “Can neo-classical economics underpin the reform of centrally planned economies?” Journal of economic Perspectives 5(4): 59-76, Autumn., p. 73). Hoje parece ser importantíssimo sensibilizar os políticos e a opinião pública para a ideia de que existem várias visões diferentes do mundo econômico e que cada uma delas lança luz sobre a realidade e ao mesmo tempo a distorce, mas de maneira diferente e com consequências bastante diferentes também.

Com base no texto de Portes podemos considerar que existe, entre os economistas, o que poderíamos qualificar de uma visão padronizada das transformações em curso nos PECOs. E também existem perspectivas que fogem da visão padronizada, exemplificadas por The Agenda Report, Murrell e outros. Considerando a diversidade desses últimos, uma tarefa urgente é definir até que ponto suas visões convergem. É isso o que buscamos fazer a seguir. Procuramos traçar uma comparação sistemática entre a visão padronizada e a visão não-padronizada. Evidentemente é um exercício incompleto. Nós o propomos a título de base para avanços futuros. Achamos que ela pode ajudar na compreensão das premissas muitas vezes confusas ou até mesmo ocultas que são subjacentes a ambas as perspectivas. Como damos ênfase às mudanças, os ingredientes não padronizados abrangem o que se poderia qualificar de uma perspectiva evolutiva (Delorme, 1994bDELORME, R. (1994b) “Economic diversity as cement and as a challenge to evolutionary perspectives”. The political economy of diversity. Evolutionary, R. Delorme e K. Dopfer approaches to economic order and disorder. Aldershot, Edward Elgar.). Mais uma vez, não poderemos entrar em maiores detalhes por uma questão de espaço. Por essa razão, o quadro contido na Tabela 1 não poderia deixar de ser estilizado (ver Tabela 1).

TABELA 1
A linha divisória entre as perspectivas padronizada e evolutiva

Acreditamos que a linha divisória fundamental nas abordagens econômicas diz respeito à maneira pela qual elas incorporam as mudanças. Na próxima seção focalizamos esse aspecto. A importância atribuída às mudanças constitui um dos pontos de referência da perspectiva evolutiva advogada por um número crescente de economistas. Isso faz com que seja necessário, a título de esclarecimento, comparar essa perspectiva com a perspectiva padronizada, considerando-as como dois sistemas teóricos. Nesse ponto também gostaríamos de mencionar que não se pode deixar de indagar por que a literatura baseada na visão evolutiva ainda exerce influência tão restrita. Entre as muitas respostas que podem ser citadas, eu insistiria em uma que diz respeito à credibilidade. A perspectiva evolutiva ainda está longe de estar unificada. Ela ainda não conta com uma base unificadora capaz de assegurar a consistência, a sistemática e o caráter cumulativo dos trabalhos teóricos empreendidos sob o rótulo evolutivo. Embora um certo grau de sistemática esteja sendo trazido na esteira da retomada da chamada teoria econômica schumpeteriana, devido ao livro de Nelson & Winter (1982NELSON, R. B. & WINTER, S. G. (1982) An evolutionary theory of economic change, Cambridge, Mass., The Belknap Press.), é preciso reconhecer que essa abordagem ainda é cercada de confusão e ecletismo. Isso não significa que deva ser rejeitada totalmente. É indicativo de que esse programa de pesquisas se encontra ainda em fase bastante inicial. É aqui que eu procuro aceitar o desafio acima exposto. Não afirmo que seja possível propor soluções claras e prontas para usar. Contudo, é possível, sim, melhorar as coisas. Há duas maneiras de avançar. Uma delas é começar a elaborar um fundamento unificado que ofereça uma alternativa ao fundamento padronizado. Isso já foi tentado em outros lugares (Delorme, 1994aDELORME, R. (1994a) “The case for controlled pluralism: a bottom-up approach”. Universidade de Bérgamo, conferência “Pluralism in Economics”. Forthcoming in A. Salanti and E. Screpanti, eds., Pluralism in economics: theory, history and methodology. Aldershot, E. Elgar.). A outra maneira é traçar uma comparação sistemática entre a abordagem padronizada e sua concorrente, a fim de avaliar as diferenças. Essa questão é tratada na próxima seção.

3. TEORIAS SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS PROFUNDAS: MOVIDAS PELO ESTADO FINAL (END-STATE DRIVEN) OU SEM LIMITES PREVIAMENTE DEFINIDOS?

As transformações constituem a principal característica dos PECOs. Segue-se que qualquer reflexão sobre essa questão não pode deixar de incorporar um conceito de transformação que seja apropriado ao caráter das transformações em curso nessas economias.

A irreversibilidade do tempo, a história, as mudanças estruturais e a incerteza radical são algumas das características comuns às contribuições evolutivas que parecem ser de relevância imediata às transformações atualmente em curso nos PECOs. As mudanças estão estreitamente ligadas a noções tais como novidade, variação, diferença, diversidade, heterogeneidade e ignorância. As mudanças confrontam os atores econômicos continuamente com situações radicalmente novas, de sua própria escolha (Winter, 1987WINTER, S. (1987) “Adaptive behavior and economic theory”. In R. M. Hogarth & M. W. Reder, eds. Rational choice: the contras! between economics and psychology, Chicago, University of Chicago Press.). Qualquer mudança é vista como incluindo eventos imprevisíveis, isto é, incerteza radical, ou como excluindo a incerteza e mantendo apenas eventos futuros que possam ser qualificados com base em seu grau de probabilidade. Naturalmente, isso só se aplica ao trabalho científico. Os defensores da exclusão da incerteza radical concordariam, sem dúvida, que a incerteza radical pode constituir-se em uma característica da realidade. Eles postulam que ela não pode ser um aspecto da feitura de modelos e da teorização. Os defensores da inclusão da incerteza radical defendem que esse aspecto da realidade precisa ser refletido no raciocínio científico. Então os conceitos de prática científica envolvidos precisam diferir, até certo ponto. Tendo tratado desse aspecto em outra parte, pretendemos deixá-lo de lado (Delorme, 1994aDELORME, R. (1994a) “The case for controlled pluralism: a bottom-up approach”. Universidade de Bérgamo, conferência “Pluralism in Economics”. Forthcoming in A. Salanti and E. Screpanti, eds., Pluralism in economics: theory, history and methodology. Aldershot, E. Elgar.).

Por um lado, aceitar a incerteza radical, no sentido de que se permite o surgimento de fatos novos, é tratar a teorização com base em um universo aberto. Por outro lado, um conjunto fechado é necessário para que existam soluções, um caminho melhor ou uma única saída. Assim, teorizar economicamente significa teorizar o típico e o repetitivo (Foss, 1994bFOSS, N. J. (1994b) “Realism and evolutionary economics”. Journal of Social and Evolutionary Systems, 17 (1): 21-40). Essa divisão, introduzida aqui por meio do conceito do fato novo, constitui apenas um aspecto da questão mais ampla da complexidade. A fim de evitar um desenrolar mais longo, vamos nos ater simplesmente à consideração de que a frase “economia evolutiva” basta para intitular a abordagem baseada na inclusão da novidade. A abordagem alternativa de forma alguma se reduz à economia neoclássica. O tipo de ecletismo erguido em torno da convergência e da normalidade é fechado e movido pelo estado final, por mais enfática e justamente seus defensores possam rejeitar o rótulo de economistas neoclássicos. O próprio sistema austríaco-hayekiano é fechado pela noção de ordem espontânea. Assim, enquadra-se na mesma categoria de sistemas fechados que engloba a economia marxista, cujo resultado analítico é a noção de um caminho típico ou comum de desenvolvimento histórico e capitalista levando ao comunismo.

Nesta exposição vamos considerar apenas as duas perspectivas de maior influência, ou seja, a neoclássica e a eclética - teorias econômicas fechadas. Elas constituem o que se pode qualificar de abordagem dominante e mais frequentemente encontrada (“mainstream”), enquadrando-se na categoria das teorias econômicas padronizadas.

A seguinte apresentação (ver Tabela 1) é elaborada com base em uma literatura crescente (Schumpeter, 1934SCHUMPETER, J. A. (1934) The theory of economic development. Cambridge, Mass., Harvard University Press., 1942SCHUMPETER, J. A. (1942) Capitalism, socialism and democracy. New York, Harper., Nelson & Winter, 1982NELSON, R. B. & WINTER, S. G. (1982) An evolutionary theory of economic change, Cambridge, Mass., The Belknap Press., Murrell, 1992MURREL, P. (1992) “Evolution in economics and in the economic reform of the centrally planned economies”. In The emergence of market economies in Eastern Europe, C. Clague & R. Rausser, eds., Cambridge, Basil Blackwell., 1995MURREL, P. (1995) “The transition according to Cambridge, Mass.” Journal of Economic Literature, pp.164 - 78, March., Stark, 1993STARK, D. (1993) “Not by design: recombinant property in East European capitalism”. Paper para a conferência “Transforming post-socialist societies”, Cracóvia, outubro., Stolper, 1991STOLPER, W. (1991) “The theoretical bases of economic policy: the Schumpeterian perspective”. Journal of Evolutionary Economies I: 189-205., Boyer, 1993BOYER, R. (1993) “La grande transformation de l; Europe de l’Est, une lecture régulationniste”. Paris, n. 9319., Foss, 1994aFOSS, N. J. (1994a) “Why transaction cost economics needs evolutionary economics”. Revue d’Économie Industrielle, 68: 7-26. bFOSS, N. J. (1994b) “Realism and evolutionary economics”. Journal of Social and Evolutionary Systems, 17 (1): 21-40, Winter, 1987WINTER, S. (1987) “Adaptive behavior and economic theory”. In R. M. Hogarth & M. W. Reder, eds. Rational choice: the contras! between economics and psychology, Chicago, University of Chicago Press., Delorme, 1994aDELORME, R. (1994a) “The case for controlled pluralism: a bottom-up approach”. Universidade de Bérgamo, conferência “Pluralism in Economics”. Forthcoming in A. Salanti and E. Screpanti, eds., Pluralism in economics: theory, history and methodology. Aldershot, E. Elgar. bDELORME, R. (1994b) “Economic diversity as cement and as a challenge to evolutionary perspectives”. The political economy of diversity. Evolutionary, R. Delorme e K. Dopfer approaches to economic order and disorder. Aldershot, Edward Elgar.), que torna quase impossível explorar cada referência de maneira detalhada. A divisão é estruturada em torno de quatro conjuntos de critérios: o status das mudanças, as premissas substanciais, o modo prevalecente de raciocínio e o resultado analítico típico. Nossa preocupação é esclarecer as diferenças. Ela implica um exercício de tipo ideal nas escolhas feitas em cada coluna (ver Tabela 1).

Cada coluna da Tabela 1 apresenta as características priorizadas em cada perspectiva. Isso evita que se postule que essas características são mutuamente excludentes em todos os casos. Uma instância é a unidade de análise. Tomar a interação entre o indivíduo e a instituição como a categoria básica na perspectiva evolutiva não impede que se dê espaço aos agentes por si sós, nem às transações, sempre que isso parecer ser relevante à situação que estiver sendo pesquisada. Essa maneira de descrever a unidade básica na perspectiva evolutiva parece ser apropriada ao fato de que a maioria das abordagens evolutivas não prioriza nem o individualismo metodológico nem o holismo. Na seção seguinte mostramos como essa maneira aparentemente abstrata de considerar a interação entre agência e contexto como categoria básica pode ser operacionalizada na teorização, por meio do desenho de um quadro institucional de uma economia no qual o modo de interação entre Estado e economia seja uma parte chave.

A Tabela 1 é bastante detalhada e quase autoexplicativa. Nota-se que com respeito ao status das transformações, a visão evolutiva procura torná-la endógena. Uma instância disso é o comportamento criativo inovador. Mas isso ainda fica longe de fornecer uma explicação satisfatória da transformação estrutural macroscópica que em alguns casos pode aparecer como fenômeno emergente e em outros como uma descontinuidade. As premissas substanciais básicas dizem respeito à unidade de análise, ao comportamento, à coordenação, ao princípio normativo e ao caráter da evolução. A distinção entre racionalidade substantiva e processiva é derivada da definição de Simon: “Um comportamento é substantivamente racional quando é apropriado à realização de determinadas metas dentro dos limites impostos pelas condições e restrições dadas (...) O comportamento é processivamente racional quando é fruto de deliberação apropriada. Sua racionalidade processiva depende do processo que o gerou” (Simon, 1976SIMON, H. A. (1976) “From substantive to procedural rationality”. ln S. Latsis, ed., Method and appraisal in economics. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 129-48., pp. 130-1). Podemos esperar encontrar racionalidade processiva em situações que não sejam “suficientemente simples para serem transparentes para a mente”. Então “devemos esperar que a mente vá usar as informações imperfeitas das quais dispõe, vá simplificar e representar a situação da maneira que puder, e fará os cálculos que estiver capacitada a fazer” (Simon, 1976SIMON, H. A. (1976) “From substantive to procedural rationality”. ln S. Latsis, ed., Method and appraisal in economics. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 129-48., p. 144). O uso do algoritmo disponível correto é a maneira usual de se proceder com racionalidade substantiva. Não existe interferência entre o responsável pela tomada de decisões e a maneira de resolver um problema. Nada disso se encontra disponível, por definição, nas situações em que prevalecem a incerteza, o desconhecimento ou a complexidade. Nesse caso a decisão incorpora deliberação, busca, as formas de representação que o responsável pela tomada de decisões preferir. Uma solução é então construída por meio de um processo heurístico no qual é razoável manter “uma alternativa que satisfaça ou exceda determinados critérios especificados, mas que não contenha a garantia de ser única ou, em qualquer sentido do termo, a melhor”, o que define o adequado (satisficing), termo introduzido por Simon em 1956. Uma situação é adequada quando responde a algum nível de aspiração. Essa é a essência da racionalidade processiva.

Quando se ordenam e se comparam as ideias preconcebidas e as premissas operacionais e substanciais, aparece uma coerência em cada perspectiva. Nesse sentido, ela constitui um modo de raciocínio prevalecente. Dois modos de raciocínio bastante distintos emergem dessa comparação. Uma delas é movida pelo estado final, baseada num modelo preestabelecido usado como norma de referência e leva, com o tempo, à exclusão de facto de fenômenos que não sejam analiticamente tratáveis. A outra perspectiva é aberta e dá prioridade à história, a fatos empiricamente consistentes e significativos e à heterogeneidade, incerteza e racionalidade processiva decorrentes. Nesse sentido ela incorpora situações que não podem ser incluídas na abordagem puramente analítica. Enquanto a perspectiva padronizada destaca o equilíbrio e a convergência macroeconômica, com grande fé no poder do conhecimento econômico, a perspectiva evolutiva focaliza a pluralidade de trajetórias capitalistas, ostentando uma fé moderada e autocrítica no poder do conhecimento econômico. Embora essa apresentação seja necessariamente simplificada, achamos que ela capta diferenças importantes entre as duas perspectivas. Note-se que essas perspectivas não são simétricas. Enquanto a perspectiva padronizada praticamente exclui a evolutiva, esta última não exclui a visão padronizada, mas a subordina a sua categoria, já que aceita sua relevância local e restrita a situações adequadamente identificadas.

Nesse ponto vale a pena insistir nos princípios normativos. A base da abordagem padronizada é a eficiência alocativa, associada ao equilíbrio geral dos mercados competitivos. As coisas são diferentes do lado evolutivo: embora o critério padronizado tenha relevância em um contexto estático, é a noção de eficiência adaptativa para lidar com novas circunstâncias que prevalece num contexto dinâmico. O desempenho econômico depende primeiramente do lidar com as transformações, da inovação e da capacidade de satisfazer necessidades humanas por meio de procedimentos democraticamente escolhidos e do respeito pelos valores universais fundamentais (Gough, 1994GOUGH, I. (1994) “Economic institutions and the satisfaction of human needs”. Journal of Economic Issues, pp. 25-66, March.). Assim, o capitalismo de estilo ocidental pode ser visto como maneira de obter tal eficiência. Mas outros sistemas ou tipos de capitalismo também podem ser candidatos à eficiência socioeconômica. Ademais, existem dentro do tipo ocidental de capitalismo diversos caminhos capitalistas, como será sugerido mais adiante (Boyer). Levando tudo isso em conta, essas considerações nos levam a sugerir cautela na utilização de uma noção de eficiência ou valor ótimo na disciplina econômica. No caso das transformações sociais profundas, as incertezas são tão grandes que não pode haver consenso quanto à melhor maneira de proceder. A racionalidade processiva aconselha-nos a pensar em termos de soluções razoáveis e adequadas. E como qualquer situação é o resultado temporário de uma interação, a solução adequada só pode ser revelada após um processo de experimentação e aprendizado. Vem daí que a sociedade precisa fundamentalmente de mecanismos de geração de experiências. A abertura à diversidade, à concorrência disciplinada, ao livre ingresso de novas firmas, especialmente no caso de firmas estrangeiras, figura entre as instâncias desses mecanismos. A consideração das ameaças de perturbação e dos custos sociais decorrentes da transformação estrutural deixa clara a necessidade de adaptação e experimentação simultânea dos mecanismos sociais de seguro, cooperação e bem-estar social. A criação de um clima de confiança e legitimidade é condição prévia até mesmo para uma política bem-sucedida de transformação estrutural.

Finalmente, vamos realçar que as categorias contidas na Tabela 1 pertencem aos principais aspectos permanentes normalmente encontrados em cada raciocínio. Para denominar essas perspectivas, procuramos utilizar rótulos que fossem os mais neutros possíveis com respeito aos rótulos estabelecidos na teoria econômica. Assim, a abordagem padronizada não se restringe à teoria neoclássica. Não é preciso ater-se ao credo neoclássico de nenhuma incerteza radical e equilíbrio geral através dos mercados para enquadrar-se principalmente na perspectiva padronizada. O mesmo se aplica à grande diversidade de abordagens enquadradas na perspectiva evolutiva. Nossa classificação visa apenas a organização sistemática das diferenças encontradas entre economistas que tratam das transformações nos PECOs. A posição que afirmamos é a de que essas diferenças constituem dois raciocínios consistentes, embora estilizados, seja qual for a diversidade entre escolas específicas ou sistemas teóricos no interior de cada abordagem (Delorme, 1994bDELORME, R. (1994b) “Economic diversity as cement and as a challenge to evolutionary perspectives”. The political economy of diversity. Evolutionary, R. Delorme e K. Dopfer approaches to economic order and disorder. Aldershot, Edward Elgar.).

É preciso deixar claro que a diferenciação acima apresentada precisou ser simplificada para que se efetuasse a comparação ponto por ponto num espaço limitado. Esse exercício de redução é necessário, entretanto, pois por um lado ele obriga seu autor a selecionar o que considera mais importante e, por outro, fornece uma base (que se espera estar explicada e estruturada) para reflexões, críticas e aperfeiçoamentos adicionais.

Assim, é muito possível que ainda restem algumas ambiguidades. Uma instância disso é a referência feita por ambos os lados à famosa noção schumpeteriana de “destruição criativa”. Ela já se tornou uma espécie de lema de muitos reformistas e é vista como retrato do funcionamento do capitalismo. Citemos Schumpeter: “O impulso fundamental que põe e mantém o motor capitalista em funcionamento vem dos bens dos novos consumidores, dos novos métodos de produção ou transporte, do novo mercado, das novas formas de organização industrial criadas pelo empreendimento capitalista. Essas transformações ilustram o mesmo processo de mutação industrial - se posso utilizar esse termo biológico - que revoluciona constantemente a estrutura econômica a partir de seu interior, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de destruição criativa é o fato essencial com respeito ao capitalismo” (Schumpeter, 1942SCHUMPETER, J. A. (1942) Capitalism, socialism and democracy. New York, Harper.).

Também queremos mostrar como a aplicação direta desse princípio às transformações atualmente em curso nos PECOs pode, na realidade, ser bastante perigosa, porque requer um contexto de um quadro capitalista já estabelecido para o desenrolar de suas consequências positivas. Distanciemo-nos um pouco da situação existente no início dos anos 90. Sejam quais forem os modos específicos de saída das economias de comando, existem algumas características comuns aos processos de transformação que se podem observar. Elas fazem parte das mudanças políticas, da política macroeconômica, do que a opinião pública antecipa, da disposição em destruir instituições e organizações vinculadas ao sistema de comando, das previsões dos investidores, da criação de novas instituições e organizações e das mudanças nos padrões e normas de comportamento. Trata-se de sete tipos diferentes de transformações que se dão em ritmos muito diferentes. De fato, resta pouca dúvida de que essa diversidade na velocidade das transformações é um dos principais obstáculos à representação do processo global de transformação estrutural. Pois existem vários processos que compõem um todo bastante heterogêneo, que pedem sequenciamento e geram incerteza entre os observadores. É por essa razão que não parece apropriado referir-se a um processo global de transformação que significaria que se tem alguma noção do horizonte temporal do suposto término da transição. Esses fatores são esquematizados na Figura 1. Os números inteiros de 1 a 7 representam os tipos de mudança já descritos. São situados num espaço definido em termos das durações plausíveis dos processos de mudança no eixo horizontal e em termos de graus de atrito no eixo vertical. Os processos de mudança são aqueles ligados a transformações. Podemos considerar que um processo vai chegar ao fim quando surge uma configuração estabilizada. Assim, a noção de “duração de um processo de mudança” é o tempo durante o qual não surgiu nenhuma configuração estabilizada. É o período de tempo necessário para que a configuração se estabilize, ou seja, que se torne reproduzível pelo mesmo período de tempo no futuro. Como o avanço em direção ao capitalismo como atrativo maior se manifestou em mudanças muito rápidas sob os itens 1, 2 e 3 da Figura 1, parece razoável considerar que o processo de transformação de economias de comando em economias capitalistas vai atingir uma fase final quando o capitalismo nessas economias estiver assentado no tipo de capitalismo que será, como se sugere a seguir. No eixo vertical, parece razoável supor que existe uma correlação positiva entre os graus de atrito e as durações dos processos de mudança. Quanto mais tempo for preciso para obter as mudanças, maior o atrito. O grau de atrito pode ser aproximado ao custo das mudanças.

FIGURA 1
Atritos durante a Transformação

A distinção introduzida, em termos de duração de mudança, entre destruição e criação de instituições e organizações efetivamente operacionais é ilustrada pela transferência bastante rápida de ativos nos programas de privatização e na criação muito mais lenta de empresas privadas com desempenho razoável, especialmente nos setores industriais. Muitas outras instâncias são apresentadas em outros artigos constantes desta edição. O que os investidores antecipam refere-se aos investidores nacionais e estrangeiros para quem o fator principal é um clima de confiança. É um fator que geralmente exige tempo. Ao todo, o spread entre os tipos de mudança 4, 5 e 6 pode variar. Mas nossa afirmativa é que eles formam um grupo bem acima dos três primeiros fatores.

O sétimo tipo de mudança diz respeito a padrões de percepção e códigos de conduta. Refere-se a mentalidades, normas de comportamento e costumes, rotinas, aspectos regulares pertencentes às normas de interação na esfera socioeconômica e hábitos referentes a sanções e recompensas. A categoria 7 diz respeito a fatores regulares informais, não escritos. Confiança, normas (especialmente as normas de reciprocidade), redes (especialmente as redes de engajamento cívico), constituem aspectos da organização social que compõem capital social, noção essa enfatizada por Putnam em seu trabalho sobre a Itália (Putnam, 1993PUTNAM, R. D. (1993) Making democracy work. Civic traditions in modern Italy. Com R. Leonardi e R. Y. Nanetti. Princeton, Princeton University Press.). Essas regras e esses fatores regulares informais mudam mais lentamente do que as regras formais e tendem até mesmo a remodelar as regras formais. Assim, é provável que a imposição externa de um conjunto comum de regras formais leve a resultados muito divergentes (Putnam, 1993PUTNAM, R. D. (1993) Making democracy work. Civic traditions in modern Italy. Com R. Leonardi e R. Y. Nanetti. Princeton, Princeton University Press., p. 180). Esses fatores regulares informais não podem ser facilmente comandados ou controlados por nenhum governo, de cima para baixo. No entanto, contribuem em muito para o desempenho econômico e são, por sua vez, reforçados por esse desempenho. Enquanto num sistema dado eles não precisam ser modificados, nos PECOs constituem parte integrante das transformações, condicionando o êxito destas. Nesse sentido, estamos lidando com transformações estruturais profundas, ou seja, transformações estruturais de natureza sistêmica.

Essas mudanças que compõem as transformações atualmente em curso nos PECOs formam o pano de fundo contra o qual se supõe que ocorra a destruição criativa. Com base nessa apresentação, parece-nos necessário distinguir dois tipos de situação. O primeiro é a destruição criativa no interior de um sistema capitalista. Nesse caso, a categoria 7 é por definição estável. As categorias 1, 2 e 3 não possuem qualquer vínculo apriorístico necessário com as fontes de destruição criativa contidas nas categorias 4, 5 e 6. Esses três processos são estreitamente interligados, formando um subconjunto que faz com que seja difícil diferenciar velocidades específicas. São fontes e partes das mudanças em curso, conforme retratadas por Schumpeter. A isso se deve o fato de terem sido posicionadas numa linha vertical na Figura 2. Usamos a linha OT para simbolizar o período médio de mudanças e a linha OC para indicar o custo médio de mudança por período. As coisas ficam diferentes no contexto de transformações socioeconômicas profundas. Nesse contexto, a categoria 7 torna-se uma variável e as categorias 5 e 6 não acompanham espontaneamente o processo de destruição. Há um espaço vazio entre elas. A própria existência de uma população de instituições e empresas capitalistas, como meio no qual a destruição criativa se processa, está ausente por definição. Esse espaço vazio entre 4, 5 e 6 é o problema-chave. Ele torna extremamente plausível que tanto a duração quanto o custo do processo de mudanças sejam muito superiores ao que ocorria no contexto anterior. O custo total é esquematizado pela área OCD’T’ na Figura 3. Ela é maior do que a área OCDT na Figura 2. Naturalmente, OC’ e OT’ na Figura 3 são custos e períodos médios simbolizados: é óbvio que as transformações não irão terminar repentinamente no ponto T’.

FIGURA 2
Destruição criativa no interior de um sistema capitalista

FIGURA 3
Destruição criativa no contexto de transformação sócio-econômicas

Por essa razão pode-se prever que a criação ativa de políticas visando aliviar o custo das mudanças e fornecer uma orientação confiável para mudanças duráveis precisará ser mais gradativa, com mais ênfase na legitimação e na aplicação das leis, que aqui aparecem no nível 7.

4. O MODO DE INTERAÇÃO ENTRE O ESTADO E A ECONOMIA

Sobre as instituições de uma economia: o Hemisfério Norte e além dele

A diversidade de perfis temporais dos fenômenos básicos sujeitos a mudanças no processo de transformação foi destacada na seção anterior. Essa diversidade nos ritmos de mudança e nos atritos que provavelmente irão suscitar impõe um desafio muito sério às perspectivas que utilizam o singular em relação à transição ou transformação de economias de PECOs em estruturas pós-socialistas vagamente definidas. De fato, é bem possível que a recusa comumente encontrada na literatura econômica de aceitar frontalmente a ideia de heterogeneidade represente uma armadilha crucial. Frequentemente se faz alusão à heterogeneidade, mas apenas enquanto restrição ou qualificação de um argumento central derivado, ele próprio, de considerações de homogeneidade. Assim, a dificuldade que encontramos em nosso raciocínio diz respeito a colocar a heterogeneidade em primeiro lugar. Apesar de seu caráter esquemático, a Figura 1 aponta a inércia de hábitos, modos de percepção, padrões de comportamento e códigos de conduta. No entanto, o que se pretende é considerá-los como pré-requisitos para o funcionamento de uma economia capitalista descentralizada, não comandada. A expectativa de que a lei e os contratos serão aplicados, que todos os cidadãos, qualquer que seja sua posição, receberão tratamento igual, que as sanções e recompensas pelas atividades dependem desse novo jogo e que todos terão que cumprir as regras é condição prévia para o funcionamento efetivo de uma economia descentralizada.

As mudanças atualmente em curso nos PECOs constituem uma experiência de avanço em direção ao capitalismo, experiência essa que não tem qualquer precedente histórico. Na história passada do capitalismo, os processos de transição para o capitalismo foram bastante diversificados, mas todos se deram no decorrer de períodos históricos longos. O capitalismo foi construído através de fenômenos históricos, genéticos e sociais, com diferenças por economia e país que nos possibilitam identificar as origens das particularidades dos sistemas capitalistas contemporâneos nessas raízes históricas. Os avanços em direção ao capitalismo nos PECOs ilustram um caminho bastante diferente. Eles parecem ser dominados, em diferentes graus nos diferentes países, por uma disposição tecnocrática em criar mercados como se estes fossem uma espécie de experimentação baseada em leis universais, decisões abrangentes, planos-mestres e fé no conhecimento especializado dos economistas, menosprezando a importância e o significado tanto da história quanto da necessidade de se lidar com a duração.

Isso traz à tona a questão do que é uma economia capitalista, de como ela é criada através de uma estruturação social, de como surgem e se adaptam novas instituições e práticas sociais, de como emergem padrões comportamentais adequados. Estes nos remetem à categoria 7 da Figura 1. Tratar de todas essas questões seria um projeto muito audacioso, que nos levaria muito além do âmbito deste paper. Uma questão-chave diz respeito às instituições. Elas mediam, informam, restringem e facilitam os comportamentos dos agentes.

O que se faz necessário, nesse ponto, é uma compreensão melhor da arquitetura institucional e do funcionamento das instituições de qualquer economia que se estrutura segundo uma orientação capitalista. Até agora as palavras-chaves têm sido estabilização macroeconômica, liberalização e privatização. Isso se coaduna com as evidências crescentes dando conta da necessidade de uma concepção mais abrangente, que nos permita levar em conta as interdependências e a hierarquia de maneira aberta, conforme o esquema mostrado na Tabela 1.

O que a literatura econômica tem a nos oferecer sobre esse ponto? Uma referência frequentemente citada no tocante às instituições é North (1990NORTH, D. C. (1990) Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge, Cambridge University Press., 1993NORTH, D. C. (1993) “Toward a theory of institutional change”. W. A. Barnett, M. J. Hinich & N. J. Schofield, eds., In Political economy: institutions, competition and representation, Cambridge, Cambridge University Press ., 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68.). North define as instituições como “as restrições concebidas pelo homem que estruturam a interação humana. Elas são compostas de restrições formais (por exemplo, regras, leis, instituições), restrições informais (por exemplo, normas de comportamento, convenções, códigos de conduta auto-impostos), e as características de sua aplicação. Juntas, elas definem a estrutura de incentivo das sociedades, e especificamente das economias” (North, 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68., p. 360).

As instituições constituem a “regra do jogo”. Os jogadores são as organizações e seus dirigentes empreendedores: “As organizações são compostas por grupos de indivíduos unidos pela meta comum de realizar determinados objetivos. Elas abrangem os organismos políticos (por exemplo, os partidos políticos, o Senado, a Câmara Municipal, os órgãos regulamentadores), organismos econômicos (empresas, sindicatos, propriedades rurais familiares, cooperativas), organismos sociais (igrejas, associações esportivas) e os organismos educacionais (escolas, universidades, centros de treinamento vocacional)” (North, 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68., p. 361). A evolução institucional de uma economia é moldada pela interação entre as instituições e as organizações: “As organizações criadas vão refletir as oportunidades oferecidas pela matriz institucional. Ou seja, se o contexto institucional recompensa a pirataria, surgirão organizações piratas; se o contexto institucional recompensa as atividades produtivas, serão criadas organizações - empresas - que realizam atividades produtivas” (1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68., p. 361). Considerando o processo de mudanças institucionais, North escreve que: “O agente das mudanças é o dirigente empreendedor, o responsável pela tomada de decisões nas organizações (...) O processo de mudanças é avassaladoramente incremental (...) A razão disso é que as economias de âmbito, as complementaridades e a rede de externalidades que emerge de uma matriz institucional dada (...) tipicamente irão fazer os custos e benefícios tender a favor de escolhas consistentes com o contexto existente. Quanto maior o número de mudanças, ceteris paribus, maior o número de perdedores, logo, maior a oposição” (North, 1993NORTH, D. C. (1993) “Toward a theory of institutional change”. W. A. Barnett, M. J. Hinich & N. J. Schofield, eds., In Political economy: institutions, competition and representation, Cambridge, Cambridge University Press ., pp. 63-4). E a direção das mudanças é caracterizada pela dependência do caminho (North, 1993NORTH, D. C. (1993) “Toward a theory of institutional change”. W. A. Barnett, M. J. Hinich & N. J. Schofield, eds., In Political economy: institutions, competition and representation, Cambridge, Cambridge University Press ., p. 64). No entanto, poucos anos depois, North insistia no que chama de uma abordagem institucional/cognitiva às mudanças econômicas de longo prazo. O aprendizado por indivíduos e dirigentes empreendedores torna-se “a mais fundamental fonte de mudanças a longo prazo” e é a cultura que fornece a chave da dependência de caminho (North, 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68., pp. 362, 364).

North caracteriza as implicações das instituições e da racionalidade limitada para a teoria econômica da seguinte maneira, sob quatro tópicos. Primeiro, “os modelos econômicos (e políticos) são específicos a determinadas constelações de restrições institucionais que variam radicalmente, tanto no tempo quanto através de diferentes seções em diferentes economias”. Segundo, “uma incorporação consciente de instituições obrigará os cientistas sociais, de modo geral, e os economistas em particular a questionar as premissas comportamentais subjacentes a suas disciplinas ... “ Terceiro, “as ideias e ideologias têm peso e as instituições desempenham um papel relevante na determinação do peso dessas ideias e ideologias”. Quarto, “Estado e economia se encontram inextricavelmente interligados em qualquer visão que se tenha do desempenho de uma economia; precisamos, portanto, desenvolver uma verdadeira disciplina de economia política”(North, 1993NORTH, D. C. (1993) “Toward a theory of institutional change”. W. A. Barnett, M. J. Hinich & N. J. Schofield, eds., In Political economy: institutions, competition and representation, Cambridge, Cambridge University Press ., pp. 67-8).

Finalmente, North destaca que: “Não podemos explicar a ascensão e queda da União Soviética e do comunismo mundial com as ferramentas da análise neoclássica, mas devemos fazê-lo com uma abordagem institucional/cognitiva aos problemas do desenvolvimento contemporâneo. Para isso, precisamos levar em conta que:

  1. é o misto de regras formais, normas informais e características de aplicação de ambas que molda o desempenho econômico;

  2. as instâncias governamentais desempenham papel significativo na moldagem do desempenho econômico, porque são elas que definem e aplicam as regras econômicas;

  3. a chave do crescimento de longo prazo é a eficiência adaptativa, mais do que a alocativa” (North, 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68., pp. 336-67).

As visões de North representam uma tentativa importante de incorporar instituições no raciocínio econômico e servir como espécie de ponto de referência para qualquer representação das instituições de uma economia. Entretanto, embora essa tentativa tenha sido elaborada por bastante tempo, ainda não é inteiramente satisfatória para nosso fim. Ela lança luz sobre a dificuldade de se lidar com instituições desde um ponto de vista econômico, como procuraremos mostrar a seguir.

Outra abordagem é oferecida pela crescente literatura sobre os modos de governar. Hollingsworth, Schmitter e Streeck (1994HOLLINGSWORTH, J. R., SCHMITTER, P. C. & STREECK, W. (1994) Governing capitalist economies, performance and control of economic sectors. Oxford, Oxford University Press.) partem da premissa de que o capitalismo é um sistema econômico definido por livres mercados e propriedade privada dos meios de produção, sendo que esses mercados e direitos de propriedade são “sempre enraizados em, e por, contextos institucionais locais de tipo social não econômico” (Hollingsworth et al., 1994HOLLINGSWORTH, J. R., SCHMITTER, P. C. & STREECK, W. (1994) Governing capitalist economies, performance and control of economic sectors. Oxford, Oxford University Press., p. 3). Isso nos capacita a enfatizar “a unidade do capitalismo contra a diversidade das sociedades capitalistas”. Os autores consideram que “a ação econômica é um caso especial de ação social e que, portanto, precisa ser coordenada ou governada por arranjos institucionais (...). A coordenação é realizada por meio de um conjunto de instituições que, juntas, formam o sistema de governo da economia” (Hollingsworth et al., 1994HOLLINGSWORTH, J. R., SCHMITTER, P. C. & STREECK, W. (1994) Governing capitalist economies, performance and control of economic sectors. Oxford, Oxford University Press., pp. 4-5). Os mecanismos de governo que eles identificam são os mercados, as hierarquias empresariais, o “Estado moderno”, redes informais tais como clãs e comunidades, e as associações.

Uma terceira abordagem é encontrada na “teoria da regulamentação” da “escola da regulamentação” francesa. Ela destaca o papel das formas institucionais no funcionamento dos “modos de regulamentação”, conforme ilustrado notavelmente pela contribuição feita por Boyer a essa questão. Em nossa pesquisa sobre interações Estado-economia nas comparações históricas e internacionais (Delorme, 1994DELORME, R. (1994b) “Economic diversity as cement and as a challenge to evolutionary perspectives”. The political economy of diversity. Evolutionary, R. Delorme e K. Dopfer approaches to economic order and disorder. Aldershot, Edward Elgar.), desenvolvemos um quadro teórico originário de bases semelhantes. Mas acabamos com uma quarta e mais abrangente representação da estrutura institucional de uma economia, que serve como quadro para a identificação de modos de interação entre o Estado e a economia, daqui em diante indicados por MIEEs.

Precisamos agradecer a North por haver conseguido reintroduzir o estudo das instituições na ciência econômica, por meio da história econômica. Mas isso ainda está longe de representar o final da história. A visão de North vem evoluindo nos últimos dez anos. Agora ele parece disposto a confiar menos exclusivamente na eficiência e mais na cultura e nos padrões mentais (North, 1994NORTH, D. C. (1994) “Economic performance through time”. The American Economic Review 84 (3): 359-68.). Mas instituições e organizações enquanto atores continuam sendo introduzidos numa base nacional geral, sem qualquer tentativa de se organizar sua interação em modelos mais precisos. A literatura sobre os modos de governo aponta para a presença de lógicas diferentes de coordenação, mas evita por definição a questão das instituições, enquanto as formas institucionais estão na base da teoria da regulamentação. Essa teoria focaliza os mecanismos meso e macroeconômicos e introduz explicitamente uma escolha no campo do que é visto como as formas institucionais chaves. Cada uma dessas abordagens, a seu próprio modo, acrescenta algo à visão de North. Mas quando se trata de interações entre Estado e economia, descobre-se, como fizemos em nossa própria pesquisa, que ainda falta algo mais: juntar os pedaços num quadro teórico consistente e operacional. Foi o que fomos obrigados a fazer em um estudo sobre as interações Estado-economia numa pesquisa histórica sobre a França e numa comparação internacional, notadamente entre França e Alemanha (Delorme, 1992DELORME, R. (1992) “Economic intervention in the history of the french and other European States: a comparative study”. In A. A. Zini, ed., The market and the State in economic development in the I 990s. Amsterdam, Elsevier, North Holland, pp. 23-49.). Acreditamos que os resultados obtidos se estendem às instituições de uma economia como um todo e a outros países. Eles parecem adequar-se especialmente à articulação de semelhanças e diferenças em comparações internacionais. Por razões de espaço, faremos apenas um breve esboço dos resultados obtidos. Nossa visão representa um quarto caminho, quando comparada às três concepções acima apresentadas. Ela se baseia no desenho de um sistema socioeconômico como um todo organizado, diferenciado em quatro níveis de interação (I a IV) e três principais lógicas de interação (A a C). O MIEE aparece como subconjunto do sistema socioeconômico.

Quatro níveis de interação no MIEE (Modo de Interação entre o Estado e a Economia)

O nível I representa a natureza das interações. É o nível em que é definida a natureza do jogo. A diferenciação entre Estado e sociedade, a definição dos direitos individuais relativos a mercados livres e os direitos de propriedade, todos aparecem nesse nível. No nível II figuram as regras de interação. Elas são as formas institucionais e suas manifestações concretas, históricas enquanto instituições. São as regras do jogo. Seguimos, aqui, a apresentação adotada pela escola da regulamentação, distinguindo cinco dessas formas institucionais, ou seja, dinheiro e finanças, concorrência, o nexo salário-trabalho, o Estado e as relações com outros sistemas econômicos.

As cinco formas institucionais da teoria da regulamentação pertencem à esfera econômica. Elas definem as regras do jogo. Essas regras são formais ou informais, no sentido de serem escritas ou não. Regras formais geralmente implicam a presença do Estado em sua elaboração e aplicação, ou diretamente, por meio de ação governamental, ou indiretamente, através da aplicação da lei geral quando ela diz respeito a qualquer uma das formas não institucionais. Assim o Estado está presente, mas com importância variada, nas instituições relativas ao dinheiro, à concorrência, ao nexo salário trabalho e às relações com outros sistemas econômicos. O tópico remanescente é o próprio Estado. Sob esse tópico figuram as regras não diretamente relacionadas às outras quatro formas institucionais. As leis gerais e cíveis e as regras relativas ao funcionamento do próprio Estado, enquanto forma organizacional, estão incluídas nesse tópico.

O nível II são as formas de interação, e o nível IV são os atores, indivíduos, agrupamentos e organizações. Aqui aparece uma diferença-chave em relação a North. Na visão dele existem dois níveis, as regras do jogo e os jogadores, ou seja, instituições e organizações. Em nossa apresentação, estas figuram nos níveis III e IV. Na apresentação de North, não parece existir nada entre esses níveis. No entanto, é preciso uma noção intermediária: a das formas de interação. Essa noção retrata as regularidades em interação, dadas as instituições. Uma metáfora pode ajudar-nos a compreender esse ponto. Consideremos um esporte competitivo de equipe, tal como o futebol. Embora as regras do jogo sejam universais, é sabido que cada time profissional tem suas próprias táticas e sua própria maneira de organizar a partida em campo. Essas são regularidades e padrões específicos importantes, usados para jogar o mesmo jogo. Isso significa que embora as regras de interação e as categorias de atores sejam os mesmos, é possível haver formas diferentes de interação. Essa característica fundamental é explicada pelos modos de governo ou pelo que se pode chamar de formas organizacionais (nível III). A interação entre jogadores ocorre dentro das formas de organização. Elas ajudam a canalizar o comportamento humano, estabilizando as expectativas, produzindo informações e coordenando as trocas, a produção e a distribuição. O mercado é a primeira forma organizacional dona de tais propriedades que normalmente vem à mente de um economista. As intervenções do governo desempenham o mesmo papel geral. A superação de situações de dilema de prisioneiro, por meio do governo, constitui um exemplo claro de coordenação, embora obedeça a uma lógica de hierarquia e a um poder legítimo. A mesma lógica diz respeito à mediação de conflitos.

Mas existem outras lógicas de coordenação. Elas dizem respeito à família, aos clãs, associações, contratos sociais, convenções e redes. A chave para o estudo das variações entre economias consiste no misto de instituições e organizações. Embora estejam presentes em todas as economias, elas diferem muito nos meios de operação e em suas dimensões. Assim, poder-se-ia esperar que uma compreensão melhor da relação Estado-mercado dependesse de um conhecimento melhor desse misto.

Esse misto pode ser encarado pelo ponto de vista da concorrência e da hierarquia. Essa distinção, ademais, é mais difícil do que a visão popular geral talvez sugira. Como instância dessa dificuldade, propusemos a distinção entre três diferentes categorias de mercado (Delorme, 1992DELORME, R. (1992) “Economic intervention in the history of the french and other European States: a comparative study”. In A. A. Zini, ed., The market and the State in economic development in the I 990s. Amsterdam, Elsevier, North Holland, pp. 23-49.). A primeira é aquela da teoria do equilíbrio geral, em que o preço é a variável primeira do ajuste. Na vida real, ela pressupõe uma organização precisa. A bolsa de valores e a bolsa de commodities constituem duas instâncias de um mercado governado pela concorrência. Na extremidade oposta figuram os mercados governados pela proteção contra a concorrência, dos quais a principal instância é a organização do uso da mão-de-obra no interior da firma como mercado interno. A terceira categoria é aquela dos mercados de bens e serviços nos quais ocorre concorrência entre organizações (empresas) e os preços operam principalmente como variáveis de financiamento das organizações. Essa distinção sugere que a maneira walrasiana de enxergar uma economia implica dois pressupostos básicos: que qualquer economia se reduz aos mercados e que qualquer mercado se reduz ao caso da bolsa de valores. Essa visão é estreita demais - e - ela carece de generalidade. Hábitos, regras, convenções, códigos de conduta, diferentes formas de instituições, sejam eles formalizados, sejam informalizados, são condições prévias para o funcionamento de qualquer mercado.

Nesse ponto parece que se justifica traçar uma distinção entre mercados externos, governados pelo princípio da concorrência, e outras formas de organização governadas pela lógica da hierarquia (mercados “internos”, organismos públicos) e outros. A atividade do Estado se dá primeiramente na categoria das organizações hierárquicas. Mas também é preciso levar em conta os empreendimentos públicos pertencentes a mercados competitivos.

Tudo isso pode ser resumido por uma representação simbólica. Denotando as instituições relacionadas à concorrência por m, aquelas dominadas pela lógica hierárquica - ou seja, organizações - por h e as outras instituições por O, as hierarquias privadas por 1 e as públicas por 2, a configuração das formas organizacionais principais de uma economia pode ser representada pelo complexo C:

C = ( m , h l , m h 1, h 2, O )

em quem é o primeiro tipo de mercado anteriormente mencionado, hl o segundo tipo (mercado interno), mhl o terceiro tipo (concorrência entre organizações), h2 a organização estatal e O as outras.

As disposições organizacionais incluem acordos para as inter-relações entre organizações. Existe uma grande variedade delas na alocação de recursos, especialmente daqueles fornecidos pelo “mercado” e pelo governo. Aqui se sugere que outra distinção importante a traçar é entre mercado externo e organização, apesar da categoria ambígua - embora prevalecente - mh1. Na maioria dos casos, o fato de alguma coisa ser fornecida, produzida ou financiada por meio de concorrência ou de organização é questão de arranjos, excetuando-se os casos triviais de administração geral, lei, Forças Armadas e relações com outros Estados. Isso talvez explique por que a literatura sobre patrimônios públicos seja tão flutuante.

De acordo com nossa representação, a solução em face de um “fracasso governamental” pode consistir no fornecimento pelo mercado ou em qualquer outra maneira não governamental, e vice-versa. O Estado, enquanto jogador, no papel IV, faz parte da agência. O Estado atua como agente, por meio de representantes governamentais, legislativos e administrativos, políticos e organismos. Aqui se faz necessária uma representação de interesses e da interação entre representações de interesses. Finalmente, resta um papel de ordem superior, o I. Ele é duplo: tem a ver com a natureza do jogo e com seu significado. Jogar num time profissional de futebol pode não significar a mesma coisa para uma equipe do Norte da Europa e para uma equipe da África negra. Um aspecto básico da natureza do jogo que aparece em todos os países capitalistas é a diferenciação entre o Estado e a sociedade civil. Parece ser condição prévia para a descentralização e autonomia mínimas do comportamento individual, compatíveis com o papel e espaço maiores do comportamento movido pelo mercado. Identificamos esse papel como o “nível Estado-sociedade”.

Excetuando o primeiro lugar, cuja natureza é verdadeiramente sistêmica e específica à constituição dos arranjos societários básicos, o Estado é uma instituição específica entre outras. Vamos introduzir a noção de regulamentação definida como o processo por meio do qual um tipo dado de ordem ou de consistência resulta numa entidade complexa (um sistema socioeconômico) que se submete a uma tensão infindável, devida à tendência inerente à desordem (Delorme, 1992DELORME, R. (1992) “Economic intervention in the history of the french and other European States: a comparative study”. In A. A. Zini, ed., The market and the State in economic development in the I 990s. Amsterdam, Elsevier, North Holland, pp. 23-49.). O funcionamento ou não da regulamentação depende da interação de agentes e dos dois conjuntos de instituições e organizações. Assim, podemos definir a espinha dorsal de um sistema econômico como a matriz de formas institucionais em um quadro e formas organizacionais comuns.

Três lógicas de interação

Podem-se conceber duas maneiras de tratar a lógica da interação. Uma delas é partir dos atores e suas situações práticas. Para os cidadãos comuns, poderiam ser a seguridade social, a satisfação de suas necessidades básicas etc. No caso de empresas, seria o lucro. Para organizações de modo geral, seria reproduzir-se, sobreviver e dominar quando confrontadas com a concorrência. Muitas outras motivações e objetivos específicos de ação poderiam ser definidos no caso de organizações específicas. Obviamente não podemos procurar retratar de maneira satisfatória as muitas lógicas de interação existentes em uma economia. Assim, temos que focalizar nossa atenção no Estado enquanto organização ou complexo específico de organizações. Nossas pesquisas nos levaram a concluir que a reprodução dessa entidade na esfera econômica depende de três lógicas de ação: coordenação, legitimação e coerção. A coordenação faz parte de uma lógica de eficiência econômica. A legitimação é o processo pelo qual alguma coisa é aceita como sendo justa e equitativa, apesar de suas possíveis falhas de organização (desemprego, grandes desigualdades). Em termos de coordenação bem-sucedida, esse próprio êxito constitui fonte de sua legitimação. Mas, em casos de crise, a legitimação em si se toma crucial. As políticas sociais, o ensino público e as comunicações do governo por meio da mídia constituem instâncias desse papel. Outra dimensão da legitimação é a obediência às normas globais e às restrições públicas. Aqui chegamos à última e mais específica função do Estado, aquela dos poderes legítimos finais de coerção e implementação da lei, da regulamentação e outras decisões governamentais.

Qual é a base racional de se introduzirem três lógicas de interação em lugar de nos contentarmos com a coordenação? Uma primeira resposta possível é que a coordenação é uma noção restrita demais quando se considera o papel do Estado. A coordenação faz parte da noção econômica de eficiência. Um crescimento sustentado e alto nível de emprego atestam essa noção de eficiência para a economia como um todo. Mas ela não se justifica, como se observa atualmente em muitas economias. A história e as comparações internacionais mostram que não se podem ignorar as outras duas lógicas de interação. Uma economia de comando é aquela que prioriza a coerção em todas as áreas. A coordenação na esfera econômica depende dela. E a própria legitimação depende, em grande medida, de a coordenação ser bem-sucedida ou não. Uma economia em processo de transformação de um sistema de comando para algo diferente, mais orientado ao mercado e não estabilizado, depende muito da capacidade de seu governo e de outros organismos estatais de implementarem as regras mudadas de jogo. Mesmo os sistemas econômicos alemão e francês diferem profundamente com respeito aos pesos relativos dessas lógicas. Uma instância é a das relações industriais e da negociação entre parceiros sociais. A eficiência destas na Alemanha é muito superior à sua eficiência na França. A consequência disso é que enquanto na Alemanha os acordos sociais tendem a ser fechados principalmente entre parceiros sociais, a fraqueza dos parceiros e das negociações na França só pode ser compensada por uma implicação muito mais direta de um governo árbitro e coercitivo, atuando como responsável pela tomada das decisões finais. Essas considerações nos levam a afirmar que esses três papéis, além de serem separados, devem ser vistos como sendo interdependentes. Assim, por esse ponto de vista, a transição entre uma ‘economia de comando e uma economia que não é de comando significa recombinar a distribuição dos pesos relativos do papel do Estado e os das outras formas de organização, mais ou menos como a transição entre um Estado coercitivo e um Estado não-coercitivo, conjuntamente com a liberação das forças de mercado.

Neste ponto gostaríamos de mencionar, também, que essa visão não está desligada da famosa divisão das funções do Estado entre alocação, regulamentação e redistribuição, proposta por Musgrave. Mas ela parece ser estreita demais. Alocação e regulamentação correspondem a coordenação; redistribuição faz parte da legitimação. A elas acrescentamos a coerção.

O modo de interação entre o Estado e a economia (MIEE) é definido cruzando-se os quatro níveis de interação com as três lógicas de interação. Um resultado de nossa argumentação é a substituição da dicotomia usual entre Estado e mercado por uma visão muito menos parcial. O Estado se torna encravado no tecido socioeconômico. Seu papel de comando é circunscrito. Ele faz parte de cada uma das quatro camadas de interação. Mas é único e diferenciado em comparação com as outras partes, à medida que integra os quatro níveis simultaneamente. A complexidade do papel econômico do Estado tem suas origens nessa pluralidade de dimensões.

Afirmamos que o MIEE tem um propósito bastante geral. Cada economia tem sua maneira própria de realizá-lo com pesos diversos. A economia de comando e a economia capitalista diferem no nível I antes de diferir nos outros níveis, enquanto as economias de mercado podem diferir umas das outras nos níveis II, III e IV (Delorme, 1992DELORME, R. (1992) “Economic intervention in the history of the french and other European States: a comparative study”. In A. A. Zini, ed., The market and the State in economic development in the I 990s. Amsterdam, Elsevier, North Holland, pp. 23-49.).

É neste sentido que as transformações nos PECOs são processos de mudanças sistêmicas: elas se fazem sentir primeiro no nível I e envolvem lógicas B e C, às quais se somam as clássicas dimensões II, III, IV e A, com A, B e C representando respectivamente a coordenação, a legitimação e a coerção. Os MIEEs observáveis emergem no decorrer do tempo histórico como consequências de combinações indeterminadas de propósito, necessidade e acaso. Nenhum MIEE específico possui propriedades normativas apriorísticas. O que prevalece é a dependência do caminho e a dependência do contexto. Não existe modelo a imitar. A relação Estado-economia é embutida no tecido socioeconômico histórico de outras relações econômicas e não-econômicas. Mas não se dilui nele. Assim, embora a dupla Estado-economia contenha mais do que apenas Estado e mercado, o MIEE oferece uma maneira de limitar o número de dimensões que se leva em conta. Os MIEEs são historicamente produzidos, e não apenas produtos de um desígnio. Isso não significa que a política com propósito não tenha papel a desempenhar. Mas é preciso admitir que quanto maior e mais complexo o empreendimento, mais ele precisa chegar a um meio-termo com a imprevisibilidade e a condição indeterminada.

Em consequência disso, a visão aqui desenvolvida enfatizaria as teorizações baseadas nas pesquisas e experiências empíricas e no aprendizado social. Para nós, o MIEE é uma representação teórica que nos permite aperfeiçoar nossa compreensão do que são os processos dos sistemas econômicos, quando comparados à visão convencional. Ele oferece uma perspectiva articulada e integrada que dá espaço para diferenças e heterogeneidade que remediam, embora apenas parcialmente, as categorias, as diretrizes e os conceitos globalizados dos quais depende forçosamente o raciocínio dedutivo baseado nas representações homogeneizantes do mundo.

5. COMENTÁRIOS FINAIS

Chegar às considerações de políticas é resultado natural da teoria. Mas o objetivo desta contribuição diz respeito à teorização. E não devemos esquecer a máxima de Keynes. O peso dos conselhos políticos depende da força de sua representação subjacente da vida econômica. Na análise aqui apresentada enfatizamos os aspectos dinâmicos, restritos pela história, e institucionais. A evolução econômica atual nos PECOs é moldada em graus variáveis pelo legado do passado. Em lugar de construir, a partir de uma tábula rasa, sobre as ruínas do socialismo, parece ser mais razoável aceitar a ideia de construir com as ruínas do socialismo. Isso assinala que faltam esforços especiais para identificar os vários MIEEs nos PECOs e traçar uma comparação cuidadosa entre eles. A nosso ver, essa seria uma condição prévia necessária para engajar-se na análise do âmbito possível de transformações e no âmbito da comparação internacional para qualquer país dado. Nessa área, parece que existe uma pauta inteira de pesquisas ainda intocada.

A visão teórica apresentada anteriormente está em acordo com muitas contribuições visando políticas feitas por autores em uma perspectiva evolutiva (Badhuri et al., 1993BHADURI, A., LASKI, K. & LEVCIK, F., (1993) “Transition from the command to the market system: what went wrong and what to do now?”. Vienna, WIIW The Vienna Institute for Comparative Economic Studies., Boyer, 1993BOYER, R. (1993) “La grande transformation de l; Europe de l’Est, une lecture régulationniste”. Paris, n. 9319., Chavance, 1994CHAVANCE, B. (1994) La fin des systémes socialistes. Paris, L’Harmattan., Hausner et al., 1991HAUSNER, J., JESSOP, B. & NIELSEN, K. (eds.) (1991) Markets, politics and the negotiated economy: Scandinavian and post-socialist perspectives. Cracow, Cracow Academy of Economics., Kregel et al., 1992KREGEL, J., MATZNER, E. & GRABHER, G. (eds.) (1992) The market shock. An agenda for the economic and social reconstruction of Central and Eastern Europe. Viena, Austrian Academy of Sciences, Research Unit for Socio-Economics., Murrell, 1992MURREL, P. (1992) “Evolution in economics and in the economic reform of the centrally planned economies”. In The emergence of market economies in Eastern Europe, C. Clague & R. Rausser, eds., Cambridge, Basil Blackwell., Roland, 1994ROLAND, G. (1994) “On the speed and sequencing of privatization and restructuring”. The Economic Journal 104: 1.158-168., Sapir, 1993SAPIR, J. (1993) “Formes et nature de l’inflation” (The nature and forms of inflation) Économie Internationale, La Revue du CEPII, Paris, n. 54, pp. 25-66., Stark, 1993STARK, D. (1993) “Not by design: recombinant property in East European capitalism”. Paper para a conferência “Transforming post-socialist societies”, Cracóvia, outubro.). Existem também algumas chamadas contribuições evolutivas que merecem o apelido “bouillabasse”, de Portes. Mas seria um engano desmerecer de imediato todas as teorias evolutivas e um tanto quanto ingênuo acreditar que o uso dos mesmos instrumentos que levaram a erros no passado evitaria novos erros em virtude da experiência e da visão retrospectiva. A economia é uma disciplina em que há especialmente pouca razão para se acreditar na autorregularão do trabalho teórico em relação aos erros cometidos. A razão principal disso é a dificuldade de se obter um acordo na comunidade sobre a própria natureza dos erros. Faltam à economia os mecanismos de correção presentes nas ciências exatas.

Procuramos mostrar que pode haver uma perspectiva evolutiva não menos consistente do que a abordagem padronizada e que esta última não detém o monopólio dos princípios primeiros, ponto este tratado de maneira mais detalhada em outros trabalhos (Delorme, 1994aDELORME, R. (1994a) “The case for controlled pluralism: a bottom-up approach”. Universidade de Bérgamo, conferência “Pluralism in Economics”. Forthcoming in A. Salanti and E. Screpanti, eds., Pluralism in economics: theory, history and methodology. Aldershot, E. Elgar.). Uma comparação direta entre as implicações em termos de política econômica de ambas as perspectivas, com respeito à lista de erros elaborada por Portes, não sugere de maneira alguma que a perspectiva evolutiva seja inferior à padronizada.

Em um contexto caracterizado por alto grau de incerteza e transformações profundas, em que as dúvidas em relação às capacidades de previsão dos modelos são maiores, parece razoável prestar mais atenção ao significado dos pressupostos específicos incorporados nas explicações. Quando nos confrontamos com a incerteza, há uma razão apriorística para confiar numa representação que incorpore a incerteza.

Não faz sentido iniciar aqui uma lista de medidas políticas desejáveis. Simplesmente focalizaríamos a necessidade de instituições que facilitassem as mudanças econômicas. Mudança significa efeitos de reestruturação e redistribuição. Algumas pessoas se beneficiam dela e é provável que muitas se prejudiquem. Existe uma razão lógica para se focalizar uma economia produtiva, porque apenas uma economia capaz de produzir pode lidar com as outras metas desejáveis. São necessários altos índices de poupança e investimentos, juntamente com uma política social ativa. A infraestrutura para isso deixa a desejar. O MIEE aponta uma série de fatores necessários, a começar pelas instituições de uma sociedade civil e dinheiro, finanças, legislação civil e comercial, direitos de propriedade, implementação da lei, infraestrutura de transportes, agentes criadores de contexto, tais como instituições bancárias e atores coletivos da representação de interesses.

Neste ponto surge uma espécie de dilema. As chances de uma mudança socioeconômica progressiva, durável e direcionada desenvolver-se favoravelmente de maneira espontânea são pequenas. No entanto, a própria ideia de administração do Estado se encontra em baixa. Como, então, engajar-se em mudanças sustentáveis sem algum centro de governo ativo? Recursos estratégicos são a credibilidade e a legitimação. Como podem ser obtidas? Aqui talvez sejam úteis algumas referências a experiências históricas passadas. Eu mencionaria simplesmente a reconstrução na Europa Ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial e a experiência francesa de planejamento até meados da década de 60. O que vem à mente é um processo sem limites preestabelecidos e uma experimentação social que permitissem alguma flexibilidade na estratégia de política econômica. Ela tem seus limites, tanto internos quanto externos. O limite interno está relacionado à capacidade de surgimento de representações de interesse e seu engajamento em interações negociadas, ao mesmo tempo evitando a defesa estreita dos interesses corporativistas. O limite externo vem da necessidade de apoio internacional do tipo pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja, orientado primeiramente à reconstrução, que não é o tipo de visão que prevalece hoje em dia. Isso torna ainda mais necessário que se conte primeiro com as forças internas. Mais uma vez, a experiência francesa de planejamento indicativo em seus primeiros 15 anos pode ser útil. Como experiência histórica, ela nasceu de uma combinação de determinação humana (Monnet, De Gaulle, o “consenso modernista” na França), de necessidade (era uma maneira de satisfazer as condições impostas pelo governo norte-americano para poder fazer jus à assistência sob o plano Marshall) e do acaso (um contexto de crescimento internacional que a reforçava). Teve resultados positivos imediatos nos setores priorizados e aumentou sua própria legitimação. Embora as condições sejam diferentes hoje, eu aventaria a hipótese de que os PECOs talvez precisassem implementar um equivalente funcional a essa experiência. Um papel-chave desempenhado pelo plano na França, além dos que já mencionei, foi o de funcionar como espaço onde sindicatos, organizações empresariais, vários outros grupos de interesses, especialistas de diferentes profissões e até intelectuais podiam encontrar-se e refletir sobre uma visão global, em grande parte independentemente do jogo político convencional. Por que não cogitar de um Conselho Sócio-Econômico desse tipo nos PECOs, que poderia ser uma maneira de ajudar a construir uma visão legitimada?

O que emerge do MIEE é uma hierarquia nas prioridades. Admitamos que os agentes-chaves do processo de transformação são empresas e intermediários, tais como banqueiros e financistas. Eles agem racionalmente, de acordo com seus interesses percebidos como tais. Esses interesses dependem dos conjuntos de oportunidades e restrições oferecidos pela lei, pelos contratos, direitos de propriedade, concorrência e seu grau de implementação. Sua eficiência depende, por sua vez, de serem institucionalizados enquanto regras do jogo. Na realidade, o resultado provavelmente vai depender de a institucionalização dos fatores-chaves ser conseguida e apresentada de maneira confiável aos agentes que permanecem autônomos em tais instituições ou de a institucionalização ser precedida por uma concorrência indisciplinada, abrindo caminho para uma espécie de acumulação primitiva selvagem com baixo nível de institucionalização e, na realidade, uma fase de desintegração do Estado. Pode-se pensar que o primeiro caso guarda uma semelhança mais próxima com os casos da Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria e países bálticos, enquanto a Rússia se assemelha mais ao segundo (Sgard, 1995). Esse processo revela que não existe auto institucionalização favorável realizada pelo mercado apenas, mas que a criação de confiança e de um contexto de regularidades socialmente lucrativas requer a criação de instituições vistas como legítimas e dignas de crédito. Não vislumbramos possibilidades de essa criação e sua aplicação ocorrerem independentemente do Estado ou de organismos públicos agindo em nome do Estado. Isto exige uma mudança qualitativa, de Estado comandante para governo constitucional diferenciado da sociedade e da economia e submetido à lei. Em suma, é a mudança de um Estado que embute para um Estado embutido no tecido social e econômico. Assim, ocorre um intercâmbio básico entre os níveis I, II e IV do MIEE, ou seja, respectivamente, a natureza das interações, as regras de interação e os atores. A quarta categoria (III) - as formas de interação - não é de modo algum secundária, mas aparece como assumindo formas concretas dependentes da interação entre atores e instituições. Os mercados figuram entre essas formas. A combinação dessas categorias com as três lógicas resulta em formas variadas de organização que constituem uma economia e o MIEE como subconjunto dela. A lição a ser tirada é que as economias capitalistas lideradas pelo mercado diferem uma da outra especialmente na composição complexa de suas formas concretas, históricas, de organização. Isso deixa espaço para a constituição de tipos originais de capitalismos centro e leste-europeus que, no futuro, podem provar diferir tanto dos capitalismos americano, britânico, francês, alemão e italiano quanto estes últimos diferem dos capitalismos japonês, sul-coreano ou chinês. E os primeiros provavelmente irão diferir tanto entre si quanto diferem os capitalismos ocidentais.

FIGURA 4
Formas institucionais e organizacionais

FIGURA 5
Modo de interação entre Estado e economia (MIEE)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    JEL Classification: O20: P11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1997
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