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A dor se transforma em solidariedade. A Pastoral do migrante em Roraima.

Pain turns into solidarity. Pastoral care of migrants in Roraima.

A Venezuela está enfrentando uma grave crise social, como atestado pelo declínio no Fragile States Index1 1 Relatório anula produzido pelo The Fund for Peace (FFP) (cf. https://fragilestatesindex.org/). (2021Fund for Peace. Fragiles states index. 2021. Disponível em: Disponível em: https://fragilestatesindex.org/ . Acesso em: 10.09.2021.
https://fragilestatesindex.org/...
), sobretudo a partir de 2019. O país perdeu 50% do PIB entre 2013 e 2018 e está enfrentando uma hiperinflação de mais de 400% apenas no primeiro semestre de 2021. A pobreza extrema já ultrapassa 90% da população, que está sem dinheiro suficiente para comprar alimentos. Consequentemente, o sistema de saúde entrou em colapso e a mortalidade infantil e a desnutrição crônica aumentaram. Estudos realizados em 2018 mostraram que a perda média de peso de um venezuelano foi de cerca de dez quilos em 2017 devido à falta de alimentos (DW, 2018DW. A fome se propaga na América Latina. DW, 20.05.2018. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/a-fome-se-propaga-na-venezuela/a-42657286.
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).

O êxodo de venezuelanos é um dos maiores da história moderna da América Latina e do Caribe e envolve tanto refugiados como migrantes. A Organização dos Estados Americanos (OEA) estima que mais de 5 milhões de venezuelanos migraram nos últimos 5 anos. O relatório também prevê que entre 7,5 e 8,2 milhões de venezuelanos poderão ser forçados a deixar seu país até 2021, caso a situação atual na Venezuela não mude (OAS, 2018OAS. Preliminary Report on the Venezuelan Migrant and Refugee Crisis in the Region. Washington, 2019.).

A situação de migração de venezuelanos se agravou no estado de Roraima, tanto em Pacaraima (fronteira), quanto em Boa Vista (capital), caracterizando-se pela aglomeração de migrantes desabrigados em ruas e praças, sendo os albergues superlotados. São famílias inteiras que chegam diariamente à fronteira e não encontram vagas em abrigos, nenhuma referência, nenhum amparo. Em Boa Vista há 9 abrigos sendo 3 apenas para indígenas e em Pacaraima há apenas 1 abrigo para todos. Uma grande parte dessa população também se encontra em casas/prédios abandonados, em ocupações espontâneas.

A fronteira com a Venezuela permaneceu fechada desde março de 2020, consequência das medidas sanitárias para conter a pandemia de Covid-19. A flexibilização ocorrida desde de junho de 2021 permitiu a passagem limitada de migrantes de forma regular e forçou - e ainda força - a entrada pela chamada “trocha” (ingresso administrativamente irregular), de forma contínua e perigosa, mediante o pagamento de um valor de 400 dólares por pessoa, o equivalente hoje a mais de dois mil reais. Cabe lembrar que agora todos os migrantes venezuelanos que estão em território brasileiro, independentemente se entraram de forma regular ou não, podem ser documentados. Isso incentiva a entrada, mesmo que a fronteira esteja flexibilizada, mas não aberta.

Cheguei passei a fronteira, vi mais de quatro mil pessoas na rua deitados em papelão lá em Pacaraima. São profissionais, muitos deles eu conheci, deixaram sua terra, como eu deixei a minha, dói no coração. É uma dor que não se explica, só dói, dói a saudades, dói o vazio, dói o nada, dói a fome, o sono, tudo dói é uma dor sem nome.... Eu não era católico, mas uma irmã me ouviu, aliviou a minha dor e a dor da minha família. Ela me escutou, me acolheu, me ajudou, me convidou para participar da comunidade. Hoje eu quero ajudar quero ser portador de ajuda, quero ajudar a aliviar a dor dos meus irmãos venezuelanos (....). (homem venezuelano, tradução livre do espanhol).

Esse é apenas um dos tantos depoimentos que ouvimos, vemos e acompanhamos nas periferias da cidade de Boa Vista. Há poucos dias acompanhei um agente de pastoral em uma das chamadas Vilas. Aqui Vila significa um terreno fechado com uma construção precária, alugada para uma família, geralmente por um valor não inferior a seiscentos reais. Nesta Vila encontramos alojadas 8 famílias em um total de 31 pessoas entre crianças e adultos, incluindo duas mulheres grávidas. Oito dias depois fui comunicada que ali, nesta mesma Vila, chegaram mais três famílias. Dormem no chão, comem o que recebem de doação, esperam com paciência a possibilidade de fazer seus documentos. Esperam a oportunidade de aprender a língua para se comunicar; alguns buscam esperançosamente recursos e condições de reunião familiar ou social em outros Estados do Brasil; outros precisam ainda de atendimento sanitário.

Muitos vivem em ocupações espontâneas. Além de tendas de plástico armadas em terrenos vazios, visualizamos constantemente muitos vivendo na rodoviária internacional de Boa Vista, sendo este o ponto estratégico de permanência, visando acesso à assistência da Operação Acolhida e/ou de outras organizações que atuam no local. Nesse lugar há pessoas vendendo itens nos semáforos para, muitas vezes, arcar com os gastos de alguma moradia. Há inclusive crianças e adolescentes expostos ao trabalho seja nas ruas da cidade ou mesmo nos semáforos. Sabemos que tal situação é proibida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, porém a demanda é demasiada e muitas vezes o Conselho Tutelar e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI não conseguem intervir.

Uma Irmã da Igreja Católica, coordenadora de pastoral, testemunhou:

Sou agente de pastoral e trabalho com migrantes há 13 anos. Hoje dá vontade de chorar, vimos povo caminhando, pés sangrando. Roraima oferece quase nada de acolhida para os migrantes. Encontramos as famílias e até uma mulher que por ter furtado uma Coca-Cola está esquecida no cárcere. Onde vivo é zona vermelha, o UBER não quer nem vir buscar a gente, porque nessa periferia paira a violência, os entorpecentes e muitas coisas ruins. Isso o poder público não vê, não se importa com as pessoas, se importa com a cidade limpa. Se vem alguém de fora vê uma cidade sem muitas pessoas nas ruas do centro porque elas estão todas escondidas nas vilas, nas periferias. (religiosa católica, agente de pastoral)

A maioria dos migrantes venezuelanos vive exclusivamente de “bicos” e da generosidade de pessoas que vão às praças e sinais de trânsito para lhes fornecer alimentos, alguma roupa, itens de higiene, etc. Mas o que pesa não é apenas a luta diária pela sobrevivência. Há também adolescentes e crianças que, como atesta o depoimento abaixo, sofrem pela falta de perspectivas em relação aos estudos e ao futuro.

Eu como adolescente preciso estudar e aqui é muito difícil. Em verdade na Venezuela tudo é diferente daqui de Boa Vista. Eu vim com meus pais, deixei minha escola, minhas amigas, meus espaços de lazer, meus professores. Tenho muita saudade, sinto uma coisa no meu coração que não sei explicar. Também lá na Venezuela tinha pobreza, o governo não dava tudo, mas na escola eu tinha tudo. Acho tudo muito difícil e outra coisa a língua e o calor também é complicado. Me encontro com muitas adolescentes como eu, eu tenho 12 anos, acho que sou criança ainda e não sei o que vai acontecer comigo. Sei que quero estudar, quero fazer meu grupo de amigas as que eu tinha já perdi. (adolescente venezuelanas, tradução livre do espanhol, grifo meu)

“Acho que sou criança ainda”: é o drama de quem, na realidade, sofre pela perda de um período da vida que não vai voltar, sofre pela necessidade de queimar etapas da própria existência. Mas há também tanta esperança, desejo de recomeço e superação. Um coordenador de área missionária, em um momento de partilha junto aos migrantes, dizia:

A palavra síntese é Esperança, eles, os migrantes, esperam. Estão em uma condição permanente de espera. Esperam para comer, esperam para conseguir documentos, para trabalhar, para ser acolhidos, para receber algum auxílio. Os migrantes esperam por Deus, em Deus, vivem de esperança.

A vida desses migrantes passa entre longas esperas e muitas esperanças. Diante disso, durante os cinco anos dessa intensa migração, a Diocese de Roraima tem se mobilizado de várias formas para a, com ações nas paróquias e m áreas missionárias, por vezes com o apoio da secretaria da Pastoral dos migrantes nacional através da Pastoral dos Migrantes na Diocese, que desde 2018, junto com outras instituições humanitárias, vem atuando neste contexto de migração.

Em visita às famílias, o depoimento a seguir - colhido, como os demais, com autorização dos entrevistados para divulgação - confirma o drama da população migrante, mas também suas lutas em busca de respostas, inclusive numa ótica solidária.

Olho meus colegas na rua e vejo que estão passando mais necessidades do que eu. São muitos que chegam e não temos como ajudá-los, estão na rua, dar informação, falo para saber esperar, reparto o que tenho, mas é pouco. Digo para pensar no futuro, falo coisas boas. Fui na Igreja não entendia o que estavam falando, mas sabia que Deus iria me ajudar e assim foi, o Sr. Luiz se aproximou de mim me disse bem venido, me agradeceu que eu estava na Igreja com todos e me perguntou se eu precisava de algo. Eu contei minha história, passei a ser ajudado e agora vou na celebração da comunidade e acolho e ajudo quem precisa. Aprendi a solidariedade. (migrante venezuelano, tradução livre do espanhol)

Em decorrência dessa situação, se desenvolve uma presença significativa da Igreja Católica como um todo, trabalhando em prol de acolher, orientar, proteger, ajudar e fortalecer a resiliência dessas pessoas em extrema vulnerabilidade. Os recursos são limitados e muitas vezes não conseguimos contemplar a todos que buscam ajuda com algum benefício.

Ainda assim, cabe destacar a solidariedade diante da dor. Somam-se na Pastoral dos Migrantes mais de 20 voluntários e voluntárias que fizeram a experiencia de serem ouvidos, acolhidos, ajudados no processo de documentação e assistência básica na Pastoral dos migrantes e agora se colocam à disposição para ajudar os que chegam. A solidariedade pode ser contagiosa.

Conforme a reflexão de uma enfermeira,

Ser migrante não é fácil. Ninguém quer sair de casa, da sua terra, mas fui obrigada a sair. São sete meses que cheguei no Brasil, vim por “trocha” [passou a fronteira de forma irregular]. Procurei ajuda na sede da Pastoral dos migrantes. Fui atendida e ajudada, mas me chamou a atenção a forma como as pessoas tratavam os que ali estavam: eram umas quarentas pessoas, e um grupo que atendia com muita delicadeza e cuidado. Eu sou formada, profissional na área de saúde, então pensei que podia também eu ajudar os que menos têm. Partilhei a cesta básica que recebi com minha vizinha que também não tinha nada. Me encorajei, comecei a fazer algum trabalho de diária e sempre que posso venho ser voluntária na Pastoral. Aqui respiro vida. (enfermeira venezuelana, tradução livre do espanhol)

Este relato comprova as estratégias de luta por parte de migrantes venezuelanos e venezuelanas que, apesar da extrema vulnerabilidade, não deixam de buscar caminhos de superação, inclusive mediante a solidariedade recíproca e o voluntariado.

Aliás, na ação Pastoral é muito comum a presença de voluntários e voluntárias. Semanalmente realizamos 105 atendimentos com agenda de processo de pré-documentação; dedicamos dois períodos semanais para o processo de interiorização de famílias que buscam reunião familiar ou social; além disso, duas vezes por semana desenvolvemos um projeto chamado “Gestando esperança” com mulheres grávidas e com mães de neonatos. Em todas essas atividades contamos com a ajuda de voluntários e voluntárias, inclusive venezuelanos, que nos ajudam gratuitamente. Finalmente, temos organizado um serviço sociojurídico de orientação e acompanhamento de pessoas e aqui também a equipe de advogados e assistentes sociais doam seu tempo gratuitamente.

A ação voluntária de membros da sociedade civil se estende também nos 14 municípios do interior e em cinco áreas missionárias de Boa Vista, onde a Pastoral do Migrante conta com agentes que colaboram na articulação e animação pastoral, seja para visitas e cadastros de famílias, seja para entrega de kits de higiene ou cestas básicas, bem como para orientação e encaminhamento para documentação, organização de curso de português e celebrações.

Mesmo na precariedade dos recursos, a ação da Pastoral tem seus resultados, por vezes limitados e invisíveis, mas nem por isso menos significativos na vida das pessoas, como testemunha essa migrante:

No princípio sofremos muito. Meu marido veio ao Brasil primeiro, depois vim eu e minha filha. Quando cheguei com minha filha em Boa Vista, meu marido estava em outro Estado. Ficamos separados um tempo, foi muito difícil. A migração nos separou. Mas agora com a ajuda da Pastoral estamos junto outra vez e se Deus quiser vamos junto para outro estado do Brasil. Nós queremos viver no Brasil, trabalhar e ajudar os outros como também nós fomos ajudados. (migrante venezuelana, tradução livre do espanhol)

A cada atividade, a cada encontro, a cada conquista de uma ajuda aos migrantes, brota em nós sentimentos de gratidão, de encorajamento de esperança. Conforme nossa espiritualidade escalabriniana, queremos ser a extensão do amor de Deus Materno na vida das pessoas migrantes e eles, os migrantes, são para nós a revelação do rosto de Jesus Cristo morto e ressuscitado que nos chama a caminhar em companhia no Amor.

Referências bibliográficas

  • 1
    Relatório anula produzido pelo The Fund for Peace (FFP) (cf. https://fragilestatesindex.org/).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2021
  • Aceito
    09 Dez 2021
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