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Uma missão eminentemente humanitária? Operação Acolhida e a gestão militarizada nos abrigos para migrantes venezuelanos/as em Boa Vista- RR

An eminently humanitarian mission? Operation Acolhida and the militarized management at Venezuelan migrant shelters in Boa Vista - RR

Resumo.

Em 2018, o governo brasileiro lançou mão das Forças Armadas para administrar abrigos e gerir o crescente fluxo de migrantes venezuelanos/as na fronteira norte, estado de Roraima. Justificada enquanto missão humanitária, a Operação Acolhida, com sede em Boa Vista, revela os paradoxos de um duplo comprometimento entre acolher e manter a ordem. Por um lado, militares organizam abrigos, distribuem comida e doações e, por outro, seguem protocolos que exigem a vigilância e controle sobre os corpos e documentos. Com base em pesquisa de campo, com visita aos abrigos militarizados, o artigo aborda as políticas que circunscrevem as novas práticas; os critérios que legitimam a intervenção militar na gestão do acolhimento; as críticas da sociedade civil organizada; e algumas implicações desse processo para as políticas migratórias no Brasil.

Palavras-chave:
gestão migratória; migração venezuelana; Operação Acolhida; militarização; ajuda humanitária

Abstract.

In 2018, the Brazilian government called the armed forces to manage shelters and control the increasing flow of Venezuelan migrants on the northern border, state of Roraima. Justified as a humanitarian mission, the Operation Acolhida, based in Boa Vista, reveals the paradoxes of a double commitment between welcoming and maintaining order. On the one hand, the military organize the shelters and distribute food and donations, and on the other, they follow protocols of surveillance and control over bodies and documents. Based on field research, with visits to militarized shelters, the article addresses: the policies circumscribing the new practices; the criteria legitimating military intervention in the management of migrant reception; the criticisms of the civil society; and some implications of this process for migratory policies in Brazil.

Keywords:
migration management; Venezuelan migration; Operation Acolhida; militarization; humanitarian aid

Introdução

O presente artigo tem como objetivo oferecer um panorama sobre aspectos da participação do Exército Brasileiro no serviço de acolhimento aos/às imigrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos/as que chegam ao Brasil pelo estado de Roraima. O pano de fundo é a crise econômica e política da Venezuela que vem provocando a emigração de cidadãos daquele país com destino aos países vizinhos (Vasconcelos, 2018VASCONCELOS, Iana dos Santos. Receber, enviar e compartilhar comida: aspectos da migração venezuelana em Boa Vista, Brasil.REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 26, n. 53, ago. 2018, p. 135-151.). O cenário mobiliza homens solteiros, mulheres solteiras, famílias com filhos, pessoas adultas, jovens e idosas, além de populações indígenas e indivíduos com deficiência. No intuito de amortecer os múltiplos efeitos da chegada numerosa dos/as estrangeiros/as em Roraima, o Governo Federal acionou as Forças Armadas, repassando recursos para que fossem criadas estruturas temporárias de alojamento, alimentação e cuidados com a saúde.

Nesse contexto foi lançada a Força Tarefa Logística Humanitária - FTLogHum mais conhecida por “Operação Acolhida”, organizada em torno de três pilares: ordenamento da fronteira, acolhimento e interiorização de venezuelanos/as para outras cidades do Brasil. O foco do presente artigo é o acolhimento aos/às migrantes oferecido na cidade de Boa Vista, capital de Roraima.

Desde o ponto de vista dos militares brasileiros com quem pudemos conversar e entrevistar, a Operação Acolhida é uma atividade de “ajuda humanitária”, inédita para o Exército Brasileiro. Nas palavras do Capitão Q.:

Fica para mim um ar de esperança em dias melhores para cada venezuelano que chega ao Brasil. Tenho a certeza de que transformações em minha vida foram provocadas por essa experiência vivida e que vou aplicar para o resto de minha vida. De ver o outro de modo similar, ali vi que não adianta ser doutor ou pedreiro, não existem diferenças que sobrevivam a uma crise humanitária e isso me faz pensar sobre valores de toda a ordem.

Nesse sentido, o Estado exerce a sua hospitalidade por meio do estabelecimento de uma distância fundamental entre anfitrião e hóspede, no caso, entre brasileiros e venezuelanos. O Estado estabelece uma visão excludente do espaço público: certos indivíduos são de imediato classificados como “estrangeiros”, de fora, desprovidos dos direitos de que se beneficiam os membros da nação (Santos, 2017SANTOS, Sandro Almeida. Hospitalidade. In: CAVALCANTI, Leonardo et al. Dicionário Crítico de Migrações Internacionais. Brasília: EdUnb, 2017, p. 379-384., p. 383). O imigrante pode, ainda, ser recebido enquanto um hóspede “desejável” ou “indesejável”. No contexto de Boa Vista, observa-se uma certa seletividade que perpassa questões além da nacionalidade como gênero, classe social, étnico-raciais, etc. De acordo com Eduardo Domenech (2015DOMENECH, Eduardo. O controle da imigração "indesejável": expulsão e expulsabilidade na América do Sul. Cienc. Cult. [online], v. 67, n. 2, p. 25-29, 2015., p. 27), o que vem ocorrendo atualmente não é a mobilidade internacional, mas o estabelecimento de novos critérios de exclusão e discriminação e a reconfiguração de antigos jargões que legitimam o controle migratório, como a relação “entre migração e a noção de segurança” e o recurso ao “discurso humanitário”.

São distintas maneiras de exclusão e expulsão para novos ‘indesejáveis’. No contexto da Operação Acolhida, víamos uma certa política de higienização dos espaços públicos por meio da retirada dos/as venezuelanos/as. Antes ocupando praças, ruas, canteiros de avenidas, terrenos baldios, prédios abandonados, a maior parte dos/as venezuelanos/as se encontrava concentrada, em outubro de 2018, em onze abrigos espalhados pela capital roraimense e dois em Pacaraima (cerca de 214 km da capital), na fronteira com a Venezuela1 1 A criação e desativação de abrigos é variante. Responde a complexas dinâmicas políticas que não serão tratadas neste artigo. . O problema, ao que parece, é que os/as venezuelanos/as não têm ampla simpatia da população local. Os/as brasileiros/as, nesse caso, vêm demonstrando um não reconhecimento de qualquer vínculo ético-moral com essa alteridade justificando a tentativa de varrê-los para longe dos olhos (Butler, 2011BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, n. 1, p. 13-33, 2011.).

Do ponto de vista metodológico, o artigo foi elaborado com base em visitas realizadas no período de setembro a outubro de 2018 aos abrigos em Boa Vista e Pacaraima bem como entrevistas com militares brasileiros, venezuelanos/as abrigados/as e agentes de organizações não governamentais, sobretudo religiosos. Agradecemos especialmente a colaboração da Pastoral Universitária que possibilitou a primeira entrada nos abrigos. Vale dizer que não experimentamos dificuldades impostas pelo Exército para ingressar nos abrigos e entrevistar os militares. Fomos monitorados por eles, mas não fomos impedidos de realizar a pesquisa. Alguns oficiais, inclusive, tornaram possível a livre entrevista com venezuelanos/as abrigados/as. É importante salientar que os agentes de Organizações Internacionais foram aqueles que impuseram as maiores barreiras para o acesso aos/às imigrantes, como se tivessem um direito de tutela sobre os/as migrantes e solicitantes de refúgio2 2 Nossa presença e curiosidade antropológica em um abrigo foram questionadas por uma agente da cooperação internacional. .

O artigo está dividido em três partes: (i) uma reflexão sobre o tema da securitização; (ii) a gestão dos abrigos gerenciados pelas Forças Armadas; e (iii) a impressão das entidades não governamentais sobre a militarização do acolhimento. Por fim, cabe uma reflexão sobre o papel das Forças Armadas brasileiras nesse processo e suas implicações para as políticas migratórias no Brasil.

Securitização

Ações tidas como humanitárias têm sido, nas últimas décadas, justificativas para o avanço de políticas de securitização. Os trabalhos de Feldman-Bianco (2015)FELDMAN-BIANCO, Bela. Apresentação: deslocamentos, desigualdades e violência do estado. Ciência e Cultura, v. 67, n. 2, p. 20-24, 2015., Piscitelli e Lovenkron (2015PISCITELLI, Adriana; LOWENKRON, Laura. Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de pessoas na Espanha e no Brasil. Ciência e Cultura , São Paulo, v. 67, n. 2, p. 35-39, Junho 2015.) e Dias (2014DIAS, Guilherme Mansur. Migração e Crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas. Tese de doutorado em Antropologia Social. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2014.) indicam como determinadas injunções humanitárias, como o caso do combate ao tráfico de pessoas por exemplo, são utilizadas para efetuar o controle do deslocamento de sujeitos “indesejáveis”, ao mesmo tempo em que afirmam um discurso moralizante antiprostituição e humanitário. De uma tacada, evita-se a entrada de estrangeiras sob a égide moral do perigo da prostituição e também se retira do país aquelas estrangeiras ligadas à prostituição, mesmo que voluntária, sob o título de “ações humanitárias”. São movimentos contemporâneos de higienização social, amparados legalmente em noções humanitárias.

Outro lado contemporâneo da ação humanitária como um mecanismo de higienização social são os campos de refugiados ao redor do mundo. Lugares de exceção variada, de isolamento e contenção de estrangeiros: lugares que tentam impedir o fluxo de pessoas de formas diferenciadas. Assim como as políticas humanitárias que escondem intenções de securitização, os campos de refugiados são controlados com base em discursos humanitários que servem, ao fim e ao cabo, como afirmam vários autores, para produzir exclusão e contenção da diferença. Fassin (2007FASSIN, Didier. Humanitarianism as a Politics of Life. Public culture, v. 19, n. 3, p. 499-520, 2007.), Agier (2010AGIER, Michel. Humanity as an identity and its political effects (a note on camps and humanitarian government). Humanity: An International Journal of Human Rights, Humanitarianism, and Development, v. 1, n. 1, p. 29-45, 2010. ) e Agamben (2002AGAMBEN, Giorgio. O campo como paradigma biopolítico do moderno. In: Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ) são alguns dos autores que refletem sobre o lugar do campo de refugiados, a partir de contextos diferentes. O campo de refugiados aparece tanto como lugar de exceção, quanto como um lugar de diferenciação em relação ao seu entorno, seja espacial ou legalmente. Autores concordam que o campo de refugiados instaura uma separação em relação ao “mundo normal”, mesmo que a partir de perspectivas diferentes (Agamben, 2002AGAMBEN, Giorgio. O campo como paradigma biopolítico do moderno. In: Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ; Malkki, 1995MALKKI, Liisa H. Refugees and exile: From “refugee studies” to the national order of things. Annual review of anthropology, v. 24, n. 1, p. 495-523, 1995.). Lugar onde as regras são diferentes, onde as leis são diferentes.

Há uma constante despolitização dos/as refugiados/as (Agier, 2010AGIER, Michel. Humanity as an identity and its political effects (a note on camps and humanitarian government). Humanity: An International Journal of Human Rights, Humanitarianism, and Development, v. 1, n. 1, p. 29-45, 2010. ), construída a partir das entidades de intervenção humanitária, mas há espaços para uma produção de resistência pelos sujeitos refugiados. Há, portanto, ambiguidades entre o biopoder desumanizador versus a capacidade de resistência a essa desumanização (Rancière, 2004RANCIÈRE, Jacques. Who Is the Subject of the Rights of Man? South Atlantic Quarterly, v. 103, n. 2-3, p. 297-310, 2004.). Mas há a tendência, nesses espaços, de que os direitos humanos passem a ser vistos como “direitos humanitários”, ou seja, o direito de ser administrado por uma política humanitária. Um direito de ser tutelado e ocasionalmente expulso ou permanentemente mantido nos espaços de exceção dos campos de refugiados.

No Brasil, tanto a nova lei de migrações, oficialmente articulada sob a égide dos direitos humanos, como as políticas de regulação do refúgio, seguem cada vez mais a mesma lógica de securitização e higienização. Veremos aqui, a partir do caso do gerenciamento dos refugiados/solicitantes de refúgio/migrantes venezuelanos/as, como as políticas brasileiras avançam ainda mais no sentido de tratar o conjunto de estrangeiros como um lugar de desconfiança, de necessidade de controle de segurança, higienização e saúde. O gerenciamento do refúgio no Brasil é, em geral, terceirizado para entidades não governamentais, com financiamentos do governo brasileiro ou entidades internacionais como o ACNUR. Isso significou, aparentemente, uma recusa ao modelo do campo de refugiados, em troca de um gerenciamento terceirizado. Ainda que autores como Perin (2013PERIN, Vanessa P. “Um campo de refugiados sem cercas”: etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Universidade Federal de São Carlos, 2013.) indiquem que a profusão de processos burocráticos permita a ideia de um “campo de refugiados sem cerca”, dada a forma como a exigência de documentação acaba por limitar a mobilidade dos/as migrantes, temos um cenário onde formalmente a liberdade dos/as acolhidos/as não deveria ser delimitada, já que não há nenhuma restrição formal à circulação dos refugiados (Moreira, 2012MOREIRA, Júlia B. Conclusão. In: Política em relação aos refugiados no Brasil (1947-2010). Tese de doutorado em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2012. ).

Entretanto, a experiência da militarização do gerenciamento dos refugiados em Roraima apresenta uma mudança na política migratória brasileira, apontando para uma aproximação ao modelo de campo de refugiados aplicado mundo afora. Embora não sejam campos de refugiados stricto sensu, há uma série de aproximações que podemos realizar com os exemplos narrados pelos autores acima, indicando a constituição de um modelo híbrido de campo de refugiados sob a figura dos abrigos administrados pelos militares em Roraima. Isso tem implicações óbvias para um reforço na perspectiva de gerenciamento dos estrangeiros a partir de uma política de securitização, sob a égide do medo, da ameaça e da desconfiança.

Gestão e organização militar dos abrigos de migrantes venezuelanos/as em Boa Vista Roraima

Em setembro de 2018 Boa Vista sediava um total de onze instalações para alojar os/as venezuelanos/as. Deste total, dez unidades contavam com a participação ativa de homens das Forças Armadas Brasileiras e apenas uma unidade era gerida exclusivamente por uma fraternidade religiosa (embora uma equipe de militares marcasse presença no local). Aqueles que contavam com os serviços dos militares procuravam seguir as diretrizes do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e foram chamados de “abrigos”. O outro, sob responsabilidade da entidade “Fraternidade Sem Fronteiras”, era tratado por “centro de acolhimento”, numa demonstração clara de distanciamento entre os dois métodos de acolhida. Dentre os dez abrigos “militarizados”, apenas dois eram geridos exclusivamente pelas Forças Armadas; os outros eram geridos em parceria com entidades não governamentais religiosas e laicas - cooperação mediada pelo ACNUR.

Cada abrigo era composto por uma equipe de cerca de oito militares. Essa equipe era dividida em dois subgrupos que pudemos identificar: (i) aqueles que vieram de fora, composto por dois oficiais e dois graduados que ficam permanentemente nos abrigos e (ii) militares “locais”, ou seja, pessoas que já serviam no estado de Roraima, composto por um cabo e dois soldados. Aos de fora estavam destinadas as funções ligadas a uma espécie de coordenação, exercida por sargentos e oficiais (tenentes, capitães, majores e tenentes-coronéis). Os “roraimenses”, por sua vez, soldados em sua maioria, ficaram responsáveis por executar funções de controle da identificação de saída e entrada nos abrigos, bem como tarefas operacionais, tais quais distribuição de comida e armazenagem dos pertences dos/as abrigados/as.

Os diferentes abrigos são classificados em segmentos: abrigos para homens solteiros; abrigos para famílias com crianças; abrigos para casais sem filhos, mulheres e público LGBTI+ e abrigo para indígenas Warao3 3 Tradicionalmente ocupantes do estuário do rio Orinoco, os Warao foram deslocados de seu território em décadas passadas pelos grandes projetos de desenvolvimento (hidrelétrica, mineração, portos). Inicialmente, chegaram a Caracas e à fronteira com a Colômbia (Garcia-Castro, 2020, p. 79). Com a crise em Caracas e o aumento de restrições na fronteira com a Colômbia, o movimento se voltou para o Brasil. . Os abrigos são equipados com barracas de camping individual, barracas de casal, camas beliche para solteiros e barracas para seis pessoas que alojam cerca de duas famílias cada. O fornecimento de comida era de responsabilidade das Forças Armadas. As marmitas eram preparadas no rancho do 7º Batalhão de Infantaria de Selva (também sede do Comando de Fronteira Roraima), 10° Grupo de Artilharia de Campanha de Selva- GAC e na Base Aérea de Boa Vista (7a ALA) e levadas diariamente até os abrigos. A exceção dessa regra era o abrigo destinado aos indígenas, no qual foi construída estrutura para elaboração de alimentos com fogões à lenha para cada família e espaço para fogueiras. À guisa de comparação, no “centro de acolhimento” da Fraternidade Sem Fronteiras a comida fornecida pelo Governo Federal (distribuída pelo Exército) era preparada pelos/as próprios/as abrigados/as.

A segurança dos abrigos era realizada pela Polícia do Exército (PE) que promovia rondas constantes entre todos os onze equipamentos. Existia monitoramento por câmeras em grande parte dos abrigos. Pudemos testemunhar que a PE procurava zelar por uma certa higienização dos arredores dos abrigos, atendendo demanda das vizinhanças. Os/as abrigados/as eram “orientados/as” a não manter aglomerações nas imediações dos abrigos e a PE passava de tempo em tempo mandando o pessoal circular ou entrar, além de fazer revistas aleatórias. Pode-se dizer que existia uma certa desproporção no uso da força policial especial do Exército, armada como se estivesse preparada para uma escaramuça. O controle militar dos arredores dos abrigos era reforçado pela cooperação com a “Força Nacional” e o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Estado de Roraima - BOPE/PMRR.

Os/as venezuelanos/as, por sua vez, temiam a truculência dos agentes de controle nas ruas, incomodavam-se com as câmeras de vigilância e as restrições de vestuário (no calor de Boa Vista, homens não podiam andar sem camisa e mulheres não podiam usar roupas curtas) e se ressentiam da proibição de permanecer nas portas dos abrigos, situações que lhes remetem à ideia de uma prisão. Ou seja, o abrigo exigia uma certa moralidade no comportamento e visual, de alguma forma similar às experiências de vida dentro de uma vila militar, como as destacadas por Silva (2016SILVA, Cristina R. O Exército como Família: etnografia sobre as vilas militares na fronteira. Tese de Doutorado, PPGAS, UFSCar, 2016.). Uma diferença para a vida militar é a limitação da mobilidade, o que afeta diretamente a vida dos/as acolhidos/as e se aproxima da perspectiva prisional característica de campos de refugiados.

Os militares, quando indagados pela população local sobre supostos benefícios oferecidos aos/às venezuelanos/as (abrigo, comida e remédios), faziam questão de esclarecer um ponto um tanto quanto delicado dessa ação de acolhimento. Não se trata, para o militar brasileiro, de prover bem-estar aos/às venezuelanos/as senão garantir, primeiramente, o bem-estar da população brasileira de Roraima. Fazem isso retirando os/as venezuelanos/as dos espaços públicos como praças, ruas, calçadas, canteiros de avenidas, terrenos baldios e prédios abandonados; e alojando toda essa população de rua em locais fechados, com hora para sair e voltar.

O emprego da força era legitimado pelo decreto presidencial nº 9.483 de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO) que conferia poder de polícia às Forças Armadas. Publicado inicialmente em 29 de agosto de 2018, estava limitado à cidade fronteiriça de Pacaraima e fora motivado pela investida violenta de brasileiros contra um acampamento improvisado de venezuelanos/as à beira da estrada, queimando barracas, destruindo pertences dos/as imigrantes e forçando a travessia de retorno ao país de origem. O caso foi fartamente noticiado pela imprensa brasileira e internacional como sendo a resposta da população local a um crime supostamente cometido por venezuelanos/as (até o momento, sem comprovação)4 4 Para maiores informações, consultar: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-08/moradores-de-pacaraima-se-revoltam-e-expulsam-venezuelanos, acesso em 13/04/2021. . O decreto foi reeditado em 12 de setembro de 2018, por meio do decreto presidencial nº 9.501 ampliando o escopo de atuação dos militares para a proteção das instalações de acolhimento também na capital Boa Vista. Desta feita, a justificativa foram duas mortes ocorridas nas imediações de um abrigo. O roubo de uma lata de sardinha teria motivado a perseguição de um venezuelano por um grupo de brasileiros. Em luta corporal, o venezuelano esfaqueou um brasileiro (que faleceu) e, na sequência, foi espancado até a morte pelos demais. No final de outubro, foi publicado novo decreto (9.543 de 29/10/2018), renovando o prazo até o fim daquele ano5 5 Para maiores informações sobre os referidos decretos presidenciais, ver: http://portal.imprensanacional.gov.br. .

Dentro dos abrigos pudemos observar uma certa hierarquia envolvendo também os/as venezuelanos/as. Existiam “delegados/as” ou “colaboradores/as” entre as pessoas abrigadas. Eles e elas tinham atribuição de mediar as relações entre abrigados/as e gestores/as, bem como zelar pelo cumprimento das regras e organizar tarefas de limpeza e filas para distribuição de comida, por exemplo. Essas pessoas eram, de certa forma, empoderadas pela condição de realizar essas mediações. Distribuíam desigualmente os alimentos e doações conforme conveniências pessoais. E não foram poucas as queixas de venezuelanos/as sobre o exercício autoritário da função de liderança. Até mesmo a permanência no abrigo poderia ser colocada em risco caso a pessoa se desentendesse com um desses/as “delegados/as”.

O termo “delegado” remete ao modelo de acolhimento do ACNUR, implantado mundialmente. De acordo com o Tenente A.: “esse termo delegado foi tentado ser implementado pelo pessoal da ONU, mas não foi para frente. Chegaram aqui e chamaram algumas lideranças e fizeram uma reunião. Depois não apareceram mais”. O tenente diz que prefere chamar de “colaboradores”, aos quais oferecia incentivos e benefícios tais como alimentação extra e kits de higiene em troca dos serviços. Sejam “colaboradores/as” ou “delegados/as”, ocupavam lugar privilegiado na organização interna dos abrigos.

Cabe esclarecer que essa hierarquia operacionalizada entre abrigados não deve ser confundida, de maneira alguma, com as patentes militares. As FA são imbuídas de uma estrutura hierárquica rígida que pauta as relações de comando-obediência internas. As relações com o mundo civil acontecem fora dessa hierarquia. Existem exceções como o Presidente da República que, mesmo num governo civil, é considerado o comandante-em-chefe das tropas. Comumente, colaboradores civis são percebidos com desconfiança (Castro, 2004CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.; Leirner, 1997LEIRNER, Piero C. Meia Volta Volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar. Rio de Janeiro: FGV, 1997.).

Os militares enviados a Roraima no âmbito da “Operação Acolhida” obedecem um rodizio. A cada 120 dias a equipe era trocada. Esses militares são recrutados voluntariamente de diferentes partes do país6 6 Não é o objetivo deste artigo discutir as motivações pessoais e/ou benefícios financeiros que levam cada militar a se inscrever na missão. . Na ocasião da pesquisa os que estavam em Roraima eram predominantemente da região sul. Eles foram antecedidos por militares que vieram da região sudeste. Esse rodízio é motivado pela experiência prévia das Forças Armadas brasileiras com a missão de paz no Haiti. Na ocasião, foi constatado que a extensão do período de serviço na convivência com pessoas em situação de vulnerabilidade implica uma certa desestabilização emocional do militar. Foi destacado nas entrevistas com os oficiais mais experientes uma preocupação com o PINO, sigla que representa diferentes fases emocionais desenvolvidas pelo indivíduo no contato prolongado com a vulnerabilidade alheia, a saber: Pena, Indiferença, Nojo e Ódio. Assunto a ser tratado em outra oportunidade.

O olhar da sociedade civil ou a crítica de quem chegou primeiro

A gestão imediata dos abrigos era realizada pelo Exército, contudo, os militares seguiam as orientações oferecidas pelas instituições de cooperação internacional. Cabe aqui destacar a postura arredia e controladora dos agentes de Organizações Internacionais. Desconfiados da presença dos pesquisadores, erigem barreiras para realização da pesquisa. Pudemos notar um certo silêncio sobre a existência de uma indústria das migrações que movimenta salários e cargos, criando uma elite internacional em contextos de penúria social (Sorensen, Gammeltoft-Hansen, 2013SORENSEN, Ninna Nyberg; GAMMELTOFT-HANSEN, Thomas (orgs.). The migration industry and the commercialization of international migration . London, New York: Routledge, 2013.; Menz, 2013MENZ, Georg. The neoliberalized state and the growth of the migration industry. In: SORENSEN, Ninna Nyberg; GAMMELTOFT-HANSEN, Thomas (orgs.). The migration industry and the commercialization of international migration. London, New York: Routledge, 2013.). Tanto os militares quanto os agentes da cooperação internacional reproduzem de alguma forma um regime de “tutela” semelhante ao que existia no Brasil em relação aos povos indígenas. Nesse caso, existe uma “coisificação” do Outro que, em situação de dependência, fica alienado de sua autonomia.

Antes da chegada das Forças Armadas, o acolhimento dos/as migrantes venezuelanos/as em Roraima era realizado predominantemente pela chamada Sociedade Civil Organizada (SCO) local, categoria ampla que reúne organizações não governamentais, igrejas, sindicatos e outros coletivos. O suporte logístico era provido precariamente pelo governo do estado. A SCO estava majoritariamente representada por entidades religiosas que, em parcerias com professores e alunos da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e agências internacionais, executavam ações de acolhimento. Durante esse primeiro momento, foram criados espaços de articulações, mobilização e debates sobre o tema. O Comitê para Migrantes e Refugiados - COMIR representava um desses espaços. O COMIR é composto por 40 entidades, das quais dez são pastorais sociais distribuídas pelos municípios de Roraima. As reuniões do COMIR eram realizadas periodicamente e subdivididas em Grupos de Trabalho organizados em temas específicos coordenados por agências internacionais e movimentos sociais, tais como trabalho, povos indígenas, mulheres e gênero, entre outros.

Em março de 2018, o início da Operação Acolhida foi marcado pela falta de interlocução com as ações preexistentes, de acordo com a Marielle de Roraima, representante da SCO:

Quando o exército veio para cá, em março, não contaram com a gente para pensar junto e já começaram montando a estrutura e fazendo as coisas de cima para baixo (...) com a Operação Acolhida houve uma concentração das informações e desmobilização da rede de acolhimento da sociedade civil organizada.

Na busca por diálogo, em maio do mesmo ano, mediado pelo ACNUR, a SCO começou a participar quinzenalmente das reuniões da Operação. No entanto, estas organizações não encontraram espaço para debate e reflexão das ações no âmbito da operação. Para o então coordenador local do Instituto de Migração e Direitos Humanos - IMDH, a pauta era sempre a mesma: abrigo, interiorização e documentação. Era no momento dos informes que a SCO trazia as críticas e sugestões para melhoria das ações. Mas, de modo geral, os representantes da SCO sentiam-se pouco à vontade em trazer críticas e demandas relacionadas aos trabalhos executados na Operação Acolhida, especialmente pela forma na qual a reunião era conduzida e estruturada com a presença de muitas pessoas (média de cinquenta) e de autoridades militares.

O recurso do governo federal às Forças Armadas brasileiras também modificou a relação do ACNUR e das agências internacionais com a SCO local. Antes centrais para a execução das ações nos abrigos por meio da colaboração na captação de mão de obra voluntária, passaram a um papel menos preponderante nos espaços de interlocução e tomadas de decisões. A gestão dos abrigos é o locus privilegiado para se observar essa transformação: o acesso às instalações foi burocratizado, a presença monitorada e o contato com as pessoas passou a ser mediado pelos gestores dos abrigos. Organizações estrangeiras foram convidadas a assumir serviços antes oferecidos por grupos locais, e estes, percebendo um certo fechamento de portas, modificaram seu foco de atuação para priorizar os venezuelanos em situação de rua (não tutelados pelos gestores dos abrigos). Existem, inclusive, indagações quanto à transparência na aplicação dos recursos. Apesar das reuniões quinzenais, não se sabe quanto foi gasto com o quê, desabafou uma religiosa7 7 O governo Temer realizou, com a medida provisória nº 857, de 20 de novembro de 2018, o repasse de 75 milhões de reais ao ministério da defesa para assistência emergencial e “acolhimento humanitário” dos venezuelanos. Os recursos para essa assistência humanitária foram centralizados pelas Forças Armadas. .

O problema desse fechamento está naquilo que o indigenista Yunna acusou de “reprodução do modelo de tutela”, tal qual praticado pelo Brasil em relação aos indígenas antes da Constituição de 1988 e praticado pela Venezuela no auge do governo Chávez. Segundo ele, tanto os órgãos governamentais como as Organizações Internacionais Não Governamentais (OING) que participam da gestão do abrigo destinado aos indígenas Warao, criam barreiras diversas para a comunicação com os/as abrigados/as, como se fossem sujeitos incapazes. As pessoas indicadas para falar são lideranças criadas no contexto do abrigo, confirmando as observações de pesquisa realizada em Manaus sobre os Warao e as políticas públicas de acolhimento (Silva et al., 2018SILVA, Sidney et al. Diagnóstico da migração venezuelana indígena para Manaus, Brasil. Brasília: OIM, 2018.). Essas lideranças indicadas pelos gestores reproduzem um modelo de relações de dependência econômica e fidelidade política entre povos indígenas e Estado. Segundo o indigenista:

Assim que o Exército ou o Governo Estadual "indique" os aydamos8 8 Termo utilizado pelos Warao para se referir ao chefe, cacique ou liderança no contexto a migração , estabeleça as normas e o controle, o sistema de organização social pode ser vivenciado por algumas destas famílias Warao do Abrigo como a réplica de uma relação já vivida anteriormente, e da qual extraem algum benefício concreto: neste caso, alimentação, remédios e proteção. O fato de que quase todas as relações do Estado venezuelano com os povos indígenas passavam, de uma ou outra forma, pelo Exército, pode dar elementos para tentar compreender como os Warao que vieram pra cá vivenciam agora a relação com o Exército brasileiro.

Essas relações que remetem à ideia de “tutela” não se restringem aos indígenas e podem ser estendidas para os não indígenas. É possível ver no tratamento dispensado aos/às migrantes e solicitantes de refúgio pelo Exército e Organizações Internacionais uma versão do modelo de “tutela” (presente também em campos de refugiados), no qual a autonomia dos/as abrigados/as é retirada em nome de uma suposta proteção. Outra entidade local, atuante na defesa dos Direitos Humanos dos/as venezuelanos/as, tem uma posição crítica em relação à militarização do serviço de acolhimento. A coordenadora salienta que o Governo Federal sinaliza claramente seu desrespeito à nova lei de migrações publicada em novembro de 2017. A militarização, segundo ela, é um retorno às formas anteriores de se lidar com a questão migratória, com ênfase sobre os temas de segurança e defesa. A nova lei do migrante deixa claro que o migrante não é uma ameaça ao Estado. Por que acionar Ministério da Defesa? Não há ameaça ao Estado”. Ela aponta, ainda, a falta de articulação entre as diferentes esferas de poder, sugerindo que estaria ocorrendo uma disputa não pela oferta do acolhimento em si, mas pelo poder de manejar recursos federais e por um lugar de destaque diante dos holofotes.

Por fim, cabe destacar a reflexão proposta pela ativista dos direitos humanos. Reconhecendo que estão realizando um bom trabalho, como bons soldados ao cumprirem a responsabilidade que lhes foi confiada, ela sublinha o fato de que esta não é uma função para a qual os militares estejam preparados. Ela então se pergunta sobre uma condição paradoxal do ponto de vista das instituições e seus domínios: “São soldados treinados para defesa e se transformaram em pessoas que trabalham com questões humanitárias. Traz uma certa interrogação, né? Um soldado humanitário? Soldado é para defesa. Acaba sendo uma exigência muito grande para eles”9 9 Gostaríamos de registrar uma nota de pesar pelo falecimento da brava Irmã Telma Lage, levada pela covid-19 em 24 de junho de 2021. Uma incansável defensora dos direitos e da vida de todos aqueles que bateram à sua porta. Estará sempre em nossas memórias. .

Considerações finais

Podemos dizer que o exemplo trazido nesse texto apresenta a fronteira como lugar de teste: um teste do controle de deslocamento, referente aos fantasmas de “perigo” desse mundo estrangeiro. Mas é também uma continuação de uma prática que começa no centro: o artifício de recorrer ao exército como polícia de gerenciamento das populações. O caso deriva, obviamente, da intervenção militar no Rio de Janeiro desde janeiro de 2018, mas relaciona-se ainda mais diretamente com outra intervenção, aquela do exército brasileiro no Haiti (2004/2017), de onde experiências de gerenciamento do estresse dos soldados foram desenvolvidas e aplicadas ao caso dos/as migrantes e refugiados/as venezuelanos/as.

A questão da securitização e militarização como criadora de alvos específicos é destacada por Feldman-Bianco (2015)FELDMAN-BIANCO, Bela. Apresentação: deslocamentos, desigualdades e violência do estado. Ciência e Cultura, v. 67, n. 2, p. 20-24, 2015., com destaque para os migrantes não documentados e prostitutas. Hirata (2015HIRATA, Daniel. Segurança pública e fronteiras: apontamentos a partir do "Arco Norte".Cienc. Cult. , São Paulo , v. 67, n. 2, p. 30-34, June 2015 .) destaca como as políticas governamentais ligadas às fronteiras no “arco norte” têm sido militarizadas a partir da presença das Forças Armadas no combate ao tráfico de drogas e à formação de “mercados ilegais” variados. O que vimos nesse texto é que a militarização do gerenciamento do fluxo de refugiados e imigrantes pode ser visto como uma extensão desse movimento, incorporando o deslocamento de pessoas na mesma lógica que opera na justificativa da presença do exército no combate aos mercados ilegais.

A Estratégia Nacional de Segurança nas Fronteiras (ENAFRON), por exemplo, pretende intensificar o controle e fiscalização das fronteiras, parece ser o modelo de ação que se estende para o controle e fiscalização das pessoas em movimento, sempre sob a égide da ação humanitária. Criou-se, especificamente, uma categoria de “delitos transfronteiriços”, à qual o deslocamento de venezuelanos foi indexado. Violência, ilegalidades, perigos epidêmicos e toda sorte de vilanizações foram atrelados ao deslocamento de venezuelanos/as em Roraima, autorizando, justamente por meio da lógica securitária, a intervenção das Forças Armadas no gerenciamento e contenção desse movimento. Essa tendência é observada também em outras pesquisas sobre migração venezuelana em diferentes países, tais como Colômbia, Peru, Equador, Chile, Uruguai, México e Espanha (Louidor, 2018LOUIDOR, Wooldy Edson. La migración forzada venezolana a Colombia (2015-2018): de una revisión documental a los esbozos de un análisis coyuntural y estructural. In: KOECHLIN, José; EGUREN, Joaquín (orgs.). El éxodo venezolano: entre el exilio y la emigración . Colección OBIMID, 4. Lima: OBMID , 2018.; Koechlin et al., 2018KOECHLIN, José; VEGA, Eduardo; SOLÓRZANO, Ximena. Migración venezolana al Perú: proyectos migratorios y respuesta del Estado. In: KOECHLIN, José; EGUREN, Joaquín (eds.). El éxodo venezolano: entre el exilio y la emigración . Colección OBIMID, 4. Lima: OBMID, 2018. ; Ramírez et al., 2019RAMÍREZ, Jacques; LINARES, Yoharlis; USECHE, Emilio. (Geo)Políticas Migratorias, Inserción Laboral y Xenofobia: Migrantes Venezolanos en Ecuador. In: BLOUIN, Cécile. Después de la Llegada. Realidades de la migración venezolana. Lima (Perú): Themis-PUCP, 2019.; Stefoni, Silva, 2018STEFONI, Carolina; SILVA, Claudia. Migración venezolana hacia Chile: ¿se restringe o se facilita la migración de venezolanos hacia Chile?. In: KOECHLIN, José; EGUREN, Joaquín (eds.). El éxodo venezolano: entre el exilio y la emigración . Colección OBIMID 4. Lima: OBMID , 2018.; Suárez, Trejo, 2018SUÁREZ, Sabrina; TREJO, Alma. La comunidad venezolana en México: perfil, motivaciones y experiencias. In: KOECHLIN, José; EGUREN, Joaquín (eds.).El éxodo venezolano: entre el exilio y la emigración . Colección OBIMID 4. Lima: OBMID , 2018.; Dekocker, 2018DEKOCKER, Katrien. La comunidad venezolana en España. De una estrategia migratoria de reproducción social a una creciente pobreza emergente. In: KOECHLIN, José; EGUREN, Joaquín (eds.). El éxodo venezolano: entre el exilio y la emigración. Colección OBIMID, 4. Peru: OBMID, 2018.). Isso não significa que esse modelo de resposta humanitária seja uma prerrogativa apenas dos/as migrantes venezuelanos/as, dada a motivação específica do seu deslocamento, mas, ao contrário, parece ser uma prática recorrente em diferentes contextos mundiais (Hirst, 2017HIRST, Monica. Conceitos e práticas da ação humanitária latino-americana no contexto da securitização global. Estudios internacionales (Santiago), v. 49, n. SPE, p. 143-178, 2017.). O que as distingue são as justificativas e formas de intervenções.

A contenção executada pelos militares relaciona-se também, e fundamentalmente, à questão da interiorização dos/as venezuelanos/as, essa política promovida pelos governos locais e agências internacionais presentes para retirar a concentração de venezuelanos/as de Roraima e “dissolver” a presença deles por todo o país. Até mesmo a SCO, que constituiu redes de apoio aos/às venezuelanos/as, passa a ser relegada no processo de constituição dos abrigos militares. A tensão está justamente entre a vontade dos governos locais de se livrar dos/as venezuelanos/as e a vontade dos/as próprios/as deslocados/as. Embora muitos queiram “se interiorizar”, muitos também não o querem. E não o querem justamente para poder comerciar com a Venezuela, operar como mochileiros de bens básicos (comida, higiene, remédios), e assim ajudar e sustentar familiares na Venezuela. Ou seja, há nessa movimentação algo de comércio, que indica a não fixação dos/as venezuelanos/as no Brasil, justamente por estarem num movimento de idas e vindas, como bem indicam os números.

Poderíamos dizer que à política de interiorização se relaciona com as Forças Armadas, como forma de contenção e diluição do “perigo” dessa movimentação, ao passo que a vontade de fluxo e comércio de parte dessa população aparece na chave dos comércios e mercados ilegais a serem combatidos (mesmo considerando o quanto esse mercado movimenta a economia local). Ou seja, poderíamos afirmar que o gerenciamento dessa população pelo exército é justamente um mecanismo de combate ao comércio transfronteiriço, visto em chave de ilegalidade. Ao mesmo tempo, com a alegoria da ação humanitária, temos um processo de controle e interiorização que, é preciso dizer, interessa também a muitos/as venezuelanos/as que pretendem se estabelecer no Brasil.

Os abrigos/campos de refugiados militares em Roraima aparecem, portanto, mesmo em sua forma híbrida, como um avanço da securitização relacionada ao controle de populações, avanço esse narrado como uma ação humanitária. Embora as ações sejam alicerçadas em argumentos baseados em direitos humanos e convenções internacionais, os parâmetros de quem pode e não pode se deslocar são muitas vezes definidos pela relação estabelecida entre migrantes e gestores/as. O Estado, nessa perspectiva, também é ordenado “pela relação entre pessoas concretas” (Leirner, 2012LEIRNER, Piero. O Estado como fazenda de domesticação. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 4, n. 2, p. 38-70, jul./dez. 2012., p. 38). A tentativa de controle dos seus corpos remete ao processo de “domesticação” por meio de um “domínio do político, não só porque remete a um mecanismo de internalização e processamento (transformar em doméstico), mas também como um domínio, no sentido que impõe uma condição e demarca uma situação” (Leirner, 2012>LEIRNER, Piero. O Estado como fazenda de domesticação. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 4, n. 2, p. 38-70, jul./dez. 2012., p. 39).

O cenário dessa experiência, portanto, pode ser pensada sob a mesma égide que preside uma série de movimentos políticos no Brasil contemporâneo: uma legislação de imigração conservadora disfarçada sob a rubrica dos direitos humanos (Machado, 2020MACHADO, Igor J. R. Securitization (re)turn: analysis of the new Brazilian migration laws (2016-2019). Middle Atlantic Review of Latin American Studies, v. 4, p. 213-234, 2020.), mas ainda preocupada com a questão da securitização; a experimentação crescente do uso das Forças Armadas como instrumento de contenção de perigos representados pelo comércio ilegal (seja em uma grande cidade como o Rio, ou numa pequena capital como Boa Vista); a administração militar do deslocamento populacional (seja nas favelas do Rio, nos bairros de Porto Príncipe ou na periferia de Boa Vista) e, por fim, o avanço de percepções preconceituosas e fantasmagóricas contra os estrangeiros no Brasil.

A ideia de “ajuda humanitária” é um mecanismo que possibilita o seu uso como forma de segregação. “Direitos humanos” são lidos de diferentes maneiras nesse contexto. Para os políticos conservadores, Polícia Federal e Forças Armadas no contexto de Roraima significa “ajuda humanitária”, segregação e exclusão da cidade. A saída política articulada por essa ambientação “humanitária”, na qual organizações internacionais têm seu lugar e as organizações civis locais são paulatinamente excluídas, é pura e simplesmente um enrijecimento da política migratória.

Podemos dizer que a experiência de administração de abrigos por militares em Roraima cria um sistema híbrido de campo de refugiados: um meio termo entre a política tradicional brasileira (a terceirização da assistência ao/à refugiado/a) em relação aos/às refugiados/as e as políticas europeias (que geralmente se apoiam em campos de refugiados nas fronteiras europeias), por exemplo. Esse campo híbrido impõe uma mimetização da ordem militar entre os refugiados, leva a uma sociabilidade especificamente militar, da qual alguns refugiados/as se aproveitam para melhorar suas condições de vida, mas que é, inevitavelmente, permeada por aproximações casuais e esporádicas. No entanto, essas relações de amizade esporádicas acabam servindo de paradigma para uma forma de recepção vista como “típica” dos militares brasileiros, contraposta à forma tensa que esses refugiados/as enfrentaram na Venezuela (assim como as burocracias das instituições internacionais).

O campo de refugiados híbrido resulta, por fim, numa tentativa de higienização, numa forma de negação da visibilidade da diferença expressa pelos/as venezuelanos/as, numa forma de gerenciar tanto esse apagamento em relação à cidade, como de interiorização dessas pessoas, que podemos ver também como um projeto de dissolução da diferença usando como recurso a extensão e tamanho do território e população brasileira. Como agentes de apagamento da diferença, as Forças Armadas, em acordo com as organizações internacionais, operam até mesmo uma exclusão da própria sociedade civil organizada de Boa Vista. A questão passa a ser, então, abrigo, interiorização e documentação. Pequenas saídas individuais são construídas nesse embate entre visibilidade e apagamento que as novas políticas oferecem, mas sempre como residuais em relação ao conjunto desse coletivo de venezuelanos/as em Roraima. Em reportagem recente, sobre o programa “Volta à Pátria”, organizado pelo governo venezuelano para receber emigrantes que decidem voltar, no caso de Roraima, os/as venezuelanos/as que retornaram alegavam como um dos principais motivos para deixar o Brasil a “asfixia” que sentiam ao viver nos abrigos das Forças Armadas10 10 Ver http://roraimaemtempo.com/noticias-locais/volta-a-patria-mais-de-9-4-mil-venezuelanos-retornaram-a-venezuela-260-de-roraima,286369.jhtml, acesso em 13/04/2021. .

Esse imaginário de um Brasil receptivo funciona como holofote que lança luzes para um palco improvisado e ofusca a visão dos bastidores. Por um lado, o Estado brasileiro vem demonstrando maior abertura à regularização e permanência de venezuelanos/as no país, se comparado com outros países da América do Sul. Por outro lado, esta receptividade camufla, sob o manto do humanitarismo, a reprodução de uma tendência global de controlar a mobilidade humana por meio do recrudescimento de medidas securitárias e restritivas.

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  • 1
    A criação e desativação de abrigos é variante. Responde a complexas dinâmicas políticas que não serão tratadas neste artigo.
  • 2
    Nossa presença e curiosidade antropológica em um abrigo foram questionadas por uma agente da cooperação internacional.
  • 3
    Tradicionalmente ocupantes do estuário do rio Orinoco, os Warao foram deslocados de seu território em décadas passadas pelos grandes projetos de desenvolvimento (hidrelétrica, mineração, portos). Inicialmente, chegaram a Caracas e à fronteira com a Colômbia (Garcia-Castro, 2020GARCÍA-CASTRO, Álvaro. Los warao como desplazados urbanos en Venezuela y Brasil. EntreRios, v. 3, n. 2, 2020., p. 79). Com a crise em Caracas e o aumento de restrições na fronteira com a Colômbia, o movimento se voltou para o Brasil.
  • 4
    Para maiores informações, consultar: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-08/moradores-de-pacaraima-se-revoltam-e-expulsam-venezuelanos, acesso em 13/04/2021.
  • 5
    Para maiores informações sobre os referidos decretos presidenciais, ver: http://portal.imprensanacional.gov.br.
  • 6
    Não é o objetivo deste artigo discutir as motivações pessoais e/ou benefícios financeiros que levam cada militar a se inscrever na missão.
  • 7
    O governo Temer realizou, com a medida provisória nº 857, de 20 de novembro de 2018, o repasse de 75 milhões de reais ao ministério da defesa para assistência emergencial e “acolhimento humanitário” dos venezuelanos. Os recursos para essa assistência humanitária foram centralizados pelas Forças Armadas.
  • 8
    Termo utilizado pelos Warao para se referir ao chefe, cacique ou liderança no contexto a migração
  • 9
    Gostaríamos de registrar uma nota de pesar pelo falecimento da brava Irmã Telma Lage, levada pela covid-19 em 24 de junho de 2021. Uma incansável defensora dos direitos e da vida de todos aqueles que bateram à sua porta. Estará sempre em nossas memórias.
  • 10
    Ver http://roraimaemtempo.com/noticias-locais/volta-a-patria-mais-de-9-4-mil-venezuelanos-retornaram-a-venezuela-260-de-roraima,286369.jhtml, acesso em 13/04/2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2021
  • Aceito
    21 Jun 2021
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