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As agriculturas do sul do Brasil

DOSSIÊ

As agriculturas do sul do Brasil

Quando as editoras da Revista Estudos Feministas aventaram a possibilidade de se dedicar o Dossiê deste periódico às mulheres rurais do Sul do Brasil, aceitamos de pronto a tarefa, pois as agricultoras, ao mesmo tempo que têm grande participação na produção agrícola, principalmente na de alimentos, seu trabalho tem pouca visibilidade nas estatísticas oficiais e elas formam um dos grupos mais esquecidos pelas políticas públicas.

Segundo dados divulgados em 2000 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), juntamente com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), que tiveram por base o Censo Agropecuário de 1995/1996, o Brasil tem 4.859.864 estabelecimentos rurais, dos quais 4.139.369, ou seja, 85,2% são estabelecimentos familiares. Embora ocupem apenas 30,5% da área total nacional dedicada à agropecuária e recebam 25,3% do financiamento destinado a esse setor, são responsáveis por 37,9% de seu Valor Bruto da Produção. Além disso, a agricultura familiar é a principal geradora de emprego no meio rural brasileiro, sendo responsável por 76,9% do pessoal ocupado. Ainda de acordo com a mesma fonte, a região Sul é aquela em que a agricultura familiar se apresenta mais forte, sendo que 90,5% de seus estabelecimentos agrícolas pertencem a essa categoria. Em seu conjunto, ocupa 43,8% da área e é responsável por 57,1% do Valor Bruto da Produção do setor a que pertence. Porém, recebe uma porcentagem dos financiamentos menor que a da agricultura patronal, ou seja, 43,3%.

O tema central deste Dossiê é a mulher rural, em uma perspectiva de gênero. Enquanto a categoria 'sexo' diz respeito a categorias biológicas associadas ao homem e à mulher, a noção de gênero abrange a idéia de que a sociedade, por razões culturais, sociais, econômicas e políticas, atribui diferentes papéis a ambos os sexos. Assim, as características biológicas de homens e mulheres são herdadas, enquanto as diferenças de gênero são construídas socialmente; portanto, podem variar no tempo e no espaço e são sujeitas a mudanças. E é somente através do reconhecimento dessas diferenças e da luta para mudar o quinhão das mulheres que se pode tornar as relações de gênero mais eqüitativas. Nesse sentido, as organizadoras e os autores dos trabalhos apresentados assumem uma posição política a favor da igualdade de gênero.

Os oito artigos selecionados para comporem este volume procuraram não só tornar visível o trabalho feminino nos campos, mas também analisar as condições em que ele se dá. Outra preocupação foi compreender como as mulheres rurais vêem suas condições de vida e o que as levou a se organizarem em movimentos reivindicatórios fortes que propõem mudanças para que elas possam permanecer na agricultura, não tendo como único horizonte a ida para cidade como forma de fugir de um cotidiano de submissão.

O artigo de Carmen Diana Deere amplia o âmbito de sua análise para todo o Brasil, não se limitando à região Sul. Seu foco principal é o acesso das mulheres à propriedade da terra nos assentamentos de reforma agrária. Com base no I Censo de Reforma Agrária, de 1996, a autora verificou que apenas 12,6% do total de 157.747 beneficiários eram mulheres, sendo que o nosso país, comparativamente aos outros da América Latina, apresenta uma desigualdade maior entre os sexos com relação aos programas de distribuição de terras.

Ao observar diferenças regionais, Carmen Diana as atribui a razões estruturais, institucionais e fatores subjetivos. Como a titulação conjunta para o casal é opcional, as mulheres aparecem como titulares da propriedade principalmente quando participam ativamente da luta pela terra, quando o valor da terra cultivada é pequena ou quando seus cônjuges, por alguma razão, não se qualificam como possíveis beneficiários.

A importância do acesso da mulher à terra, para a autora, deve-se à existência de uma correlação positiva entre esse acesso, um aumento de produtividade e o bem-estar delas e de seus filhos. Também a ampliação dos direitos das agricultoras leva a um maior poder de barganha dentro do lar e da comunidade.

Maria Ignez Paulilo, a partir de sua militância em movimentos feministas e de suas leituras acadêmicas, percebeu que a teoria marxista ignorou questões relacionadas às mulheres camponesas, devido à ênfase dada ao proletariado. No entanto, como mostra a autora, a ação das mulheres agricultoras permitiu fazer uma releitura das teorias existentes, uma vez que colocou em xeque a aceitação corrente de sua submissão e de seu papel subalterno.

Maria Ignez abordou o difícil acesso das mulheres à propriedade agrícola, que se faz quase exclusivamente pelo casamento, pois elas são excluídas da herança da terra. Também participam pouco na gestão dos recursos familiares e recebem tratamento desigual junto aos órgãos governamentais responsáveis pela previdência rural. Finalmente, analisou três tipos de movimentos rurais, procurando ver como se deu a hierarquização das questões de classe e gênero e quais as representações legitimadoras da postura adotada. Constatou que a ação das mulheres vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) privilegia a reforma agrária, que as sindicalistas se centram na defesa da agricultura familiar e que os movimentos autônomos de mulheres priorizam questões relativas à saúde. Apenas este último grupo traz à baila o tema da desigualdade na divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres, mas nenhum dos movimentos trata de questões importantes como o acesso das mulheres agricultoras à terra e à renda.

Os artigos de Anita Brumer e Valmir Stropasolas se complementam. Anita rompe com a falsa dicotomia entre pesquisa quantitativa e qualitativa, fazendo uso de informações numéricas resultantes de uma ampla pesquisa realizada pela Emater/RS em 1991/1992 e complementando esses dados com entrevistas semi-estruturadas. Seu objetivo principal foi verificar as causas da mais acentuada migração rural-urbana de moças do que de rapazes, com base na forma de inserção das mulheres na unidade de produção familiar e em transformações recentes ocorridas na agricultura e na sociedade do Rio Grande do Sul.

Segundo dados do IBGE para 1996, o estado do Rio Grande do Sul apresentava 86.782 homens a mais do que mulheres nas zonas rurais, enquanto estas os superavam em 248.708 nas zonas urbanas. Cruzando esse dado com informações sobre faixa etária, a autora percebeu que a maior diferença se concentra nas idades entre 20 e 25 anos. Explica essa maior tendência das moças para saírem de casa pela invisibilidade do trabalho executado por elas nos campos; pelas tradições culturais que priorizam os homens às mulheres na execução dos trabalhos agropecuários mais especializados, tecnificados e mecanizados, na chefia dos estabelecimentos e na comercialização dos produtos; pelas diferenciadas oportunidades por sexo de trabalho parcial ou emprego fora da agricultura para a população residente no meio rural; e ainda pela exclusão das mulheres da herança da terra.

A autora relata que a década de 1980 registrou uma ampla mobilização feminina no campo e, em 1989, surgiu o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais no Rio Grande do Sul, já contando com uma liderança de cerca de 500 militantes, muitas delas com experiência anterior em atividades da Igreja e dos sindicatos de trabalhadores rurais de oposição. Devido à pressão dos movimentos de mulheres rurais em todo o país, a Constituição de 1988 reconheceu a categoria 'produtoras rurais', garantindo às mulheres direitos previdenciários como aposentadoria aos 55 anos e licença-maternidade remunerada. Porém, esse fato não pôs em xeque a relação entre os cônjuges, na medida em que os homens vêem esses benefícios como recursos adicionais que saem do 'bolso' do Estado e entram no 'bolso' dos membros da família e, portanto, no do marido. Apesar da importância desses direitos, as mulheres permanecem em uma posição subordinada na estrutura familiar, tendo pouco acesso à terra, menores perspectivas profissionais que os homens e, portanto, menor motivação para permanecer no meio rural.

Valmir L. Stropasolas, de certa forma, dá continuidade às reflexões de Anita quando mostra que rapazes e moças têm representações diferentes sobre o significado do casamento. Enquanto para os homens casar com uma mulher agricultora é garantia de continuidade da produção familiar, para as mulheres significa dar continuidade a uma vida de sujeição à vontade de outros que não a sua. Contribui, para isso, o fato de elas terem pouco acesso à terra, dificuldades em contar com uma renda própria, pouca participação na gestão dos recursos comuns dos cônjuges, e de verem constantemente suas atividades e necessidades pouco valorizadas. No meio rural, o lazer é privilégio masculino. As mães ainda poderiam levar os filhos em seus passeios, mas os animais domésticos requerem cuidados diários e, mais que isso, atenção várias vezes ao dia.

Segundo o autor, há ainda mais um fator que dificulta o casamento entre moças e rapazes agricultores: o estímulo da família para que as jovens procurem emprego na cidade, evitando assim conflitos de herança. Isso faz com que não só os moços mais pobres, como até mesmo os herdeiros de propriedades consolidadas, encontrem esposas ou, pelo menos, o tipo de esposa que eles gostariam de ter, aquelas que lhes permitam conservar privilégios da condição masculina que hoje estão sendo questionados.

Valdete Boni centra seu texto nas relações de gênero entre sindicalistas rurais no oeste de Santa Catarina. O locus do trabalho é o sindicato de oposição, que propõe o rompimento da postura assistencialista e paternalista dos sindicatos tradicionais ou 'acomodados' e privilegia tanto a mobilização dos agricultores como o engajamento do maior número possível de trabalhadores.

A autora examina como se deu a criação e como tem sido o desenvolvimento do movimento de mulheres agricultoras surgido no bojo desse novo sindicalismo. Retrata como, no início, o sindicato promoveu campanhas para a sindicalização das mulheres e pela inclusão de seus nomes nos blocos de venda da produção, de forma a garantir o reconhecimento de sua participação nas tarefas produtivas da unidade familiar. Posteriormente, o movimento das mulheres passou a reivindicar a participação igualitária das mulheres no sindicato. Ao examinar as principais dificuldades para essa equalização, Valdete chegou a conclusões similares às apresentadas nos outros textos: falta de compreensão e apoio por parte dos homens, dificuldade de dar continuidade à participação em postos de direção no sindicato devido ao acúmulo dessas tarefas com suas atividades na esfera produtiva e na esfera doméstica.

Karen Follador Karam, em um artigo sobre a situação das mulheres dedicadas à produção orgânica na Região Metropolitana de Curitiba, examina as especificidades e possibilidades dessa forma de produção como alternativa para os produtores familiares agrícolas. Discute a noção de ruralidade para dar conta das questões colocadas por uma agricultura desenvolvida em região metropolitana. Ao examinar a inserção das mulheres na forma de produção estudada, a autora mostra que elas assumem um papel fundamental na decisão de mudar para uma agricultura menos agressiva ao meio ambiente e participam ativamente do processo produtivo, tanto como trabalhadoras quanto como agentes das 'articulações' e 'costuras' do tecido social que une os membros da exploração familiar, da família extensa e desses membros com a comunidade.

Os artigos de Cristiani Bereta da Silva e Giovana Ilka J. Salvaro, a primeira historiadora e a segunda psicóloga, tratam do mesmo tema: a divisão desigual do trabalho doméstico em assentamentos de reforma agrária coletivizados.

O MST, a partir de 1980, incorporou discussões de orientação feminista bastante forte havidas naquela década e investiu muito nas mulheres como sujeitos militantes, com direitos, mas também deveres no interior dos assentamentos. Além disso, reconstituiu partes dos discursos de "igualdade" e "emancipação feminina" presentes nos enunciados socialistas desde o século XIX. Por isso, seus dirigentes preocupam-se com o pouco envolvimento político das mulheres assentadas, havendo mesmo um retrocesso com relação a essa participação quando se leva em conta o período de acampamento. Apesar dessa preocupação e do grande esforço feito para que uma produção coletiva fosse possível, a divisão igualitária do trabalho doméstico não recebe a devida atenção em nenhum dos dois casos estudados. Cuidar da família ainda é uma tarefa atribuída apenas às mulheres, e de tal forma esse fato é aceito e sacramentado que elas, para poderem dar conta de casa e filhos, contribuem com as tarefas coletivas durante quatro horas por dia, enquanto os homens o fazem durante oito horas - construções bem marcadas, pois não só as mulheres deixam de ser remuneradas pelo trabalho doméstico, como, também, ao se aposentarem, os estatutos do grupo estabelecem que ganharão apenas a metade do rendimento dos homens. Nas conversas informais, distraídos quanto a uma autocensura militante, homens e mulheres deixam escapar comentários ainda preconceituosos sobre as mulheres politicamente ativas.

O trabalho dessas duas pesquisadoras, Cristiani e Giovana, nos faz pensar em quanto foram inocentes os que acreditaram que as discriminações de classe continham as de gênero, e que bastava eliminarmos a primeira para que a segunda a seguisse com presteza.

Anita Brumer e Maria Ignez Paulilo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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