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Educação, gênero e sexualidade: o debate começou muito antes do “kit gay”

Education, gender and sexuality: the debate began long before the “gay kit”

Educación, género y sexualidad: el debate comenzó mucho antes el “kit gay”

SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. . Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências . Petrópolis: Vozes, 2022

A publicação Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências é organizada por Fernando Seffner e Jane Felipe, docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) vinculados ao Programa de Pós-graduação em Educação e ao Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE) é um convite a compreender como iniciam os debates no campo da educação e de gênero na instituição. Além disso, possibilita vivenciar um pouco dos enfrentamentos, das lutas, das resistências, das (des)construções do grupo que comemora a sua terceira década de existência.

O livro conta com prefácio assinado pela professora Guacira Lopes Louro, uma das fundadoras do grupo e sua primeira líder. As primeiras páginas oferecem uma contextualização da história e da trajetória do GEERGE até os dias atuais. O ponto de partida elencado por Guacira é o final dos anos 1980, como marco do “tempo de escancarar, com todas as letras, todas as cores, todos os sons, o que tinha sido censurado e punido pelas décadas de ditadura militar” (Guacira LOURO, 2022LOURO, Guacira Lopes. “Prefácio - O enredo de um grupo”. In: SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 07-16., p. 7). Após o retorno da professora para a UFRGS, depois de finalizar seu doutoramento na Universidade Estadual de Campinas, ela percebeu a necessidade de ofertar disciplinas que tivessem como foco “Mulheres e Educação”. Ela salienta que, em um primeiro momento, foram aderidas exclusivamente por mulheres, já que, segundo discorre, tais discentes “buscavam referências, registros, análises capazes de preencher o vazio e o silêncio reservado às mulheres em tantas áreas, incluindo a da educação” (LOURO, 2022, p. 8).

Pouco tempo depois, já com a presença de estudantes que não representavam apenas o gênero feminino, surge a necessidade da criação de um espaço extraclasse para debater, estudar, produzir conhecimento não apenas sobre mulheres, mas também sobre masculinidades, feminilidades, processos educativos, culturais, a relação entre família, escola pública e processos de construção de sujeitos femininos e masculinos. O grupo oficializou a sua criação em novembro de 1990 e, desde então, tem incorporado nos seus debates as relações entre escola, gênero e sexualidades, mesmo que em algumas pesquisas não esteja explícito o tema escola, mas se relacionam com temas que chegam nas diversas instituições escolares.

A obra conta com 15 capítulos, assinados por 25 pessoas e representam uma diversidade de temas, debates, projetos de pesquisas, trabalhos de conclusão de cursos, monografias de especializações, dissertações e teses que foram produzidas ao longo desses 30 anos do GEERGE. A escolha dos artigos que representasse parte da história do grupo foi realizada a partir da “decisão de privilegiar temas com forte vínculo no contexto político e na cultura” (Fernando SEFFNER; Jane FELIPE, 2022SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências . Petrópolis: Vozes, 2022., p. 18). De igual modo, a organização evidencia os desafios impostos à abordagem de gênero e sexualidades no ambiente escolar pelo crescimento de grupos de extrema direita e conservadores, como os conhecidos “escola sem partido” e movimento “ideologia de gênero” (SEFFNER, 2020).

Embora, a obra esteja alicerçada na grande área da Educação, ao analisarmos o sumário percebemos uma diversidade significativa de temas que discutem a politização contemporânea do feminino e da maternidade, dentre outras problemáticas. Os capítulos convidam à reflexão sobre os scripts de gênero e sexualidade na infância, bem como intersecionam raça, classe e masculinidades. A discussão proposta pela obra se pauta nas diversas formas de experienciar a infância destacando o que seria esperado e o que não é tolerado para a criança. Em alguns instantes do percurso de leitura, nos deparamos com reflexões sobre a erotização e casos de violência/abuso sexual, enquanto que, em outros momentos, com considerações sobre a docência na educação infantil, infantilização da inclusão social, envelhecimento e educação.

A publicação também apresenta artigos que dialogam sobre maternidade e autismo; caminhos investigativos na/para a Educação Física; estética corporal e scripts de gênero (re)produzidos em aplicativo de editoração de imagem. A masculinidade também é chamada à discussão através do debate sobre o homem comum, a virilidade política e a norma em tempos conservadores; ainda evidencia discussões sobre o currículo de masculinidade em movimento. Somam-se ao debate a articulação entre gênero, sexualidade e envelhecimento; permeabilidades de performances de gênero e interpelação; um olhar sobre si, delineado por fragmentos de memória de uma pesquisa(dora). Um outro caminho desse labirinto estaria ligado à docência, com destaque à recepção das discussões sobre gênero e sexualidade em um contexto de violências e ataques à escola, à liberdade de cátedra, à democracia através das narrativas de movimentos tais como Escola sem Partido e Contra Ideologia de Gênero.

Os temas abordados no livro não se propõem finalizados ou fechados, pelo contrário, evidenciam os (des)caminhos e as potencialidades de sua construção e contribuição que, ao partir da educação enquanto norte (ou sul), possibilita um diálogo interseccional com vários temas, origens teóricas e metodológicas para pensar a produção do conhecimento e a sua relação com gênero e sexualidade. Ainda nesse horizonte está evidenciado o desconforto dos/das pesquisadores/as com a naturalização de práticas sociais e determinações a partir do gênero e da heterossexualidade compulsória que são refletidas em processos de violências, marginalização e discriminação daqueles/as que apresentam identidades dissidentes no ambiente escolar.

A publicação de uma coletânea de artigos em comemoração ao trigésimo aniversário de um grupo de estudos sobre educação e relações de gênero é um alívio e, ao mesmo tempo, nos adverte sobre o quanto ainda estamos distantes de realizar a construção de um debate que consiga possibilitar uma escola que garanta o direito à educação sem nenhum tipo de discriminação, conforme preconiza a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, 1988. Disponível emDisponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 18/09/2023.
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).

Uma possível trajetória de leitura da obra se enriquece ao analisarmos o cenário brasileiro durante o mesmo período. Pode-se destacar um avanço na primeira década dos anos 2000, com conquistas significativas para mulheres e pessoas LGBTTIQIAPN+1 1 Nos casos em que aparecem a sigla LGBTTIQIAPN+ trata-se de uma escolha do autor para incluir o maior número de identidades de gênero e sexualidades. através de programas como “Brasil sem Homofobia”, o qual criava estratégias de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB2 2 O movimento LGBTTIQIAPN+ está em constante modificações e as suas pautas avançam de acordo com o momento histórico-social. Nesse sentido, é importante compreender que as ações estão inseridas historicamente e que, portanto, as siglas usadas repercutem esse mo(vi)mento. No documento Brasil sem Homofobia (2004) a sigla utilizada era GLBT, sendo alterado para LGBT no Plano Nacional de Cidadania e Direitos Humanos de Pessoas LGBT em 2009. Destaca-se ainda a mudança no início da sigla para o L é objetivando dar maior visibilidade às mulheres lésbicas. , além da Promoção da Cidadania Homossexual (BRASIL, 2004BRASIL. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). Outro fator que vale destacar é a aprovação da Lei 11.340/2006, conhecida como a “Lei Maria da Penha”, que criou mecanismos para coibir, prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres. Ainda, é importante relembrar do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Diretos Humanos de LGBT, de 2009, que tinha como objetivo criar e fomentar políticas públicas para a população LGBTTIAQP+ em diferentes segmentos assegurando dignidade ao grupo que, historicamente, foi excluído (BRASIL, 2009BRASIL. Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos dos LGBT. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2009.).

No entanto, essa conjuntura parece ter tomado uma guinada diferenciada em 2010, quando começam as primeiras fake news sobre um suposto “kit gay” que seria distribuído nas escolas. Outra informação falsa compartilhada foi de que o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, havia distribuído nas creches e escolas municipais mamadeiras com o bico em formato de “pênis”, fato que ficou conhecido como as “mamadeiras de piroca”. Ambos os casos foram desmentidos, comprovando que essas informações não passavam de notícias falsas. No entanto, o pânico moral já estava construído (SEFFNER, 2020SEFFNER, Fernando. “Sempre atrás de um buraco tem um olho: racionalidade neoliberal, autoritarismo fundamentalista, gênero e sexualidade na Educação Básica”.Práxis Educativa, v. 15, p. 1-19, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/15010 . Acesso em 19/09/2023.
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).

Já em 2014, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.005 que institui o Plano Nacional de Educação (PNE) ao longo do debate do plano houve fortes pressões pela bancada religiosa (evangélicos e católicos) pela retirada de qualquer menção aos “marcadores sociais da diferença associados às identidades culturais específicas, como raça-etnia, regionalidade, gênero e orientação sexual” (Jimena FURLANI, 2022FURLANI, Jimena. “A narrativa ‘ideologia de gênero’ - Impactos na educação brasileira e nas políticas de identidade”. In: SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane . Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 335-361., p. 336). Isso ocorreu sob o argumento de que o PNE estava produzindo uma “ideologia de gênero”. Essas pressões também aconteceram em Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas que, em casos mais absurdos, excluíram dos seus planos menções a gênero textual e gênero alimentício, produzindo textos truncados e incompreensíveis, sob a mesma alegação.

Essa atuação de pessoas conservadoras alinhadas ao neoliberalismo, tem o propósito de atacar os debates de gênero e sexualidade, despertando um ativismo potencial no campo progressista, conforme evidenciado por Fernando Seffner e Jane Felipe (2022SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências . Petrópolis: Vozes, 2022.). A organização da obra destaca diversas tentativas de silenciamento do assunto através de projetos de lei como “Escola sem Partido”; de estímulos de parlamentares pertencentes à ala conservadora no intuito de filmar e de denunciar professores/as que abordassem os temas em sala de aula; ou ainda, de perseguições de grupos de pais e responsáveis religiosos a tais docentes. Contudo, destacam que tais tensionamentos permitiram que:

As questões em gênero e sexualidade passaram de uma presença marginal no campo educacional a uma centralidade sem precedentes, o que se revela pelo exame dos debates em campanhas eleitorais, pelas proposições de leis em casas legislativas e disputas no âmbito judiciário, e pelas recorrentes notícias na grande imprensa envolvendo escolas, alunos e alunas, professores e professoras e a abordagem didática desses temas na sala de aula (SEFFNER; FELIPE, 2022SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências . Petrópolis: Vozes, 2022., p. 19).

Considerando o contexto em que gênero e sexualidade na educação estão vivenciando nos últimos anos a publicação da obra resenhada é fundamental para comprovar que não se trata de ideologia, doutrinação ou qualquer tentativa de erotizar ou “transformar” crianças e adolescentes em pessoas LGBTTIQIAPN+. Pelo contrário, a leitura possibilita compreender os diversos segmentos para pensar gênero, sobretudo lançando luz a questões relativas às masculinidades tóxicas e padrões que geram adoecimento em sujeitos heterossexuais e cisgêneros que não se enquadram dentro do binômio normativo de tornar-se homem ou mulher, assim como de expressar sua sexualidade sem liberdade.

A publicação caminha na contramão dos movimentos conservadores que pautam suas reivindicações a partir de seus valores que determinam como verdadeira uma única forma de contemplar a realidade e o mundo à sua volta. O livro Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências convida o/a leitor/a a adentrar em um campo de produção do conhecimento que está em constante modificação, abrindo possibilidades a novas leituras, perspectivas teóricas e que seja possível garantir que as pessoas não sejam marginalizadas apenas pela sua forma de ser e existir.

A necessidade de atingir leitores/as que não sejam exclusivamente acadêmicos/as é considerada na construção da coletânea, uma vez que mesmo os capítulos que abordam questões teóricas e conceituais (as quais são de leitura acessível) permitem que aqueles/as que nunca tiveram contato com o campo de estudos de gênero e sexualidade consigam apreender as reflexões suscitadas. Sendo assim, é um material rico para inserção nas formações continuadas de professores/as e nas instituições escolares.

Nesse sentido, a coletânea aponta a produção do conhecimento científico, alinhado com a militância e divulgação de pesquisas, que emergem muito antes dos movimentos raivosos e conservadores, como uma oportunidade significativa de resistência e produzindo pesquisas em gênero, sexualidade e educação. O volume corrobora para a necessidade de defendermos a educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada.

Referências

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília, DF: Presidente da República, 1988. Disponível emDisponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 18/09/2023.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • BRASIL. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
  • BRASIL. Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos dos LGBT Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2009.
  • FURLANI, Jimena. “A narrativa ‘ideologia de gênero’ - Impactos na educação brasileira e nas políticas de identidade”. In: SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane . Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências Petrópolis: Vozes, 2022. p. 335-361.
  • LOURO, Guacira Lopes. “Prefácio - O enredo de um grupo”. In: SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências Petrópolis: Vozes, 2022. p. 07-16.
  • SEFFNER, Fernando. “Sempre atrás de um buraco tem um olho: racionalidade neoliberal, autoritarismo fundamentalista, gênero e sexualidade na Educação Básica”.Práxis Educativa, v. 15, p. 1-19, 2020. Disponível em Disponível em https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/15010 Acesso em 19/09/2023.
    » https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/15010
  • SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane. Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências . Petrópolis: Vozes, 2022.
  • 1
    Nos casos em que aparecem a sigla LGBTTIQIAPN+ trata-se de uma escolha do autor para incluir o maior número de identidades de gênero e sexualidades.
  • 2
    O movimento LGBTTIQIAPN+ está em constante modificações e as suas pautas avançam de acordo com o momento histórico-social. Nesse sentido, é importante compreender que as ações estão inseridas historicamente e que, portanto, as siglas usadas repercutem esse mo(vi)mento. No documento Brasil sem Homofobia (2004) a sigla utilizada era GLBT, sendo alterado para LGBT no Plano Nacional de Cidadania e Direitos Humanos de Pessoas LGBT em 2009. Destaca-se ainda a mudança no início da sigla para o L é objetivando dar maior visibilidade às mulheres lésbicas.
  • 3
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: FERREIRA, Ewerton da Silva. “Educação, gênero e sexualidade: o debate começou muito antes do ‘kit gay’”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 1, e95505, 2024
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • 5
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2023
  • Revisado
    03 Out 2023
  • Aceito
    13 Out 2023
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