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Queerentenas em primeira pessoa

Queerantines in first person

Queerentena en primera persona

PÉREZ NAVARRO, Pablo. (Org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021

O livro Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas foi organizado pelo filósofo Pablo Pérez NavarroPÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021. e publicado em 2021, pela editora Devires. Em um período em que o mundo não sabia como seria o dia seguinte em razão da transmissão do novo coronavírus e do alastramento da covid-19, as pessoas se depararam com mudanças bruscas em suas vidas. Nesse contexto de início de pandemia, sem vacinas e sem perspectivas concretas de como agir, o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou uma chamada para submissão de textos escritos em primeira pessoa do singular (eu) por indivíduos LGBTQIA+ para que narrassem suas experiências, dessem testemunhos e registrassem o cotidiano crivado por medidas de isolamento social, caos político-governamental no Brasil e medo iminente. A chamada recebeu textos até 15 de junho de 2020 e teve dois livros lançados como resultados: um, com 72 textos em versão e-book, publicado por um selo editorial equatoriano, homônimo ao título da iniciativa - Histórias da Queerentena1 1 Cabe destacar que o neologismo queerentena se refere a articulação das palavras queer e quarentena como um gesto político de indicar os múltiplos processos sociais envolvidos no marco covid-19, bem como uma forma de demarcar resistências por indivíduos que vivem as diferenças (Pablo PÉREZ NAVARRO, 2021). ; e outro em versão física, com 40 histórias selecionadas - Margens da pandemia: queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas, sobre o qual nos debruçamos nesta resenha.

Pablo Pérez Navarro, organizador da coletânea, é doutor em Filosofia pela Universidade de La Laguna e pesquisador com destaque nos estudos das obras de Judith Butler, estudos de gênero e teoria queer. Na época em que a publicação foi pensada, atuava como professor visitante do NUH/UFMG. Nas páginas iniciais do livro, Pablo Pérez Navarro (2021) destaca que se trata de um livro-assembleia, em uma abordagem butleriana de reunião de indivíduos para reivindicar o poder (Judith BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 4. ed. Trad. de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.). Uma obra aberta para outras pessoas poderem adentrá-la e continuá-la. Ao todo, são 42 pessoas escrevendo de diferentes localidades, condições sociais e possibilidades de acesso à chamada de publicação, a partir do que vivem na carne todos os dias em suas vidas. São bichas, homens gays, travestis, sapatões, pessoas trans, não binárias, mulheres lésbicas, bissexuais, queer, pessoas surdas e cegas, poliafetivos, drag queens, soropositivos, favelados… Essas descrições são dadas por eles e elas em breves notas de rodapé em cada um dos capítulos. Unidos pela singularidade de cada um/uma que vive as diferenças e se conectam para registrar no mundo quem são, como estão (sobre)vivendo à covid-19, se propõem a resgatar memórias que estavam se esvaindo com o dia a dia do confinamento e encurtar as distâncias do isolamento. São narrativas que têm as dimensões de gênero e sexualidade, em intersecção com outros marcadores sociais das diferenças, em primeiro plano.

Os capítulos estão distribuídos por cinco seções que remetem a elementos cotidianos da pandemia de covid-19 em nossas vidas: “vírus”, “paredes”, “máscaras”, “telas” e “peles”. Em blocos com oito histórias cada um, o “vírus”, um organismo invisível aos olhos, deixa visível o agravamento das desigualdades; as “paredes” dizem daquilo que fecha o contato com o exterior, algo que não se limita à dimensão das casas ou apartamentos, e inclui nossos corpos e vidas; as “máscaras” sufocam, impedem de mostrar e ver o rosto, porém protegem, de certo modo, de inspirar as partículas virais no contato com o outro; as “telas” ocuparam a centralidade no cotidiano e nas formas de sociabilidade com o mundo; as “peles” do corpo, que não podiam ser encostadas e nem encostar, eram tocadas apenas pelos desejos de tempos menos perigosos. Embora haja essa divisão, os capítulos não são estanques ao tema da seção em que está inserido. Ao contrário, cada texto se interconecta com outro e ressoa por diferentes temáticas na constituição dessa assembleia aberta para outras entradas.

Em “vírus”, as reflexões autobiográficas se direcionam aos atravessamentos nas vidas pelas infecções causadas pelo coronavírus e pelo HIV. Com voltas ao passado e paralelos traçados a fim de aproximar tempos diferentes, uma epidemia e uma pandemia se interseccionam e salientam as vulnerabilidades potencializadas nas vidas. “O que uma pandemia pode aprender com uma epidemia?” O questionamento de Doprá Oilerua (2021OILERUA, Doprá. “Uma vida entre vírus, uma vida ordinária”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021, p. 32-38., p. 31) carrega um déjà-vu de estigmas advindos da emergência do HIV no mundo. Guido Arosa (2021AROSA, Guido. “Diário do vírus”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021, p. 39-41., p. 35) desafia: “me pergunto o que a aids pode ensinar sobre o coronavírus. Nem tanto num sentido biológico, mas social”. É dentro desse contexto de dúvidas e de assombros de um passado marcado para quem é LGBTQIA+ que essa seção se interliga aos vírus.

A sensação de estar sendo engolido e engolida e cada vez com menos espaço não se dá apenas pelas “paredes” das casas (quando se tem uma), mas em razão das barreiras que as marcas das diferenças vão criando em nossas vidas. Flora Villas Carvalho (2021CARVALHO, Flora Villas. “Às vezes o armário é a porra de uma matriosca”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021, p. 74-80.) comparou os armários nos quais ficamos presos com uma matriosca. Quando parece que chegamos à última saída, vemos que existem portas que nos foram colocadas para abrir ou para permanecer fechadas. Como uma boneca russa que guarda várias dentro de si, as sensações de enclausuramento vão comprimindo a multiplicidade da vida. As paredes da covid-19 se assemelham aos obstáculos que escancaram as desigualdades trazidas pelas consequências da doença para cada pessoa.

Se as “máscaras” garantiam certa forma de se proteger para conseguir estar mais perto de outra pessoa, por outro lado, vinham os problemas da não adesão de parte da população, principalmente pelo desestímulo governamental na figura do então presidente do Brasil e de aliados políticos que insistiam em repercutir desinformação. Como um termômetro para aferir a adesão das pessoas, as máscaras, que sufocam e impedem a respiração, eram apenas uma das poucas medidas que existiam em um momento sem vacinação. Porém, para pessoas surdas, as máscaras simbolizam o impedimento de fazer leitura labial e, por conseguinte, dificultam a comunicação e a compreensão de muitos diálogos.

As “telas”, que já são parte do dia a dia, ganham mais participação quando não temos possibilidade de encontrar. Foram muitas lives que possibilitaram a arte continuar nos embalando com músicas e danças. Pelas plataformas digitais, muitas pessoas narram os encontros por videochamada, os trabalhos transferidos para as salas de bate-papo virtual, os matches nos aplicativos de relacionamento. Entre deslizadas por tantas telas, tentamos, no mínimo, estabelecer alguma rede de contato e sociabilidade, mesmo quando já estávamos saturados de tanto brilho e pixels.

Nas “peles” dos corpos, sentimos a distância, a ausência do toque e do abraço, sem frio na barriga, sem estar junto com o outro. É pela pele que sentimos o mundo e, para pessoas cegas, como narram Anahi Guedes de Mello e Camila Alves (2021MELLO, Anahi Guedes de Mello; ALVES, Camila. “Deficiência e isolamento social: comunicar-se com mascarados e tocar em pessoas e coisas em tempos de pandemia da covid-19”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia. Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas. Salvador: Devires, 2021, p. 123-129.), é pelo tato que se orientam e constroem a mobilidade no dia a dia. O isolamento do corpo passa pela cor da pele em uma sociedade que age com violência cotidianamente pelo racismo estrutural.

Ler as 40 histórias das Margens da pandemia é se conectar com pessoas que não conhecemos, mas com quem estabelecemos diálogos, seja pela proximidade do que narram ou pelo distanciamento ocasionado pelas diferentes quarentenas. São singularidades que se entrelaçam em assembleia que visam ocupar espaço. O livro se torna um lócus fundamental para explorar e adentrar a assembleia, assim como constitui um espaço potente para a realização de pesquisas nas humanidades que se voltam às (auto)biografias, às condições de precariedade dos corpos e ao reconhecimento das demandas das pessoas LGBTQIA+.

Referências

  • AROSA, Guido. “Diário do vírus”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas Salvador: Devires, 2021, p. 39-41.
  • BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia 4. ed. Trad. de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
  • CARVALHO, Flora Villas. “Às vezes o armário é a porra de uma matriosca”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas Salvador: Devires, 2021, p. 74-80.
  • MELLO, Anahi Guedes de Mello; ALVES, Camila. “Deficiência e isolamento social: comunicar-se com mascarados e tocar em pessoas e coisas em tempos de pandemia da covid-19”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas Salvador: Devires, 2021, p. 123-129.
  • OILERUA, Doprá. “Uma vida entre vírus, uma vida ordinária”. In: PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas Salvador: Devires, 2021, p. 32-38.
  • PÉREZ NAVARRO, Pablo (org.). Margens da pandemia Queerentenas viadas, boycetas, sapatrans, faveladas Salvador: Devires, 2021.
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    Cabe destacar que o neologismo queerentena se refere a articulação das palavras queer e quarentena como um gesto político de indicar os múltiplos processos sociais envolvidos no marco covid-19, bem como uma forma de demarcar resistências por indivíduos que vivem as diferenças (Pablo PÉREZ NAVARRO, 2021).
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    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: VIEIRA FILHO, Maurício João; PROCÓPIO, Mariana Ramalho. “Queerentenas em primeira pessoa”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 1, e96272, 2024
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 5
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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