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Implementação de evidências na prática: complexa, com múltiplas facetas e múltiplas camadas

Nas duas últimas décadas, acadêmicos, profissionais de saúde, financiadores, formuladores de políticas e usuários de serviços de saúde reconheceram a necessidade de se certificar de que organizações, sistemas e práticas de saúde são baseadas em evidências.

As razões para a prática baseada em evidências enfatizam apropriadamente que a implementação de cuidados efetivos do ponto de vista econômico e clínico pode reduzir a variação dos desfechos em saúde, levar a melhor utilização dos recursos limitados da saúde e apoiar sistemas de saúde em que profissionais de saúde e pacientes compartilhem o processo de tomada de decisão relacionada à gestão informados pela melhor evidência.

Em 1996, quando Sackett et al.(101 1.Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes B, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996;312(7023):71-2) apresentaram sua definição de medicina baseada em evidências, em um comentário publicado no British Medical Journal, relatórios, documentos e diretrizes passaram a afirmar que a decisão clínica e a tradução da evidência na prática formam um processo linear: um paciente tem uma necessidade de saúde, discute-a com um profissional de saúde(101 1.Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes B, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996;312(7023):71-2) e este tem a clareza sobre qual intervenção baseada em evidências, drogas ou terapia poderia suprir essa necessidade; assim, uma decisão compartilhada é tomada, a intervenção é implementada e a necessidade de saúde é suprida. No entanto, tal visão simplista está muito longe da realidade e da complexidade da rotina diária de pacientes e seus familiares em situações clínicas da vida real. Em várias áreas relacionadas aos cuidados de saúde, temos que nos esforçar para encontrar evidências que apoiem a tomada de decisão, pois muitas pesquisas não produzem resultados de real interesse para os usuários, levando ao que tem sido descrito como um desperdício de investigação(202 2.Macleod MR, Michie S, Roberts I, Dirnagle U, Chalmers I, Ionnidis JPA, et al. Biomedical research: increasing value, reducing waste. Lancet. 2014; 383 (9912):101-4).

Aqueles que, como nós, dedicam-se a pesquisas interventivas, sabem muito bem que, uma vez cessada a intervenção ativa da pesquisa, a prática tende a retornar ao que era anteriormente. Isso pode ocorrer por uma miríade de razões que incluem desde a disseminação ineficaz dos resultados, a concorrência imposta por outras prioridades de saúde, a escassez de recursos, até a falta de motivação para implementar e manter tais mudanças na prática. Além disso, temos pouca informação se eventuais diferenças nos resultados de interesse ocorreram conforme o esperado ou se houve impactos adicionais inesperados da prática que se pretendia mudar.

Por exemplo, no Reino Unido, a evidência para restringir a episiotomia de rotina no parto normal foi implementada após ensaios clínicos terem constatado que ela não proporcionava benefícios à saúde das mulheres(303 3.Carroli G, Mignini L. Episiotomy for vaginal birth. Cochrane Database Syst Rev. 2009;(1):CD000081), o que foi positivo, já que intervenções desnecessárias ou potencialmente prejudiciais não devem ser implementadas. No entanto, uma consequência inesperada foi que, como as obstetrizes do Reino Unido já não necessitam realizar episiotomias durante a formação, não desenvolvem mais as habilidades e as competências necessárias para discernir quando ela deve ser indicada e como realizá-la corretamente(404 4.Bick D. Evidence based midwifery practice: take care to mind the ‘gap’ [editorial]. Midwifery. 2011;27(5):569-70). Consequentemente, as mulheres podem vir a sofrer um trauma perineal espontâneo grave que poderia ter sido evitado caso se realizasse corretamente o procedimento da episiotomia. Esse é apenas um exemplo de uma área da prática, que, no entanto, destaca a complexidade da implementação e a necessidade de pesquisa tanto primária quanto secundária a fim de prover informações para avaliar a implementação e o tempo adequado para sua realização.

Atualmente não há um método único recomendado para apoiar a implementação eficaz de evidências na prática e existe incerteza quanto ao valor das ferramentas desenvolvidas por autores de diretrizes para apoiar a implementação de suas orientações(505 5.Flodgren G, Eccles MP, Grimshaw J, Leng GC, Shepperd S. Tools developed and disseminated by guideline producers to promote the uptake of their guidelines (Protocol). Cochrane Database Syst Rev. 2013 Aug). Assim, como as equipes de pesquisadores podem planejar estudos para reduzir os desperdícios de investigação e influenciar a implementação de uma diferença positiva? É ingenuidade presumir que a implementação de mudanças na prática ocorre automaticamente após a publicação de um estudo e é imediatamente seguida de melhora na evolução do paciente(606 6.Bick D, Graham I. The importance of addressing outcomes of evidence based practice. In: Bick D, Graham I, editors. Evaluating the impact of implementing evidence based practice. London: Wiley Blackwell; 2010. Chapter 1). Um passo importante é garantir que a lacuna que visamos suprir é altamente prioritária para os usuários finais, que podem incluir pacientes, profissionais de saúde, gestores de serviços de saúde e formuladores de políticas. O envolvimento desses grupos deve acontecer desde o princípio, na formulação das questões de pesquisa, haja vista que falhas na formulação dessas questões tornarão improvável a geração de resultados capazes de fazer diferença.

No Reino Unido, iniciativas tais como The James Lind Alliance (http://www.lindalliance.org) estão aproximando pacientes, cuidadores e profissionais de saúde com o propósito de identificar e priorizar as incertezas ou as perguntas sem resposta, em relação aos efeitos de tratamentos considerados importantes, e garantir que as informações fundamentais para que os financiadores da pesquisa saibam o que realmente interessa tanto aos pacientes quantos aos profissionais de saúde. Tal abordagem visa assegurar que o desenvolvimento da investigação envolva todos os interessados e concentre-se em decisões clínicas reais e com mais possibilidade de produzir resultados importantes.

Além de formular questões de pesquisas mais apropriadas, também precisamos garantir a inclusão dos resultados de estudo mais adequados, medidos e avaliados a partir das perspectivas dos destinatários dos resultados da investigação. Por exemplo, tais resultados são mais relevantes para os profissionais de saúde, no que se refere a melhorar suas habilidades cirúrgicas ou condutas durante o atendimento ao paciente? Estamos buscando economizar recursos relacionados a cuidados de saúde? Ou estamos visando melhorar a saúde dos pacientes, sua satisfação ou experiência em curto e longo prazos?

Como profissionais de saúde, frequentemente presumimos que sabemos qual deve ser o resultado primário do estudo. No entanto, os usuários de serviços de saúde são os verdadeiros peritos em determinar a prioridade dos resultados e, ao planejar uma pesquisa, precisamos levar em consideração quem é o nosso público-alvo. Em um ensaio recente sobre reparação perineal(707 7.Ismail K, Kettle C, Tohill S, Macdonald S, Thomas P, Bick D. Perineal Assessment and Repair Longitudinal Study (PEARLS): a matched-pair cluster randomized trial. BMC Med. 2013;11:209), como profissionais de saúde, presumimos que a dor seria o resultado mais importante para as mulheres que tiveram laceração de segundo grau ou uma episiotomia. Mas, quando perguntamos às mulheres que haviam sofrido tais resultados perineais quais eram suas prioridades, elas demonstraram maior preocupação com a infecção da ferida perineal. A dor revelou-se uma preocupação secundária.

Cada vez mais, órgãos nacionais e internacionais de fomento à pesquisa estão solicitando às equipes de investigadores que levem em conta a maneira como descobertas do estudo serão divulgadas e implementadas. Sugeriríamos ainda aos financiadores que considerassem como a melhor forma de avaliar os resultados da implementação da prática baseada em evidências, o ciclo completo, até a implementação dos resultados(606 6.Bick D, Graham I. The importance of addressing outcomes of evidence based practice. In: Bick D, Graham I, editors. Evaluating the impact of implementing evidence based practice. London: Wiley Blackwell; 2010. Chapter 1).

A implementação da evidência é complexa, envolvendo múltiplas facetas e camadas e as intervenções precisam refletir e levar em conta o contexto, a cultura e a facilidade em apoiar e sustentar o uso da pesquisa. O que fica bastante claro é que precisamos apresentar a avaliação dos resultados implementados com o mesmo nível de rigor que outras intervenções e procedimentos, tal como foi solicitado pelo movimento da medicina baseada em evidências. Também precisamos de um trabalho mais metodológico para saber quando, onde e como avaliar as consequências do uso da pesquisa.

References

  • 01
    1.Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes B, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996;312(7023):71-2
  • 02
    2.Macleod MR, Michie S, Roberts I, Dirnagle U, Chalmers I, Ionnidis JPA, et al. Biomedical research: increasing value, reducing waste. Lancet. 2014; 383 (9912):101-4
  • 03
    3.Carroli G, Mignini L. Episiotomy for vaginal birth. Cochrane Database Syst Rev. 2009;(1):CD000081
  • 04
    4.Bick D. Evidence based midwifery practice: take care to mind the ‘gap’ [editorial]. Midwifery. 2011;27(5):569-70
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    5.Flodgren G, Eccles MP, Grimshaw J, Leng GC, Shepperd S. Tools developed and disseminated by guideline producers to promote the uptake of their guidelines (Protocol). Cochrane Database Syst Rev. 2013 Aug
  • 06
    6.Bick D, Graham I. The importance of addressing outcomes of evidence based practice. In: Bick D, Graham I, editors. Evaluating the impact of implementing evidence based practice. London: Wiley Blackwell; 2010. Chapter 1
  • 07
    7.Ismail K, Kettle C, Tohill S, Macdonald S, Thomas P, Bick D. Perineal Assessment and Repair Longitudinal Study (PEARLS): a matched-pair cluster randomized trial. BMC Med. 2013;11:209

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
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