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O ser que sendo-no-mundo … se torna mãe de um segundo filho

RESUMO

Tornar-se mãe de um segundo filho, enquanto fenómeno de transição na parentalidade, configura-se como um desafio à reflexão em Enfermagem. Pretende-se neste estudo teórico apresentar uma reflexão sobre o ser que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho à luz da fenomenologia heideggeriana e do pensamento de enfermagem. O texto foi organizado em torno de dois eixos: os contributos conceptuais de Heidegger e o pensamento de enfermagem. Identifica-se que a dimensão ontológica heideggeriana, alinhada com os pressupostos humanísticos da Enfermagem, contribui para desvelar os sentidos do vivido e ampliar as possibilidades de cuidar do ser que sendo-no-mundo… se torna mãe de um segundo filho. Concomitantemente, o acesso à experiência da mulher que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho permite abrir o horizonte de compreensão face ao fenómeno, o que certamente terá impacto no modo de ser-presente do enfermeiro no quotidiano de cuidados.

DESCRITORES
Mães; Poder Familiar; Irmãos; Família; Enfermagem

ABSTRACT

Becoming mother of a second child, as a parental transition phenomenon, poses a challenge to reflection in Nursing. This theoretical study intends to present a reflection on the being who being-in-the-world becomes mother of a second child. It is based on Heideggerian phenomenology and nursing thought. The text is organized around two axes: Heidegger’s conceptual contributions and nursing thought. The Heideggerian ontological dimension, aligned with the humanistic presuppositions of Nursing, contributes to unfold the meanings of life experiences and broaden possibilities of caring of the being who being-in-the-world… becomes mother of a second child. Concomitantly, the access to the experience of women who being-in-the-world become mother of a second child enables widening comprehension of this phenomenon, which will certainly impact nurses’ being-present in their daily care.

DESCRIPTORS
Mothers; Parenting; Siblings; Family; Nursing

RESUMEN

Convertirse en madre de un segundo hijo, en tanto que fenómeno de transición a la parentalidad, se configura como un desafío a la reflexión de Enfermería. Este estudio teórico pretende presentar una reflexión sobre el ser que, siendo-en-el-mundo, se convierte en madre de un segundo hijo a la luz de la fenomenología heideggeriana y del pensamiento enfermero. El texto se organizó en torno a dos ejes: las contribuciones conceptuales de Heidegger y el pensamiento enfermero. Se identifica que la dimensión ontológica heideggeriana, junto con los presupuestos humanísticos de la Enfermería, contribuyen a desvelar los sentidos de lo vivido y a ampliar las posibilidades de cuidar al ser que, siendo-en-el-mundo… se convierte en madre de un segundo hijo. Concomitantemente, el acceso a la experiencia de la mujer que, siendo-en-el-mundo, se convierte en madre de un segundo hijo, permite abrir el horizonte de comprensión del fenómeno, lo que sin duda repercutirá en el modo de ser-presente de los enfermeros en sus cuidados diarios.

DESCRIPTORES
Madres; Responsabilidad Parental; Hermanos; Familia; Enfermería

INTRODUÇÃO

Tornar-se mãe de um segundo filho, enquanto fenómeno de transição na parentalidade, apresenta-se como um período de maior vulnerabilidade para a pessoa, enquanto “ser-no-

mundo”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.22. Watson J. Human Caring Science: A Theory of Nursing. Sudbury: Jones and Bartlett Publishers; 2011.), no encontro com a sua nova identidade.

A mulher enquanto pessoa, isto é, “ser-no-mundo”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.22. Watson J. Human Caring Science: A Theory of Nursing. Sudbury: Jones and Bartlett Publishers; 2011.), que sendo se torna mãe de um segundo filho, requer, na vivência dessa transição na parentalidade, a operacionalização de um cuidado humano profissional diferenciado e dirigido ao reforço de competências e recursos, assim como à minimização de vulnerabilidades; ou seja, emerge a necessidade de um cuidado que a ajude a adquirir maior autonomia e capacidade de adaptação ao seu novo papel e ser(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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).

Embora sejam inúmeros os estudos e publicações com enfoque na transição para a parentalidade pela primeira vez, sobretudo desenvolvidos por enfermeiros(44. Rodrigues J, Botelho MA. Transição para o Segundo Filho: da Saúde às Políticas Públicas. Ciências e Políticas Públicas [Internet] 2020 [cited 2021 June 30];VI(1):139-57. Available from: https://capp.iscsp.ulisboa.pt/images/CPP/V6N1/Final/4-PT_V6_N1_online.pdf.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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), a evidência que retrata a transição da mulher que sendo se torna mãe do segundo filho é escassa e pouco atual, além de não permitir compreender de forma aprofundada essa experiência humana na perspetiva da mulher(44. Rodrigues J, Botelho MA. Transição para o Segundo Filho: da Saúde às Políticas Públicas. Ciências e Políticas Públicas [Internet] 2020 [cited 2021 June 30];VI(1):139-57. Available from: https://capp.iscsp.ulisboa.pt/images/CPP/V6N1/Final/4-PT_V6_N1_online.pdf.
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).

Acresce que a facilitação dos processos de transição se constitui como um foco de atenção da disciplina de Enfermagem, em que o cuidar emerge como um processo facilitador de transições bem sucedidas(66. Schumacher KL, Meleis AI. Transitions: A central concept in nursing. In: Meleis AI, editor. Experiencing Transitions: an Emerging Middle-Range Theory. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 38-51.). Contudo, para um cuidar profissional, é necessária a aproximação com o que é real, com o que é vivenciado e sentido por cada pessoa na sua existência, nomeadamente quando vivencia um fenómeno transicional.

A Enfermagem, como disciplina e profissão, assenta numa conceção de cuidados centrados na pessoa, cuja prática é uma arte presente nas relações com as pessoas, no seu processo de tornar-se. Esta considera a pessoa enquanto ser humano, um “ser-no-mundo”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.22. Watson J. Human Caring Science: A Theory of Nursing. Sudbury: Jones and Bartlett Publishers; 2011.), num determinado espaço e tempo, nos quais seres que cuidam e seres cuidados se relacionam e se entrelaçam numa dinâmica intersubjetiva(22. Watson J. Human Caring Science: A Theory of Nursing. Sudbury: Jones and Bartlett Publishers; 2011.).

A Enfermagem está submersa nas experiências de vida das pessoas, as quais são únicas e criam os seus próprios e particulares significados. Assumindo as premissas filosóficas da fenomenologia, segundo as quais a experiência humana é uma fonte valiosa de conhecimento, as suas abordagens permitem atender à complexidade e à profundidade da experiência humana tal como ela é vivida(77. Paterson J, Zderad L. Humanistic Nursing [Internet]. Salt Lake: Project Gutenberg; 2008 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://www.gutenberg.org/cache/epub/25020/pg25020.html.
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88. van Manen M. Researching lived experience, human science for an action sensitive pedagogy. 2nd ed. Ontario: The Althouse Press; 1997.).

Paterson & Zderad introduziram a Enfermagem fenomenológica como metodologia para a compreensão da experiência do encontro do enfermeiro com o outro através da Teoria Humanística(77. Paterson J, Zderad L. Humanistic Nursing [Internet]. Salt Lake: Project Gutenberg; 2008 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://www.gutenberg.org/cache/epub/25020/pg25020.html.
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). Tais autoras adotaram uma visão existencial da Enfermagem e dos seus fenómenos de interesse, em vez de uma visão racionalista e positivista. Também Patrícia Benner foi inspirada pela fenomenologia existencial de filósofos como Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger, entre muitos outros investigadores.

Face ao exposto e atendendo à importância da reflexão teórico-filosófica sobre o fenómeno em foco para uma prática de cuidados sensível e humanista, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre o ser que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho à luz da fenomenologia heideggeriana e do pensamento de enfermagem. Este estudo teórico-filosófico encontra-se organizado em torno de dois eixos: contributos conceptuais de Martin Heidegger e o quadro de referência de enfermagem, destacando-se a produção científica relativa ao fenómeno. A apresentação das explanações e reflexões é tecida de acordo com as interpretações da literatura, assim como das reflexões das autoras.

O SER QUE SENDO-NO-MUNDO… SE TORNA MÃE DE UM SEGUNDO FILHO…

O Ser Que Sendo-No-Mundo…

A dimensão ontológica, apresentada no referencial heideggeriano, contribui para desvelar os sentidos do vivido e para ampliar as possibilidades do cuidado em enfermagem, na medida em que tal referencial se revela coerente e alinhado com os princípios humanísticos da Enfermagem e com seu objeto de estudo, permitindo ampliar possibilidades de olhar o «ser» do humano no seu quotidiano, facultando a compreensão do ser nas suas múltiplas faces, nas suas vivências e nas suas relações no mundo.

Em sua filosofia, Heidegger enquadra o ser humano como sendo-no-mundo. Para o filósofo, o ser está longe de ser o que há de mais evidente; pelo contrário, o ser é o que existe de mais misterioso e, por conseguinte, merece ser, primeiramente, interrogado(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.). O filósofo procura compreender a estrutura mais profunda do ser humano, isto é, o seu ser. Esse é o seu ponto de partida, uma vez que é através do próprio homem que se dá o caminho para se conhecer o ser. É no «ser-aí», no «Dasein», diz Heidegger, que podemos encontrar a modalidade específica de ser do ser humano.

Para o filósofo, uma via de acesso ao ser é o ente, pois o ser só se revela a partir do ente, na medida em que “o ser é sempre um ser de um ente”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.). Todavia, porque o ente abarca várias coisas, pois tudo o que é faz parte dele, é um ente, importa delimitar com precisão qual é o ente que deve conduzir a questão do ser. A escolha de Heidegger “assenta no ente que põe a questão do ser, quer dizer sobre o ente que nós próprios somos, e que ele designa sob o nome de «Dasein (o ser-aí)»”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.).

Não obstante, o ser humano não é um ente qualquer, mas possui a particularidade elementar de estar sempre em relação com o ser(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.). Heidegger demonstra uma relação do homem com ele mesmo, aquilo que constitui o núcleo da existência humana, como uma única realidade, ou seja, o homem como sujeito de sua própria realização(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.).

O homem percebe-se a si mesmo como o ser ao qual é posto em questão o próprio ser na sua vida factual, que não é um ser objetivo no meio dos outros, mas um ser presente a si e aos outros pela incerteza do seu próprio ser. Essa forma do ser, na qual o ser sob todas as suas formas é problema, tal como já referido, chama Heidegger o «Dasein (o ser-aí)»,

também traduzido por “ser da presença”(1010. Trotignon P. Heidegger. Lisboa: Edições 70; 1990.). Todavia, Heidegger esclarece que “a pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes (…) a pre-sença se compreende em seu ser, sendo”; assim, a “compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pre-sença”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.).

A pre-sença emerge, desse modo, como um ente que, sendo, coloca em jogo o seu próprio ser. Entende-se aqui ainda que o homem também se relaciona, estabelece relações, sendo na maioria das vezes sorvido, tomando a forma do seu mundo, da realidade que está a viver.

Para Heidegger, é na relação íntima com o ser que se denomina a «existência do homem», e essa «existência» é a sua «essência». A ontologia fundamental poderá, desse modo, “definir-se como a analítica existencial”(1010. Trotignon P. Heidegger. Lisboa: Edições 70; 1990.) ou como “a analítica existenciária” do «Dasein»(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.); pensamento este que está subjacente à revelação de Heidegger quando refere que “A ‘essência’ do ser-aí reside na sua existência”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.).

Possuindo o «ser-aí» um modo de ser original, distinto de todos os outros entes, nomeadamente das coisas materiais, dos seres inanimados ou dos outros seres vivos, que estão sempre “indiferentes” ao seu ser, o «ser-aí» refere-se sempre ao ser que é o seu, uma vez que “o ser-aí não «subsiste», simplesmente, mas «existe»”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.). Se existir é interpretar-se e interpretar-se é questionar-se, logo, neste questionar-se está em jogo a questão do ser.

O mundo da preocupação, da banalidade quotidiana, das dimensões da vida ativa, do prático da ação, é o horizonte significante sobre o fundo do qual o «ser-aí» preocupado encontra o ente com que tem de se haver; e é nesse mundo que o «ser-aí» mantém uma relação particular com os outros(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.). O «ser-aí» está como que monopolizado pelos outros e determina-se sem cessar na relação com eles. De um modo geral, “o ser-aí, no ser-um-com-o-outro («das Miteinandersein») quotidiano, mantém-se sob a influência do outro e é desapossado do seu ser si mesmo”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.). Diz-nos Heidegger “Não é ele mesmo que é”, “os outros subtraem-lhe o ser”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.).

Para o filósofo, o “ponto de partida da analítica existenciária é uma estrutura fundamental do ser-aí: ‘o ser-ao-mundo’ ou o ‘ser-no-mundo’ («In-der-Welt-sein»). O ser-no-mundo designa um fenómeno unitário que comporta uma pluralidade de momentos estruturais indissoluvelmente ligados: o mundo, o ente que está no mundo e o ser em…”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.). O ser-junto-ao-mundo é apresentado como “uma modalidade do ser-no-mundo na qual o ser-aí é tomado ou «cativado» pelo seu mundo”(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.).

Heidegger leva a analítica existencial até ao limite, revelando que a “estrutura existencial da vida factual e quotidiana é o «ser-no-mundo» e que esta relação com o mundo, fundamento de toda a significação, é temporal e histórica”(1010. Trotignon P. Heidegger. Lisboa: Edições 70; 1990.). Tal conjuntura “permitirá aceder, partindo da compreensão da temporalidade do «Dasein», à apreensão do tempo”, isto é, o tempo emerge como “horizonte” da manifestação do ser na medida em que o ser do homem só existe enquanto ser no tempo(1010. Trotignon P. Heidegger. Lisboa: Edições 70; 1990.).

O “ser-aí brota do futuro, de tal maneira que o futuro ‘sido’ (ou melhor ‘tendo-sido’) liberta de si o presente… A este fenómeno unitário enquanto futuro tendo sido presentificante” Heidegger chama de temporalidade(99. Boutot A. Introdução à filosofia de Heidegger. Mem Martins: Europa-América; 1993.). Heidegger mostra que o ser do ente que nós somos reside na temporalidade(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.).

O ser e o sentido do ser como levemente revelado apresenta uma interpretação do tempo enquanto horizonte de toda a sua compreensão, um ser que entre nascimento e morte é a quotidianidade. Atendendo a que a apreensão e a compreensão da vida, tal como ela é humanamente vivida pela pessoa no quotidiano, enquanto ser-no-mundo, é fonte de conhecimento para a Enfermagem, torna-se relevante o estudo dos fenómenos que a compõem, nomeadamente no que diz respeito ao significado vivido em contexto de transição na parentalidade(88. van Manen M. Researching lived experience, human science for an action sensitive pedagogy. 2nd ed. Ontario: The Althouse Press; 1997.).

Nesse âmbito, enquadra-se a relevância da compreensão do ser e do sentido do ser, que é mulher, e que sendo num tempo presente, que volta ao passado e se projeta no futuro, se torna mãe de um segundo filho. A desocultação desse fenómeno permite abrir o horizonte de reflexão face a essa transição na parentalidade, experienciada pela mulher no seu quotidiano, contribuindo para o desenvolvimento do conhecimento que sustenta a Enfermagem enquanto ciência humana do cuidar.

O SER QUE SENDO-NO-MUNDO… SE TORNA MÃE DE UM SEGUNDO FILHO…

A mulher, que é pessoa, um “ser-no-mundo”(11. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.22. Watson J. Human Caring Science: A Theory of Nursing. Sudbury: Jones and Bartlett Publishers; 2011.), ser de horizontes temporais, um ser humano que sendo-e-estando-no-mundo-com-os-outros, mais concretamente com o outro, com o seu ente especial, que é o seu segundo filho – e que também é um ser-no-mundo –, vive quotidianamente num percurso transitivo, complexo, vivido, de transformação, em que se torna novamente mãe(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.).

A reflexão sobre a quase ausência de definições do conceito de maternidade, bem como a sua ausência enquanto descritor nas bases de dados científicas, é relevante, sobretudo porque é um fenómeno muito comum da existência humana. Acresce ainda que existem poucos estudos que descrevam a experiência dessa transição pela segunda vez a partir do ponto de vista da mulher de forma profunda, não focando apenas a gestação, o pós-parto ou as semanas imediatamente após o nascimento(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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). Grande parte dos estudos publicados sobre a transição para a parentalidade pela segunda vez têm mais de dez anos e decorreram predominantemente entre o 3º trimestre de gravidez e os 12 meses de vida do segundo filho(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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) sem que o foco incida sobre a experiência vivida da mulher ao tornar-se mãe do segundo filho(55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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), acrescendo que é reconhecido que tornar-se mãe de um primeiro, ou de um segundo filho, se constitui como uma experiência qualitativamente diferenciada e singular.

Face ao exposto, torna-se aqui relevante apresentar a evolução teórico-conceptual identificada na produção científica consultada. Rubin, em 1967, nomeou «consecução do papel maternal» o processo que conduz a mulher na conquista da nova identidade no que diz respeito ao seu papel materno, no qual estão incluídos estágios progressivos, tais como o mimetismo, o «role-play», a fantasia, a introjeção, a projeção, a rejeição e a identidade(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Esses estágios têm o seu início durante a gravidez, sendo finalizados quando a mulher apresenta, por um lado, a sensação de estar no seu papel e, por outro, conforto face ao seu passado e ao seu futuro.

Não obstante, para a autora a identidade materna é algo mais do que um papel que se coloca e retira: esta advém de uma incorporação inseparável em toda a personalidade. Segundo a autora, a identidade, o comportamento e a qualidade de vida materna e familiar evoluem de acordo com as mudanças na idade, na condição e na situação da criança, ou seja, cada experiência de gravidez é diferente, assim como o espaço da vida da mulher e o seu «self»(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Assim, a singularidade de cada criança, naquele momento específico de vida da mulher, requer um trabalho materno sistemático e extensivo para a conhecer e a incorporar nos seus próprios sistemas e na família. Deste modo, com o nascimento de cada criança subsequente, uma nova dimensão pessoal é incorporada ao sistema da mulher, sem transferência de identidade materna de uma criança para outra.

Mercer, discípula de Rubin, iniciou vários estudos focados na «consecução do papel maternal» de mães, em situações únicas, durante os primeiros 8 a 12 meses de maternidade, tendo verificado que, embora o último estágio dissesse respeito à identidade materna, a transformação dinâmica e a evolução da personalidade da mulher não eram devidamente captadas através do referido conceito, na medida em que não estava incluída a expansão contínua do Eu como mãe(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Esse argumento leva a autora a sugerir a substituição de «consecução de papel maternal» por «tornar-se mãe» para conotar a transformação inicial e o crescimento contínuo da identidade materna(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.).

Os principais conceitos da teoria de Mercer sobre a «consecução do papel maternal/tornar-se mãe» baseiam-se na premissa de que o desempenho do papel materno é individualizado para a mãe que o experimenta, pode ser influenciado por várias variáveis maternas e infantis e é um processo contínuo que pode levar meses ou anos para ser completado(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Esse processo pode ser dividido em quatro etapas principais que frequentemente se sobrepõem: (a) a gravidez, na qual a mãe ganha um sentimento de compromisso com o filho e começa a antecipar a sua chegada; (b) o período de pós-parto inicial, que é compreendido desde o nascimento até seis semanas de idade e se caracteriza pela familiarização da mãe com o filho e o início da sua aprendizagem no que diz respeito às pistas que se apresentam; (c) o estabelecimento de um novo normal à medida que o lactente se torna parte da dinâmica familiar e da vida quotidiana do pai e da mãe; e (d) a eventual conquista da identidade materna(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Esse momento ocorre por volta dos quatro meses de idade, quando a mãe se torna confiante na sua capacidade de cuidar e se sente alegre.

O Conselho Internacional de Enfermeiros (International Council of Nurses), mediante a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (International Classification For Nursing Practice), considera a “Adaptação à Parentalidade” e a “Parentalidade” como focos de atenção com relevância para a intervenção de enfermagem, definindo a Parentalidade como: “Tomar Conta: Assumindo as responsabilidades de ser mãe e/ou pai; comportamentos destinados a facilitar a incorporação de um recém-nascido na unidade familiar; comportamentos que otimizem o crescimento e desenvolvimento das crianças; e a interiorização das expectativas dos indivíduos, famílias, amigos e sociedade, quanto aos comportamentos de papel parental adequados ou inadequados”(1212. Conselho Internacional de Enfermeiros. CIPE® Versão 2015 – Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem. Genebra: Lusidacta; 2016.).

Em 2016, o International Council of Nurses introduziu o foco “Papel de mãe”, definindo-o como: “Papel parental: interagir de acordo com as responsabilidades de ser mãe; internalizar a expectativa mantida pelos membros da família, amigos e sociedade relativamente aos comportamentos apropriados ou inapropriados do papel das mulheres grávidas e mães”(1212. Conselho Internacional de Enfermeiros. CIPE® Versão 2015 – Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem. Genebra: Lusidacta; 2016.).

Tornar-se mãe, embora possa ser um acontecimento de vida previsível, implica reorganização e adaptação devido a todas as mudanças que lhe estão associadas(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.), sendo para nós aceite como um fenómeno que vai muito mais além da maternidade enquanto ato de ser progenitora. A maternidade, assumindo maior visibilidade nos primeiros anos da criança, é aqui entendida enquanto processo de se tornar mãe, ou seja, um processo, interativo e evolutivo, que ultrapassa a gravidez e no qual a mulher se vai vinculando à criança, desenvolve competências relacionadas com o seu papel e experiencia gratificação e prazer(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). Essa complexa progressão individual é única para cada mãe e para cada filho(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.).

Claramente, o fenómeno tornar-se mãe conduz a um percurso complexo, que envolve identificações em níveis conscientes e inconscientes e contempla uma evolução e transformação dinâmicas da pessoa e do seu próprio «self», na busca da sua nova identidade(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.). É uma transição para novos papéis e responsabilidades, sendo crítica na medida em que é permanente e irreversível(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.).

O processo de se tornar uma mãe requer um extenso trabalho psicológico, social e físico. A mulher, nessa transição, é exposta a uma vulnerabilidade acrescida e vivencia intensos desafios. A vulnerabilidade, enquanto condição ontológica do ser humano, pode ser agravada pela vivência do processo de transição. Assim, nesse tempo de vulnerabilidade face à assunção da nova identidade materna, os enfermeiros têm a oportunidade de ajudar a mulher a aprender e a ganhar confiança nas suas competências.

A transição é, nesse contexto, definida como a passagem de uma fase, condição ou estado para outros, podendo expressar uma mudança no estado de saúde, nas expectativas, nas relações de papel ou nas competências da pessoa humana(66. Schumacher KL, Meleis AI. Transitions: A central concept in nursing. In: Meleis AI, editor. Experiencing Transitions: an Emerging Middle-Range Theory. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 38-51.). Deste modo, a transição, considerada na sua essência como positiva, conduz a pessoa à incorporação de novo conhecimento, modificando os seus comportamentos, de modo a alcançar maior estabilidade em relação ao período anterior, influindo, assim, numa nova definição do «self»(66. Schumacher KL, Meleis AI. Transitions: A central concept in nursing. In: Meleis AI, editor. Experiencing Transitions: an Emerging Middle-Range Theory. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 38-51.).

Sendo a parentalidade considerada uma transição, a presença de um segundo filho emerge como uma transição na parentalidade(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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), que envolve o conhecimento e a aquisição de habilidades relacionadas ao cuidado infantil, assente na assunção do papel de pais, no ajustamento do casal e no relacionamento pais-filho de modo a incluir outra pessoa(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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). A facilitação dos processos de transição se constitui como um foco de atenção da disciplina de Enfermagem, em que o cuidar emerge como um processo que facilita as transições bem sucedidas(66. Schumacher KL, Meleis AI. Transitions: A central concept in nursing. In: Meleis AI, editor. Experiencing Transitions: an Emerging Middle-Range Theory. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 38-51.).

Tornar-se mãe de um segundo filho, enquanto transição na parentalidade, emerge de um trajeto adaptativo e de (re)encontro com um novo equilíbrio(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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44. Rodrigues J, Botelho MA. Transição para o Segundo Filho: da Saúde às Políticas Públicas. Ciências e Políticas Públicas [Internet] 2020 [cited 2021 June 30];VI(1):139-57. Available from: https://capp.iscsp.ulisboa.pt/images/CPP/V6N1/Final/4-PT_V6_N1_online.pdf.
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), marcado pelo início do subsistema fraterno, em que há aumento da complexidade das interações, e requer uma reorganização do sistema familiar estabelecido, no qual a aceitação da criança pelos outros membros da família é um dos desafios mais importantes que a mulher tem de alcançar(1313. Piccinini C, Pereira C, Marin A, Lopes R. O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares. Psicol Teor e Pesqui [Internet]. 2007 [cited 2020 Aug 1] ;23(3):253-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n3/a03v23n3.pdf.
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1414. Pereira C, Piccinini C. O impacto da gestação do segundo filho na dinâmica familiar. Estud Psicol. 2007;24(3):385-95. DOI: https://dx.doi.org/10.1590/S0103-166X2007000300010.
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). A partir desse momento, não existe apenas o relacionamento dos membros do casal, mas também o relacionamento pais-filhos e entre irmãos(1313. Piccinini C, Pereira C, Marin A, Lopes R. O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares. Psicol Teor e Pesqui [Internet]. 2007 [cited 2020 Aug 1] ;23(3):253-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n3/a03v23n3.pdf.
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); veja-se que os primeiros filhos nascem de casais, mas os segundos filhos nascem de famílias. A produção científica parece apontar que o principal impacto da gestação e do nascimento do segundo filho é vivido na relação com a mãe, embora possa também ter impacto nos seus distintos intervenientes(1313. Piccinini C, Pereira C, Marin A, Lopes R. O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares. Psicol Teor e Pesqui [Internet]. 2007 [cited 2020 Aug 1] ;23(3):253-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n3/a03v23n3.pdf.
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).

A mulher, que sendo se torna mãe de um segundo filho, tem de se preparar para o ajuste e para a chegada de outro filho, continuando a cuidar e a gerir o ajustamento da criança mais velha. Sentimentos de ambivalência, tristeza e culpa, de alguma forma relacionados com o luto por uma diminuição na intensidade do relacionamento com o primeiro filho, são referidos pelas mulheres que experienciam essa transição(1313. Piccinini C, Pereira C, Marin A, Lopes R. O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares. Psicol Teor e Pesqui [Internet]. 2007 [cited 2020 Aug 1] ;23(3):253-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n3/a03v23n3.pdf.
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); tais mulheres questionam-se também sobre a sua capacidade de equilibrarem o seu tempo e o seu amor entre as duas crianças. Essas mulheres tendem a relatar mais stress do que as mães pela primeira vez ou do que as mães com três ou mais crianças(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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44. Rodrigues J, Botelho MA. Transição para o Segundo Filho: da Saúde às Políticas Públicas. Ciências e Políticas Públicas [Internet] 2020 [cited 2021 June 30];VI(1):139-57. Available from: https://capp.iscsp.ulisboa.pt/images/CPP/V6N1/Final/4-PT_V6_N1_online.pdf.
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). Esse stress materno parece derivar tanto das já referidas dificuldades de cuidar do primogénito como de uma constelação de fatores inerentes ao relacionamento com o cônjuge, com a sua situação laboral ou com a de ambos. A produção científica sublinha que, na vivência dessa transição, se podem acentuar os papéis de género e se pode contribuir para uma maior sobrecarga das mulheres, atendendo à maior complexidade das tarefas diárias, exigindo o ajustamento e a redefinição dos seus intervenientes.

Nesse trajeto adaptativo e de procura de equilíbrio, para que a mulher possa oferecer a sua presença sensível, ela precisa de se sentir apoiada(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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). O tipo de relacionamento com o parceiro e a carga doméstica são descritos como tendo influência na satisfação conjugal e no bem-estar materno(55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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). Alguns autores sublinham que a complementaridade entre o casal facilita o acolhimento da mãe ao segundo filho e a redefinição do seu papel de mãe(33. O’Reilly M. Achieving a new balance: women’s transition to second-time parenthood. JOGNN J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2004 [cited 2020 Dec 10];33(4):455-62. Available from: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=106656964&site=ehost-live.
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).

Nessa transição, para além do sistema nuclear familiar, é necessário atender, também, a outros recursos, nomeadamente à família extensa, às instituições de saúde, aos vizinhos, aos amigos, entre outros. Esses são possíveis recursos de suporte que podem ser relevantes, quer em períodos em que a rotina vigora, quer em momentos mais conturbados(1414. Pereira C, Piccinini C. O impacto da gestação do segundo filho na dinâmica familiar. Estud Psicol. 2007;24(3):385-95. DOI: https://dx.doi.org/10.1590/S0103-166X2007000300010.
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).

Também serão determinantes nessa etapa do ciclo de vida as características pessoais da mulher, da criança, da família, da sociedade e do ambiente onde esta se inscreve, ou seja, as relações e interações que estabelece e os vários papéis que desempenha e que vão condicionar as suas respostas e estratégias na vivência dessa experiência(1111. Mercer RT. Becoming a mother versus maternal role attainment. In: Meleis AI, editor. Transitions Theory: Middle Range and Situation Specific Theories in Nursing Research and Practice. New York: Springer Publishing Company; 2010. p. 94-104.).

Por vezes, no exercício profissional assume-se que as mulheres, que sendo se tornam mães pela segunda vez, por terem tido uma experiência anterior e terem mais conhecimentos sobre como dar resposta ao filho, têm menos necessidades, não sendo contempladas intervenções específicas inerentes ao facto de serem pessoas a vivenciarem um complexo e único momento da sua existência. As consultas de enfermagem são baseadas em prioridades e os cursos mais formais costumam incidir sobretudo sobre a revisão do processo de trabalho de parto e o parto e sobre conselhos acerca do relacionamento do primogénito com o segundo filho. Acresce que na literatura não está claro se esses aspetos particulares dessa transição são os mais importantes a atender(55. Rodrigues J, Velez M. Tornar-se mãe de um segundo filho: uma revisão scoping. Pensar Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 1]; 22(1):5-17. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/3.
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).

A vivência dessa transição na parentalidade exige a operacionalização de um cuidado humano profissional que ajude a pessoa a adquirir maior autonomia e capacidade de adaptação ao novo papel. A Enfermagem, enquanto profissão que tem como desígnio principal o cuidar, o que passa por acompanhar as grandes passagens da vida, tal como defendido por Colliére, encontra no nascimento de um filho um foco. A identificação de preocupações específicas da mulher e dos recursos disponíveis para responder às preocupações e minimizar as suas vulnerabilidades, bem como o reforço de competências de cuidar, são relevantes para a promoção do sentido de competência da mãe e o desenvolvimento da sua identidade materna. Os enfermeiros, durante essa transição, estão numa posição privilegiada, com significativas repercussões positivas a longo prazo sobre as mulheres.

Face ao exposto, torna-se relevante desocultar a experiência vivida da mulher que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho, acedendo à singularidade do(s) mundo(s) vivido(s) e atendendo à centralidade da pessoa, de modo que possam ser encontradas formas de cuidar em enfermagem que atendam à complexidade, bem como à singularidade do ser pessoa.

A fenomenologia é, nesse confluir, o caminho pelo qual será possível ter acesso à experiência vivida(88. van Manen M. Researching lived experience, human science for an action sensitive pedagogy. 2nd ed. Ontario: The Althouse Press; 1997.) da mulher que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho e que concederá certamente aos enfermeiros a possibilidade de se tornarem profissionais (ainda mais) atentos e reflexivos no quotidiano de cuidados à mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É na experiência quotidiana da mulher enquanto ser que (co)existe no mundo, que sendo se torna mãe de um segundo filho, enquanto pessoa que vivencia essa experiência de forma única e singular, que se encontrará uma fonte de conhecimento reveladora daquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo, iluminando a compreensão desse fenómeno. Ou seja, é na existência do «ser-aí», no «Dasein», na mulher enquanto ser que sendo se torna mãe de um segundo filho, que a verdade emerge e se mostra atendendo ao facto de ser-no-mundo em presença, no quotidiano da vida em inter-relação com os outros, indo além de si, transformando-se e descobrindo o seu próprio sentido de ser humana, desvelando-se uma possível compreensão daquilo que na verdade se desvela, se torna presente para o outro.

A fenomenologia, perspetivando descrever o fenómeno tal e qual ele aparece à consciência, ou melhor, emergindo enquanto a tentativa sistemática para desocultar as experiências vividas, constitui-se como via de acesso. A dimensão ontológica, apresentada no referencial heideggeriano, alinhada com os princípios humanísticos da Enfermagem, permite desvelar os sentidos do vivido e ampliar as possibilidades do cuidado em enfermagem.

Investigar fenomenologicamente a experiência humana da mulher que sendo se torna mãe de um segundo filho, de forma singular e conforme é vivida, promoverá a desocultação desse fenómeno de transição na parentalidade vivido pela mulher, produzindo-se conhecimento que sustenta a disciplina e a profissão de enfermagem. O acesso à estrutura essencial do fenómeno permitirá andaimar o horizonte de compreensão e reflexão dos enfermeiros quanto a formas de cuidar centradas na pessoa, ou melhor, na mulher que sendo-no-mundo se torna mãe de um segundo filho, que atendem à sua complexidade, bem como à sua singularidade, iluminando-se, deste modo, o processo de tomada de decisão, inerente a uma prática de cuidados de enfermagem sustentada em evidência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2021
  • Aceito
    11 Set 2021
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