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Retornos felizes: reflexões sobre uma futura visita

EDITORIAL

Retornos felizes: reflexões sobre uma futura visita

Sarah Cowley

Professora de Desenvolvimento de Prática Comunitária, Escola de Enfermagem e Tocologia Florence Nightingale, King's College London. Londres, Reino Unido. sarah.cowley@kcl.ac.uk

Em 2006, após a minha primeira viagem a São Paulo, escrevi sobre o quanto ansiava por novas visitas(1). Desde então, tive a sorte de poder retornar mais duas vezes. Em 2010, além de consolidar o Memorando de Entendimento, assinado entre a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) e a King's College London (KCL), celebramos a existência de uma colaboração formal e abrangente entre as instituições. Como reconhecimento desse feito, no início deste ano, a KCL e a FAPESP disponibilizaram um apoio financeiro para o desenvolvimento de parcerias entre as duas universidades. A Professora Emiko Yoshikawa Egry e suas colaboradoras acadêmicas do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da USP receberam, de minhas mãos, como representante da Escola de Enfermagem Florence Nightingale da KCL, um subsídio para continuar a desenvolver pesquisas sobre a avaliação de necessidades em saúde nos dois países. Ficamos muito orgulhosas de ver nossos nomes e nossas respectivas Escolas de Enfermagem listadas ao lado de outros seis ganhadores, todos importantes pesquisadores biomédicos. Podemos entender essa conquista como um marco de sucesso na história da ciência em enfermagem? Acreditamos que sim.

Trabalhar de maneira tão próxima significa que cada um de nós desenvolveu um alto nível de respeito pelas diferentes histórias de nossas Escolas de Enfermagem, assim como pela atual expertise do outro. Em 2007, na ocasião da minha visita, a Escola de Enfermagem da USP havia completado 65 anos e o Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, 20 anos. Isso é impressionante. A Escola de Enfermagem existe há muito mais tempo que o Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva e que a própria Escola de Enfermagem da King's College London. Nosso Departamento de Estudos em Enfermagem foi inaugurado em 1977, com o ingresso de alunos de graduação no mesmo ano. No entanto, naquela época, as enfermeiras britânicas não precisavam de nível universitário para exercer a enfermagem; nossa universidade estava entre os inovadores. Temos continuamente oferecido cursos na King's, acrescentando o nível de Mestrado e Doutorado desde então. No entanto, em âmbito nacional, somente agora conseguimos alcançar a exigência de que todos os enfermeiros tenham nível universitário. Em setembro de 2010, o órgão regulamentador no Reino Unido (RU), o Conselho de Enfermagem e Tocologia (Nursing & Midwifery Council), publicou novos padrões para os níveis de graduação. Até o momento, os alunos têm obtido qualificação em níveis inferiores à graduação, embora , na década de 90, toda a educação tenha sido transferida das escolas de enfermagem, baseadas nos hospitais, para as universidades.

Em 1996, a Escola Nightingale, fundada no Hospital St Thomasem em 1860, foi inteiramente integrada ao King's College London. Atualmente, usamos o nome completo da nossa fundadora na Escola de Enfermagem e Tocologia Florence Nightingale (Florence Nightingale School of Nursing and Midwifery). Esse fato marca a mudança, e ao mesmo tempo honra a história e o passado da instituição, que estiveram muito presentes quando celebramos nosso 150º Aniversário(2) este ano. Florence Nightingale motivou a disseminação de seus métodos e treinamentos, enviando suas enfermeiras para o exterior, tanto para implementar novos programas de enfermagem (na Austrália e no Canadá) como para reformar hospitais militares no Egito. A instituição também é uma entusiasta e reconhecida defensora da saúde pública. Portanto, a colaboração entre as escolas de enfermagem do KCL e USP, com foco na saúde pública, está seguindo firmemente os seus passos.

É provável que se a Nightingale estivesse entre nós, o estado da saúde pública nos dois países estaria instigando a sua mente tanto quanto fazia no século XIX. O crescimento econômico exponencial do Brasil é uma notícia excelente para a população, mas é também motivo de grande mudança e desordem social, quase sempre causando transtornos às famílias e muito trabalho aos enfermeiros que atuam na atenção primária e saúde pública. O elevado aumento na migração das áreas rurais para as áreas urbanas significa que atualmente 86% dos brasileiros vivem em cidades e municípios, contra 75% em 1990(3); um aumento de 10% em menos de 20 anos. Essa migração está quase sempre associada à mudança das famílias para habitações de baixa qualidade ou para favelas. A situação é de grande risco à saúde, além de causar a separação de diferentes gerações de uma mesma família. O resultado é que o primeiro porto natural de ajuda e apoio dessas famílias torna-se de difícil acesso, gerando uma maior necessidade de serviços profissionais.

Embora as dificuldades dentro do país ainda sejam muitas, houve uma melhora expressiva nas taxas de mortalidade infantil no Brasil, nas últimas duas décadas. De 46 a cada 1000 nascidos vivos em 1990, a mortalidade caiu para 18 em 2008(4). Em 2006, 39,8% dos recém-nascidos recebiam amamentação exclusiva durante os primeiros seis meses de vida. O Brasil ocupa a 28º posição entre os 124 países avaliados pelo observatório de saúde global da Organização Mundial de Saúde(4). Menos de 1% dos bebês britânicos são amamentados por tanto tempo. Então, podemos certamente aprender com a experiência brasileira! Quanto dessa realidade se deve às avós que apóiam suas filhas? Devemos prestar mais atenção a esse fato à medida que as famílias se espalham pelo país em decorrência da migração, de forma a evitar a redução nessa atividade de proteção à saúde.

As desigualdades em saúde estão diminuindo rapidamente, mas ainda são marcantes no Brasil, um país com coeficiente Gini das Nações Unidas de 55 em 2007(5) e 52 em 2008(1). Na referida escala, 0 corresponde à igualdade completa (onde todos têm a mesma renda) e 100 corresponde à desigualdade completa (onde uma pessoa tem toda a renda, e os demais tem zero de renda). No RU, essa taxa era de 36 em 2007, mantendo-se estável até hoje. O antigo ministério do trabalho tinha um forte compromisso com as políticas públicas que visavam à redução das desigualdades na saúde, mas obteve sucesso somente em estabilizar índices que dão notícia de primeira página(6). Embora algumas áreas tenham melhorado, tivemos uma mudança de governo este ano, e com a crise econômica mundial as desigualdades parecem ter piorado novamente.

O índice de problemas sociais e de saúde inclui 10 indicadores-chave, que mostram o quanto as condições sociais afetam a saúde. São eles:

• expectativa de vida

• alfabetismo e conhecimento em matemática

• mortalidade infantil

• homicídios

• encarceramento

• nascimentos em adolescentes

• confiança (na vizinhança)

• obesidade

• doença mental, incluindo a dependência de drogas e álcool

• mobilidade social

O índice é quase sempre pior (algumas vezes muito pior) em países com desigualdades sociais, ao passo que nos países ricos o desempenho não está relacionado com a renda(7). Isso explica porque é tão importante reduzir as desigualdades em saúde. Na minha primeira visita a São Paulo(1); fiquei impressionada com os esforços que o Programa de Saúde da Família tem feito para fornecer serviços médicos e de enfermagem nas áreas mais carentes. A cobertura quase universal desse serviço de atenção primária, em particular o trabalho dos Agentes de Saúde Comunitária, tem sido citada como a razão mais provável da melhoria no índice de mortalidade infantil, sempre um marcador-chave em saúde pública(8).

O próximo desafio é implementar uma forma mais sutil de atenção universal, focada na necessidade de todos os cidadãos serem atendidos, mas na qual os mais necessitados receberão maior atenção. Essa estratégia recebeu do governo britânico anterior a denominação de universalismo progressivo(9) e definiu um plano para os diferentes tipos e níveis de serviços, dependendo das necessidades da população, conforme avaliado em nível local. Infelizmente, esse plano praticamente não saiu do papel, e não implementado por completo. Será que em São Paulo vocês terão mais sucesso? O projeto de pesquisa para o levantamento de necessidades, motivo pelo qual estive no Brasil da primeira vez, já está concluído e mostra que é perfeitamente possível identificar os diferentes níveis de necessidades em saúde nos diferentes bairros. Portanto, o formato e tamanho das equipes nas unidades de saúde da família poderiam ser ajustados para melhor atender às necessidades locais. Há tanto entusiasmo e profissionalismo no serviço que estou confiante de que haverá progressos antes da minha próxima visita, a qual anseio com muito prazer.

REFERÊNCIAS

  • 1. Cowley S. A salient visit [editorial]. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(3):340-5.
  • 2. Florence Nightingale School of Nursing and Midwifery. 150 years anniversary [text on the Internet]. London: King's College London [cited 2010 Sept 26]. Available from: http://www.kcl.ac.uk/schools/nursing/anniversary/
  • 3. World Health Organization (WHO). Brazil: health profile, 2010 [text on the Internet]. Geneva; 2010 [cited 2010 Sept 26]. Available from: http://www.who.int/countries/bra/en/
  • 4. World Health Organization (WHO). Global Health Observatory, 2010 [text on the Internet]. Geneva; 2010 [cited 2010 Sept 26]. Available from: http://apps.who.int/ghodata/?vid=5200
  • 5
    United Nations Development Reports (UNDR). Human Development Report 2009. Overcoming barriers: human mobility and development [text on the Internet]. Geneva; 2009 [cited 2010 Sept 27]. Available from: http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr2009/
  • 6
    England. Department of Health. Tackling Health Inequalities: 2007. Status Report on the Programme for Action. London: Department of Health; 2008.
  • 7. Wilkinson RG, Pickett K. The spirit level: why more equal societies almost always do better. Harmondsworth: Penguin Books; 2009.
  • 8. Macinko J, Guanais FC, Souza MFM. Evaluation of the impact of the Family Health Program on infant mortality in Brazil, 1990-2002. J Epidemiol Community Health. 2006;60(1):13-9.
  • 9
    HM Treasury. Department for Education and Skills. Support for parents: the best start for children. London: HM Treasury; 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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