Professor Giovanni Berlinguer: a saúde, a enfermagem e a ética sentirão sua falta!

Tive a oportunidade de conhecer o Professor Berlinguer (1924-2015) pessoalmente, o que considero alto privilégio. Foi em 2002, por ocasião do II Encontro Internacional de Pesquisa em Enfermagem, evento de comemoração dos sessenta anos da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, realizado em Águas de Lindóia, interior do estado de São Paulo, Brasil. Ele veio, lá da Itália, para fazer a conferência de abertura "O significado político, social e ético da pesquisa"(¹). E permaneceu conosco por quase uma semana, conversando, confraternizando e sobretudo sendo ele mesmo, um ser humano da mais alta qualidade, intelectualmente privilegiado, dono de um senso de humor e afabilidade pouco vistos em personagens deste porte, em suma: queridíssimo, como dizemos por aqui no Brasil.

Quinze anos atrás, a nossa Revista dependia de assinatura dos leitores para sobreviver, diferentemente de hoje que contamos com algum financiamento público e com a taxa de edição paga pelos autores, cujos trabalhos eram selecionados depois de passar por rigorosa avaliação por pares. Na época, precisando aumentar o número de assinantes, fizemos um slogan estampando na capa da Revista: Assine já! Distribuímos este fascículo entre os participantes do evento. No final da conferência, o Professor Berlinguer nos surpreendeu a todos: ergueu a Revista da EEUSP, mostrou a todos e disse: "Assine já!", provocando risos do auditório. Ele havia vestido a "camisa" da REEUSP. Claro que houve um aumento significativo de assinantes, pudera com um "garoto propaganda" destes! Por ocasião do seu passamento em abril deste ano, muitas entidades postaram mensagens no site. Particularmente, gostei da homenagem postada no site da ABRASCO, "Adeus a Giovanni Berlinguer"(²). Dentre as inúmeras obras que o Professor Berlinguer escreveu, muitas traduzidas para o português, destaca-se a Bioética Cotidiana, resenhada pelo Professor Volnei Garrafa⁽³⁾ e publicada em 2005. A preocupação central com o cotidiano, "aquilo que acontece todos os dias e não deveria estar acontecendo" e as "situações-limite" ou as "fronteiras do conhecimento" apresentada no livro estava embutida nas reflexões na conferência de Águas de Lindóia. Naquele evento fez uma importante indagação: "a ciência e suas aplicações em favor de quem?"(¹). Terminou a conferência dizendo: "acho que o desconforto decorre do conhecimento de que o poder do mundo está se concentrando em poucas mãos, e isso representa um bloco, um obstáculo fundamental para que todos os cidadãos de todas as nações do planeta possam participar das decisões que afetam seu futuro"(¹).

A divulgação dos resultados da pesquisa, seguida do debate das ideias, é uma fase cada vez mais importante da investigação científica. Nós, os editores científicos, levamos a sério o trabalho de divulgação. E entendemos que a mesma ética que rege a pesquisa em sua fase de campo ou de desenvolvimento deve nortear a sua fase de relatório científico e de divulgação. Nos últimos anos, com os avanços da disseminação das informações por meios eletrônicos principalmente, as descobertas científicas são rapidamente veiculadas. Aliada a isto, há nas últimas décadas uma hipervalorização da quantidade de trabalhos publicados (e citados) em detrimento da qualidade da produção científica. Comentei isto em outro editorial - Pesquisar é preciso? Avaliar não...⁽⁴⁾ -, enfatizando os riscos dos ranqueamentos que levam fatalmente os pesquisadores a aumentar artificialmente (para não dizer fraudulentamente) a quantidade da produção. Cada vez mais são "inventados" mecanismos de burlar a ética na pesquisa e na divulgação, a ponto de merecer a "criação", por outro lado, de mecanismos para coibi-los, quer na fase de publicação (os buscadores de plágio, por exemplo), quer nas fases anteriores, ou seja, do desenvolvimento da pesquisa propriamente dita. O assustador é que a velocidade em que se criam mecanismos de burlar é mais rápida, ao que parece, do que dos outros. A pirataria literária (e científica no nosso caso) está se expandindo e, diante disso, todos nós, os pesquisadores, os autores de manuscritos, os editores científicos, os pareceristas, etc, devemos nos cuidar, prumando eticamente o nosso fazer cotidiano. Se há dúvidas do significado contemporâneo da ética - na saúde, na enfermagem, na pesquisa e na divulgação - vamos reler as obras do Professor Berlinguer? Elas com certeza nos colocarão no rumo certo!

• ¹
  Berlinguer G. O significado político-social e ético da pesquisa. In: Livro Programa do 2º Encontro Internacional de Pesquisa em Enfermagem: trajetória espaço-temporal da pesquisa; 2002 out. 28-31; Águas de Lindóia. São Paulo: EEUSP; 2002. p. 55. [tradução livre do original em italiano].
• ²
  Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Adeus a Giovanni Berlinguer [Internet]. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2015 [citado 2015 abril 30]. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/site/2015/04/adeus-a-giovanni-berlinguer/
  » http://www.abrasco.org.br/site/2015/04/adeus-a-giovanni-berlinguer/
• ³
  Berlinguer G. Bioética cotidiana. Brasília: Ed. UnB; 2004 [Resenha de Volnei Garrafa, Universidade de Brasília]. Cad Saúde Pública. 2005;21(1):333-4.
• ⁴
  Egry EY. Is research necessary? To evaluate is not... [editorial]. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2015 Apr 20];43(1):8-13. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n1/en_01.pdf
  » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n1/en_01.pdf

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  Jun 2015