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Saúde: o que devemos achar sobre ela e como temos de pensá-la? Um problema central para a profissão do enfermeiro

EDITORIAL

Saúde: o que devemos achar sobre ela e como temos de pensá-la? Um problema central para a profissão do enfermeiro

Peter Ducan

Department of Education and Professional Studies, King’s College London - Grã-Bretanha

Doctor of Philosophy (PhD)in Educational Studies - Peter.ducan@kcl.uk

Pensar sobre o conceito de saúde pode parecer uma atividade interessante, mas de modo geral irrelevante, para quem está numa profissão extremamente focada na prática como é a Enfermagem.

Os profissionais de saúde têm a tendência de não pensar muito a respeito de 'saúde'. Isso ocorre por uma ótima razão. Eles normalmente estão ocupados demais fazendo coisas específicas com vistas a fins específicos, por exemplo, tranqüilizando alguém, proporcionando-lhe maior conforto, vacinando-o, extraindo um tumor, receitando analgésicos, ou dando conselhos nutricionais... Há uma percepção importante de que pensar sobre a saúde em meio a tudo isso é desnecessário...(1).

Penso de modo bastante diferente. Minha visão é de que a menos que levemos a sério questões relacionadas ao conceito de saúde, sua natureza e seu valor, em todos os níveis do nosso envolvimento com cuidados de saúde, estaremos andando às cegas no campo do qual a Enfermagem é uma parte muito significativa. A pergunta central, O que é saúde?, exige reflexão cuidadosa e uma resposta ponderada se quisermos seguir adiante para nos dedicar a todo um conjunto de outras questões das quais, em minha opinião, depende a eficácia e a importância da nossa prática. Isso inclui perguntas tais como Qual é na natureza da relação entre indivíduos, sociedade e níveis de saúde ou de doença?), ou O que pode ser feito para se produzir 'mais saúde'?, e assim por diante(2).

É claro, responder a essa questão principal, O que é saúde?, não é fácil. O debate na área caracteriza-se principalmente pela divergência. Diferentes versões da verdade sobre conceitos e práticas relacionados à saúde e aos cuidados com a saúde abundam. Discursos sobre a saúde que fazem dela um conceito capaz de ser descrito objetivamente e de ser facilmente receptivo a medições quantitativas tentam se sobrepor a concepções construtivistas baseadas em entendimentos qualitativos. Na maior parte das vezes, não parece possível haver concordância, e a harmonização das diferentes posições aparenta ser muito improvável.

Meu argumento aqui é que muito da razão para essa disputa e discordância se deve ao treinamento profissional que tivemos e às identidades profissionais que assumimos. A pergunta O que é saúde? e as outras com as quais comecei exigem que pensemos com flexibilidade. No entanto, nossa identidade profissional torna muito difícil para nós fazermos isso.

Ser enfermeiro profissional envolve dois processos de aprendizagem diferentes e recíprocos. Aprendemos o que fazer e aprendemos em que acreditar e a que dar valor. Quase qualquer exemplo de atividade profissional de Enfermagem vai confirmar isso. Considere o procedimento relativamente simples de lavar um paciente. Em certo nível, significa tão-somente o ato de lavar alguém. Em outro, no entanto, estão envolvidos conhecimento e especialidade (por exemplo, para avaliar e tomar cuidado com áreas de pressão, ou para procurar sinais visíveis de infecção). Em outro grau ainda, tudo isso é feito de uma forma que pode ser caracterizada como cuidar e transmitir respeito pelo paciente que está sendo cuidado. É difícil conceber esse procedimento como uma atividade da Enfermagem profissional a menos que esses componentes - a ação, o conhecimento implícito, os valores que estão por trás - estejam presentes.

Crucialmente, os valores profissionais que possuímos são o que podemos chamar de valores intrínsecos(3). Não se pode reduzi-los a preferências pessoais ou a idéias úteis que nos ajudam a fazer nosso trabalho. Eles são a corporificação da nossa ocupação, representações do realmente significa ser enfermeiro profissional. Se removêssemos o valor cuidar (por exemplo) da Enfermagem, estaríamos removendo uma parte (provavelmente uma parte grande) do sentido da Enfermagem propriamente dita.

Assim, os valores que temos, e sua natureza, são parte essencial da identidade da Enfermagem profissional. Um desses valores é o de saúde em si. Embora eu concorde com Alan Cribb quando diz que enquanto estamos desempenhando nossas práticas diárias de tranqüilizar alguém, ou vaciná-lo, ou seja lá o que for, dificilmente estaremos pensando sobre a natureza da saúde; entretanto, os pressupostos que temos a respeito dela sustentarão continuamente nossas ações e nossa prática. E, enquanto enfermeiros, provavelmente entenderemos o valor da saúde de uma determinada maneira. Nosso treinamento (o processo que descrevi como o aprendizado tanto de o quê fazer como em que acreditamos e a que damos valor) se desenvolve num mundo preocupado com males e doenças, um mundo de enfermarias, departamentos de acidentados e unidades de terapia intensiva. A maior parte do nosso aprendizado, em termos do que fazer e a que dar valor, ocorre nesses ambientes cheios de tensão. Essa aprendizagem do que fazer envolve em grande parte cuidar de pacientes para que eles se recuperem de males e doenças. Portanto, a natureza do valor saúde se torna, para nós, a ausência de doença, uma concepção adquirida e constantemente reforçada por meio da longa, muitas vezes extremamente emotiva, e abrangente experiência de treinamento profissional e de socialização de valores profissionais(4).

Minha avaliação de como os enfermeiros vêem a saúde e de como adquirem esse conceito estará correta? Há no mínimo duas objeções ao que eu disse. Primeiro, uma série de mudanças nas políticas e na prática do ensino de cuidados com a saúde exigiram que os profissionais adotassem visões muito mais holísticas sobre a natureza da saúde; os currículos de treinamento abrangem concepções de saúde que ultrapassam a ausência de doença e chegam a noções de bem-estar nos níveis individual, social e ambiental. Nesse contexto, então, como pode a saúde ser vista como nada mais que a ausência de doença?

Concordo que essa não é uma representação injusta do contexto das políticas e do ensino, ao menos até certo ponto. No entanto, é preciso também considerar a noção de currículo escondido(5), de exigências formais de políticas para mudar resistências que persistem sob forma de concepções tradicionais muito arraigadas a respeito da natureza dos valores profissionais. A idéia de saúde como a ausência de doença e sua reprodução como valor tem uma longa história, que as políticas sozinhas podem não ser suficientes para desfazer.

A segunda objeção à minha afirmação sobre a natureza do valor da saúde para os enfermeiros é que ela não passa de uma construção que eu mesmo fiz. Ao falar do nosso treinamento de enfermeiro, ocorrendo num mundo de enfermarias, departamentos de acidentados e unidades de terapia intensiva preocupados com males e doenças (e aprendendo o quê e a quê dar valor, tomando-se por base esses contextos), estou apenas construindo minha própria versão do mundo.

Em determinado nível, tenho de concordar com isso; acontece que fui um enfermeiro assim, vivenciando essas coisas e construindo-as dessa forma. Entretanto, em outro nível, minha experiência e minhas percepções não foram exclusivas. Ao menos alguns outros as terão tido também, ou tiveram experiências parecidas(6). E se é assim, então, por que minha descrição construtivista da natureza do valor que os enfermeiros atribuem à saúde deveria ser suplantada por uma descrição objetivista baseada no que as políticas dizem que deveria ter ocorrido? Voltamos aos nossos debates iniciais sobre posições positivistas versus interpretativas na arena da saúde. Mais uma vez, tudo é passível de discussão e está à disposição de quem quiser agarrar.

Se a natureza do valor saúde, para os profissionais de enfermagem, for, como afirmei, a ausência de doença, quais são as implicações disso? A mais óbvia é que pode ficar mais difícil para quem é, ou está no processo de se tornar enfermeiro profissional, encarar e aceitar noções mais flexíveis de saúde. Será realmente possível engajar-se na análise e na reflexão crítica sobre a variedade de descrições acadêmicas e não-acadêmicas de saúde que existem? Várias dessas descrições(7), essencialmente, desafiam concepções dominantes de saúde e da prática de cuidados com a saúde. Sua construção cuidadosa requer nossa atenção. Mas será que vamos conseguir dar-lhe atenção diante da análise acima?

Sob certos ângulos, esta análise é desalentadora. O processo de socialização de valores profissionais parece nos condenar a ver a natureza da saúde de um jeito fixo e determinado. Por outro lado, o reconhecimento e uma maior exploração do modo como nossa educação e nossa experiência profissional delimitam nosso entendimento da saúde é o primeiro passo fundamental na reavaliação das nossas concepções.

  • 1. Cribb A. Health and the good society. Oxford: Oxford University Press; 2005.
  • 2. Duncan P. Critical perspectives on health. New York: Palgrave Macmillan; 2007.
  • 3. Dworkin R. Life's dominion: an argument about abortion and euthanasia. London: Harper Collins; 1995.
  • 4. Hoyle E. Professionalization and deprofessionalization in education. In: Hoyle E, Megarry J, editors. World yearbook of education. London: Kogan Page; 1980.
  • 5. Cribb A, Bignold S. Towards the reflexive medical school: the hidden curriculum and medical education research. Stud Higher Educ. 1999;24(2):195-209.
  • 6. Armstrong D. Political anatomy of the body. Cambridge: Cambridge University Press; 1983.
  • 7. Seedhouse D. Health: foundations for achievement. 2nd ed. Chichester: Wiley; 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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