Satisfação e insatisfação no trabalho de catadoras de materiais recicláveis: estudo convergente-assistencial

RESUMO

Objetivos:

descrever os elementos promotores de satisfação e insatisfação no trabalho de catadoras de materiais recicláveis e realizar uma ação de enfermagem focada nesses elementos.

Método:

pesquisa qualitativa, convergente-assistencial, realizada com catadoras cooperativadas. A produção de dados ocorreu em 2015 por meio de observação participante, entrevistas semiestruturadas e grupo de convergência. A análise contemplou as fases Apreensão, Síntese, Teorização e Transferência.

Resultados:

emergiram quatro categorias que ilustram vivências de satisfação e insatisfação relacionadas à identificação com as tarefas e com o conteúdo do trabalho, ganhos materiais e pessoais obtidos com a catação, o preconceito, a desvalorização e dificuldades nas relações interpessoais. Esta última, devido ao seu destaque, foi objeto de uma ação de enfermagem.

Conclusão:

o estudo contribuiu para o avanço de conhecimentos e possibilidades de associação entre a realização da pesquisa e do cuidado de enfermagem com trabalhadores.

Descritores:
Enfermagem; Saúde do Trabalhador; Catadores; Satisfação no Emprego; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Objectives:

describe elements that promote satisfaction and dissatisfaction in the work of recyclable solid waste segregators and conduct a nursing action focused on these elements.

Method:

qualitative research, convergent-care, conducted with members of the cooperative. Data production occurred during 2015 through participation observation, semi-structured interviews, and a convergence group. Analysis comprised the phases Apprehension, Synthesis, Theorization, and Transference.

Results:

four categories emerged. They showed satisfaction and dissatisfaction related to identification with tasks and work content, material and personal gains obtained from solid waste segregation, prejudice, lack of appreciation, and difficulties in interpersonal relationships. This last item, due to its importance, received a nursing action.

Conclusion:

the study contributed to the advancement of knowledge and the association of possibilities between the research performance and nursing care for workers.

Descriptors:
Nursing; Workers' Health; Solid Waste Segregators; Job Satisfaction; Qualitative Research

RESUMEN

Objetivos:

describir los elementos promotores de satisfacción e insatisfacción en el trabajo de recuperadoras de materiales reciclables y realizar acción de enfermería enfocada en tales elementos.

Métodos:

estudio cualitativo, convergente asistencial, realizado con recuperadoras trabajando en cooperativa. Datos obtenidos en 2015 mediante observación participante, entrevistas semiestructuradas y grupo de convergencia. El análisis contempló las fases Aprendizaje, Síntesis, Teorización y Transferencia.

Resultados:

emergieron cuatro categorías que ilustran experiencias de satisfacción e insatisfacción relativas a la identificación con las tareas y el contenido del trabajo, ganancias materiales y personales obtenidas con la recuperación, el prejuicio, la desvalorización y dificultades con las relaciones interpersonales. Esta última, por su significatividad, fue objeto de una acción de enfermería.

Conclusión:

el estudio contribuyó a mejorar conocimientos y posibilidades de asociación entre la realización de la investigación y la atención de enfermería a trabajadores.

Descriptores:
Enfermería; Salud Laboral; Segregadores de Residuos Sólidos; Satisfacción en el Trabajo; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

A satisfação no trabalho representa um elemento determinante para as vivências de saúde e plenitude do ser humano. Quando o trabalhador é capaz de desempenhar seu labor com prazer, convivendo com sentimentos de reconhecimento e valorização do seu fazer, seu ambiente de trabalho tornar-se-á um lócus de crescimento e realização pessoal. Nesse sentido, à medida que o trabalhador é capaz de reconhecer os elementos que lhe proporcionam satisfação ou insatisfação na atividade laboral, poderá otimizar sua consciência de importância e pertencimento, tornando mais prazerosa, assim, sua experiência com o trabalho⁽¹⁾.

Apesar da relação entre a satisfação no trabalho e a saúde dos indivíduos ser reconhecida cientificamente, ainda existem lacunas a serem preenchidas. Uma delas diz respeito à pouca atenção que tem sido direcionada aos aspectos multidimensionais da satisfação no trabalho; outra compreende o número reduzido de estudos que consideram a saúde laboral como resultado da articulação entre fatores de ordem física e psíquica⁽²⁾.

Faz-se oportuna a compreensão da satisfação e insatisfação laboral nos diferentes contextos, tais como as cooperativas onde os catadores de materiais recicláveis exercem, cotidianamente, seu trabalho. Esses indivíduos são um grupo de difícil acesso, estigmatizado e, muitas vezes, vivem em situação de extrema pobreza⁽³⁾. O caráter informal do seu trabalho confere ao catador uma condição de vulnerabilidade social, uma vez que o mesmo não desfruta, na maior parte das vezes, de benefícios trabalhistas e previdenciários⁽⁴⁾. Além disso, o catador, muitas vezes, não usufrui do reconhecimento social pelo seu trabalho e sofre preconceito e descaso por parte do poder público, sociedade e família, devido ao estigma de trabalhar em constante contato com o que foi descartado, o lixo^(4-5).

A atividade dos catadores de materiais recicláveis é normalmente executada em condições precárias de trabalho e remuneração. No entanto, é considerada por eles como um modo de resistência ao desemprego⁽⁶⁾. Pesquisa aponta que, para alguns catadores, seu trabalho possui um sentido ambíguo, ou seja, ressaltam-se pontos positivos e negativos impostos pelas dificuldades cotidianas, alternando-se vivências de satisfação e vivências de sofrimento⁽⁴⁾. Isso reforça o caráter paradoxal do trabalho, o qual pode ser veículo de saúde e de doença, de prazer e de sofrimento, de satisfação ou não, e aponta para a necessidade de que o mesmo seja analisado em seus diferentes aspectos.

Tendo em vista o enfrentamento de situações críticas relacionadas à saúde ocupacional em cooperativas de reciclagem, são importantes os estudos participativos, uma vez que podem promover visibilidade a esses trabalhadores, bem como ocasionar melhorias em sua qualidade de vida⁽⁷⁾. Isso aponta perspectivas para a enfermagem nos estudos em saúde do trabalhador, considerando que a compreensão da dinâmica existente entre saúde e trabalho é fundamental para que o enfermeiro atue na construção de planos de ação direcionados aos trabalhadores vulneráveis⁽⁸⁾.

Além disso, no Brasil e na América Latina, persistem contextos caracterizados pela injustiça social, onde não há direitos assegurados para todos, e existem desigualdades na distribuição de renda, trabalho, moradia, alimentação, educação. É prioridade que se conduza uma formação em enfermagem direcionada a ações que produzam impacto na assistência à saúde nesses contextos, e que articulem ensino, assistência e pesquisa com foco nos problemas centrais da população vulnerável. Atualmente, o que interessa à formação em enfermagem é o domínio de atributos e competências coerentes com as necessidades assistenciais em todos os setores e lugares da realidade, sejam pertencentes ao âmbito das instituições de saúde ou não⁽⁹⁾. Portanto, a promoção de pesquisas e ações nesses cenários diferenciados representa uma possibilidade de se irradiar o cuidado de enfermagem para além da instituição de saúde, alcançando populações cujas demandas são urgentes e pouco sanadas até o momento.

Nesse sentido, este estudo foi impulsionado pelas seguintes inquietações: "Quais os elementos promotores de satisfação e insatisfação no trabalho de catadoras de materiais recicláveis? Quais ações de enfermagem podem ser realizadas com foco nesses elementos?" Os objetivos deste estudo, portanto, compreenderam: descrever os elementos promotores de satisfação e insatisfação no trabalho de catadoras de materiais recicláveis e realizar uma ação de enfermagem focada nesses elementos.

MÉTODO

Aspectos éticos

Esta pesquisa foi realizada em conformidade com a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.

Tipo de estudo e referencial metodológico

Esse estudo compreende uma pesquisa qualitativa, do tipo convergente-assistencial. A Pesquisa Convergente-Assistencial (PCA) propõe uma abordagem focada no cuidado de enfermagem prestado a pessoas nos mais diferentes cenários. A PCA une o saber e o fazer, convergindo atividades de assistência e cuidado e produção de pesquisa. O método se desenvolve no percurso de cinco fases: Concepção (idealização e elaboração da proposta), Instrumentação (escolha das ferramentas metodológicas), Perscrutação (produção de dados), Análise e Interpretação⁽¹⁰⁾.

Local de pesquisa e participantes

A pesquisa foi realizada em uma cooperativa de catação de materiais recicláveis localizada em um município da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Essa cooperativa existe desde o ano de 1993 e é responsável pela coleta seletiva no município, em residências e estabelecimentos cadastrados para tal. Possui dois caminhões para coleta de materiais recicláveis e um galpão para recebimento, separação e tratamento do material. As participantes foram todas as mulheres trabalhadoras desse cenário, num total de 11. Não foram estabelecidos critérios de inclusão ou exclusão.

Produção de dados

A produção de dados incluiu a articulação de três instrumentos: observação não sistemática participante, entrevistas semiestruturadas e grupo de convergência.

A observação não sistemática participante⁽¹¹⁾ ocorreu ao longo de oito dias, totalizando 36 horas em campo, no mês de abril de 2015. Foram observados aspectos concernentes à relação das trabalhadoras com a organização do trabalho, divisão das tarefas, dinâmica de trabalho, relacionamento interpessoal. A pesquisadora integrou-se às participantes, dividindo algumas tarefas, participando das refeições e buscando diálogo. As informações obtidas a cada dia eram registradas em um diário de campo, o qual integrou o corpus da análise. Os trechos extraídos e apresentados nos resultados foram identificados pela sigla NO (notas de observação), seguida pelo dia em que ocorreu a observação. Em relação às entrevistas semiestruturadas, foram realizadas durante o mês de junho de 2015 e contemplaram questões referentes aos dados sociolaborais e a elementos relacionados ao objetivo do estudo, sendo que as mesmas tiveram duração média de 20 minutos.

Quanto ao grupo de convergência, o mesmo pode ser definido como uma técnica que permite o movimento da pesquisa em simultaneidade com a prática assistencial, com foco na educação em saúde⁽¹²⁾. Foi realizado um encontro para o objetivo proposto, o qual contou com momentos de problematização e discussão entre as participantes, bem como ações de enfermagem operacionalizadas por meio de dinâmicas de grupo. A reunião foi realizada na sede da cooperativa, no mês de junho de 2015, e teve duração de 50 minutos.

As entrevistas semiestruturadas e o grupo de convergência foram audiogravados com o consentimento de todas as participantes e posteriormente transcritos, na íntegra, no editor de textos Microsoft Word 2010, juntamente com o diário de campo.

Análise dos dados

A análise e interpretação dos dados seguiu os passos propostos pela PCA, que consistem em: Apreensão, Síntese, Teorização e Transferência⁽¹⁰⁾. Do processo de análise emergiram quatro categorias: O trabalho que dignifica: vivências de satisfação; Relação das catadoras de materiais recicláveis com o conteúdo do trabalho; Vivências de insatisfação no trabalho: o preconceito e os problemas interpessoais; e Resgatando as qualidades individuais, construindo o trabalho coletivo: ação de enfermagem por meio do método convergente-assistencial.

As catadoras foram identificadas nas transcrições pela letra "T" (inicial da palavra "trabalhadora"), seguida pelo numeral referente à ordem da entrevista. Ao lado da identificação de cada depoimento, foi feita a referência ao instrumento do qual o mesmo é oriundo: se entrevista, letra "E"; ou se grupo de convergência, sigla "GC".

RESULTADOS

No que diz respeito à idade, verificou-se que a mais jovem das trabalhadoras possuía 22 anos de idade e a mais velha, 55 anos. Seis das 11 trabalhadoras se declararam da cor branca, três se declararam morenas e duas se declararam negras. Das 11 trabalhadoras, oito possuem filhos em número que variou de um a oito filhos por mulher. Seis catadoras possuem companheiro. Em relação à escolaridade, quatro referiram possuir Ensino Fundamental incompleto; quatro, Ensino Médio incompleto; uma, Ensino Fundamental completo; uma, Ensino Médio completo; e uma, Ensino Superior incompleto. No que tange ao tempo de atuação na cooperativa e na reciclagem em geral, o tempo mínimo foi de oito meses e o máximo de 20 anos.

Seguem os dados referentes às categorias emergentes da análise.

O trabalho que dignifica: vivências de satisfação

Os dados revelaram elementos relacionados às vivências de satisfação e insatisfação no trabalho da mulher catadora de materiais recicláveis. Nessa categoria, são evidenciados dados que apontam para a identificação das trabalhadoras com o trabalho exercido por elas:

Eu gosto de trabalhar aqui. A gente se diverte, a gente conversa, o tempo passa rápido. (T4, E)

[...] Eu venho pra cá, eu me sinto bem, eu trabalho, eu ganho o meu dinheiro, eu gosto das gurias[...]. (T7, E)

Evidenciou-se, ainda, que a satisfação com o trabalho supera o pouco retorno financeiro.

[...] O que eu tiro não me dá uma qualidade de vida excelente, mas eu sou realizada no que eu faço. Eu sou feliz, porque, apesar de eu ganhar pouco, eu estou fazendo uma coisa que eu gosto[...]. (T11, E)

Outro dado que se destacou na fala das participantes diz respeito às transformações sentidas em suas vidas após o ingresso na cooperativa:

[...] Se eu sou alguém hoje, se as pessoas me conhecem e respeitam esse trabalho, é porque eu aprendi a fazer isso. [...] A [cooperativa] me deu muitas oportunidades. Me transformou em gente. Sabe o que é tu ser gente? Eu sei que eu faço parte de alguma coisa. Eu faço parte de uma associação, de um município, de um grupo de trabalhadores que recém está buscando a conquista do reconhecimento. Isso é bom! (T11, E)

Outro elemento promotor de satisfação em relação ao trabalho com materiais recicláveis diz respeito aos frutos conquistados pelas mulheres por intermédio do trabalho. As mesmas referem ganhos que potencializam os sentimentos de prazer e satisfação com o trabalho, os quais correspondem desde ao suprimento de necessidades básicas e aquisições materiais para a família até objetos para uso pessoal, que se relacionam à vaidade, conforme mostram os relatos:

[...] Consegui pagar as minhas contas, comer melhor. Me alimento melhor [...]. (T6, E)

[...] Eu consegui fazer a minha casa de material, eu ajudei ele [companheiro], conseguimos comprar as coisas para dentro de casa. Melhorou 100%. (T3, E)

[...] Hoje, enquanto recebíamos uma carga do caminhão, uma trabalhadora e eu encontramos uma sacola com perfumes, xampoos, sabonetes, óleos e cremes corporais com pouco uso, em ótimo estado e de boa qualidade. A trabalhadora ficou muito feliz com a descoberta e rapidamente carregou-a para junto de sua bolsa[...]. (NO, 27/04/2015)

Esses dados apontam para o fato de que as catadoras de materiais recicláveis vivenciam o prazer no seu trabalho por meio do conteúdo simbólico representado pelo mesmo e em decorrência dos elementos positivos atribuídos por elas ao emprego na catação. A identificação de elementos positivos em determinadas tarefas também foi relatada, conforme evidenciado na categoria a seguir.

Relação das catadoras de materiais recicláveis com o conteúdo do trabalho.

Na cooperativa, observou-se que as afinidades por determinado setor da catação influenciam na divisão do trabalho. As catadoras relataram afinidades com algumas atribuições, em detrimento de outras. Ao mesmo tempo em que as catadoras possuem intimidade com algumas tarefas, tem dificuldade de adaptar-se a outras, o que pode ser ocasionado por questões individuais.

O que me atrai [no desmanche da sucata] é eu descobrir que eu consigo desmontar todas aquelas coisas, e se eu tiver que montar, eu sei montar de novo. Não é igual ao computador, que eu vou ali, eu mexo, e se amanhã tiver que fazer de novo, eu não lembro as coisas. [...] (T11, E)

O que eu menos gosto é de ficar no sigilo [nome dado pelas catadoras ao processo de separar e picar o papel]. É um serviço muito parado, não rende, a gente separa papel e não rende, é muito serviço. (T9, E)

Elemento observado nos depoimentos das participantes diz respeito à interferência das relações interpessoais na divisão das tarefas e no modo como cada trabalhadora se relaciona com o conteúdo do trabalho. Observou-se que o bom relacionamento com o outro está ligado à afinidade por tarefas em grupo; por outro lado, trabalhadoras que relatam problemas interpessoais tendem a preferir o trabalho individual, conforme evidenciam os trechos:

A gente se diverte, a gente fica conversando e o tempo passa. É bom. Isso eu gosto, de ficar ali na mesa. É divertido. (T4, E)

Ali [no picador] eu não me estresso com ninguém. Ali é tranquilo, só eu e a máquina, não tem como eu me estressar com ninguém. (T1, E)

[...] Onde tem muita gente, a tua cabeça... E ali [separação do papel] eu só saio meio-dia, é só eu ali. Às vezes me chamam e eu nem vejo [...] Eu penso, reflito, e fico sozinha. (T2, E)

Os dados desta categoria evidenciam que questões pessoais estão intimamente associadas com a identificação das trabalhadoras com o conteúdo do seu trabalho. A subjetividade interfere nessas relações interpessoais, discutidas na categoria a seguir.

Vivências de insatisfação no trabalho: o preconceito e os problemas interpessoais

No que tange às vivências de insatisfação no trabalho, destaca-se a percepção de preconceito, discriminação e incompreensão por parte da família e da sociedade acerca do trabalho das catadoras. Os desafios encontrados pelas mesmas no caminho do reconhecimento começam na família, na relação com os filhos, conforme mostra o fragmento de fala:

[...] Meus filhos tinham vergonha e eu ensinei eles a não terem vergonha. [...] Ele [o filho] me disse assim: "Mãe, como eu digo lá no colégio? Que a senhora é lixeira? Eu não queria dizer isso". E eu respondi: "Não tenham vergonha, porque a comida que vocês estão comendo é da lixeira. Se vocês acham que é lixo, eu não acho que é lixo, é material". Então eu ensinei a minha família [...]. (T5, E)

Ainda, as trabalhadoras relataram situações referentes às experiências de discriminação e falta de compreensão da sociedade acerca do seu trabalho:

[...] Tem gente que faz a gente entrar dentro das casas delas para tomar água, mas tem outras que nem no portão deixam a gente passar. Eu acho que tem medo, sei lá eu o que pensam da gente, desse trabalho. (T8, E)

Ainda em relação às vivências de insatisfação, destacaram-se os problemas de relacionamento interpessoal. Em relação a isso, percebe-se que os atritos entre a equipe, muitas vezes, estão articulados a outras questões, geralmente à sobrecarga de trabalho.

[...] Em dado momento, reparei que as mulheres pararam de brincar e fazer piadas, começaram a ficar irritadas e a brigarem entre si. Observei, nesse aspecto, a influência da sobrecarga de trabalho no comportamento destas e no relacionamento interpessoal. A sobrecarga e a preocupação com as tarefas fazem com que as trabalhadoras as manifestem sob forma de irritabilidade, a qual é exteriorizada, muitas vezes, na colega. (NO, 28/04/2015)

Os problemas de relacionamento interpessoal as afetam de tal maneira que as trabalhadoras sentem, algumas vezes, arrefecer seu prazer pelo trabalho:

Às vezes, a gente chega aqui numa boa para trabalhar e já encontra "as caras". Não são todas. É uma minoria. A minoria de uma pessoa. (T1, E)

Facilitaria todo mundo trabalhar bem. [...] O que adianta vir com umas caras? A gente chega tão bem para trabalhar e quando vê estão todos mudos. A gente também muda, então a gente trabalha meio braba. (T7, E)

[...] União! Facilitaria se as pessoas fossem mais transparentes. Facilitaria bastante. (T10, E)

O conjunto desses dados mostra que os problemas de relacionamento interpessoal representam um dos pontos críticos para a potencialização das vivências de prazer e satisfação no trabalho. Ainda, levando-se em consideração a importância do trabalho coletivo para o enfrentamento das dificuldades encontradas pelos trabalhadores, elegeu-se esta demanda para o desenvolvimento de uma ação de enfermagem, utilizando-se da ferramenta do grupo de convergências.

Resgatando as qualidades individuais, construindo o trabalho coletivo: ação de enfermagem por meio do método convergente-assistencial

Considerando a subjetividade do tema desta ação e levando em consideração a singularidade de cada uma das participantes desse estudo (como a dificuldade em falar em grupo e a tendência em manifestar seus sentimentos e opiniões de maneira tímida e discreta), optou-se por realizar esta atividade por meio de uma dinâmica de grupo.

Assim sendo, as trabalhadoras sentaram-se em círculo e foi entregue a cada uma um papel e um lápis. Foram orientadas e escrever seu nome na parte superior do papel e, após, passar o papel para a colega da direita e receber o papel da colega da esquerda. Então, foi solicitado que as mesmas lessem o nome que constava na folha de papel e escrevessem duas qualidades que admiravam naquela pessoa. Após esse movimento, as folhas giraram novamente para a direita, de maneira que, a cada giro, as mulheres liam o nome de outra colega e apontavam duas qualidades.

Esse movimento repetiu-se até que cada folha de papel retornasse à trabalhadora de origem. Então, houve um minuto de pausa e silêncio para que as trabalhadoras lessem e refletissem sobre a lista de qualidades que as colegas haviam lhes atribuído. Findada a pausa, se questionou se haviam entendido a finalidade dessa atividade. Uma das catadoras colocou:

Para cada uma saber o que as outras pensam. Porque aqui tem a opinião de cada uma. (T11, GC)

A pesquisadora, então, completou a interpretação da participante, justificando a importância da valorização do trabalho coletivo:

[...] Se vocês não se apoiarem e não se unirem, o trabalho vai ficar muito mais difícil e vocês podem ficar doentes. Eu queria que vocês percebessem que, apesar dos desentendimentos, todas vocês têm qualidades e muitas coisas boas que trazem para o trabalho. Eu queria provocar vocês a pensarem qualidades das outras para se darem conta de que cada uma é especial no trabalho de uma maneira diferente. [...] Eu quero que cada uma guarde o seu papel e pense nos elogios que receberam de todas as colegas.

[Pesquisadora]

As trabalhadoras demonstraram compreender o sentido da dinâmica, e uma delas pediu para ler, em voz alta, os elogios que havia recebido. Algumas expuseram verbalmente para o grupo seus sentimentos naquele momento.

[...] Escrevi porque, para mim, ela foi mais que uma amiga. Porque eu tive um problema de família, e eu conversei com ela e ela me ajudou. Foi uma coisa que eu achei que eu não ia conseguir vencer. E eu pedi ajuda pra ela e ela me ajudou. (T2, GC)

Ao final, houve um abraço coletivo. Evidenciou-se o sucesso da dinâmica de grupo junto às catadoras, na medida em que foi possível realizar uma ação de enfermagem simbólica, sensível e convergente com a temática, ocasião e singularidade das pessoas envolvidas.

Após o término da ação de enfermagem, foram realizadas visitas à cooperativa no sentido de avaliar os impactos sentidos pelas catadoras. Evidenciou-se que, após essa ação, as mesmas resgataram suas reuniões de equipe semanais, valorizando-as enquanto espaço de discussão e resolução de conflitos. Ainda, as mesmas referiram melhorias nas relações interpessoais e atribuíram isso à dinâmica das qualidades.

DISCUSSÃO

Os resultados apresentados nesse artigo mostram os elementos de satisfação no trabalho das mulheres catadoras de materiais recicláveis. Observaram-se referências predominantes no sentido do pertencimento, da adaptação e da melhoria nas condições de vida alcançadas por meio do ingresso na cooperativa. Nesse sentido, aponta-se que o trabalho opera como um mediador da construção da identidade e da realização de si mesmo. Assim, o mesmo é um gerador de saúde na medida em que confere ao trabalhador os sentimentos de plenitude e realização⁽¹³⁾.

Compreendeu-se que as catadoras encontraram no trabalho uma relação de acordo entre suas necessidades materiais e subjetivas e os benefícios que o trabalho oferece. É possível supor que o suprimento das necessidades básicas de vida, concretização de planos familiares e individuais eram demandas a serem sanadas no momento do ingresso na cooperativa e que, sendo atendidas por intermédio dos ganhos com o trabalho, desencadearam o processo de gratidão e satisfação com o trabalho.

Esses resultados divergem de outros estudos qualitativos realizados com catadores de materiais recicláveis, os quais evidenciaram que, para os participantes, as vivências de insatisfação ganhavam destaque em relação às de satisfação^(4,6). Apesar de reconhecerem o pouco ganho financeiro, as mulheres estão satisfeitas, e isso pode ser resultado da concretização dos próprios sonhos e aspirações. Assim, a economia solidária desponta como uma possibilidade de distribuição de renda alterativa ao capitalismo, voltada àqueles que estão excluídos do mercado de trabalho⁽⁶⁾.

Considera-se que os trabalhadores, em sua experiência cotidiana com o trabalho, desenvolvem desejos e aspirações relacionadas à satisfação de necessidades individuais; assim, a satisfação no trabalho está relacionada ao grau com que esses desejos e aspirações são atendidos⁽¹⁴⁾. Assim, pode-se inferir que o trabalho na cooperativa possibilitou o alcance de metas e objetivos pessoais e familiares, seja pela renda, seja pelos pontos positivos avaliados subjetivamente; esses elementos contribuem para o sentimento de satisfação em relação ao trabalho.

Em relação à identificação das catadoras com as tarefas realizadas, destaca-se a existência de uma organização do trabalho que possibilita a divisão dessas conforme as afinidades individuais. Nesse sentido, quando a organização do trabalho proporciona liberdade para a negociação das rotinas e desenvolvimento da singularidade da pessoa e do coletivo, torna-se possível que os indivíduos sejam ativos, criativos e autônomos, o que pode proporcionar vivências de prazer. Porém, quando a organização do trabalho contrapõe-se aos desejos e aspirações dos indivíduos e quando desconsidera a subjetividade de cada um, os indivíduos tornam-se expostos às vivências de sofrimento⁽¹⁵⁾.

Porém, é importante destacar que, conforme os achados do estudo, a afinidade por determinadas tarefas encontra-se, muitas vezes, relacionada ao grau de adaptação de cada trabalhadora em relação à equipe e aos problemas interpessoais, resultando em movimentos de integração para umas; e de afastamento, para outras. Assim, fica evidente que o agente de prazer não é, em algumas situações, a tarefa em si, mas o conjunto de elementos que estão presentes no contexto de trabalho das mulheres em decorrência do cumprimento de determinada tarefa. O movimento de integração e de afastamento entre elas é um desses elementos.

Para que o trabalho seja uma experiência impulsionadora de satisfação e edificação pessoal, é fundamental o movimento de transformação do sofrimento em prazer. Nesse caso, o prazer apenas pode ser resultado dos ganhos obtidos pelo trabalho no que tange à construção da identidade e da realização de si mesmo⁽¹³⁾.

Portanto, a atividade em si não permite a transformação do sofrimento em prazer, tampouco produz identidade. Ela proporciona a oportunidade do encontro entre o ser trabalhador e o real do trabalho, representado pelo olhar do outro, pelas relações humanas⁽¹³⁾. Essas considerações levam à reflexão de que as dificuldades no manejo dos relacionamentos interpessoais talvez estejam ocasionando não apenas o isolamento de algumas trabalhadoras em tarefas predominantemente solitárias, mas atuando como causa de um possível esvaziamento do sentido do trabalho e supressão das vivências de prazer, das experiências transformadoras.

Nessa linha de pensamento, observou-se que as dificuldades de manejo dos relacionamentos interpessoais, bem como percepções de desvalorização e preconceito, emergiram como as principais vivências de insatisfação. Em relação a esse último, pesquisas evidenciam que o catador de materiais recicláveis se percebe, muitas vezes, rotulado em decorrência do seu contato com o resíduo descartado, além de considerar que a sociedade não reconhece a importância de seu trabalho, concebendo-o como um meio precário e não digno de obtenção de renda. Ainda, se percebem discriminados e temidos ao ter sua imagem associada ao roubo e ao alcoolismo^(16-17).

Já no que tange ao destaque que as catadoras deram para os problemas interpessoais, pesquisa realizada com trabalhadores de uma empresa de reciclagem evidenciou que para 57% dos trabalhadores, uma das principais fontes de estresse no ambiente de trabalho é o relacionamento interpessoal⁽¹⁸⁾. Esses problemas foram descritos em outros estudos recentes desenvolvidos com catadores de materiais recicláveis, em âmbito nacional e internacional^(6,19-20). Isso mostra que os conflitos interpessoais são relatados também em outros cenários de catação de materiais recicláveis, podendo representar uma ocorrência comum a esses trabalhadores.

Pode-se supor que as desavenças no ambiente de trabalho sejam reflexo das atividades exaustivas e da fragilidade na agregação das trabalhadoras. As formas contemporâneas de organização do trabalho, regidas pelo regime capitalista, valorizam a competição e desestimulam a cooperação, culminando na desagregação do trabalho coletivo⁽²¹⁾. Isso fragiliza o trabalhador, uma vez que o mesmo não pode contar com uma rede de colaboração no ambiente de trabalho. Esse fato consiste, portanto, em um elemento relevante na constituição da satisfação no trabalho, tendo em vista que o individualismo e o isolamento podem impedir que as trabalhadoras construam relações solidárias entre si.

Alinhada a isso, a ação de enfermagem realizada teve o objetivo de resgatar junto às trabalhadoras o sentimento do trabalho coletivo e a motivação para a resolução dos problemas interpessoais. A relevância dessa atividade esteve no fato de que a articulação entre as catadoras é um quesito fundamental para a construção da satisfação no trabalho.

Nesse sentido, a PCA prima por situações presentes na prática assistencial definidas como problemas de pesquisa e de prática para a construção de inovações nos processos assistenciais⁽¹⁰⁾. Ou seja, a PCA é um método para investigação e assistência de enfermagem que valoriza movimentos de transformação da realidade e promoção de saúde, alinhados aos princípios da autonomia e do protagonismo dos indivíduos.

Atualmente, fazem parte das prioridades para a pesquisa em enfermagem estudos aderentes aos determinantes sociais do processo saúde-doença e que discutam temas emergentes como vulnerabilidades e riscos sociais, cujo entendimento é fundamental para a melhoria da saúde e da vida das pessoas⁽²²⁾. A atividade realizada junto às catadoras, por intermédio da dinâmica de grupo, respondeu a um dos princípios do fazer do enfermeiro, que se fundamenta na promoção da reflexão, no despertar do senso crítico, no rompimento da alienação e primazia por atividades educativas que edifiquem a subjetividade, a saúde mental e o bem-estar psíquico e social das pessoas.

Além disso, a atividade promovida junto às catadoras respondeu à demanda existente no campo da saúde do trabalhador que corresponde à concepção de que saúde é à ausência de acidentes e doenças ocupacionais. Assim, compreendendo que a saúde diz respeito, dentre outros elementos, a vivências de prazer e satisfação no trabalho, sublinham-se os potenciais impactos desta atividade para a saúde psíquica das catadoras. Ainda, esse estudo mostra o espaço disponível para que a enfermagem desenvolva ações de cuidado junto a esses indivíduos, atuando coerentemente com as necessidades de populações pouco assistidas pelos serviços de saúde.

O enfermeiro, em qualquer área de atuação prática, necessita refletir constantemente acerca do significado do seu trabalho e de suas funções, bem como acerca dos impactos na realidade ao qual está imbricado. As pessoas necessitam de profissionais comprometidos com a defesa de seus direitos em um sistema de saúde precário e, muitas vezes, injusto, devido a deficiências complexas, não apenas em nível local, mas mundial. Não se pode deixar de lado os interesses da enfermagem e seus sentidos enquanto profissão; portanto, é fundamental que prática e pesquisa sejam pensadas conjuntamente e estejam comprometidas com a realidade de vida e saúde das pessoas⁽⁹⁾. Nesse sentido, considera-se que esse estudo, por aliar a pesquisa e uma prática de enfermagem em um contexto singular como o dos catadores de materiais recicláveis, aponta para novas possibilidades de investigação e ação. Essas possibilidades mostram que avanços na pesquisa em enfermagem são possíveis e existem ferramentas promissoras frente ao desafio de aliar investigação e assistência, como a PCA.

Limitações do estudo

Destacam-se como limitações desse estudo as dificuldades encontradas para a operacionalização da pesquisa, como o acesso à cooperativa, insalubridade do local durante as observações e restrição na disponibilidade de tempo das participantes. No entanto, essas limitações não comprometeram a qualidade dos dados obtidos. Por fim, ressalta-se que a PCA responde ao objetivo de aliar a investigação científica e a prática assistencial de enfermagem, tecendo uma relação de convergência entre os papéis do pesquisador e do agente de cuidado, ambos representados pelo enfermeiro⁽¹⁰⁾.

Contribuições para a área da Enfermagem

Os achados desse estudo contribuem duplamente com o preenchimento de lacunas de conhecimento e cuidado existentes na práxis da enfermagem relacionadas aos grupos vulneráveis, apontando para uma nova perspectiva no campo da pesquisa qualitativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa junto a catadoras de materiais recicláveis contribuiu para a elucidação de elementos promotores de satisfação e insatisfação no trabalho. Os achados apontaram para a estreita relação entre trabalho e subjetividade, pois mostraram que a satisfação no trabalho está, muitas vezes, relacionada a questões da ordem das experiências humanas, como o valor simbólico do labor e as relações entre as pessoas.

Assim, o trabalho representa uma experiência humana dinâmica e paradoxal, agente de sentimentos de satisfação e saúde e de insatisfação e sofrimento. Nesse ínterim, chama-se a atenção para a necessidade de que a enfermagem se volte para os grupos como os catadores de materiais recicláveis, cuja presença não está posta na maior parte da produção científica nesse campo. Destaca-se, ainda, a PCA enquanto um método promissor na associação e concomitância entre a realização da pesquisa e do cuidado de enfermagem com trabalhadores. A PCA permite que o enfermeiro atue como investigador e provedor de cuidado, articulando a prática investigativa com ações assistenciais. Essa possibilidade abre mais caminhos para uma pesquisa em enfermagem engajada com a melhoria da vida e da saúde das pessoas.

Deve-se considerar, ainda, que o estudo aponta para um importante elemento na construção da subjetividade humana: o trabalho. Tendo em vista a relevância desse domínio na saúde psíquica das pessoas, é fundamental que o enfermeiro seja articulador de ações de cuidado voltadas para os trabalhadores, valorizando a escuta de suas necessidades e a compreensão de seus sentimentos na experiência cotidiana do trabalho. Essas ações são viáveis a partir de projetos de extensão, de pesquisa participativa e ações de educação em saúde, promovidos por centros universitários de pesquisa e serviços de saúde.

Considera-se que esta pesquisa contribui com novos conhecimentos acerca da saúde do trabalhador e de suas experiências com o trabalho, e abre perspectivas para replicações por enfermeiros em outros cenários, com uso de novas metodologias, no sentido da valorização da subjetividade.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  Mar-Apr 2017

Histórico

• Recebido
  20 Jun 2016
• Aceito
  13 Nov 2016