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Adesão à vacinação contra a Covid-19 durante a pandemia: influência de fake news

RESUMO

Objetivoss:

apreender como as fake news influenciaram na adesão à imunização contra a Covid-19, na perspectiva dos profissionais de saúde.

Métodos:

estudo qualitativo, descritivo-exploratório, realizado em Campo Grande – MS. Participaram 20 profissionais de enfermagem atuantes em sala de vacina ou gestão de imunobiológicos, por meio de entrevista semiestruturada. As entrevistas foram audiogravadas, transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo, na modalidade temática.

Resultados:

emergiram duas categorias nas quais os profissionais destacaram o aumento da hesitação vacinal por parte da população, a influência das fake news e de ações negacionistas que interferiram negativamente na confiança da população nas vacinas e nos profissionais que as aplicam.

Considerações Finais:

questionamentos em relação à segurança vacinal e ações negacionistas realizadas por autoridades e veículos midiáticos podem gerar o fenômeno da não vacinação. A valorização da ciência, a promoção de ações de educação e a conscientização populacional quanto à imunização foram apresentadas como estratégias para aumento da cobertura vacinal.

Descritores:
Imunização; Saúde da Família; Fake News ; Covid-19; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to understand how fake news has influenced adherence to Covid-19 immunization, from the perspective of health professionals.

Methods:

a qualitative, descriptive-exploratory study was conducted in Campo Grande - MS. Twenty nursing professionals working in vaccine rooms or managing immunobiologicals participated through semi-structured interviews. The interviews were audio-recorded, fully transcribed, and subjected to thematic content analysis.

Results:

two categories emerged in which the professionals highlighted an increase in vaccine hesitancy among the population, influenced by fake news and denialist actions, which negatively interfered with the population’s trust in vaccines and in the professionals administering them.

Final Considerations:

concerns about vaccine safety and denialist actions by authorities and media outlets can contribute to the phenomenon of non-vaccination. The valorization of science, the promotion of educational actions, and raising public awareness about immunization were presented as strategies to increase vaccine coverage

Descriptors:
Immunization; Family Health; Fake News; Covid-19; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

comprender cómo las fake news influyeron en la adhesión a la inmunización contra la Covid-19, desde la perspectiva de los profesionales de la salud.

Métodos:

estudio cualitativo, descriptivo-exploratorio, realizado en Campo Grande – MS. Participaron 20 profesionales de enfermería que trabajan en la sala de vacunas o en la gestión de inmunobiológicos, a través de entrevistas semiestructuradas. Las entrevistas fueron grabadas, transcritas en su totalidad y sometidas a análisis de contenido, en la modalidad temática.

Resultados:

surgieron dos categorías en las que los profesionales destacaron el aumento de la vacilación vacunal por parte de la población, la influencia de las fake news y de acciones negacionistas que interfirieron negativamente en la confianza de la población en las vacunas y en los profesionales que las aplican.

Consideraciones Finales:

preguntas sobre la seguridad de la vacunación y acciones negacionistas realizadas por autoridades y medios de comunicación pueden generar el fenómeno de la no vacunación. La valorización de la ciencia, la promoción de acciones educativas y la concienciación de la población sobre la inmunización fueron presentadas como estrategias para aumentar la cobertura vacunal.

Descriptores:
Inmunización; Salud de la Familia; Fake News ; Covid-19; Enfermería

INTRODUÇÃO

Em seu contexto histórico, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil tornou-se referência mundial em cobertura vacinal, com destaque para o acesso universal, gratuito e igualitário(11 Gugel S, Girardi LM, Vaneski LM, Souza R P, Pinotti ROE, Lachowicz G, et al. Perceptions about the importance of vaccination and vacinal refusal: a bibliographic review. Braz J Develop. 2021;7(3):22710-22. https://doi.org/10.34117/bjdv7n3-135
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). Apesar do sucesso do trabalho realizado pelo PNI na erradicação da varíola, no controle da poliomielite, sarampo, caxumba, rubéola e na redução das notificações de doenças imunopreveníveis, a imunização tem sofrido questionamentos sobre sua efetividade e segurança, gerando debates a respeito de direitos individuais(22 Brown AL, Sperandio M, Turssi CP, Leite RMA, Berton VF, Succi RM, et al. Vaccine confidence and hesitancy in Brazil. Cad Saúde Pública. 2018;34(9):e00011618. https://doi.org/10.1590/0102-311X00011618
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,33 Silveira MF, Buffarini R, Bertoldi AD, Santos IS, Barros AJD, Matijasevich A, et al. The emergence of vaccine hesitancy among upper-class brazilians: results from four birth cohorts, 1982-2015. Vaccine. 2020;38(3):482-88. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2019.10.070
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).

São evidentes os benefícios gerados por ações de imunização, como a redução da mortalidade infantil, a melhoria das condições de saúde e bem-estar da população e a redução de custos com doenças imunopreveníveis para o sistema de saúde(33 Silveira MF, Buffarini R, Bertoldi AD, Santos IS, Barros AJD, Matijasevich A, et al. The emergence of vaccine hesitancy among upper-class brazilians: results from four birth cohorts, 1982-2015. Vaccine. 2020;38(3):482-88. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2019.10.070
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,44 Mizuta AH, Succi GM, Montalli VAM, Succi RCM. Percepções acerca da importância das vacinas e da recusa vacinal numa escola de medicina. Rev Paul Pediatr. 2019;37(1):34-40. https://doi.org/10.1590/1984-0462/;2019;37;1;00008
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). Paradoxalmente, os benefícios ocasionados pelas vacinas ao longo dos anos também enfrentam desafios, pois o controle das doenças, devido às altas coberturas vacinais, influencia a percepção dos riscos e benefícios de se vacinar(33 Silveira MF, Buffarini R, Bertoldi AD, Santos IS, Barros AJD, Matijasevich A, et al. The emergence of vaccine hesitancy among upper-class brazilians: results from four birth cohorts, 1982-2015. Vaccine. 2020;38(3):482-88. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2019.10.070
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).

Apesar das evidências sobre os benefícios gerais da imunização, a cobertura vacinal no Brasil e em diversos países tem sido ameaçada por um fenômeno denominado hesitação vacinal - conjunto de atitudes que vão desde a relutância até a recusa da vacina, apesar da disponibilidade dos serviços de vacinação(55 Massarani IL, Waltz I, Leal T, Modesto M. Narrativas sobre vacinação em tempos de fake news: uma análise de conteúdo em redes sociais. Saude Soc. 2021;30(2):e200317. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200317
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). Esse fenômeno tem gerado preocupações relacionadas ao ressurgimento de doenças imunopreveníveis, como, por exemplo, o surto de sarampo que ocorreu entre 2013 e 2015 no Nordeste do Brasil(11 Gugel S, Girardi LM, Vaneski LM, Souza R P, Pinotti ROE, Lachowicz G, et al. Perceptions about the importance of vaccination and vacinal refusal: a bibliographic review. Braz J Develop. 2021;7(3):22710-22. https://doi.org/10.34117/bjdv7n3-135
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).

Um estudo ecológico de abrangência nacional, que avaliou dados de imunização entre 2013 e 2020, apontou que a cobertura vacinal no Brasil em 2020 foi a mais baixa dos últimos anos, com queda significativa em relação a 2019. Essa tendência foi observada em relação a nove das dez vacinas indicadas no calendário do PNI para crianças com até 12 meses de idade, sendo que todas apresentaram índices abaixo das metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde(66 Procianoy GS, Rossini Junior F, Lied AF. Impact of the COVID-19 pandemic on the vaccination of children 12 months of age and under: an ecological study. Cien Saude Colet. 2022;27(3):969–78. https://doi.org/10.1590/1413-81232022273.20082021
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).

Especificamente durante o período da pandemia, um estudo que utilizou dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SIPNI) sobre o número mensal de doses de vacinas aplicadas em crianças pequenas nos meses de março e abril em todo o território nacional, e dados de entrevistas com pais realizadas no mês de agosto de 2020 em 133 grandes cidades dos 27 estados do país, constatou que o atraso e/ou perda vacinal durante o período em que o distanciamento social foi implementado em sua forma mais intensa, foi de aproximadamente 20%(77 Silveira MF, Tonial CT, Goretti K. Maranhão A. Missed childhood immunizations during the COVID-19 pandemic in Brazil: analyses of routine statistics and of a national household survey. Vaccine. 2021;39(25):3404–09. https://doi.org/10.1016/j.vacina.2021.04.046
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). Ainda nesta direção, uma análise retrospectiva apontou a redução significativa na administração das vacinas para crianças de 0 a 2 anos por regiões brasileiras, sendo as maiores diminuições registradas nas regiões Norte (-25,3%), Nordeste (-16,8%) e Centro-Oeste (-10,2%). Já para as crianças com idade entre >2 a 6 anos, a maior queda foi observada nas regiões Norte (-27,2%) e Sul (-14,0%)(88 Santos VS, Vieira SCF, Barreto IDC. Effects of the COVID-19 pandemic on routine pediatric vaccination in Brazil. Expert Rev Vaccines. 2021;20(12):1661–6. https://doi.org/10.1080/14760584.2021.1990045
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).

Contudo, é importante reforçar que a queda na cobertura vacinal de crianças é um fenômeno que já vinha sendo observado e não pode, portanto, ser atribuído exclusivamente à pandemia, que, embora tenha contribuído para exacerbar as taxas encontradas, não é o único fator relevante. Outros fatores merecem atenção por parte dos profissionais de saúde, educação e gestores, e devem constituir o foco de estudos futuros(66 Procianoy GS, Rossini Junior F, Lied AF. Impact of the COVID-19 pandemic on the vaccination of children 12 months of age and under: an ecological study. Cien Saude Colet. 2022;27(3):969–78. https://doi.org/10.1590/1413-81232022273.20082021
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).

Referente à vacina contra a Covid-19 em particular, mas que também se aplica a outras vacinas, cabe destacar que a desinformação e a circulação de informações emitidas por fontes não confiáveis contribuem para o aumento da hesitação vacinal. Destarte, as mídias digitais tornaram-se um ambiente propício para a produção e circulação de fake news, mensagens falsas ou contendo elementos propositalmente enganosos, em seu conteúdo ou contexto, o que compromete a promoção da saúde pública e a prevenção de doenças(55 Massarani IL, Waltz I, Leal T, Modesto M. Narrativas sobre vacinação em tempos de fake news: uma análise de conteúdo em redes sociais. Saude Soc. 2021;30(2):e200317. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200317
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). Frente a esse contexto, questiona-se: Como as fake news influenciaram o serviço de imunização?

OBJETIVOS

Apreender como as fake news influenciaram na adesão à imunização contra a Covid-19, na perspectiva dos profissionais de saúde.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O presente trabalho seguiu as normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 466/2012, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Todos os participantes manifestaram anuência em participar do estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias de igual teor.

Tipo de estudo

Estudo descritivo-exploratório de natureza qualitativa. As diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) foram utilizadas na elaboração do relatório da pesquisa.

Procedimentos metodológicos:

Os possíveis participantes foram contatados pessoalmente após indicação da gerência administrativa de cada unidade de saúde. Neste momento, foram informados sobre os objetivos do estudo e convidados a participarem do mesmo. Em caso de concordância, procedeu-se ao agendamento de dia e horário para realização da entrevista, de acordo com a preferência/ disponibilidade do participante, de modo a não interferir na rotina do serviço.

Cenário do estudo

Estudo realizado em um Distrito Sanitário de Saúde no município de Campo Grande/MS.

Fonte de dados

Foram entrevistados profissionais de enfermagem envolvidos com imunização nas nove Unidades de Saúde urbanas que integram um dos sete Distritos Sanitários do município. Este Distrito foi escolhido por conveniência. Os critérios de inclusão previamente definidos foram: ser profissional de enfermagem de nível médio e superior, com atuação na sala de vacina e/ou na coordenação/gerenciamento de imunobiológicos. Não foram incluídos profissionais que, no período de coleta de dados, estavam de atestado médico, licença-maternidade, capacitação externa ao ambiente de trabalho ou em férias.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados no período de maio a dezembro de 2022, mediante entrevistas semiestruturadas individuais, realizadas de forma presencial, em sala reservada na própria Unidade de Saúde onde o profissional atuava. As entrevistas foram audiogravadas, tiveram duração média de 30 minutos e foram conduzidas pela pesquisadora principal. Durante as entrevistas, foi utilizado um instrumento constituído de duas partes, a primeira contendo questões de caracterização dos participantes (gênero, idade, cargo, formação, vínculo empregatício, tempo de experiência na formação, tempo de experiência no cargo). A segunda parte continha uma questão norteadora: “Você vivenciou alguma situação que tenha envolvido fake news ou ações do movimento antivacina? Qual a sua opinião sobre isso?”.

No encerramento das entrevistas, a pesquisadora buscou esclarecer pontos obscuros e validar os principais pontos/aspectos abordados pelo participante, de modo que nenhuma entrevista precisou ser repetida. Novos participantes foram incluídos até o momento em que os dados começaram a se tornar repetitivos e que o objetivo da pesquisa havia sido alcançado(99 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual [Internet]. 2017 [cited 2023 Aug 16];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
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).

Análise dos dados:

Para o tratamento, todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo, modalidade temática, seguindo as etapas preestabelecidas que incluíram a pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados(1010 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. 141 p.). Na pré-análise, procedeu-se à organização das entrevistas e leitura flutuante, aplicando-se as regras da exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência, nas quais foram identificadas ideias centrais. Na exploração do material, as ideias centrais foram agrupadas por similaridade, formando os seguintes núcleos de sentido: Negacionismo e movimento antivacina; Obscurantismo em ações governamentais; O impacto da disseminação de notícias falsas; e A influência da mídia na adesão à vacina. Após análise aprofundada e conduzida pelos objetivos, originou-se uma categoria temática. Na etapa de tratamento, com os resultados significativos e fiéis, foi possível então propor inferências e adiantar interpretações a respeito dos resultados encontrados(77 Silveira MF, Tonial CT, Goretti K. Maranhão A. Missed childhood immunizations during the COVID-19 pandemic in Brazil: analyses of routine statistics and of a national household survey. Vaccine. 2021;39(25):3404–09. https://doi.org/10.1016/j.vacina.2021.04.046
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), considerando-se o objetivo previsto e as premissas do PNI.

RESULTADOS

Participaram do estudo 20 profissionais de enfermagem com idades entre 25 e 53 anos, sendo 16 do sexo feminino; 13 enfermeiros, dos quais três atuavam na gestão. Dos sete técnicos de enfermagem, dois possuem ensino superior e dos 13 enfermeiros, quatro eram especialistas em saúde da família/saúde pública; seis em outras áreas da saúde e três tinham mestrado. O tempo de atuação na profissão variou de 18 a 240 meses.

Influência das Fake News na credibilidade vacinal durante a pandemia da covid-19

Os participantes destacaram a ascensão do negacionismo e a intensa disseminação das fake news durante a pandemia da Covid-19, principalmente relacionadas às vacinas fabricadas e utilizadas nesse período. Ademais, apontaram diversas repercussões no atendimento direto ao usuário e em suas relações interpessoais.

De acordo com os participantes, as fake news repercutiram na replicação de informações equivocadas pelos usuários com relação à segurança, eficácia e eventos adversos da vacinação contra a Covid-19.

[...] não só covid como influenza, como várias outras vacinas, de achar que são feitas para matar idoso, que não tem eficácia, que causa mutação genética. [...] E ocorre de a gente ter doenças que já foram erradicadas, e por causa desses movimentos antivacina, de achar que porque é do SUS não presta, sendo que é o mesmo fabricante de clínica particular. (EnfA3)

“só vou tomar porque preciso viajar, não vão me deixar embarcar se não tomar”, “não vou tomar porque falaram que essa vacina deixa estéril”, “eu prefiro essa vacina do que a outra, porque aquela está matando as pessoas”, “fulano tomou, teve reação e morreu” foi o que mais ouvi. (TEnfG1)

No contexto geral, influenciaram negativamente a saúde pública ao fomentar a recusa vacinal.

Eu me lembro de um senhor que um dia chegou para gente e falou assim “eu vim aqui avisar vocês que eu não vou tomar a vacina, entendeu? Porque eu já sei o que a vacina faz, eu li e não sei o que no grupo do WhatsApp e eu só vim avisar que eu não vou tomar”. (EnfA2)

Já presenciei bastante pacientes que entram no consultório e falam que não tomou vacina e não vai tomar, principalmente pais agora que não querem vacinar as crianças, porque eles não tomaram então as crianças não vão tomar também. Eu acho isso um retrocesso muito grande, antes as pessoas não se perguntavam o que tinha dentro da vacina, por exemplo a vacina da meningite um dos efeitos que ela pode causar é a própria meningite, então [risos] é complicado, né? (EnfA6)

Além disso, oportunizou o aumento da desconfiança dos usuários em relação a determinadas vacinas, a insistência na escolha dos imunizantes, e as tentativas de fraudes relacionadas aos registros de vacinação.

[...] com relação aos pacientes era no sentido de querer escolher imunizante, então esse era o problema, muitas vezes o paciente chegava lá e a gente estava com um estoque muito grande de Coronavac, que era a que estava fazendo no momento, aí o paciente chegava a falava, ó quero tomar a Pfizer. (EnfA5)

Eu vi pessoas tentando, pedindo, e também ouvi outros colegas repetindo histórias similares em outras unidades [...], tem população que pedia, por exemplo, para funcionário fazer comprovante de vacina para pessoa sem tomar vacina. Aqui, a nossa unidade, tem uma parcela da população mais elitizada que procurava a gente para fazer uma vacina específica, porque ia viajar para o exterior e em determinados países só aceitava aquele tipo de vacina. Às vezes a até estava vacinada, mas com uma vacina diferente e pedia para fazermos uma comprovação diferente. Eu vi essas tentativas de ter um comprovante sem fazer, da mesma forma que aconteceu o inverso também. (EnfA10)

Por vezes, a contraposição dos profissionais em relação às fake news foi percebida como um fator de desgaste nas suas relações interpessoais, sejam elas familiares ou profissionais.

[...] foram vários motivos de conflitos dentro da família, eu cheguei a sair de grupos de família, cheguei a brigar com familiares por conta dessas fake news. Ficava sempre um time defendendo as fake news e outro time tentando desmistificar, mostrar que aquilo era uma mentira. (EnfA1)

Os mais idosos são os que mais trazem fake news, eles ficam conversando na fila e quando entram eles têm 80 notícias para me dar, para falar da vacina. Se você não tem paciência, você não vacina, ele sai com dúvida e aquilo toma uma proporção muito maior. Essas coisas influenciam nosso trabalho e a gente precisa ter muita paciência para explicar, principalmente para os pais, porque eles falam “não eu só quero da rotina não quero covid”, é um movimento anti-vacina total, “porque o filho não é cobaia”. (TEnfA3)

Ações governamentais obscurantistas também foram citadas como agravantes para a propagação negacionista e os movimentos antivacina, visto que o então presidente do país e autoridades do Ministério da Saúde não só se opuseram publicamente às recomendações de saúde, como também desestimularam tais medidas, além de promoverem tratamentos comprovadamente ineficazes e prejudiciais à saúde.

[...] o que me vem mais forte agora é a questão política. Pensando que o governo federal notadamente era contrário a vacina, a ciência, e tinha discursos contrários a isso. E como um líder de um governo, de um país com 200 milhões de habitantes, com um discurso como esse contrário a vacina com certeza impactaria não só na vacina do Covid, mas as outras vacinas. (EnfA1)

Eu acho horrível ainda mais porque a gente não tem apoio do governo. Acho que isso piorou mais ainda, porque a ciência falava uma coisa, e outras pessoas falavam outra. Aí atrapalhava todo o trabalho que a gente estava fazendo. Eu lembro da revolta da vacina, um momento histórico e péssimo. (EnfA2)

[...] acredito que está muito ligado com parte política que a gente vive, reforços de políticos acerca dessa temática, que são pessoas influentes e que querendo ou não influenciam a maioria das pessoas que acreditam neles, então acho que esse viés político ou até mesmo de pessoas famosas em diferentes áreas [artistas, jogadores, cantores...] fazem com que as pessoas acreditem, o fanatismo também está muito ligado a isso, e é uma grande dificuldade. (EnfA4)

Identificou-se também a contribuição da mídia na divulgação de informações falsas, o que influenciou na adesão populacional à vacina e na credibilidade dos profissionais atuantes na imunização.

A mídia também teve isso [divulgação equivocada de informações]. A gente teve tanto impacto nacional de fake news ou de informações desencontradas assim como dentro do município, dentro dos grupos. Assim como ajudou, se você não fosse criterioso, só recebesse e repassasse, aquilo prejudicava e muito. (EnfG1)

Ademais, a divulgação midiática de casos atípicos, como fraudes, erros e extravios de vacinas, contribuiu para a desconfiança dos usuários no momento da imunização. Consequentemente, foi necessário implementar protocolos e fluxos para a administração da vacina que contribuíssem com a transparência do processo a fim de minimizar a insegurança da população.

Como teve outros profissionais, em outras cidades que usaram de má fé, na não aplicação da vacina, e isso se alastra, essas informações. Foi constrangedor para nós vacinadores, todo mundo querendo olhar a seringa, querendo olhar se a vacina realmente foi feita. Até mesmo acusações em relação a que “você não fez”, “onde foi parar?”, “o que aconteceu?”. Isso aí foi bem complicado. (TenfA1)

[...] não tem como fazer a vacina e não mostrar para o paciente, então a gente mostrava sempre a vacina, a cor, a seringa, frasco, explicando quantos ml, terminou de aplicar mostra a seringa vazia e era uma rotina que todo mundo pegou por que facilitava porque se não mostrasse [...] aquela questão de fake news. (TEnfA3)

No que tange à relação profissional e usuário do serviço, a imagem por vezes inapropriada que a mídia teceu no período mais intenso da imunização também foi destacada como influência para o negacionismo vacinal.

[...] teve dia que veio reportagem 2 horas da tarde a gente com 130 pessoas para atender, só temos oito técnicos não é humanamente possível, não tinha o que fazer, como abrir outra sala porque a gente não tem caixa térmica, não tem material, vacina tem mas não tem material, não tem outra sala, tem outros atendimentos acontecendo. Então a reportagem ficava aqui na frente da unidade criticando, ligando, falando que estávamos negando, o profissional de saúde saia como vilão. (TEnfA3)

Nós sofremos assédio por conta da covid. A própria mídia jogando o povo contra os vacinadores, falando que os vacinadores estavam fazendo vacina errada [...]. Ao invés delas mostrarem para população que é viável, que os técnicos são bem preparados, elas querem mostrar uma equipe despreparada. (TEnfA2)

Por fim, destacou-se a importância da disseminação do conhecimento científico e valorização de medidas educacionais para mitigar os efeitos causados pelas fake news nos serviços de saúde.

Tem muitas pessoas que dão muito valor para o profissional de saúde, então tem gente que chega e não é nem pela questão de provocar e questionar a vacina, mas de querer saber nossa opinião de profissional sobre isso, “ah, eu vi na internet tal coisa, mas eu queria ouvir de você”, e aí é uma oportunidade que você tem de reforçar o que é embasado cientificamente. (EnfA8)

Eu penso que a gente realmente tem que se armar de informações verídicas, dos fatos reais, de ciência. Então se você mesmo dar um Google, te gera dúvida, acho que cabe muito bem você ir para uma fonte confiável e certificar o que realmente é verdade antes de propagar informações inverídicas. Você pode estar prejudicando uma outra pessoa que de repente poderia estar tomando a vacina e por conta daquela sua informação gerou dúvida na cabeça dela e ela não quis vacinar. E essa informação pode se propagar, porque a boca a boca se propaga muito. Então eu penso que é uma cascata de informações ruins que são disseminadas aí na população. (EnfA11)

Em síntese, evidenciou-se que a ascensão do negacionismo, em conjunto com a disseminação de notícias falsas, refletiu na atitude dos usuários em relação às vacinas. Tópicos relacionados à adesão e confiabilidade vacinal, valorização da ciência e do serviço de saúde podem ser fortalecidos por meio de práticas educacionais em saúde.

DISCUSSÃO

Os achados do presente estudo permitiram a elaboração de hipóteses que podem ter contribuído com o fenômeno da hesitação vacinal em relação à vacina contra a Covid-19, como, por exemplo, a influência das fake news no serviço de imunização, sobretudo no que diz respeito à redução da confiança da população nas vacinas e nos profissionais que as aplicam. Os participantes destacaram também o excesso de questionamentos em relação à segurança da vacina, além das ações negacionistas por parte de figuras públicas (governantes, artistas, jogadores, influencers), órgãos oficiais de saúde do país e veículos midiáticos, o que ampliou a complexidade da crise sanitária vivenciada durante a pandemia da Covid-19. Diante disso, os participantes apontaram a necessidade de valorização da ciência e da promoção de ações de educação e conscientização populacional quanto à imunização.

Cabe destacar que o termo fake news é utilizado para descrever a prática nefasta de produzir e disseminar notícias falsas em larga escala, com o intuito de distorcer intencionalmente os fatos(1111 Rivas-de-Roca R, Pérez-Curiel C. Global political leaders during the COVID-19 vaccination: between propaganda and fact-checking. Politics Life Sci. 2023;42(1):104-19. https://doi.org/10.1017/pls.2023.4
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). Durante a pandemia da Covid-19, observou-se no Brasil um crescimento massivo da divulgação de informações falsas, principalmente relacionadas ao coronavírus, vacinas e saúde pública. Isso pode estar relacionado à hiperconectividade da população, cuja maioria não é capaz de diferenciar notícias falsas de verdadeiras, e possui dificuldade em verificar a veracidade das informações que estão compartilhando(1212 Galhardi CP, Freire N P, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cien Saude Colet. 2020;25(Suppl 2):4201-10. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.28922020
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).

A ampliação do acesso e utilização das redes sociais e aplicativos de mensagens como principais fontes de informação também facilitam a difusão de fake news, sendo que jovens e indivíduos com baixa escolaridade se mostram mais propensos a confiar nas informações disponíveis nessas fontes(1313 Nielsen RK, Fletcher R, Newman N, Brennen JS, Howard PN. Navigating the “infodemic”: how people in six countries access and rate news and information about coronavirus. RISJ. 2020 [cited 2023 Aug 16]; Misinformation, science and media: [about 36 screens]. https://doi.org/10.60625/risj-b838-pw85
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). Isso ocorre devido ao ceticismo e desconfiança de fontes tradicionais de informação, como veículos midiáticos, instituições acadêmicas, científicas e políticas. Assim, as informações ditas “científicas” não alcançam a população de maneira adequada(1414 Camargo Junior KR. Lá vamos nós outra vez: a reemergência do ativismo antivacina na Internet. Cad Saude Publica. 2020;36(Suppl 2):e00037620. https://doi.org/10.1590/0102-311X00037620
https://doi.org/10.1590/0102-311X0003762...
).

Essa resistência a fontes confiáveis pode estar relacionada à dificuldade de acesso ao conteúdo científico, à compreensão da linguagem acadêmica, bem como à maneira como o conteúdo é apresentado. Há um padrão frequentemente observado nas fake news que abrange novidade, objetividade, linguagem apelativa e emocional, manchetes de caráter sensacionalista que geram indignação e consequente atenção do leitor, e que muito provavelmente reforçam vieses de confirmação pré-existentes(1515 Luz, PM, Nadanovsky P, Leask J. Como as heurísticas e os vieses cognitivos afetam as decisões sobre vacinação. Cad Saude Publica. 2020;36(Suppl 2):e00136620. https://doi.org/10.1590/0102-311X00136620
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013662...
,1616 Asr TF, Taboada M. Big Data and quality data for fake news and misinformation detection. Big Data Soc. 2019;6(1):1-14. https://doi.org/10.1177/2053951719843310
https://doi.org/10.1177/2053951719843310...
).

Torna-se importante destacar que as redes sociais, aplicativos de mensagens e veículos de divulgação midiática não são projetados para fins de desinformação. Entretanto, o conspiracionismo, fantasias e sensacionalismo geram audiência e engajamento, que são convertidos em credibilidade e lucro financeiro, itens valiosos no contexto contemporâneo(1212 Galhardi CP, Freire N P, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cien Saude Colet. 2020;25(Suppl 2):4201-10. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.28922020
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). Desse modo, a propagação de notícias falsas é um fenômeno sociocultural complexo, influenciado por diversos fatores comportamentais e sociais, que afetam a percepção e julgamento da veracidade. Esse problema contemporâneo não se limita apenas às esferas política e social, mas também representa um risco para a saúde pública(1212 Galhardi CP, Freire N P, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cien Saude Colet. 2020;25(Suppl 2):4201-10. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.28922020
https://doi.org/10.1590/1413-81232020251...
).

Nesse contexto, as fake news como mecanismo de manipulação, colocam em risco as conquistas e avanços alcançados ao longo dos últimos 50 anos pelo Programa Nacional de Imunização em relação às doenças imunopreveníveis. Um estudo sobre a aceitação, confiança, hesitação e recusa de vacinação contra a Covid-19 realizado com 1.599 pessoas no Canadá apontou que 88,9 % dos participantes geralmente aceitam a maioria ou todas as vacinas recomendadas, enquanto 18,2% indicaram recusa vacinal para a vacina da Covid-19(1717 Nizigiyimana A, Acharya D, Morillon GF, Poder TG. Predictors of vaccine acceptance, confidence, and hesitancy in general, and COVID-19 Vaccination Refusal in the Province of Quebec, Canada. Patient Prefer Adherence. 2022;16:2181-202. https://doi.org/10.2147/PPA.S376103
https://doi.org/10.2147/PPA.S376103...
). Por sua vez, uma pesquisa realizada com 229.242 pessoas na Coreia estimou que apenas 3,9% da população adulta coreana recusou a vacina da Covid-19(1818 Song I, Lee SH. COVID-19 vaccine refusal associated with health literacy: findings from a population-based survey in Korea. BMC Public Health. 2023;23(1):255. https://doi.org/10.1186/s12889-023-15182-0
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).

Cabe destacar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) elencou a relutância para vacinação como uma das dez ameaças à saúde a serem combatidas, em especial pelo fato de colocar em risco a vida de milhões de pessoas que são beneficiadas pela imunização(1919 Organização Mundial da Saúde (OMS). Timeline: ten threats to global health in 2019 [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [cited 2023 Aug 16]. Available from: https://www.paho.org/en/news/17-1-2019-ten-threats-global-health-2019
https://www.paho.org/en/news/17-1-2019-t...
). Frente a isso, informações que alimentam um medo irracional na população necessitam de fiscalização adequada para que se estabeleçam normas, diretrizes e mecanismos de transparência a fim de garantir segurança, liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento sem ferir princípios, direitos e garantias constitucionais.

No que tange à atitude de pais em relação à situação vacinal dos filhos, um estudo de âmbito nacional realizado no Canadá com 6.519 pais de crianças de 2 anos apontou que 16,8% deles já haviam recusado uma vacina no passado, sendo que as vacinas mais comumente recusadas são a influenza (73%), rotavírus (13%) e varicela (9%), e cerca de 12,8% relutaram em vacinar seus filhos, sobretudo com influenza (34%), sarampo/caxumba/ rubéola (21%) e varicela (19%)(2020 Schellenberg N, Petrucka P, Leurer MD, Crizzle AM. Determinants of vaccine refusal, delay and reluctance in parents of 2-year-old children in Canada: findings from the 2017 Childhood National Immunization Coverage Survey (cNICS). Travel Med Infect Dis. 2023;53:102584. https://doi.org/10.1016/j.tmaid.2023.102584
https://doi.org/10.1016/j.tmaid.2023.102...
). Na Turquia, uma pesquisa com 396 pais de adolescentes de 12 a 18 anos apontou que 41,7% recusaram vacinar seus filhos contra a Covid-19(2121 Sahin A, Aksay AK, Asci B, Keles YE, Ustundag G, Tuz AE, et al. Attitudes of parents with children aged 12-18 to COVID-19 vaccines for themselves and their children. Turk J Pediatr. 2022;65(2):194-204. https://doi.org/10.24953/turkjped.2022.762
https://doi.org/10.24953/turkjped.2022.7...
).

No cenário brasileiro, a cobertura vacinal estimada da Covid-19 encontra-se em 85% da população vacinada com a primeira dose, 80% com a segunda dose, e 50% com a dose de reforço(2222 Ministério da Saúde (BR). Vacinômetro COVID-19 [Internet] Brasília: MS; 2023 [cited 2023 Aug 16]. Available from: https://infoms.saude.gov.br/extensions/SEIDIGI_DEMAS_Vacina_C19/SEIDIGI_DEMAS_Vacina_C19.html
https://infoms.saude.gov.br/extensions/S...
). Considerando as metas de cobertura vacinal de 90%, propostas pelo Ministério da Saúde, e as quedas importantes nas taxas de imunização ao longo dos anos, destaca-se o quanto esses fatores atuam na impossibilidade de se considerar a dita imunidade coletiva que ocorre quando uma porcentagem significativa de indivíduos em uma população adquire imunidade à doença(2323 Lacerda CD, Chaimovich H. O que é imunidade de rebanho e quais as implicações? Jornal Da USP [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 16]. Available from: https://jornal.usp.br/artigos/o-que-e-imunidade-de-rebanho-e-quais-as-implicacoes/
https://jornal.usp.br/artigos/o-que-e-im...
,2424 Sato APS. Qual a importância da hesitação vacinal na queda das coberturas vacinais no Brasil? Rev Saude Publica. 2018;52(96). https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2018052001199
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). Apesar da recusa ou hesitação se manter até então em uma minoria da população, é importante que campanhas de incentivo à vacinação sejam fortalecidas, visto que os riscos relacionados a esse fenômeno tendem a prejudicar toda a população, tornando-a mais suscetível a adoecer e transmitir doenças até então controladas.

Ademais, os resultados apontaram a importância do posicionamento de figuras públicas representativas da população frente a situações de calamidade pública, exercendo sua função social para a democracia. Por vezes, a postura e condutas adotadas por figuras públicas e formadoras de opinião podem constituir ponto de apoio para o negacionismo, o que dificulta o alcance das metas de vacinação na população brasileira, como contribuiu para a desconfiança acerca do serviço de saúde e atuação dos profissionais que nele atuam(1111 Rivas-de-Roca R, Pérez-Curiel C. Global political leaders during the COVID-19 vaccination: between propaganda and fact-checking. Politics Life Sci. 2023;42(1):104-19. https://doi.org/10.1017/pls.2023.4
https://doi.org/10.1017/pls.2023.4...
,1212 Galhardi CP, Freire N P, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cien Saude Colet. 2020;25(Suppl 2):4201-10. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.28922020
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).

Atinente a isso, foram fomentadas ações de polarização em torno da vacinação e incentivo a uma politização desnecessária, como por exemplo na resistência na aquisição da CoronaVac, produzida em colaboração entre o Instituto Butantan e a Sinovac. Este fato incentivou a população a solicitar escolha de marca da vacina no momento da imunização, gerando transtornos aos vacinadores(1212 Galhardi CP, Freire N P, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cien Saude Colet. 2020;25(Suppl 2):4201-10. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.28922020
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).

Neste estudo, a atuação das mídias, por vezes, também foi apontada como influência negativa na adesão populacional à imunização. Durante o período da pandemia da Covid-19, foram divulgadas notícias que enfatizaram situações de extravios, fraudes, vendas ilegais de imunizantes, e erros de imunização. De acordo com as diretrizes do PNI, falhas na aplicação das vacinas podem resultar em e feitos reduzidos ou ausentes, bem como em eventos adversos após a imunização. Esses erros também têm implicações negativas para a população, levando a interrupções nos protocolos de vacinação, diminuição dos índices de cobertura vacinal e ameaças ao controle de doenças que poderiam ser prevenidas, gerando custos tanto diretos quanto indiretos para os serviços de saúde.

Em um estudo realizado em um estado brasileiro que avaliou 3.829 notificações de erros de imunização na base de dados do Sistema de Informação de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação (SI-EAPV), observou-se que crianças menores de 1 ano foram as mais acometidas (39,1%), e a via intramuscular foi responsável por 29,4% dos erros. O erro mais frequente foi a administração de vacina fora da idade recomendada (37,7%)(2525 Donnini DA, Silva CMB, Gusmão JD, Matozinhos FP, Silva RB, Amaral GG, et al. Incidência de erros de imunização em Minas Gerais: estudo transversal, 2015-2019. Epidemiol Serv Saude. 2022;31(3). https://doi.org/10.1590/S2237-96222022000300008
https://doi.org/10.1590/S2237-9622202200...
). É importante ressaltar, no entanto, que apesar de o processo de trabalho realizado nas instituições públicas ser regido por normas rigorosas e diretrizes que priorizam o bem-estar da população, não está imune a erros. Assim, é importante que eventuais falhas sejam notificadas, analisadas e acompanhadas de maneira individual, e posteriormente debatidas entre a equipe de saúde, para que sejam identificadas possíveis falhas no processo de trabalho, e sejam fortalecidas medidas de prevenção de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização (ESAVI).

Salienta-se que, em tempos de crise sanitária, garantir o bem-estar da sociedade é o objetivo primordial. Deste modo, os profissionais da saúde, em especial os da enfermagem que atuaram diretamente nas salas de vacina, assumiram um papel central no combate à disseminação de informações equivocadas. Reitera-se que o posicionamento dos profissionais frente às notícias falsas, em virtude dos seus conhecimentos científicos e compromisso ético, torna-se essencial para a efetividade do PNI(2626 Wu JT, Mccormick JB. Why health professionals should speak out against false beliefs on the internet. AMA J Ethics. 2018;20(11):E1052-1058. https://doi.org/10.1001/amajethics.2018.1052
https://doi.org/10.1001/amajethics.2018....
).

A educação em saúde é um pilar fundamental da estratégia de promoção da saúde, mediante a implementação de ações de prevenção de doenças, e quando executada de forma eficiente, permite que a população se emancipe, democratize o conhecimento e participe ativamente, aumentando a adoção de hábitos saudáveis com impacto direto na saúde individual e da comunidade(2727 Nogueira DL, Sousa MS, Dias MSA, Pinto VPT, Lindsay AC, Machado MMT. Educação em saúde e na saúde: conceitos, pressupostos e abordagens teóricas. SANARE. 2022;21(2):101-09. https://doi.org/10.36925/sanare.v21i2.1669
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). No atual panorama da saúde, é indiscutível que o enfermeiro exerce um papel significativo no desenvolvimento das ações educativas, independente do espaço que ele ocupa na Rede de Atenção à Saúde. Isso porque ele se apresenta como um facilitador do processo de ensino-aprendizagem, sendo capaz de disseminar o conhecimento científico, colaborando para a validação da ciência. Cuidar e educar são, de fato, atribuições que se complementam e não podem ser dissociadas no processo de trabalho da enfermagem.

Limitações do estudo

Essa pesquisa apresenta limitações que devem ser consideradas. Relacionadas ao desenho do estudo, destaca-se o fato de ter envolvido entrevistas com um grupo específico de profissionais, limitando a precisão do impacto de variados aspectos no fenômeno da hesitação vacinal. Além disso, destaca-se o fato de a temática abordada sofrer influência de fatores socioculturais, políticos e partidários. Durante as entrevistas, foram observados momentos de silêncio, risos, piadas e resistência por parte de alguns participantes. Para mitigar essas questões, a pesquisadora reformulou e direcionou cuidadosamente os questionamentos para garantir que o objetivo do estudo pudesse ser alcançado.

Contribuições para a área da Enfermagem

Os resultados do estudo reiteram o papel indispensável do enfermeiro no resgate e manutenção da importância da prevenção das doenças imunopreveníveis e o papel do PNI na sua prática cotidiana. Por atuar diretamente na imunização, a equipe de enfermagem necessita continuamente corrigir ou redirecionar os usuários dos serviços, fornecendo informações baseadas em evidências, com o intuito de contribuir na tomada de decisão frente ao processo saúde-doença e adesão à vacinação. Com vistas à promoção da assistência à saúde de qualidade, é imprescindível que as instituições tenham acesso às informações mais atualizadas e capacitem seus colaboradores para lidar com a diversidade de situações e na identificação de notícias falsas. Treinamentos constantes são indispensáveis para manter toda a equipe preparada e apta a enfrentar os desafios que a rotina no serviço de saúde pode apresentar, sendo que priorizar essa atualização é sinônimo de zelo pela excelência do cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Oferecemos subsídios para discussões e reflexões dos profissionais e gestores em relação à necessidade de ações estratégicas de enfrentamento da hesitação vacinal no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS), subsidiando a adoção de medidas educativas com vistas a capacitar os trabalhadores da saúde no combate à desinformação por meio da educação em saúde, bem como o fortalecimento do papel da enfermagem na valorização do PNI. Possibilita também uma reflexão sobre o papel da gestão no apoio e valorização dos profissionais que, por sua atuação, estão na linha de frente no enfrentamento de ações que visam enfraquecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e suas políticas de saúde.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2023
  • Aceito
    17 Nov 2023
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