Violência doméstica: análise conceitual evolucionista de Rodgers

RESUMO

Objetivos:

analisar o conceito de violência doméstica baseado em sua utilização nas áreas das ciências da saúde, ciências humanas e ciências exatas segundo o modelo evolucionista de Rodgers.

Métodos:

análise de conceito baseada no modelo conceitual evolucionista de Rodgers. Foram incluídos 96 artigos nos idiomas português, inglês, espanhol e francês, que apresentavam definição de violência doméstica, tendo sido identificados os antecedentes, atributos e consequentes, sendo confeccionado um caso modelo.

Resultados:

foram identificados 22 atributos, dez antecedentes e oito consequentes.

Considerações finais:

a partir dos antecedentes, atributos e consequentes, foi possível identificar a ligação da violência doméstica com questões de gênero, especialmente de cunho patriarcal, sendo vista de forma normalizada pela sociedade, causando consequências à saúde física e psicológica da vítima.

Descritores:
Terminologia Padronizada em Enfermagem; Violência; Violência Doméstica; Violência de Gênero; Formação de Conceito

ABSTRACT

Objective:

to analyze the concept of domestic violence based on its use in health sciences, humanities, and exact sciences according to Rodgers’ evolutionary model.

Methods:

this is a concept analysis based on Rodgers’ evolutionary conceptual model. Ninety-six articles were included in Portuguese, English, Spanish, and French, which had a definition of domestic violence, having identified the antecedents, attributes and consequences and produced a model case.

Results:

twenty-two attributes, ten antecedents and eight consequences were identified.

Final considerations:

from antecedents, attributes and consequences, it was possible to identify the connection between domestic violence and gender issues, especially patriarchal, being seen in a normalized way by society and causing consequences to the victims’ physical and psychological health.

Descriptors:
Standardized Nursing Terminology; Violence; Domestic Violence; Gender-Based Violence; Concept Formation

RESUMEN

Objetivos:

analizar el concepto de violencia intrafamiliar a partir de su uso en las áreas de ciencias de la salud, humanidades y ciencias exactas según el modelo evolutivo de Rodgers.

Métodos:

análisis de conceptos basado en el modelo conceptual evolutivo de Rodgers. se incluyeron 96 artículos en portugués, inglés, español y francés, los cuales tenían una definición de violencia doméstica, habiéndose identificado los antecedentes, atributos y consecuencias, y se realizó un caso modelo.

Resultados:

se identificaron 22 atributos, diez antecedentes y ocho consecuentes.

Consideraciones finales:

a partir de los antecedentes, atributos y consecuencias, se pudo identificar la conexión entre la violencia intrafamiliar y las cuestiones de género, especialmente de carácter patriarcal, siendo visto de manera normalizada por la sociedad, provocando consecuencias en la salud física y psicológica de la víctima.

Descriptores:
Terminología Normalizada de Enfermería; Violencia; Violencia Doméstica; Violencia de Género; Formación de Concepto

INTRODUÇÃO

Entende-se terminologia como um vocabulário controlado composto por termos técnicos que representam conceitos de uma ciência ou a sistematização de conhecimento em uma área do saber. Trata-se de uma tecnologia que ampara a prática profissional, pois objetiva padronizar a comunicação, coleta, organização e análise de dados; para tanto, caracteriza-se como estruturada, classificadora, hierárquica e normalizada^(1-3).

Na enfermagem, a terminologia representa o universo de termos e suas definições, que é parte integrante e essencial do domínio teórico e prático da profissão^(4-5). As terminologias de enfermagem são instrumento do trabalho do enfermeiro, tendo em vista que a padronização dos termos facilita a comunicação entre profissionais, a documentação em saúde e a recuperação e comparação de dados^(4-5). No âmbito da documentação em saúde, um exemplo de benefício do uso de terminologias em enfermagem é a facilidade de identificar e, consequentemente, notificar às autoridades e intervir nos casos de vulnerabilidade à violência.

A Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE^®), versão 2019-2020, insere a palavra violência 22 vezes no eixo Foco ou na definição de termos dos eixos Foco, Cliente e Meio, além de ser parte de conceitos pré-combinados de intervenções e diagnósticos de enfermagem. Em relação aos conceitos diagnósticos, quatro se relacionam à violência: Risco de ser Vítima de Violência de Parceiro Íntimo; Risco de Violência; Violência, Ausente; Vítima de Violência de Parceiro Íntimo. Esses conceitos, hierarquicamente, são derivados dos termos Abuso e Violência de Parceiros Íntimos e do termo violência como principal termo-pai⁽⁶⁾.

O Conselho Internacional de Enfermeiros incentiva a produção de subconjuntos terminológicos para a CIPE^®, sendo a violência objeto de alguns deles^(7-8); entretanto, tratando-se de uma terminologia pautada em termos, definições e conceitos, é necessário um aprofundamento do significado do termo, de modo a incluí-lo em um subconjunto. Dessa forma, foi estabelecida a seguinte questão norteadora da pesquisa: qual a aplicação do termo violência doméstica nas ciências humanas, exatas e da saúde?

O escopo deste artigo visa clarificar o conceito de interesse, violência doméstica, devido a não ser considerado, até o momento, um conceito na CIPE^®. Não há consenso entre o uso do termo violência doméstica. Alguns autores utilizam-no para se referir à violência contra a mulher⁽⁹⁾, enquanto outros o caracterizam pelo ambiente doméstico em que tal violência é perpetuada⁽¹⁰⁾. A natureza da violência também não é consensual, considerando que certos autores defendem que a violência doméstica se restringe ao ato violento físico⁽¹¹⁾, e a CIPE^® insere, hierarquicamente, o termo violência abaixo do comportamento agressivo, que é definido como “ação ou atitude brutal, arrogante, expressa verbalmente, fisicamente ou simbolicamente”⁽¹²⁾.

Nesse contexto, oportuniza-se a utilização da teoria evolucionista de Rodgers, que considera a ciclicidade dos conceitos e seu uso. Em sua análise, a autora trabalha com a construção do conceito de interesse a partir da relação entre atributos, antecedentes e consequentes⁽¹³⁾.

OBJETIVO

Analisar o conceito de violência doméstica baseado em sua utilização nas áreas das ciências da saúde, ciências humanas e ciências exatas segundo o modelo evolucionista de Rodgers.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Esta pesquisa dispensou parecer de aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, por não envolver diretamente seres humanos, limitando-se à utilização de base de dados de acesso público.

Referencial teórico-metodológico

Para Rodgers, um conceito é a representação cognitiva abstrata, formada por uma palavra ou por um conjunto delas, que resume a essência de determinado fenômeno de forma que, mesmo descontextualizado de uma teoria, contribui para a manutenção do conhecimento^(13-14). A autora defende que conceitos são cíclicos, evidenciando três aspectos que influenciam o ciclo do conceito: seu significado, seu uso e sua aplicação. Seu significado é referente à utilidade que o conceito apresenta dentro de uma prática humana. Seu uso está relacionado à situação no qual o conceito é utilizado e sua aplicação corresponde ao escopo em que ele é apropriado para uso. Assim, a análise conceitual evolucionista de Rodgers visa elucidar a aplicação de um conceito⁽¹³⁾.

Tal abordagem apresenta caráter dinâmico e amplo, considerando a importância contextual do conceito. Seu processo metodológico é qualitativo, indutivo e está organizado em cinco etapas: definição do conceito de interesse, estabelecimento de estratégia para coleta de dados, coleta e organização de dados, análise dos dados e construção dos casos-modelo^(13-16).

A metodologia de análise conceitual evolucionista de Rodgers considera que a definição do conceito de interesse faz parte do processo metodológico, devido ao estudo contextual que possibilita ao pesquisador escolher o termo que mais se aproxima do conceito que deseja estudar. Este estudo contextual também ancora a construção da coleta de dados, especialmente a escolha do meio de coleta, que se refere ao tipo de material que será incluído na análise, podendo ser artigos científicos, material cinza, relatos de grupos focais e outros documentos^(13,17). O alinhamento entre o meio de coleta e a questão norteadora garante à análise conceitual a contextualização do termo, devendo os critérios de seleção, inclusão e exclusão desses materiais partir da questão norteadora e objetivo da análise^(13,17). Nesse caso, autores de pesquisas que utilizaram a análise de conceito não descrevem a revisão de literatura com uso de regras ou checklist^(14-15), sendo identificada, inclusive, coleta de dados por meio de grupo focal⁽¹⁷⁾.

Após a finalização da definição de estratégia de coleta de dados, essa deve ser realizada criteriosamente. Ressalta-se que, em uma análise conceitual, as definições do conceito de interesse são extraídas do material que atendeu aos critérios de inclusão estabelecidos previamente, devendo ser organizadas de forma que seja possível identificar e acessar sua fonte, caso necessário. Na sequência, realiza-se a identificação de atributos, antecedentes e consequentes nas definições que compõem o corpus de análise conceitual.

O termo categórico “atributo” refere-se a características definidoras, de maneira generalista, do fenômeno ilustrado pelo conceito de interesse⁽¹³⁾. Eles apresentam conexões diretas com os ditos antecedentes e consequentes de um conceito. O termo categórico “antecedente” diz respeito a um fenômeno que precede o conceito de interesse, ao passo que o termo categórico “consequente” se refere a um fenômeno que sucede o conceito de interesse⁽¹³⁾.

Para ilustrar essa relação, Rodgers propõe a confecção de um caso modelo que atenda a todos os atributos, consequentes e antecedentes identificados no corpus de análise. Essa elaboração deve, preferencialmente, estar inserida no contexto em que o conceito de interesse foi analisado⁽¹³⁾.

Procedimentos metodológicos

O desenho de pesquisa utilizado foi baseado na etapas da análise conceitual evolucionária de Rodgers⁽¹³⁾. Ressalta-se que esta pesquisa integra um projeto matriz intitulado “Terminologia padronizada em enfermagem: construção e aprimoramento de subconjuntos da Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE^®)”.

Identificação do conceito de interesse

Foi utilizada, como base empírica, a proposta de subconjunto terminológico da CIPE^®, elaborada por Albuquerque e intitulada “Terminologia da enfermagem caracterizadora da violência doméstica contra crianças e adolescentes”⁽⁸⁾. Em um dos artigos, produto da tese, foi evidenciado que a vitimização da violência doméstica é fenômeno de caráter decisório no âmbito social do processo saúde-doença⁽⁸⁾. O manuscrito ressalta a contradição entre a lógica formal de identificação de termos para a elaboração do subconjunto e a lógica dialética, que reconhece a dinamicidade dos fenômenos e seus fundamentos históricos. Dessa forma, propôs-se a análise conceitual do conceito de interesse – violência doméstica para aprimoramento do conceito operacional e possível inclusão como conceito pré-combinado – diagnóstico de enfermagem da CIPE^®.

Coleta de dados

A estratégia de coleta de dados foi definida a partir do entendimento de que a violência doméstica não é um fenômeno exclusivo da saúde; logo, foi estipulada a utilização de artigos científicos de diferentes áreas do saber. A base de dados escolhida foi a Plataforma de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), uma vez que contempla as diversas áreas de saber e possui acesso aos periódicos por meio da PubMed/MEDLINE.

A busca foi realizada por meio do descritor estruturado “domestic violence”. Nas opções avançadas, foi determinado que seriam selecionados artigos, artigos de revista e entradas de referência revisados por pares, publicados no ano de 2018 nos idiomas inglês, português, espanhol e francês. Foram escolhidos três temas de refinamento para o descritor estruturado, a saber: domestic violence, family violence e intimate partner violence. Os artigos encontrados por meio dessa busca atenderam aos critérios de seleção para leitura na íntegra.

Como critério de inclusão, o artigo deveria apresentar uma definição clara do conceito de interesse. Por definição clara, entende-se que o conceito de interesse está como sujeito da oração. O critério de exclusão estabelecido foi a presença da definição do conceito de interesse simultânea a outro conceito. Com isso, foi composto o corpus de análise.

Cada definição pertencente ao corpus de análise recebeu um número indexador para organização das pesquisadoras. As definições foram organizadas em uma planilha eletrônica, em que cada linha representava uma definição, e as colunas, os seguintes dados sobre ela: número indexador, título do artigo de origem, autoria do artigo de origem, referência da definição, caso houvesse, e link de acesso ao artigo do qual ela foi extraída.

Análise de dados

Em cada definição, foi identificado o fragmento do texto, caso houvesse, referente aos atributos, antecedentes e consequentes, utilizando Rodgers⁽¹³⁾ como marco teórico. Simultaneamente, esses fragmentos foram incluídos em outra planilha eletrônica que continha três colunas, uma para cada termo categórico.

Após todas as definições passarem por esse processo, os fragmentos de texto que estavam na planilha de atributos, antecedentes e consequentes foram traduzidos para o português. A tradução foi livre, realizada pela primeira autora deste artigo e checada pela última.

Com a finalidade de identificar a área do saber das definições que compuseram o corpus de análise conceitual, foi acessado o Curriculum Lattes dos autores das referências utilizadas nas definições extraídas dos artigos. Caso não houvesse referência, foi consultado o currículo dos autores do próprio artigo considerando a definição extraída de autoria própria. As definições foram classificadas em ciências da saúde, humanas, ciências exatas e multidisciplinares no caso em que não foi possível identificar apenas uma área do saber.

Confecção do caso modelo

O caso modelo confeccionado é fictício, foi elaborado de forma isolada por uma das pesquisadoras e adequado por três docentes e sete discentes do grupo de estudos do programa de pós-graduação de origem das pesquisadoras. O estudo atende a todos os antecedentes, atributos e consequentes identificados na análise de dados, ilustrando a análise conceitual⁽¹³⁾.

RESULTADOS

Coleta de dados

A busca pelo descritor e pelas ferramentas avançadas resultou em 847 artigos, que atenderam aos critérios de seleção para leitura, dos quais 97 apresentavam uma definição clara de violência doméstica; entretanto, um artigo foi excluído por trazer a definição do conceito de interesse e, concomitantemente, de outra modalidade de violência.

Dos 96 artigos, foram extraídas 122 definições, sendo que 26 artigos apresentaram mais de uma. Análises conceituais que utilizaram a mesma metodologia utilizaram um corpus de análise menos extenso, como, por exemplo, a análise conceitual de “crescimento infantil”, com 41 conceitos compondo o corpus de análise⁽¹⁴⁾, e “sobrevivente de câncer”, com 39 definições⁽¹⁵⁾. Por média aritmética simples, cada artigo trouxe 1,27 definição. No que tange às áreas do saber, os artigos incluídos foram majoritariamente da área de ciências da saúde (45%) e ciências humanas (45%). A áreas das ciências exatas contribuiu com 1% dos artigos. Em 9% dos artigos, não foi possível estabelecer uma área específica, pois as definições foram elaboradas a partir de definições de várias áreas (multidisciplinar).

Análise de dados

A partir da análise do corpus, formado pelas 122 definições extraídas, foram identificados 22 atributos para o termo violência doméstica, dez antecedentes e oito consequentes. A relação de termos, traduzida livremente para o português, está disposta no Quadro 1.

Quadro 1
Antecedentes, atributos e consequentes do termo violência doméstica

Antecedentes	Cultura do patriarcado; questões de gênero e sexualidade; poder e autoridade; conflito; vítima com idade superior a 16 anos; coabitação com o agressor; manifestação do masculino e do feminino; posição masculina dominadora; contextos raciais, étnicos, religiosos, econômicos e sociais; ser ou viver como uma família.
Atributos	Qualquer comportamento que cause lesão física ou psicológica a um parceiro íntimo; controle coercitivo; violência física, sexual ou psicológica; abuso; privação de serviços, liberdade ou lazer; degradação ou ofensa a um parceiro romântico; violência de parceiro íntimo; violação séria de direitos humanos; qualquer ato intencional de um membro da família a outro para limitar seus direitos legais; dominação e controle masculino para com as mulheres; principal motivo para encaminhamento de crianças para serviços estaduais de bem-estar infantil em países industrializados avançados; atinge cerca de um terço de mulheres no mundo; abuso de poder ou autoridade; considerada uma forma moralista de justiça; normalizada pela sociedade; qualquer ato de violência baseado no gênero, podendo ocorrer em público ou na vida privada; crime que deve ser tratado privadamente entre as partes, punindo os agressores e protegendo a vítima de novos abusos; padrão sistemático de poder e controle perpetuado por um parceiro íntimo; responsabilidade policial e comunitária; fenômeno complexo de estrutura sistemática; processo repetitivo que se agrava durante um relacionamento; definido pela lei como ofensas.
Consequentes	Impacto na saúde; prejuízos psicológicos, físicos, sexuais, reprodutivos e, em alguns casos, morte; dominação das mulheres; prejuízo feminino na escolha em relação à sua saúde; consequências em longo prazo para os indivíduos e sociedade; estabelecimento de poder e controle; depressão e síndrome de estresse pós-traumático; normalização da violência.

As definições apresentaram antecedentes ligados ao tema gênero, citando a posição do homem como dominadora perante a mulher, manifestações do feminino e do masculino^(18-23). Nesse sentido, foi referida a teoria feminista estruturalista ao abordar a cultura do patriarcado como um dos antecedentes da violência doméstica⁽²⁰⁾.

No que tange ao contexto da violência, os antecedentes identificados se referem àquela que ocorre dentro da família^(18,24-26), em que existe há coabitação com o agressor, informando-se a idade da vítima como maior de 16 anos^(18,26). Ainda, os antecedentes indicam que a violência doméstica pode ocorrer em diversas realidades, independentemente de circunstâncias econômicas, religiosas, raciais, étnicas e sociais^(27-29).

Os atributos das definições analisadas relacionaram o conceito de interesse com violência de parceiros íntimos e violência contra a mulher, tendo sido citadas as questões estruturais de gênero, nas quais o homem apresenta mais poder que a mulher^(19,29-31). Quanto às modalidades de violência reconhecidas no contexto da violência doméstica, demonstram o reconhecimento da violência física, psicológica, sexual e econômica^(32-33). Entre os atributos coletados, destaca-se ser considerada uma forma de justiça e normalizada pela sociedade apesar de ser classificada como um fenômeno complexo que deve ser tratado em âmbito policial e judiciário^(34-36).

No tocante aos consequentes, ressalta-se a implicação da violência doméstica na saúde, podendo, muitas vezes, causar prejuízos psicológicos, como depressão e transtorno do estresse pós-traumático; quanto aos prejuízos na saúde física da vítima, eles estão sempre representados no sexo feminino⁽³⁷⁾. Cita-se, também, que a violência doméstica causa a normalização da violência para a vítima, corroborando o que foi identificado nos atributos e antecedentes⁽³⁸⁾.

Caso modelo

Maria, 45 anos, é casada com João, 51 anos, e o casal tem duas filhas adolescentes que seguem regras rígidas determinadas pelo pai. João trabalha como auxiliar administrativo em uma empresa enquanto Maria fica encarregada dos cuidados da casa e complementa a renda vendendo roupas que costura. Ele acredita que as mulheres devem usar saia comprida e sair sempre acompanhadas de seus maridos, que, por sua vez, devem zelar pela família. Em nome do zelo, João faz com que Maria sempre o avise quando terá atividades fora de casa, mesmo rotineiras, como ir à casa de sua mãe, à igreja e ao mercado. Aos domingos, a família frequenta a missa pela manhã; todavia, certo domingo, Alícia, filha do casal, decidiu não ir com eles, pois se sentia indisposta. Maria concordou que a garota ficasse em casa, porém João ordenou que Alícia se levantasse e fosse à missa. Maria discordou e os dois começaram a discutir. Ele afirmou que era o “homem da casa”, então todos estariam sujeitos às suas ordens e que não queria que Alícia se desviasse dos caminhos dos bons costumes. A esposa argumentou que a filha estava doente, e ele lhe deu um tapa, ordenando que ficasse quieta. Maria obedeceu e Alícia foi à igreja com a família. Maria apresenta quadro de depressão, causado pelos episódios de violência do marido, realizando tratamento em Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), mas refere que sabe que é culpada por esses eventos e que o marido tem razão, pois o objetivo é zelar pela família.

DISCUSSÃO

Antecedentes

Os achados corroboram a afirmação de que a violência doméstica é um fenômeno complexo⁽³⁶⁾, pois as definições consideram que se trata de um fenômeno que envolve a subjetividade humana. São nítidas as questões de gênero que permeiam esse conceito, muitas vezes utilizado como sinônimo de violência contra a mulher, voltando-se à necessidade de entendimento de questões de gênero e da organização social que é mantida a partir dessa estrutura.

O gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder, de se articular e construir poder⁽³⁹⁾. Dessa forma, mesmo os atributos genéricos, que não remetem diretamente a poder, estão relacionados a esse conceito, quando colocados no contexto de violência, uma vez que é a expressão máxima da desigualdade de gênero^(39-40). Considerando-se esse cenário, pode-se dizer que a violência doméstica é uma violência estrutural, em que o indivíduo violentado é oprimido, naturalizando o processo de violência que o acomete⁽⁴¹⁾. Essas questões explicam, em partes, o fato de que ao buscar na literatura científica pelo termo violência doméstica são encontradas pesquisas relacionadas à violência de gênero.

Na CIPE^®(6), a palavra gênero possui três relações: ao papel do indivíduo em uma sociedade, a identidade pessoal e a discriminação. Em nenhuma dessas relações se destacam a violência ou questões de poder em virtude do gênero. Nesse sentido, a identificação de atributos que destacam o gênero é uma importante contribuição para formação do conceito de violência doméstica a ser incorporado pela classificação.

Em relação ao perfil da vítima, os antecedentes identificados levam à conclusão de que o termo violência doméstica é aplicado a maiores de 16 anos, corroborando o conceito de violência contra criança intrafamiliar proposto por Minayo. A autora utiliza o termo intrafamiliar para classificar os atos violentos que ocorrem dentro de ambientes domésticos contra crianças⁽⁴²⁾. Esse resultado corrobora, também, os achados acerca da representação cultural do fenômeno da violência doméstica como violência entre um casal heteronormativo⁽⁴³⁾. Contudo, destaca-se que essa questão permanece uma lacuna de pesquisa, necessitando de maior investigação devido a discordâncias entre diferentes áreas do saber, marcos teóricos e culturais.

Na CIPE ^®, os idosos e as crianças são representados por conceitos que direcionam aos termos Vítima e Abuso, portanto, são utilizados os diagnósticos de enfermagem Vítima de Abuso de Idoso e Vítima de Abuso Infantil para remeter à violência perpetrada nesses dois grupos geracionais. O uso de tais termos é justificado pela vulnerabilidade, compreendendo que o abuso, hierarquicamente, é uma forma de violência direcionada grupos denominados como vítimas.

Tendo como base os antecedentes identificados, é necessário que o conceito de violência doméstica seja diferenciado do termo abuso. Ao analisar os atributos, verifica-se o que o primeiro se relaciona, predominantemente, ao gênero e às relações de poder inseridas em espaços familiares ou co-habitações e em contextos raciais, étnicos, religiosos, econômicos e sociais. Por sua vez, na CIPE ^®, o abuso está direcionado a grupos geracionais vulneráveis.

Atributos

Como apresentado no estudo de caso estruturado nesta pesquisa, o conceito de violência doméstica tende para a violência contra a mulher adulta, reforçando o perfil de vítima traçado a partir da identificação dos antecedentes. No caso dos atributos, o agressor, predominantemente, é um parceiro íntimo que convive no ambiente familiar. Nessa perspectiva, discute-se o contexto a ser superado, no qual a participação feminina na sociedade se restringe ao ambiente privado, pelo qual é responsável pela administração em um sistema patriarcal com submissão ao homem^(44-45). Essa organização de papéis sociais a partir do gênero é idealizada, o que torna propícia à violência, pois os agressores justificam os atos violentos pelo não cumprimento do papel social idealizado da vítima, utilizando violência psicológica, moral, física, sexual ou financeira como forma de punição repetitiva, tendendo ao agravamento cíclico e podendo culminar em homicídio⁽⁴⁴⁾. A progressão dessa punição normativa é perceptível a partir da identificação de atributos, como controle coercitivo, privação de serviços, padrão sistemático de poder e controle perpetuado e processo repetitivo que se agrava durante o relacionamento.

Tal conjunto de atributos deve ser levado em conta ao descrever o conceito de violência doméstica, entretanto salienta-se a lacuna identificada na literatura que compôs o corpus de análise que se restringiu aos atributos em relações heteronormativas.

Consequentes

Os consequentes identificados apontam para a repercussão comunitária da perpetração da violência doméstica. Embora se discuta que nem todas as mulheres são violentadas pelo seu gênero, todas temem ser potencias vítimas, na ausência de intervenção do Estado, cedendo ao poder que permeia essa violência como ato de autoproteção⁽⁴⁶⁾. Considerando o perfil de vítima e de contextualização de ato violento identificado por meio dos atributos e antecedentes deste estudo, é possível inferir que uma das principais consequências da perpetração da violência doméstica, para a comunidade, é a normalização e a manutenção do sistema patriarcal, que se inicia a partir do momento em que a vítima se cala como tentativa de evitar progressão da violência sofrida⁽⁴⁶⁾.

A progressão da violência foi objeto de análise no Atlas da Violência⁽⁴⁷⁾. Os homicídios de mulheres, entre os anos de 2007 e 2017, aumentaram em 30,7% em relação ao decênio anterior. Por outro lado, o Atlas apresenta a problematização da ineficiência da utilização de dados agregados da saúde para caracterizar esses homicídios ou como feminicídios – quando há intenção inicial de matar, ou como violência letal contra a mulher – quando não há intenção inicial de matar. Isso ocorre por conta da terminologia adotada pelo Ministério da Saúde, o Código Internacional de Doenças (CID), que não caracteriza a violência por sua motivação⁽⁴⁷⁾.

A análise realizada permitiu destacar o conceito de violência doméstica como um termo-filho do termo violência na CIPE ^®, possibilitando esclarecimento de suas especificidades por meio da composição de atributos, antecedentes e consequentes. O passo seguinte está direcionado à construção do conceito operacional e sua validação.

Limitações do estudo

A limitação deste estudo está relacionada ao corte transversal da coleta de dados, utilizando artigos de 2018. Esse limite foi minimizado pelo uso das referências de origem e pelo número de definições encontradas.

Contribuições para a área da enfermagem

Embora se compreenda que a violência doméstica é um fenômeno que exige enfrentamento interdisciplinar e intersetorial, vítimas são assistidas pela equipe de enfermagem em espaços intra e extra-hospitalares. Para identificar o fenômeno, muitas vezes invisível, é necessário que o enfermeiro, como coordenador do cuidado, compreenda a amplitude da origem do termo. Assim, a contribuição à área da enfermagem está explicitada pela melhor elaboração do conceito de interesse, que é foco de atenção da enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise realizada, considera-se que o termo violência doméstica está relacionado com antecedentes que abordam questões de gênero, raça/etnia e classe social, em espaços de poder. O agressor tende a ser uma figura de autoridade com poder e um membro da família da vítima, que é caracterizada como uma mulher adulta, remetendo à organização patriarcal da sociedade. São considerados violência doméstica, os atos violentos psicológicos, sexuais, físicos ou econômicos, assim como a privação de liberdade e de acesso a serviços. Essa violência diz respeito ao padrão de controle entre parceiros íntimos, que tende a ser normalizada por uma sociedade patriarcal. Os consequentes identificados apontam para repercussão comunitária e na saúde física e emocional da vítima. A análise remete à limitação do conceito de violência doméstica, não incluindo o fenômeno em distintos grupos geracionais, que, para a CIPE ^®, estão contemplados nos termos relacionados ao abuso. Tampouco foi discutida a presença de relações não heteronormativas.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  19 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  04 Jun 2020
• Aceito
  02 Out 2020