Acessibilidade / Reportar erro

Cuidado de pessoas idosas com incapacidades em Instituições de Longa Permanência para Idosos

RESUMO

Objetivo:

analisar a constituição do cuidado ofertado à pessoa idosa com incapacidades, na perspectiva de profissionais de uma Instituição de Longa Permanência para Idosos.

Métodos:

trata-se de uma análise do discurso com base no referencial pós-estruturalista. Os participantes deste estudo são profissionais envolvidos no cuidado de pessoas idosas, totalizando 14 entrevistados, sendo 13 mulheres e um homem.

Resultados:

na perspectiva dos profissionais, existe uma linha tênue entre o cuidar da pessoa idosa com incapacidades e a manutenção da sua autonomia. O cuidado em que a autonomia é restrita predispõe ao processo de dependência da pessoa idosa.

Considerações finais:

a cuidado à pessoa idosa com incapacidades se constitui o desafio entre cuidar e manter a independência. Assim, deve-se ter como premissa o cuidado centrado na pessoa idosa, para que suas individualidades sejam respeitadas.

Descritores:
Idoso; Idoso Fragilizado; Saúde do Idoso Institucionalizado; Instituição de Longa Permanência para Idosos; Cuidados de Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

to analyze the constitution of care offered to older adults with disabilities, from Long Term Care Facility professionals’ perspective.

Methods:

this is a discourse analysis based on the post-structuralist framework. Participants in this study are professionals involved in the care for older adults, totaling 14 respondents, 13 women and one man.

Results:

from professionals’ perspective, there is a fine line between caring for older adults with disabilities and maintaining their autonomy. Care in which autonomy is restricted predisposes older adults to a process of dependency.

Final considerations:

caring for older adults with disabilities constitutes the challenge between caring and maintaining independence. Thus, older adult-centered care should be taken as a premise so that their individualities are respected.

Descriptors:
Aged; Frail Elderly; Health of Institutionalized Elderly; Homes for the Aged; Nursing Care

RESUMEN

Objetivo:

analizar la constitución del cuidado ofrecido a los ancianos con discapacidad, en la perspectiva de los profesionales de una Institución de Larga Estancia para Ancianos.

Métodos:

se trata de un análisis del discurso basado en el marco postestructuralista. Los participantes de este estudio son profesionales involucrados en el cuidado de personas mayores, con un total de 14 encuestados, 13 mujeres y un hombre.

Resultados:

desde la perspectiva de los profesionales, existe una delgada línea entre cuidar a los ancianos con discapacidad y mantener su autonomía. Los cuidados en los que se restringe la autonomía predisponen al anciano a un proceso de dependencia.

Consideraciones finales:

el cuidado del anciano con discapacidad constituye el desafío entre cuidar y mantener la independencia. Así, debe tomarse como premisa el cuidado centrado en el anciano, de modo que se respeten sus individualidades.

Descriptores:
Anciano; Anciano Frágil; Salud del Anciano Institucionalizado; Hogares para Ancianos; Atención de Enfermería

INTRODUÇÃO

O número de idosos no mundo vem aumentando de forma contínua e exponencial. Em 1950, havia 202 milhões de pessoas acima de 60 anos, passando para 1,1 bilhão em 2020, e deve alcançar 3,1 bilhões em 2100. A população idosa de 60 anos ou mais representava 8% do total de habitantes de 1950, passando para 13,5% em 2020, e deve atingir 28,2% em 2100. O aumento da população idosa do Brasil tem sido mais acelerado, quando comparado ao cenário global. O número de brasileiros idosos com 60 anos e mais era de 2,6 milhões em 1950, passando para 29,9 milhões em 2020, e deve alcançar 72,4 milhões em 2100. A população idosa com 60 anos e mais representava 4,9% do total de habitantes de 1950, passando para 14% em 2020, e deve atingir o impressionante percentual de 40,1% em 2100(11 Organização das Nações Unidas (ONU). Revision of World Population Prospects [Internet]. 2022[cited 2023 Jan 22]. Available from: https://population.un.org/wpp2019/4
https://population.un.org/wpp2019/4...
).

Esse cenário de crescimento da população idosa e também da longevidade dos indivíduos, concomitante às mudanças socioeconômicas, culturais e na estrutura familiar, tem levado a um aumento da procura por vagas em Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI)(22 Lourenço LFL, Santos SMA. Institutionalization of elderly and family care: perspectives of professionals from long term facilities. Cogitare Enferm. 2021;26:e69459. https://doi.org/10.5380/ce.v26i0.69459
https://doi.org/10.5380/ce.v26i0.69459...
). As ILPI são definidas como “instituições governamentais ou não governamentais, de caráter residencial, destinadas ao domicílio coletivo de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, com ou sem suporte familiar, em condição de liberdade e dignidade e cidadania”(33 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RDC Nº 502, DE 27 DE MAIO DE 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 maio de 2010. Seção 1, p. 110.).

A principal característica das ILPI é defender a dignidade e o direito da pessoa idosa, mas isso é questionado devido ao fato de muitas se assemelharem a grandes alojamentos, marcados por regras rígidas, rotinas pré-determinadas e ausência de perspectivas para os residentes. Nesse contexto, são ignoradas as diferenças individuais e as histórias de vida de cada indivíduo. Assim, o idoso tende a perder sua identidade e autonomia, transformando-se em um sujeito passivo, o que pode levá-lo ao isolamento e torná-lo um ser apático e, até mesmo, depressivo(44 Andrade C, Santos ER, Carmo HO, Farias SMC. Tracking depression in institutionalized older adults. Rev Nurs. 2021;24(280):6179-84. https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6179-6190
https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24...
).

O processo natural de envelhecer não envolve, mandatoriamente, a presença de declínio funcional, entretanto, quando ele ocorre, pode ser atribuído às incapacidades que acometem os idosos. Assim, o comprometimento dos principais sistemas funcionais gera incapacidades, tais como incapacidade cognitiva, instabilidade postural, imobilidade, incontinência esfincteriana, iatrogenia, insuficiência familiar e incapacidade comunicativa(55 Yuaso DR. Síndromes geriátricas e a reabilitação da pessoa idosa. In: Universidade Aberta do Sus. Universidade Federal do Maranhão. Atenção à pessoa com deficiência I: transtornos do espectro do autismo, Síndrome de Down, pessoa idosa com deficiência, pessoa amputada e órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção. Atenção à Pessoa Idosa com Deficiência. São Luís: UNA-SUS; UFMA; 2021.). A presença dessas incapacidades na vida do idoso faz com que ele se torne mais dependente.

O declínio funcional na pessoa idosa deve ser analisado sob duas perspectivas: a que se relaciona à cognição e a que diz respeito às limitações físicas. Em relação à cognição, compreende a esfera mental e a capacidade de armazenar, processar informações e constituir memória(66 Santos B P, Amorim JSC, Poltronieri, BC, Hamdan AC. Association between functional disability and cognitive deficit in hospitalized elderly patients. Cad Bras Ter Ocup. 2021;29:e2101. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO210
https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO2...
). Em relação às limitações físicas, a Resolução nº 502/2021 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária(33 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RDC Nº 502, DE 27 DE MAIO DE 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 maio de 2010. Seção 1, p. 110.) define o grau de dependência do idoso, sendo essa dependência caracterizada como condição do indivíduo que requer o auxílio de pessoas ou equipamentos especiais para a realização das atividades de vida diárias (AVD).

A opção pela institucionalização do idoso que requer, em alguma medida, suporte de outra pessoa para o desempenho de suas AVDs, assim como a opção por mantê-lo em seu próprio domicílio ou de um familiar, está relacionada ao cuidado que será necessário e possível de ser, a ele, dispensado. O cuidado demanda responsabilidades, e pensar nas atribuições desse cuidado envolve decidir quem cuidará, como e porque, determinando a maneira como o contexto social será organizado para isso. É por meio dessa organização que se delimitam as possibilidades, as impossibilidades e os limites que moldam as práticas e as relações de cuidado(77 Gilligan C, Hochschild A, Tronto J. Contre l’indifférence des privilégiés: a quoi sert le care. Paris: Payot; 2013. https://doi.org/10.4000/gss.2907
https://doi.org/10.4000/gss.2907...
).

O sucesso nas práticas e na ação de tratar para cuidar perpassa compreender o processo de institucionalização do idoso e como isso interfere na ação transformadora de sua identidade. Assim, as rotinas de cuidado se tornam um atributo do ser para a intersubjetividade. Todo esse dinamismo levanta a necessidade de uma construção projetada e moldada, para que a assistência não tenha apenas um norte prático, mas uma orientação ética, afetiva e estética(88 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc. 2009;18(supl.2). https://doi.org/10.1590/S0104-12902009000600003
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200900...
).

Nas ILPI, é importante que o cuidado ofertado à pessoa idosa seja exercido por profissionais habilitados(33 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RDC Nº 502, DE 27 DE MAIO DE 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 maio de 2010. Seção 1, p. 110.) e que a prática desse cuidado seja amplamente discutida e reflexiva pela sociedade. No entanto, o que se tem visto é a participação de algumas entidades na elaboração de documentos que norteiam o cuidado prestado à população idosa institucionalizada, estreitando as possiblidades de discussões com a sociedade. Tal fato se legitima devido à incipiência na implementação de políticas públicas no Brasil para esse grupo, reconhecendo que são necessários estudos para identificar os pontos sensíveis que interferem, diretamente, no cuidado em ILPI(99 Fernandes DS. Performance of social movements and entities in the COVID-19 pandemic in Brazil: older adults care in long-term care facilities. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(2):e210048. https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.210048
https://doi.org/10.1590/1981-22562021024...
).

O cenário de institucionalização do idoso é questionado quando há um cerceamento de sua autonomia em decorrência da perda cognitiva e da perda da independência. Isso justifica a relevância de se investigar, sob diferentes óticas, quais são os desafios do cuidado diante do desenvolvimento de incapacidades da pessoa idosa em ILPI.

OBJETIVO

Analisar a constituição do cuidado ofertado à pessoa idosa com incapacidades, na perspectiva de profissionais de uma ILPI.

MÉTODO

Aspectos éticos

Para atender aos aspectos éticos, o projeto foi submetido à aprovação pelos Comitês de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG). O aceite da ILPI em participar da pesquisa foi documentado por meio da assinatura de Carta de Anuência. Assim, acatam-se as especificações da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e da Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi obtido de todos os indivíduos envolvidos na pesquisa, mediante 2 vias. Uma via foi entregue ao entrevistado no momento da entrevista, e a outra foi arquivada pelo pesquisador responsável em local apropriado.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, pautado na análise do discurso (AD), com base no referencial teórico-filosófico pós-estruturalista, que tem o filósofo francês Michel Foucault como um de seus principais representantes. A pesquisa qualitativa explora o não quantificado, enfatizando a dinâmica dos significados das ações e das relações humanas, o que corresponde a um aprofundamento dos fenômenos, processos e relações(1010 Minayo MCS. Amostragem e Saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qual [Internet]. 2017 [cited 2022 Nov 5];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
https://editora.sepq.org.br/rpq/article/...
). Os resultados desta pesquisa seguiram as orientações do COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ).

Cenário do estudo

A ILPI escolhida é filantrópica, e está situada na Regional Centro-Sul da capital mineira, e disponibiliza 30 vagas, caracterizando-se por ser uma instituição exclusiva para mulheres idosas. A instituição dispõe de equipe assistencial multidisciplinar composta por enfermeiro, assistente social, médico, psicólogo, cuidadores e técnicos de enfermagem.

Procedimentos metodológicos

Foi aplicada uma entrevista de roteiro semiestruturado que continha as seguintes questões: como é, para você, trabalhar em uma ILPI? Como é seu cotidiano de trabalho na instituição? Você considera que os idosos dessa ILPI têm condições de tomar decisões sobre as coisas que precisam fazer em seu dia a dia? Por quê? Poderia me falar um pouco sobre seu relacionamento com os idosos que residem aqui? Qual a sua percepção sobre a relação dos idosos institucionalizados com seus familiares e amigos? Você presta cuidado aos idosos institucionalizados? Que tipo de cuidado presta? Você considera que os idosos dessa ILPI têm condições de tomar decisões sobre as coisas que precisam fazer em seu dia a dia? Por quê? Na sua opinião, como os idosos e profissionais da Instituição lidam com aqueles internos que requerem cuidados paliativos? Que sentimento isso desperta em você? O que é, para você, envelhecer e ser idoso no Brasil?

Foram feitas visitas frequentes à instituição, de 3 a 5 vezes por semana, durante o período de janeiro a março do ano de 2017, para a coleta de dados, com registro em um diário de campo para a observação. O diário era preenchido em momentos relevantes durante as entrevistas e juntamente à observação das pesquisadoras, que aconteceram em dias de semana e final de semana, alternando os horários do dia de 07 horas até às 20 horas. Assim, foram realizadas entrevistas em todos os turnos de trabalho, manhã, tarde e noite, e os profissionais das diferentes categorias participaram da entrevista.

Fonte de dados

Os participantes deste estudo foram integrantes do corpo de profissionais envolvidos no cuidado na ILPI, e foram informados acerca do vínculo que as pesquisadoras tinham com uma universidade federal do estado de Minas Gerais e em relação ao tema da pesquisa a ser desenvolvida. Definiram-se como critérios de inclusão o profissional trabalhar na instituição há três meses ou mais, expressar desejo em participar da pesquisa e permitir a gravação da entrevista. Houve a exclusão de uma profissional, por trabalhar na instituição há menos de três meses.

Para definição da amostra, utilizou-se o critério de saturação dos dados, que consiste na técnica de suspensão de novos participantes na coleta, quando essa inclusão gera redundância de informações e os dados coletados se tornam repetitivos(1111 Duarte BK, Parenti ABH, Jamas MT, Nunes HRC, Parada CMGL. Factors associated with COVID-19 severity among Brazilian pregnant adolescents: a population-based study. Rev Latino-Am Enferm. 2022;30(spe):e3654. https://doi.org/10.1590/1518-8345.6162.3655
https://doi.org/10.1590/1518-8345.6162.3...
). Assim, a amostra foi composta por 14 profissionais das seguintes categorias: enfermeiro, médico, psicólogo, assistente social, cuidador e técnico de enfermagem.

A equipe de trabalho da ILPI era composta por uma equipe de cuidado direto com as idosas, sendo eles: dois médicos clínicos gerais, uma enfermeira, 3 técnicos e 5 cuidadores. Havia também a equipe de cuidado indireto que era responsável pela gestão, que contava com um assistente social e um psicólogo.

Coleta e organização dos dados

A equipe de pesquisa foi composta por três pesquisadoras, sendo uma delas com doutorado na área de enfermagem, uma aluna mestranda e uma graduanda de enfermagem. A aluna de graduação foi orientada e supervisionada pelas enfermeiras nas atividades em que participou. A mestranda e a graduanda foram treinadas pela professora doutora quanto às técnicas de condução das entrevistas.

As pesquisadoras convidaram os profissionais a participarem da entrevista em suas visitas na instituição, sendo agendado dia e horário que fosse conveniente aos participantes. Foram feitas cerca de cinco visitas na ILPI, para conhecer o interesse da instituição na realização da pesquisa, a estrutura da casa, as idosas e os profissionais, além de entender os horários de maior demanda de cuidado dos profissionais e a abertura deles frente ao pesquisado. Não foi realizado projeto piloto, e as pesquisas foram únicas e não foram refeitas.

As entrevistas aconteceram em um ambiente reservado e acolhedor da própria ILPI, que se assemelhava a uma sala de estar, estando presentes apenas as pesquisadoras, mestranda e graduanda, e o profissional entrevistado. Tiveram duração média de 15 minutos, sendo gravadas em equipamento Media Player e, posteriormente, o conteúdo foi transcrito, na íntegra, pela mestranda ou a graduanda. Não houve necessidade de se refazer nenhuma entrevista, nem foram devolvidas para correções ou comentários. Todo o material coletado foi convertido e tratado como texto. A transcrição das entrevistas em textos narrativos foi feita no Microsoft Word, bem como as notas de campo se tornaram textos de observação das práticas de cuidado observadas na ILPI.

Análise dos dados

Os dados coletados foram submetidos à AD, que visa à definição e organização do corpus, identificando os sujeitos enunciadores. Prosseguiu-se com a coleta dos registros, que é todo dado linguístico coletado pelo pesquisador em estado bruto. Posteriormente, partiu-se para a análise, na qual foi feita a organização dos dados, o que significa manuseá-los teoricamente e questioná-los. Nessa fase, interligou-se a teoria dos dados coletados com o subsídio teórico pesquisado. Em seguida, retornou-se ao corpus para evidenciar as características do discurso, além de recortar e analisar. A partir do corpus, foram organizados grupos semânticos para, então, iniciar a interpretação e a escrita da AD(1212 Souza SAF. Análise de Discurso: procedimentos metodológicos. 2. ed. Manaus: EDUA, 2021. 108 p.).

É importante enfatizar que o artigo também aborda a constituição do cuidado à pessoa idosa com incapacidade funcional em ILPI, apesar de terem sido encontrados outros temas na análise. Após a coleta dos dados, discutiu-se com a gestora da unidade e alguns participantes sobre a importância dos resultados da pesquisa, que serão apresentados aos demais participantes, possibilitando desdobramentos acerca desse cuidado.

RESULTADOS

No presente estudo, foram realizadas 14 entrevistas com profissionais da ILPI, constituindo um homem e 13 mulheres com idades entre 26 e 65 anos, com tempo de trabalho na instituição variando de um a 30 anos, sendo que cinco deles tinham formação de nível superior, e oito, de nível médio. Os únicos profissionais que tinham capacitação específica no cuidado ao idoso eram a equipe de cuidadores, e o restante da equipe multidisciplinar não apresentava capacitação para o público em questão. As entrevistas foram identificadas pela letra P, seguida de numeral arábico correspondente à sequência da entrevista.

Na perspectiva dos profissionais, a presença de dependência física está diretamente relacionada ao declínio cognitivo, existindo uma linha tênue entre o cuidar do outro e a manutenção de sua independência.

Essas [idosas residente na ILPI] grau I, que a gente fala, são as que andam. As que conseguem gerir totalmente sua vida. (P4)

Eu falo, assim, aquelas que se respondem por si, sim. As outras, que não têm como responder, que é um hábito da gente. Igual eu falo uma questão, quem é cadeirante. A gente tem que auxiliar. (P10)

Mas outras, que é lúcida mesmo, têm mais autoridade, né?! De que as que tão mais acamada. (P14)

Os discursos também apontam que a independência se confunde com a capacidade cognitiva, e os limites do cuidado são estabelecidos pela instituição para aquelas que dependem de algum tipo de auxílio.

Tem umas que são conscientes. As que são conscientes [...], nada impede de tá tomando decisões. Principalmente que se a gente tira isso, de quem tem condições disso, de exercer [a autonomia], a gente tá tirando a própria liberdade da pessoa e isso, às vezes, eu acho que pesa muito em ILPI. (P5)

Às vezes, elas falam, porque mesmo as não lucidas, às vezes, têm uns momentos de lucidez, que a resposta é congruente com a pergunta, né?! (P12)

Nos fragmentos acima, observa-se a divisão de duas categorias: as que conseguem gerir a vida e as que não gerem as suas vidas. Além disso, embora se observe preocupação com a qualidade do cuidado a ser prestado na ILPI, por vezes, esse cuidado predispõe a um processo de aumento da dependência da pessoa idosa, principalmente se existe alguma limitação devido à falta de estímulo à independência.

Hoje mesmo, eu estava comentando com uma cuidadora... questão de uma moradora que chegou aqui, ela passava da cama [...]. Passava da cadeira pra cama, na casa dela, sozinha. Hoje, a mulher não tem condições mais de sair da cadeira e ir pra cama. Por quê? “Vai cair!” “Vai machucar!” Aí depois, vai cair sobre mim. Então, “Eu te passo pra cama, beleza?!” Eu vou passar pra cama. Só que eu achei que ela regrediu muito depois que chegou aqui. [...] hoje, mal ela consegue pegar numa colher, né?! (P12)

Novamente, nesse fragmento acima, deparamo-nos com o processo de gestão das idosas. Somente agora que a ação das cuidadoras sobre a gestão do cotidiano das idosas leva elas a perderem a autonomia sobre seu dia a dia. Essa capacidade pode ser observada na capacidade cognitiva da pessoa idosa, que está diretamente vinculada à sua independência em realizar as AVD, como se pode observar no fragmento abaixo:

Um dia, fui visitar uma idosa em seu quarto e, depois de alguns minutos de conversa, ela queria ir ao banheiro, porém notei que estava de fralda, o que permitia que ela urinasse. Entretanto, percebi que ela não queria urinar na fralda, pois afirmou que tinha medo de “vazar” e, assim, ficar suja. Apesar de ser uma idosa com o cognitivo preservado, ela era cega, e, por isso, dependia de ajuda em algumas atividades cotidianas, como ir ao banheiro. Essa idosa apresentava recorrentes episódios de infecção no trato urinário, o que me levou a refletir sobre a situação. As possíveis causas das infecções podem se dever ao fato de que a idosa não tinha independência para ir sozinha ao banheiro ou porque segurava a urina durante um tempo prolongado por receio de se sujar, o que acabava aumentando a frequência das infecções. Além disso, para facilitar o manejo, a equipe de cuidado colocava fralda, fazendo com que a idosa ficasse um tempo maior com esse dispositivo sujo, molhado e incômodo. (Diário de Campo, 2018)

O discurso que se segue reforça a dependência da pessoa idosa como uma questão complexa de ser manejada no contexto do cuidado prestado na ILPI. Além disso, aponta que a necessidade de auxílio para as AVD faz com que as idosas com algum grau de dependência não tenham muitas oportunidades de exercitar sua independência.

Tem relatos aqui que me surpreende! De morador que entrou aqui com controle de esfíncter, com controle urinário e que usa fralda hoje, porque a rotina não permite que ela vá ao banheiro, a hora que ela quer. Isso é sério pra mim! Entendeu?! Isso que estou te falando? Que ela é cadeirante. Então, pra ir ao banheiro, ela depende de alguém. Isso é cruel de você pensar! Que você vai começar a usar fralda, porque você não pode ir ao banheiro a hora que você quer. Cruel! Quando eu cheguei, isso me matava! Mas, sinceramente falando, vai ter dia que não vai ter jeito mesmo [diminui o tom de voz]. Entendeu?! (P7)

Em uma rotina que, não raro, os profissionais lidam com uma sobrecarga de atividades, o cuidado, por vezes, é realizado de forma impessoal, e segue as rígidas normas institucionais, com pouco espaço para flexibilidade e sensibilidade para ouvir as escolhas da pessoa idosa. O serviço crescente precisa ser executado e padronizado pelas cuidadoras como em uma linha de montagem fordista e, como em toda esteira da linha, é o tempo que regula a montagem do produto: as idosas. O relato que se segue é também um exemplo disso.

Que na casa tinha isso assim. Ah! Vamos pegar! Hoje é dia de pegar fulano pra dar banho. Aí, eu lembro que as meninas chegaram pra mim e falaram assim: “A gente pode proceder como a gente procedia?”, “Pegar a fulana pra dar banho.”, “Uai, deixa eu ver como é que é isso?” Eu não esqueço dessa cena [...]. Aí, pegava a moradora, ela tomando banho, aí vinha duas cuidadoras, uma técnica e uma cuidadora, tipo, abria a porta, trancava e já começava aquela cena de guerra ali dentro, né?! Eu só ouvia: “Ahhh [imita gritos e berros]”. E eu: “Que isso?” Olha o detalhe, essa moradora tem um esquecimento muito grande, ela ficou o dia inteiro atrás de mim. Você que mandou, né?! Dia inteiro! Então, isso que foi traumatizante pra ela, ela não esqueceu, ela ficou com aquilo na memória, o dia inteiro e durante dias. Aí, a gente começa a pensar em outras saídas. Nunca mais pegamos ela a força. Nunca mais! Tem pelo mens uns oito meses que isso não acontece. (P7)

Assim, percebe-se que a rotina rígida e impessoal na organização do cuidado do outro é fator de constrangimento e insatisfação não só para o ser cuidado, mas para quem presta esse cuidado.

DISCUSSÃO

Pelo fato de o envelhecimento ser um processo cumulativo e irreversível, embora não patológico, o organismo sofre degradação, o que muitas vezes incapacita o indivíduo funcional e cognitivamente. Associado a isso, a institucionalização em ILPI leva o idoso a uma vida mais sedentária, com prejuízo de sua autonomia e piora gradativa da capacidade cognitiva. Sua capacidade funcional é influenciada pelo déficit cognitivo, com dano e sua independência e autonomia(1313 Moraes EN, Carmo JA, Machado CJ, Moraes FL. Índice de Vulnerabilidade Clínico-Funcional-20: proposta de classificação e hierarquização entre os idosos identificados como frágeis. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2020;22(1):31-5. https://doi.org/10.23925/1984-4840.2020v22i1a7
https://doi.org/10.23925/1984-4840.2020v...
).

Estimular a autonomia e independência da pessoa idosa melhora significativamente sua qualidade de vida. A inserção de instituições de ensino que realizam atividades junto às idosas contribui para que elas se exercitem e socializem, fato que já acontecia na casa, entretanto, por ser período de férias escolares, a casa se encontrava vazia. Outra possibilidade é a inserção da comunidade na vida das idosas, como os grupos pertencentes à igreja próxima à casa, ou os próprios moradores dos arredores, permitindo visitas e realização de atividades lúdicas, ou mesmo se responsabilizando por uma idosa e levando-as para um passeio ou assistir à missa. A inserção das idosas na vida da comunidade contribui para sua autoestima, independência e autonomia, favorecendo laços, interações e evitando adoecimentos.

Na ILPI, cenário deste estudo, observou-se, por meio dos discursos, uma classificação das idosas de acordo com o grau de dependência, normatizado informalmente na instituição. Essa classificação envolvia a demanda por ajuda em atividades de autocuidado, como banhar-se, alimentar, deambular, por ser deficiente visual, cadeirante ou possuir déficit cognitivo, que eram fatores que as levavam a serem classificadas como idosas dependentes e, consequentemente, consideradas como não lúcidas. Por esse quadro de fragilidade, tinham o poder de decisão cerceado pela equipe e ficavam sujeitas ao poder dos que cuidavam. Por outro lado, se a idosa era autônoma, ao ponto de ir e vir sozinha e decidir por si própria, ela era considerada uma idosa independente e tinha sua autonomia resguardada.

As características e limitações de cada grupo de idosas definiam as condutas, as demandas e o manejo em relação ao cuidado que lhes era prestado. Entretanto, o hábito de classificar reforçava a ideia de que, na ILPI, existiam apenas dois grupos de idosas: as dependentes e as independentes. Segundo Foucault(1414 Foucault M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 296 p.), há uma necessidade de qualificar os comportamentos e os desempenhos a partir de valores opostos, utilizando uma perspectiva entre o polo positivo e o negativo, o bom e o mau. O imperativo em qualificar as idosas fazia com que o não dito, por meio de regras e normas institucionais, tornasse-se indispensável. Assim, apesar de não existir a delimitação formal dos grupos, tal fato era percebido e dito nos discursos e no cuidar.

A categorização das idosas, entre dependentes e independentes, estava relacionada a executarem suas AVDs, sendo que, em relação às idosas independentes e sem declínio cognitivo, poucas limitações eram impostas. Às demais, impunham-se regras e limites previamente estabelecidos pela instituição. Essa ideologia nos remete a Foucault e seus pensamentos referentes às disciplinas em um ambiente hierarquizado e disciplinador, como o de uma ILPI. Assim, segundo Foucault(1515 Foucault M. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France, 1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 17 p.), as disciplinas têm seu próprio discurso e, para isso criam, de maneira inventiva, seus aparelhos de saber e de conhecimento. O discurso que as disciplinas criam é ligado à regra, ao discurso da norma, definindo um código de normalização que abarca o campo das ciências humanas e de um saber clínico(1616 Costa LS, Camargo LN. Disciplina e poder: breves considerações sobre a questão do corpo na filosofia de Michel Foucault. Rev Filos. 2019;19(1):127-38. https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.1029
https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.10...
). Dessa forma, o saber da instituição desqualificava os demais saberes, instituindo discursos e práticas cotidianas de cuidado que lhes eram convenientes, definindo as que tinham ou não autonomia.

A categorização das idosas era feita de forma aleatória, seguindo parâmetros informalmente pré-estabelecidos pelas cuidadoras, entre gestoras e não gestoras de suas rotinas. Interessante destacar que a palavra “gerir” traz acoplada a ela responsabilidade e autoridade. A gestão, segundo Chauí(1717 Chaui M. O totalitarismo neoliberal. Anacron Irrupción [Internet]. 2020[cited 2022 Nov 6];10(18):307-28. Available from: https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/anacronismo/article/view/5434/4431
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
), está atrelada ao discurso neoliberal e ao discurso da competência. Assim, para as profissionais entrevistadas, as idosas que têm a competência de cuidar de si são separadas das não competentes, e essas devem ser geridas por elas, pois não possuem a lucidez para isso.

As profissionais, que cuidavam diretamente das idosas, estabeleciam seus próprios critérios e padrões e, com isso, cada idosa recebia um diferente tratamento referente ao profissional que prestava a assistência. Além disso, essa classificação informal funcionava como uma forma de padronizar as idosas, o que tinha por objetivo homogeneizar, classificar e hierarquizar. Essa padronização, como já dito, cria a ideia de uma linha de montagem fordista de trabalho na ILPI, em que o tempo é a categoria mais importante do cuidado, tempo de banho, tempo de comida, tempo dos remédios, tempo de assistir televisão, tempo de ficar no pátio, tempo de rezar e tempo de tomar sol. É ainda importante salientar que classificar, hierarquizar e distribuir é utilizado pelo poder disciplinar como forma de normalizar um corpo social e, a partir dessa homogeneização, que é a regra, introduz-se, imperiosamente, a medição das diferenças individuais(1414 Foucault M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 296 p., 1515 Foucault M. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France, 1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 17 p., 1616 Costa LS, Camargo LN. Disciplina e poder: breves considerações sobre a questão do corpo na filosofia de Michel Foucault. Rev Filos. 2019;19(1):127-38. https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.1029
https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.10...
, 1717 Chaui M. O totalitarismo neoliberal. Anacron Irrupción [Internet]. 2020[cited 2022 Nov 6];10(18):307-28. Available from: https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/anacronismo/article/view/5434/4431
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
, 1818 Bocchetti A. Bodies, silences, and disciplines: on the ways to confine and their possible educations. Rev Pro Pos. 2022;33:e20200114. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2020-0114
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2020-0...
).

Entende-se que a realidade é construída com base na suposição de que existe apenas um corpo universal considerado normal, e os corpos que não atendem aos padrões de normalidade serão sempre problemáticos e particulares, assim como as classificações que os desabilitam ou incapacitam, fazendo com que eles se tornem visíveis. Assim, a normalização vem como forma de reproduzir as diferenças e as assimetrias e, assim, não consegue ser bem sucedida, pois busca desfazer essas distinções. Na mesma perspectiva, encontram-se as políticas e os serviços sociais, pois estão baseados no princípio da normalização, como se todos os corpos fossem normais(1919 Moser I. On becoming disabled and articulating alternatives: the multiple modes of ordering disability and their interferences. Cult Stud. 2005;19(6):667-700. https://doi.org/10.1080/09502380500365648
https://doi.org/10.1080/0950238050036564...
).

Embora haja instrumentos que definam os graus de dependência e a capacidade cognitiva dos idosos, não se observou a utilização desses, de forma sistemática, na ILPI. Como exemplo, a Resolução da Diretoria Colegiada 502/2021(33 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RDC Nº 502, DE 27 DE MAIO DE 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 maio de 2010. Seção 1, p. 110.) define o grau de dependência do idoso: os idosos de grau I são independentes, mesmo que requeiram uso de equipamentos de autoajuda; os de grau II são idosos com dependência em até três atividades de autocuidado para a vida diária como alimentação, mobilidade, higiene, mas não apresentam comprometimento cognitivo ou tem alteração controlada; e grau III são idosos que requeiram assistência em todas as atividades de autocuidado, somada à presença ou não de déficit cognitivo.

A categorização informal do idoso leva à determinação de suas necessidades, demandas e condições, bem como limita sua capacidade de se expressar e de ser autônomo, uma vez que se insere em um ambiente controlado e regulamentado. A ILPI é um modelo de institucionalização que vem carregado de controle, disciplina e divisão. Esse controle visa garantir a continuidade da dinâmica diária de trabalho(2020 Furtado IQCG, Velloso ISC, Galdino CS. Constitution of autonomy discourse of older person in the daily life of a Long-Term Care Facility for the older person. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(3):e200334. https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.200334
https://doi.org/10.1590/1981-22562021024...
).

O discurso de uma gestora da unidade aponta que o cuidado prestado em uma ILPI tem a tendência de tornar o idoso mais dependente do que o decorrer dos anos lhe impõe. Evidências da literatura apontam que o cuidado centrado na pessoa idosa tende a melhorar a experiência de vida, os resultados de saúde e a qualidade do cuidado, pois parte-se de uma assistência baseada nas necessidades e preferências daquele que está sendo cuidado(2121 Giacomin WE. Manual: qualidade do cuidado em instituição de longa permanência para idoso. Belo Horizonte; 2021. 307 p.).

O discurso da gestora aponta ainda a questão da independência do idoso como um processo ainda não realizado na prática pelos profissionais, apesar de suscitar reflexões entre eles. Nesse sentido, é relevante considerar que a incapacidade não é característica a um indivíduo, mas algo que ele vem a se tornar. Ademais, a questão central é como as pessoas se tornam e são feitas incapazes e, diante disso, quais as possibilidades para se articular alternativas(1919 Moser I. On becoming disabled and articulating alternatives: the multiple modes of ordering disability and their interferences. Cult Stud. 2005;19(6):667-700. https://doi.org/10.1080/09502380500365648
https://doi.org/10.1080/0950238050036564...
).

Percebe-se, ainda, um descontentamento com a situação vivenciada, ao mesmo tempo em que se conforma diante do cenário de escassez de recurso humano, financeiro e estrutural. O discurso reforça a dependência da idosa como uma questão complexa de ser manejada pela ILPI e que a necessidade de auxílio das idosas dependentes faz com que elas se tornem mais dependentes, pois não foram pensadas e criadas possibilidades que as permitam realizar suas atividades de autocuidado sem a ajuda de um cuidador. É importante considerar que o ambiente tem papel importante para limitar ou favorecer a independência da pessoa idosa em suas tarefas da vida cotidiana, por ter reflexos diretos na qualidade de vida e na demanda por cuidados(2121 Giacomin WE. Manual: qualidade do cuidado em instituição de longa permanência para idoso. Belo Horizonte; 2021. 307 p.).

O cuidado à pessoa idosa envolve considerá-la como um ser em sua integralidade, compreendendo o envelhecimento como um processo complexo permeado por doenças, incapacidades, dependência e perda de autonomia. Na perspectiva do cuidado, entende-se que o “bom cuidado” e o “mau cuidado” podem ser óbvios em alguns momentos, enquanto que, em outros, não, pois diferentes ambientes carregam complexidades e ambivalências diversas. Por vezes, boas intenções podem ter efeitos ruins; boas práticas podem conter algum mal intrínseco; o bom cuidado pode se tornar meta para um cuidado melhor ainda; e, às vezes, simplesmente, não está claro qual o tipo de cuidado é prestado(2222 Mol A, Moser I, Pols J. Care in practice on tinkering in clinics, homes and farms. 2010. 326 p.).

Percebe-se que ainda há um longo caminho para que o cuidado centrado na pessoa, que se refere a uma abordagem de cuidado que extrapola a doença e contexto social, tomando como foco o indivíduo e sua singularidade, seja uma realidade na ILPI. Ressalta-se que se trata de uma abordagem que preza pela dignidade, respeito, compaixão, sem desprezar as necessidades emocionais, sociais e práticas do ser cuidado e de seus cuidadores. Constitui-se uma alternativa para que as ILPI fujam do modelo de instituição total, a partir de práticas que envolvam escuta atenta e respeitosa e valorização da pessoa idosa(2121 Giacomin WE. Manual: qualidade do cuidado em instituição de longa permanência para idoso. Belo Horizonte; 2021. 307 p.).

O cuidado pode ser percebido em momentos que vão além de atender às necessidades básicas de saúde, pode ser demonstrado em um braço dado no momento oportuno ou em acompanhar em um chocolate quente para uma conversa. Na prática, o que reflete o bom cuidado pode refletir não apenas diferentes valores em relação a ele, mas também envolve as diferentes formas de ordenar a realidade. Assim, cuidado implica a negociação sobre os diferentes “bons” que podem coexistir em uma específica e dada prática local. É importante ressaltar que as práticas de cuidado devem ser seriamente atendidas, para que elas não entrem em erosão. Caso contrário, estarão submetidas a regulações e regras que a alienam(2222 Mol A, Moser I, Pols J. Care in practice on tinkering in clinics, homes and farms. 2010. 326 p.).

É comum que as ILPI tenham suas práticas estruturadas em torno de um poder disciplinar, sendo marcadas por rígidas regras e rotinas diárias, com horários bem determinados(2323 Mota MS, Pacheco ES, Pita BR, Sepulvida GS, Ferreira ET, Santos FC, et al. A sobrecarga do cuidador em instituição de longa permanência para idosos. Braz J Surg Clin Res [Internet]. 2020 [cited 2022 Nov 6];31(2):113-6. Available from: https://www.mastereditora.com.br/periodico/20200704_155502.pdf
https://www.mastereditora.com.br/periodi...
). Diante disso, o cuidado, por vezes, apresenta-se marcado por descontentamento e rigidez. Rigidez nas normas e descontentamento da experiência vivida. As formas de coerção e sanção são tão frequentes que se tornam algo naturalizado. Forçar uma idosa a tomar banho parece fazer parte da rotina, e o respeito ao corpo do outro deixa de existir frente à necessidade de limpeza e higiene. Tal comportamento apresenta um retrocesso em qualquer tipo de argumentação e a falência de uma sociedade disciplinar estruturada.

Segundo Foucault(1414 Foucault M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 296 p.), o uso da força física como punição do corpo havia se extinguido desde o século XIX, pois, a partir de então, a punição era da alma, atingindo o coração, o intelecto, a vontade e as disposições. Desse modo, as relações são permeadas por poder, que se inicia desde os processos de sujeição, permeando os processos ininterruptos e contínuos que sujeitam os corpos e regem seus comportamentos; poder de uns sobre os outros, constituídos de forma progressiva na multiplicidade dos corpos, das forças, das matérias e dos desejos(2424 Alves DB. Um estudo sobre o poder disciplinar no âmbito da obra vigiar e punir do filósofo francês Michel Foucault. Problemata: Rev Intern. Fil. 2020;11(1):301-16. https://doi.org/10.7443/problemata.v11i1.51125
https://doi.org/10.7443/problemata.v11i1...
).

Nessa perspectiva, é necessário olhar o cuidado de outra forma, para que ele se fundamente em práticas que permitam transformar o cuidador de idosos em uma ILPI com potencial instrumento que liberta de uma prática pautada em normatizações e incentive, de fato, a independência. Essa prática evitaria o assujeitamento das idosas em relação àqueles que cuidam, pois a determinação da incapacidade do outro é um processo que pode ser traçado genealogicamente e que emerge de um jogo de poder e conhecimento, através de mecanismos de regulação(1919 Moser I. On becoming disabled and articulating alternatives: the multiple modes of ordering disability and their interferences. Cult Stud. 2005;19(6):667-700. https://doi.org/10.1080/09502380500365648
https://doi.org/10.1080/0950238050036564...
). Dessa forma, o jogo de poder entre o cuidador e o cuidado acontece como forma de manter o poder centrado na instituição, nas normas, nos discursos, nas condutas, nas rotinas e nas regras impostas, o que faz com que o idoso mantenha sua condição de dependência por sua identidade frágil e senil.

Limitações do estudo

Este estudo tem como limitação o fato de ter sido realizado apenas em uma instituição e devido à homogeneidade do gênero feminino nos participantes do estudo.

Contribuições para a área de enfermagem

O estudo possibilitou conhecer as práticas de cuidado instituídas em uma ILPI, que são pautadas no coletivo e no senso comum de quem presta o cuidado, sem levar em consideração as especificidades dos idosos e as evidências científicas. Na instituição, não está definido um protocolo de classificação da funcionalidade das idosas, o que faz com que todas as idosas dependentes sejam tratadas da mesma forma, independentemente do motivo pelo qual ela dependa de auxílio. A falta de incentivo à independência faz com que ela necessite, cada vez mais, de cuidado, acarretando em crescente sobrecarga dos profissionais. Ao mesmo tempo, esse cuidado é transformado em perda de autonomia das idosas internadas, pois, de certo modo, a gestão da ILPI impõe a institucionalização de um padrão de cuidado onde os produtos, que são as idosas, sejam cuidados no tempo estabelecido pelos profissionais e instituição, e não no tempo de suas necessidades e demandas.

Embora haja uma exigência regulamentar da presença do enfermeiro nas ILPI, o processo de trabalho desse profissional não está, ainda, bem definido, com acúmulo e sobreposição de funções, sobrecarga, foco na solução de demandas emergentes, levando, muitas vezes, a um trabalho pouco reflexivo. Essa situação dificulta o processo de trabalho do enfermeiro, resultando em um cuidado generalista que cumpre com as demandas e as regras institucionais, entretanto, carente de cuidado centrado na pessoa. Não se sensibiliza em atender ao desejo e vontade de quem o recebe, pois não existe a clareza de que cuidar; vai além de um banho ou uma comida. Não é apenas sanar as demandas físicas, mas também ouvir quem é cuidado e fazer o possível para que o cuidado seja individualizado e humano. Dessa forma, este estudo pode contribuir para uma reflexão acerca dos processos de trabalho da equipe multidisciplinar que presta o cuidado à pessoa idosa nas ILPI, com ênfase na equipe de enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na perspectiva dos profissionais do presente estudo, o cuidado à pessoa idosa com incapacidades se constitui o desafio entre cuidar e manter a independência. O cuidado prestado pelos profissionais pode ser visto como uma forma de proteger o idoso de qualquer intercorrência que possa acontecer com sua integridade física. Em relação ao profissional, é executado como uma forma de se resguardar quanto a questões relativas à negligência, imperícia e imprudência de seus atos. Entretanto, essa forma de cuidado não possibilita o estímulo à independência da pessoa idosa, e um dos principais fatores, que influenciam negativamente nesse processo, é a incapacidade cognitiva e o uso de dispositivos de autoajuda por parte do idoso.

É importante salientar que o trabalho em uma ILPI não se constitui uma tarefa simples. Cuidar abarca particularidades e especificidades, principalmente quando esse indivíduo cuidado é um idoso. Associado a isso, não existe um incentivo para que os profissionais se capacitem e se motivem para o trabalho que exercem, tornando-se um conjunto de tarefas automáticas que homogeneíza não apenas suas práticas, mas a vida daqueles que são cuidados. Essa homogeneização se materializa em classificações e categorizações das idosas como uma maneira de padronizar as condutas e os comportamentos e marcar os desvios. Assim, o cuidado prestado nem sempre respeita as necessidades do indivíduo, bem como não há flexibilização das normas e rotinas, que acabam por prevalecer na instituição.

Assim, deve-se ter como premissa o cuidado centrado na pessoa idosa, para que suas individualidades sejam respeitadas, e suas demandas, atendidas. Além disso, pautar a assistência nos idosos possibilita o incentivo de sua independência, permitindo-os transpor o papel de sujeitos dependentes e assujeitados para indivíduos capazes de decidir por si próprios. Portanto, há uma lacuna em se garantir meios para que o idoso seja cuidado de acordo com suas necessidades, compreendendo que essa conquista impacta diretamente no cuidado e na qualidade de vida dos idosos.

DISPONIBILIDADE DE DADOS E MATERIAL

https://doi.org/10.48331/scielodata.SZTYSJ

  • FOMENTO
    Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo apoio para o desenvolvimento desta pesquisa, por meio do fomento APQ-000909-18, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio na tradução e revisão do artigo.

REFERENCES

  • 1
    Organização das Nações Unidas (ONU). Revision of World Population Prospects [Internet]. 2022[cited 2023 Jan 22]. Available from: https://population.un.org/wpp2019/4
    » https://population.un.org/wpp2019/4
  • 2
    Lourenço LFL, Santos SMA. Institutionalization of elderly and family care: perspectives of professionals from long term facilities. Cogitare Enferm. 2021;26:e69459. https://doi.org/10.5380/ce.v26i0.69459
    » https://doi.org/10.5380/ce.v26i0.69459
  • 3
    Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RDC Nº 502, DE 27 DE MAIO DE 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 maio de 2010. Seção 1, p. 110.
  • 4
    Andrade C, Santos ER, Carmo HO, Farias SMC. Tracking depression in institutionalized older adults. Rev Nurs. 2021;24(280):6179-84. https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6179-6190
    » https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6179-6190
  • 5
    Yuaso DR. Síndromes geriátricas e a reabilitação da pessoa idosa. In: Universidade Aberta do Sus. Universidade Federal do Maranhão. Atenção à pessoa com deficiência I: transtornos do espectro do autismo, Síndrome de Down, pessoa idosa com deficiência, pessoa amputada e órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção. Atenção à Pessoa Idosa com Deficiência. São Luís: UNA-SUS; UFMA; 2021.
  • 6
    Santos B P, Amorim JSC, Poltronieri, BC, Hamdan AC. Association between functional disability and cognitive deficit in hospitalized elderly patients. Cad Bras Ter Ocup. 2021;29:e2101. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO210
    » https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO210
  • 7
    Gilligan C, Hochschild A, Tronto J. Contre l’indifférence des privilégiés: a quoi sert le care. Paris: Payot; 2013. https://doi.org/10.4000/gss.2907
    » https://doi.org/10.4000/gss.2907
  • 8
    Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc. 2009;18(supl.2). https://doi.org/10.1590/S0104-12902009000600003
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902009000600003
  • 9
    Fernandes DS. Performance of social movements and entities in the COVID-19 pandemic in Brazil: older adults care in long-term care facilities. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(2):e210048. https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.210048
    » https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.210048
  • 10
    Minayo MCS. Amostragem e Saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qual [Internet]. 2017 [cited 2022 Nov 5];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
    » https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
  • 11
    Duarte BK, Parenti ABH, Jamas MT, Nunes HRC, Parada CMGL. Factors associated with COVID-19 severity among Brazilian pregnant adolescents: a population-based study. Rev Latino-Am Enferm. 2022;30(spe):e3654. https://doi.org/10.1590/1518-8345.6162.3655
    » https://doi.org/10.1590/1518-8345.6162.3655
  • 12
    Souza SAF. Análise de Discurso: procedimentos metodológicos. 2. ed. Manaus: EDUA, 2021. 108 p.
  • 13
    Moraes EN, Carmo JA, Machado CJ, Moraes FL. Índice de Vulnerabilidade Clínico-Funcional-20: proposta de classificação e hierarquização entre os idosos identificados como frágeis. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2020;22(1):31-5. https://doi.org/10.23925/1984-4840.2020v22i1a7
    » https://doi.org/10.23925/1984-4840.2020v22i1a7
  • 14
    Foucault M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 296 p.
  • 15
    Foucault M. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France, 1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 17 p.
  • 16
    Costa LS, Camargo LN. Disciplina e poder: breves considerações sobre a questão do corpo na filosofia de Michel Foucault. Rev Filos. 2019;19(1):127-38. https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.1029
    » https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.1029
  • 17
    Chaui M. O totalitarismo neoliberal. Anacron Irrupción [Internet]. 2020[cited 2022 Nov 6];10(18):307-28. Available from: https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/anacronismo/article/view/5434/4431
    » https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/anacronismo/article/view/5434/4431
  • 18
    Bocchetti A. Bodies, silences, and disciplines: on the ways to confine and their possible educations. Rev Pro Pos. 2022;33:e20200114. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2020-0114
    » https://doi.org/10.1590/1980-6248-2020-0114
  • 19
    Moser I. On becoming disabled and articulating alternatives: the multiple modes of ordering disability and their interferences. Cult Stud. 2005;19(6):667-700. https://doi.org/10.1080/09502380500365648
    » https://doi.org/10.1080/09502380500365648
  • 20
    Furtado IQCG, Velloso ISC, Galdino CS. Constitution of autonomy discourse of older person in the daily life of a Long-Term Care Facility for the older person. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(3):e200334. https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.200334
    » https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.200334
  • 21
    Giacomin WE. Manual: qualidade do cuidado em instituição de longa permanência para idoso. Belo Horizonte; 2021. 307 p.
  • 22
    Mol A, Moser I, Pols J. Care in practice on tinkering in clinics, homes and farms. 2010. 326 p.
  • 23
    Mota MS, Pacheco ES, Pita BR, Sepulvida GS, Ferreira ET, Santos FC, et al. A sobrecarga do cuidador em instituição de longa permanência para idosos. Braz J Surg Clin Res [Internet]. 2020 [cited 2022 Nov 6];31(2):113-6. Available from: https://www.mastereditora.com.br/periodico/20200704_155502.pdf
    » https://www.mastereditora.com.br/periodico/20200704_155502.pdf
  • 24
    Alves DB. Um estudo sobre o poder disciplinar no âmbito da obra vigiar e punir do filósofo francês Michel Foucault. Problemata: Rev Intern. Fil. 2020;11(1):301-16. https://doi.org/10.7443/problemata.v11i1.51125
    » https://doi.org/10.7443/problemata.v11i1.51125

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    11 Jul 2023
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br