Ideação e tentativa de suicídio de mulheres idosas no nordeste do Brasil

RESUMO

Objetivo:

analisar as experiências de vida de mulheres idosas nordestinas com ideação e tentativa de suicídio.

Método:

Estudo qualitativo com catorze idosas das cidades de Piripiri (PI), Teresina (PI), Fortaleza (CE) e Recife (PE) que foram entrevistadas entre novembro de 2013 e julho de 2014. A organização dos dados originou as temáticas: vivências de maus-tratos ao longo da vida; fraturas conjugais e isolamento social; e maternidade fragilizada.

Resultados:

As mulheres nasceram e viveram boa parte da vida na zona rural, na pobreza e exclusão social. Apresentavam histórias de maus-tratos, violência física e sexual, perpetrada por parceiros íntimos e/ou familiares. Vivenciaram isolamento social, vínculos afetivos fragilizados e várias tentativas de suicídio ao longo da vida.

Considerações finais:

A vida dessas idosas foi acometida por eventos traumáticos que aguçaram sentimentos de desesperança, sintomas depressivos e ausência de plano para o futuro, percebendo o suicídio como forma de antecipar a morte.

Descritores:
Tentativa de Suicídio; Mulheres; Idoso; Ideação Suicida; Violência

ABSTRACT

Objective:

to associate the life experiences of older women from the Northeast of Brazil with their suicidal ideation and attempts.

Method:

Qualitative study with fourteen older adults from Piripiri (PI), Teresina (PI), Fortaleza (CE) and Recife (PE) who were interviewed between November 2013 and July 2014. The organization of data originated the themes: experiences of abuse throughout their lives; marital fractures and social isolation; weakened motherhood.

Results:

The women were born and lived most of their life in the countryside, amid poverty and social exclusion. They had a history of abuse, physical and sexual violence, perpetrated by intimate partners and/or family members. They experienced social isolation, weakened emotional bonds and several suicide attempts.

Final considerations:

The life of these older women was affected by traumatic events that enhanced feelings of hopelessness, depressive symptoms and the absence of a plan for the future, making them consider suicide as a way to anticipate death.

Descriptors:
Suicide Attempt; Women; Older Adults; Suicidal Ideation; Violence

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las experiencias de vida de mujeres ancianas nordestinas con ideación e intento de suicidio.

Método:

Estudio cualitativo con catorce ancianas de las ciudades de Piripiri (PI), Teresina (PI), Fortaleza (CE) y Recife (PE) que fueron entrevistadas entre noviembre del 2013 y julio del 2014. La organización de los datos originó las temáticas: vivencias de maltratos a lo largo de la vida; fracturas conyugales y aislamiento social; y maternidad frágil.

Resultados:

Las mujeres nacieron y vivieron buena parte de la vida en la zona rural, en la pobreza y exclusión social. Presentaban historias de maltratos, violencia física y sexual, perpetrada por parejas íntimas o familiares. Experimentaron aislamiento social, vínculos afectivos frágiles y varios intentos de suicidio a lo largo de la vida.

Consideraciones finales:

La vida de esas ancianas ha sido acometida por eventos traumáticos que agudizaron sentimientos de desesperanza, síntomas depresivos y ausencia de planes para el futuro, lo que las llevó a percibir el suicidio como forma de anticipar la muerte.

Descriptores:
Intentos de Suicidio; Mujeres; Anciano; Ideación Suicida; Violencia

INTRODUÇÃO

Este trabalho aborda as experiências de vida de mulheres idosas nordestinas com ideação persistente de morte e conduta suicida. Entende-se que eventos traumáticos ocorridos nas distintas etapas da vida – infância, juventude, adulta e idosa – marcam de forma negativa o trajeto do indivíduo. Em alguns casos, tais experiências podem levá-lo ao desenvolvimento de ideação ou tentativas suicidas, cujos fatores de risco conhecidos na literatura são principalmente: história familiar de comportamentos suicidários; solidão e isolamento social; dependências sociais, físicas, mentais ou de fármacos e alcoolismo; doença terminal acompanhada por dor crônica; e problemas sociais, econômicos e desgaste psicológico^(1-9).

Por tentativas de suicídio compreendem-se atos realizados por indivíduos visando à morte, o que, por razões diversas, não é alcançado⁽¹⁰⁾. Tal comportamento costuma acontecer quando o indivíduo não consegue identificar alternativas para solucionar seus sofrimentos, vislumbrando na morte a solução de seus problemas.

Em nível mundial sabe-se que mulheres idosas tentam mais o suicídio do que os homens⁽¹¹⁾. E a Organização Mundial de Saúde (OMS)⁽¹²⁾ calcula que para cada suicídio consumado há cerca de vinte pessoas que o tentam. Entre idosos⁽¹³⁾ é relevante assinalar que a razão entre tentativas e suicídios efetivados chega a ser de aproximadamente 2:1, alertando para o fato de que a tentativa prévia é importante fator preditivo para futura concretização. Apesar da sua relevância, existe uma subnotificação das tentativas de suicídio pois de cada três, apenas uma é atendida em serviço de urgência, que ocorre quando a lesão é muito grave⁽¹⁴⁾. Após uma tentativa, estima-se que o risco de suicídio aumente em pelo menos cem vezes em relação aos índices presentes na população geral⁽¹⁵⁾.

No Brasil, dados do Ministério da Saúde informam que 11 mil pessoas/ano praticam o suicídio, registrando taxa de 5,7/100.000 habitantes. A mortalidade por esta causa é mais prevalente na população acima de 70 anos. Entre 2011 e 2016, 27,8% das lesões autoprovocadas foram por tentativas de suicídio e as mulheres tentaram duas vezes mais que os homens. Envenenamento constitui-se um dos principais métodos utilizados na tentativa de suicídio⁽¹⁶⁾.

Mulheres tentam o suicídio por motivos diferentes dos homens. Uma série de fatores está associada a esse comportamento, por exemplo, violência física, intrafamiliar, sexual e matrimonial no decorrer da vida e mantendo-se no presente, doenças físicas na infância e na velhice, morte dos pais na infância, dificuldades financeiras^(1-9). Acrescentam-se a esses fatores eventos traumáticos como aborto, depressão pós-parto e transtornos alimentares, depressão ao longo da vida, isolamento social, baixa resiliência, descontrole emocional, morte do cônjuge e dos filhos, privação social, conflitos familiares e sofrimento mental. Diferentemente dos homens, o casamento não tem sido fator protetor para as mulheres idosas^(1-9).

No Brasil constata-se que muitas idosas se suicidaram por considerar que haviam cumprido rigidamente seu papel de gênero imposto pela sociedade patriarcal e que sua vida não tinha mais sentido^(3-5). Tais mulheres tendem a vivenciar um apagamento social e uma sensação de estar num “não lugar” após terem exercido, exclusivamente, a maternidade e os cuidados domésticos^(2-5,7).

Este artigo responde a uma indagação muito específica: de que modo as experiências e vivências de algumas mulheres idosas nordestinas podem ter favorecido seu comportamento suicida? Esse tema é tratado a partir das próprias narrativas de suas histórias.

Em âmbito mundial, mortes autoinfligidas, tentativas e ideações suicidas tendem a crescer entre os mais velhos. No Brasil, o tema ainda é pouco debatido e investigado. Ao considerar o aumento da população idosa, reafirma-se a importância de ampliar e aprofundar os debates e a compreensão sobre o fenômeno, aproximando-se das singularidades regionais e locais. Segundo a OMS⁽¹²⁾, suicídio é um evento prevenível e, por isso, é importante delinear estratégias que possam detectar situações que circunscrevem ideações e tentativas, convocando gestores, profissionais da saúde e sociedade a atuar em prol de uma velhice com qualidade de vida e apoiada por familiares, amigos e comunidade. Nesse sentido, falar de comportamento suicida é simultaneamente falar da vida numa etapa crucial do ciclo existencial.

OBJETIVO

Analisar experiências de vida de mulheres idosas nordestinas com ideação e tentativa de suicídio.

MÉTODO

Aspectos éticos

Os procedimentos éticos, com a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em consonância com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e com os compromissos assumidos na aprovação desta pesquisa.

Tipo de estudo

Estudo de natureza qualitativa⁽¹⁷⁾, no qual buscou-se compreender experiências vivenciadas ao longo da vida e sentidos subjacentes atribuídos pelas mulheres entrevistadas⁽¹⁷⁾.

Referencial teórico-metodológico

Utilizou-se abordagem hermenêutica-dialética⁽¹⁷⁾. Desse modo, a escuta qualificada e sensível das narrativas das idosas nordestinas proporcionou uma forma de apreender a significação das experiências, considerando as opiniões, os valores, as crenças e seu modo de pensar, sentir e agir⁽¹⁷⁾. Procurou-se o sentido dos fatos do passado a partir do presente e projetados para o futuro que se relacionavam ao desejo de morrer por parte dessas idosas.

Procedimentos Metodológicos

Cenário do estudo

Trata-se de um recorte da pesquisa nacional e multicêntrica intitulada Estudo sobre tentativas de suicídio em idosos sob a perspectiva da saúde pública⁽¹⁸⁾ que envolveu doze cidades das cinco macrorregiões do país. Este artigo reporta-se às experiências de ideações e tentativas de suicídio de mulheres idosas das seguintes cidades nordestinas – Teresina (PI), Piripiri (PI), Recife (PE) e Fortaleza (CE) – que, além de apresentarem altas taxas de suicídio de idosos, encontram-se entre as que se destacam por maior desigualdade socioeconômica e cultural no Brasil⁽¹⁹⁾.

Nesse cenário histórico persiste a discriminação de gênero que contribui para a desvalorização do papel da mulher na sociedade. Na região se encontram significativas taxas de internação hospitalar por tentativa de suicídio (10,5 por 100.000 mulheres), com tendência de aumento nos últimos anos⁽²⁰⁾.

Fonte de dados

As participantes foram localizadas e contactadas por intermédio dos profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e de Instituições de Longa Permanência para Idosos (Ilpi).

Neste artigo analisam-se as experiências de catorze idosas com histórico de ideação ou tentativa de suicídio após os 60 anos de idade e aptas para narrar suas histórias de vida.

Coleta e organização dos dados

O trabalho de campo ocorreu entre novembro de 2013 e julho de 2014. As entrevistas em profundidade foram guiadas por um roteiro específico para pessoas idosas⁽²¹⁾, que incluiu identificação, atributos demográficos, configuração familiar, morbidade referida, estado mental anterior à ideação e tentativa suicida, possíveis causas, impacto sobre a família, violências sofridas e possibilidade de superação do fato⁽⁵⁾.

As entrevistas foram agendadas pelos profissionais de saúde citados anteriormente e realizadas nas residências das idosas (varanda, salas, cozinha), consideradas por elas ambiente acolhedor e privativo.

O primeiro contato de uma das autoras com as participantes deu-se nas residências, com conversas informais e mantendo clima descontraído no sentido de assegurar um ambiente relacional favorável ao diálogo. Em seguida solicitava-se à interlocutora que falasse espontaneamente sobre sua vida e acrescentava-se questões sobre a experiência de tentativas e ideações suicidas numa atmosfera afável, sem julgamento e crítica. Percorrer as tramas tecidas por elas constituiu momentos fortes de emoções e, por vezes, de choro. Nos casos em que se mostrou necessário, as idosas foram encaminhadas para profissionais competentes.

Desse modo, as entrevistas aconteceram de forma acolhedora e harmoniosa entre a pesquisadora e a entrevistada, evitando-se constrangimentos e interrupções durante a conversa que teve duração de aproximadamente noventa minutos. Esclarece-se que as gravações das entrevistas ocorreram após assinatura do termo de consentimento.

Análise dos dados

De posse do material, deu-se a compilação e organização de um corpus para iniciar a pré-análise, articulando-se o objetivo com os relatos das idosas. Mediante leitura atenta, identificou-se a coesão de histórias de maus tratos em vários estágios da vida das mulheres, disjunções nos relacionamentos afetivos e conjugais, forte sensação de abandono e ambiguidades no papel de mãe.

Nessa lógica, inferências compreensivas e interpretativas conduziram o destaque das seguintes temáticas: vivências de maus-tratos ao longo da vida; fraturas conjugais e isolamento social; e maternidade fragilizada. O foco da análise e da discussão se concentra nesses pontos.

A despeito de trabalhos anteriores oriundos de pesquisa mais ampla⁽⁵⁾, esse recorte não propõe generalizações, mas pontua eventos singulares que acompanharam a vida dessas mulheres que vivenciaram (ou vivenciam) ideação e tentativa de suicídio, evento que desafia a sociedade contemporânea.

RESULTADOS

Das mulheres entrevistadas que apresentaram tentativas e ideações suicidas, seis estavam na faixa etária de 60 a 69, cinco entre 70 e 79 anos e três com mais de 80 anos. Seis tinham o ensino fundamental incompleto, quatro eram analfabetas e quatro o ensino médio completo. Do total, onze professaram o catolicismo; sete tiveram mais de cinco filhos; dez eram viúvas e duas solteiras. Nove residiam na casa de parentes e cinco em seus lares. Todas manifestaram ideação suicida e doze mulheres tentaram suicídio por envenenamento; sete tentaram suicídio três ou mais vezes.

Vivências de maus-tratos ao longo da vida

Algumas dessas idosas, desde a infância vivenciaram situações difíceis e adversas. Lidaram com a morte dos pais, enfrentaram graves enfermidades, moraram com parentes que as violentaram, tiveram educação rígida, em que eram “adestradas” para ser donas de casa, mães e esposas submissas aos desejos dos homens. Ficam evidentes a desigualdade de poder entre os gêneros e as situações de violência experimentadas ao longo da vida:

Quando criança tentei suicídio porque minha mãe me deu uma surra porque eu tinha ido brincar no parque, naqueles barcos. Minha mãe disse que aquilo era coisa de homem e me deu uma surra muito grande. Para me vingar queimei minhas roupas e fui para o quintal para colocar querosene em mim e tacar fogo. Minha amiga chamou minha mãe e ela começou a chorar pensando que eu estava morta. (MAVS, 68 anos, casada há 45 anos, atualmente dona de casa e aposentada, Fortaleza/CE)

Nas falas que seguem, a idosa refere que sempre se sentiu sozinha no mundo, suas lembranças de infância remetem à morte prematura da mãe e ao abandono do pai, que ao casar-se novamente, abdicou de sua responsabilidade paterna. Ela passou a ser educada e criada por uma tia. A situação de desamparo agravou-se pela presença constante de violência física e sexual sofrida por parte dos familiares. Ela conta que viveu sua infância em constante exposição às violências, com desassossego psicoemocional e desesperança. Não tem mais expectativas e planeja suicidar-se:

Eu era meninota, meu cunhado vinha bulir comigo de noite e, em uma noite, ele me deu uma surra muito grande, eu não almocei, não jantei, não comi nada e fiquei pensando: aos seis anos ficar sem pai, sem mãe, chega um dá um tapa na minha cabeça, chega outro me dá umas “correadas”, enquanto vida eu tiver, não vou apanhar mais. Comecei a planejar como me matar, peguei a gilete e comecei a me cortar, daí uma vizinha me viu e me levou para o pronto socorro. (MAOM, 77 anos, viúva, não aposentada, mora em Ilpi, Fortaleza/CE)

Muitas vivenciaram miséria e pobreza e foram crianças trabalhadoras que tinham que cooperar para o sustento do lar. Essa situação tinha consequência no abandono dos estudos, das brincadeiras na infância e impulsionava as frustrações e a tristeza.

Nessa escolinha [em que eu estudei] a professora dava bolo na gente, e eu tinha pavor a isso. Teve um dia em que ela achou que eu tinha batido na menina, [uma colega de turma] e me deu 6 bolos aqui [na mão esquerda] e 6 bolos aqui [na mão direita]. Aos 10 anos eu comecei a ensinar lá e com esse ensinamento eu fui pagando meus estudos, que a minha mãe não podia. Era pobre, meu pai era pedreiro, não tinha condições, e eram seis filhos. (MAVS, 68 anos, casada há 45 anos, atualmente dona de casa e aposentada, Fortaleza/CE)

Neste estudo encontrou-se também a presença de sintomas depressivos na infância:

sinto tristeza desde pequena [infância] , minha infância foi marcada pela peia que eu levava, eu era danada e minha mãe tinha o direito de me açoitar e isso me marcou muito. (MAOM, 77 anos, viúva, não aposentada, mora em Ilpi, Fortaleza/CE)

Fraturas conjugais e isolamento social

Casamento precoce e arranjado foi uma das vivências mais dolorosas encontradas entre várias mulheres entrevistadas. Essas mulheres vivenciaram renúncias, tristezas, imposições dos maridos e privações sociais, tornando-se reféns de atividades domésticas, do cuidado com os filhos ou do exercício de duplas jornadas de trabalho conduzidas por obrigação. Para elas, havia um mundo sombrio e sem direitos, percebendo-se presas e esmagadas pela violência simbólica manifestada pela cultura do machismo.

O pai dos meus filhos era um pouco difícil, era muito machista, era daquelas pessoas que diziam assim: “quero você da porta para dentro. Você não tem direito de fazer nada, que aqui quem ganha o dinheiro sou eu, ele batia no bolso e dizia: você come do que eu quiser, sou eu que trabalho”. Eu me achava muito omissa, me sentia como se fosse uma empregada e começamos a brigar, algumas vezes ele me bateu e nós nos separamos porque isso estava deixando as crianças muito emotivas. (MELQ, 64 anos, viúva, atualmente sem ocupação, Fortaleza/CE)

No caso concreto citado anteriormente, além de decepção amorosa, essa idosa continuou sendo violentada psicologicamente para que não entrasse na justiça exigindo seus direitos, tendo que trabalhar duramente para sustentar os filhos:

eu já fiz de tudo nessa vida, vendia frutas, verduras, fazia cocada e os meninos vendiam na escola, saía pelas portas vendendo, juntando reciclagem. (MELQ, 64 anos, viuva, atualmente sem ocupacao, Fortaleza/CE)

Por ter que trabalhar também no horário noturno, sofreu violência urbana:

muitas vezes eu fui assaltada quando eu ia do trabalho para casa, o bandido chegava a me bater, me agrediram muito, me bateram, jogaram os meus óculos no chão, bateram no meu rosto. (MELQ, 64 anos, viuva, atualmente sem ocupacao, Fortaleza/CE)

Algumas dessas senhoras contam que foram brutalmente violentadas, impotentes e fragilizadas em diversos momentos da vida. Umas fugiram de casa, passaram fome, dormiram na rua e trabalharam duramente em empregos sub-remunerados para garantir o sustento dos filhos. As que tentaram suicídio em diferentes momentos da vida, o fizeram como forma de exterminar o sofrimento constantemente abafado, sufocado e emudecido:

Quando eu boto tudo na minha mente, boto o lençol na minha boca que é para os vizinhos não ouvir e fico chorando, soluçando. (AAS, 66 anos, divorciada, com uma filha, Fortaleza/CE)

Maternidade fragilizada

A maternidade é um evento em que ocorrem intensas transformações na vida da mulher. O desamparo, a falta de apoio emocional, social e a solidão são estressores que levaram algumas das mulheres entrevistadas à depressão pós-parto e ao comportamento suicida:

Logo quando casei, nos mudamos e eu tive depressão pós-parto, me vi sozinha, tendo que cuidar de um bebê, tomar de conta de uma casa, sem conhecer ninguém, eu me senti sozinha demais. Não tinha ninguém e não sabia cuidar da menina, bateu um desespero, sabe? Tomei veneno e quase ia dando para ela também. (MGAA, 63 anos, viúva, com quatro filhos, TERESINA/PI)

A narrativa deixa clara a angústia que a maternidade exerceu na vida dessa mulher. A aflição por não saber lidar com bebê recém-nascido provocou o desmoronamento da vida emocional. A visão desesperadora evidencia a falta de suporte frente à dificuldade do cumprimento social do papel de mãe, esposa e dona de casa.

Na maternidade não são apenas momentos pós-parto os mais delicados. Em geral, as mulheres aqui entrevistadas e que tiveram filhos, dedicaram suas vidas integralmente a seus cuidados. Muitas enfrentaram imensos obstáculos para criá-los e educá-los. Entretanto, elas se queixam da falta de reciprocidade, sentindo-se abandonadas, desprezadas e desafortunadas.

Pelo meu gosto eu não me levantava da cama em nenhum instante, meus filhos passam é de três meses ou mais sem vir aqui […] nisso eu tenho muito a lamentar, ela [a filha] diz “mamãe todo mundo trabalha até tarde da noite”, isto é que me chateia muito: a frieza que eu encontro nos meus filhos e na minha filha, isso me dói, me faz mal, isso me fere muito. (LCS, 87 anos, viúva, quatro filhos, Piripiri/PI)

Essa idosa comenta que sempre fez de tudo pelos filhos e em todo o percurso da sua vida os tratou com zelo, carinho e respeito. Mas hoje eles a procuram apenas quando precisam de dinheiro. Esse descaso e menosprezo, considerado como ingratidão, não é um caso isolado, e sim motivo frequente de as pessoas idosas pensarem em suicídio, como comentam essas duas mulheres:

Tentei suicídio me enforcando, foi uma sorte eu não ter morrido, mas eu nunca disse para eles, porque eu acho que não haveria muita tristeza, nem muito choro, eles iriam comentar: ela já tinha oitenta anos e quis sair dessa terra. (LCS, 87 anos, viúva, quatro filhos, Piripiri/PI)

Minhas filhas, às vezes são grosseiras comigo, isso me chateia; […] elas me ajudam muito, mas, para mim, mais importante que ajudar financeiramente é dar amor, carinho, cuidar de mim, para mim elas são tudo na minha vida. O quê é que adianta eu ter dinheiro, mas na hora do sufoco, não ter a quem recorrer? (MAPS, 71 anos, feminino, viúva, seis filhos, Recife/PE)

A antecipação de que o fim das idosas seria comemorado com certo alívio pelos familiares certamente é a prova mais cabal do sentimento de solidão e isolamento de muitas mulheres que se percebem como “um peso, um fardo” no caminho da realização dos filhos. E suas narrativas são, frequentemente, uma cobrança de reciprocidade. Uma senhora conta que teve que trabalhar para custear os estudos dos filhos, tinha dupla jornada, cumpria todas as tarefas domésticas e, à noite, dedicava seu tempo para educar e dar carinho aos filhos. Entre lágrimas, ela narra, reafirmando o já mencionado: que os filhos não a compreendem, não entendem que no envelhecimento se quer levar uma vida tranquila cercada de carinho.

DISCUSSÃO

A literatura mostra que mulheres viúvas, separadas ou divorciadas, com baixo nível de escolaridade e residentes com outras pessoas tentam mais o suicídio^{(2-5,8-9,22-26)} e por meios menos violentos quando comparadas aos homens^(2-5,14,26). No entanto, o número de tentativas de suicídio entre idosas é maior do que entre homens idosos^(6,11-13,24).

Os achados evidenciam que o uso da força física para repreender a criança por não ter o comportamento de uma menina manifesta-se como consentimento à negação de si que, nesta época, estava no centro da educação feminina, resultando em situações de vulnerabilidade para o suicídio. A construção heteronormativa estabelecida nos brinquedos que pertencem ao gênero masculino e feminino, a forma de vestir e o modo de agir eram e, em muitos casos continuam a ser, formas de definir e limitar o papel da mulher no seio da sociedade^(2-3,27).

Beauvoir⁽²⁸⁾ discute que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a mulher assume no seio da sociedade”, que define o gênero de cada ser humano. É a sociedade que constrói as representações do que deve ser feminino e masculino, assim, as mulheres apagam de si mesmas as marcas tênues de seus passos neste mundo^(3,28-29). Este ato de autodestruição é também forma de adesão ao silêncio que a sociedade impõe às mulheres^(28-29).

As idosas deste estudo nasceram e viveram grande parte da vida na região rural, onde foram educadas e socializadas em modo mais conservador e rígido que nas cidades^(2-5). Além do fato de morarem em lugares isolados, muitas vieram de famílias pobres e vivenciaram, no trabalho agrícola e doméstico, privações e exclusão social.

Na década de 1940 e 1950, a região Nordeste, especialmente nas zonas rurais, evidenciava intensas desigualdades econômicas e sociais – muito maiores do que as ainda existentes – em decorrência da alta concentração de renda dos grandes latifundiários e pelo fenômeno natural de secas constantes no sertão. Dada essa realidade, as condições de saúde eram precárias, muitas mulheres morriam no momento do parto ou por complicações e as que sobreviviam e tinham numerosos filhos contavam com ajuda financeira de familiares⁽³⁰⁾. Em algumas famílias, os parentes assumiam a responsabilidade de criar e educar crianças como se fossem seus filhos.

As tentativas e a consumação do suicídio na infância, em geral são atos impulsivos, mas isso leva a refletir como essas idosas vivenciaram suas dores sozinhas, em pleno desamparo. Algumas contam que foram crianças desvalorizadas, desrespeitadas, desiludidas com a vida e sem esperanças de ter um futuro melhor. Sabe-se que mulheres violentadas sexualmente na infância tentam mais o suicídio ao longo da vida em relação à população em geral^(1-2,5,9,14).

A posição de inferioridade atribuída à mulher e a ausência de espaço social contribuem para que a violência sexual seja emudecida por um silêncio em torno dos direitos sexuais e reprodutivos. Vulneráveis, as idosas que tentaram suicídio falam da falta de força interior para denunciar e das situações de intenso sofrimento que podem resultar no comportamento suicida e na morte autoinfligida.

Problemas emocionais que surgem frente a uma vida de pobreza e miséria e o sufocamento dos planos para o futuro minam suas forças para viver. Muitas das mulheres ouvidas tentaram o suicídio em decorrência de eventos existenciais traumáticos que as marcam até hoje.

Goldney⁽³¹⁾ assinala que as experiências traumáticas na infância são fatores predisponentes para o comportamento suicida, como é o caso do estresse vivenciado pela morte dos pais nessa etapa da vida, as brigas constantes do casal, a tensão no relacionamento dos filhos com os pais e a percepção da saúde física ruim.

Diferentemente do estudo de Goldney⁽³¹⁾, neste não foram encontrados relatos de percepção da saúde física como ruim com o estresse na infância. Mas são coincidentes os achados da tensão no relacionamento com a mãe e a presença de violência como forma de educar como disparadoras de sintomas depressivos.

O que se pode deduzir dos resultados é que algumas mulheres aqui pesquisadas tiveram uma vida repleta de espaços vazios de afeto preenchido por um tipo de solidão^(2-9,32-36) que aniquila a alegria de viver. O pior da solidão não é estar sozinho, é a sensação de não ter com quem contar, a não ser ao se submeter a ser mera posse e objeto do homem^(28,37).

Estudo bibliométrico sobre violência de gênero apontou que mulheres são as principais vítimas da violência conjugal e seus parceiros íntimos são os principais agressores⁽³⁸⁾. O abuso pelo parceiro íntimo é fator de risco significativo para pensamentos e tentativas de suicídio das mulheres. Essa situação pode ser potencializada pela falta de suporte social e psicológico por desencadear ansiedade, tristeza e desesperança e sentimento de impotência, resultando em depressão^(7-8,32-35). A literatura^{(1,3-5,8-9,34-35)} evidencia impactos negativos para a saúde mental das mulheres que sofreram violência psicológica, assinalando sua dificuldade de recuperação.

Estudo antropológico⁽²⁵⁾ evidencia que não é incomum mulheres violentadas por parceiros íntimos buscarem o suicídio como solução para seus problemas e, além do ato autodestrutivo, provocarem a morte de seus filhos pequenos como forma de evitar que sofram a posteriori. Este trabalho corrobora pelo menos com um depoimento das idosas entrevistadas: “tomei veneno e quase ia dando para ela [filha recém-nascida] também”.

Em alguns lugares, como a zona rural na China, o suicídio de mulheres casadas é considerado ato de rebelião e vingança contra o relacionamento abusivo do marido⁽³⁷⁾. Na região de Papua-Nova Guiné, as mulheres que se suicidaram escreveram bilhetes relatando situações de violência sofrida, como forma de vingança do marido abusivo e de trazer à tona as agressões sofridas⁽²⁵⁾.

No Brasil, Meneghel⁽⁵⁾ discute que a tentativa de suicídio entre mulheres é carregada pelo peso da culpa, seja pelo marido que foi embora, pela traição ou pela vida que não faz mais sentido. É uma culpa infinda resultante da rigidez de uma cultura patriarcal que induz à acomodação e alienação do sentido do ser e propulsora de uma sensação de vazio e impotência. No nordeste brasileiro esse tipo de cultura ainda continua muito presente consagrando as relações hierárquicas de gênero em que o papel masculino é caracterizado pela violência e a submissão feminina^(3-5,7,28). Mas esse problema não é apenas regional, pois no Brasil mais da metade das mulheres que foram vítimas de violência não pediram ajuda. E, apesar da vigência da Lei Maria da Penha, que busca coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, não houve impacto na redução das taxas anuais de mortalidade, comparando-se os períodos de antes e depois da vigência da lei⁽³⁰⁾.

A mulher que sofre violência tenta buscar outras estratégias para mudar a situação antes de recorrer ao suicídio. Apesar de situarem-se em circunstâncias de passividade, muitas tomam atitudes de enfrentamento e buscam apoio entre parentes e com outras mulheres⁽²⁵⁾. Não era o caso das entrevistadas neste estudo que vivenciaram uma época histórica totalmente dominada pelo patriarcalismo, vivenciando um processo de socialização voltado para a submissão e sob o forte império da violência masculina. Mesmo assim, algumas romperam as amarras do matrimônio e assumiram o controle da sua vida. Porém seguiram sozinhas, isoladas, discriminadas e em intensa penúria social e sofrimento psicológico.

Pode-se dizer que as situações estruturais contribuíram para aumentar o sofrimento psicológico e afetaram a capacidade de reorganização mental para enfrentar e superar os estressores na vida. Várias idosas relataram que se tornaram mais nervosas, mais agitadas, tristes e sem ânimo para viver frente à reincidência da violência. Algumas, já no final da vida, foram diagnosticadas com depressão, esquizofrenia e transtorno de ansiedade. Entretanto grande maioria não tem recebido nenhum apoio psicológico e psiquiátrico.

Estudo em Hong Kong⁽³⁹⁾ também constata que mulheres com depressão pós-parto sentem desesperança, desamparo e perda do controle sobre a vida. Sua infelicidade está associada a ausência de afeto e de colaboração do companheiro, levando-as ao desespero e ao suicídio. Mas, em geral, nessa situação as mulheres não conseguem verbalizar suas angústias e buscar ajuda.

O esmaecimento das relações afetivas e as negligências por parte dos filhos têm caráter assertivo nas tentativas de suicídio dessas mulheres^(3-6,33), manifestando-se em sofrimento psicológico por vezes intenso⁽³⁶⁾, concordando com o argumento de Canetto⁽⁴⁰⁾ segundo o qual o comportamento suicida em mulheres é determinado mais por motivos interpessoais do que propriamente pelo desejo de morrer. No mesmo sentido, estudos realizados na Coreia⁽⁸⁾ e na Austrália⁽³⁶⁾ encontraram que mulheres idosas com ideações ou tentativas de suicídio reportaram níveis mais elevados de angústia, sofrimento psíquico, menor capacidade de resiliência e de controle pessoal e interpessoal. Pessoas com baixa resiliência têm menos capacidade para lidar com eventos estressantes na vida e maior dificuldade para superá-los^(35,39). Mulheres com neuroticismo⁽²⁵⁾ e depressão ao longo da vida tentam mais suicídio^{(4,7-8,25,33)}.

O sofrimento psíquico demonstrado ao final da vida pela totalidade das mulheres entrevistadas é a culminância de perdas emocionais que ocorreram ao longo da existência como morte de pais e cônjuge, perda da autonomia para decidir sobre os rumos da vida, privação social, perda de suas próprias casas e bens quando ficam viúvas e têm que viver com filhos ou em instituições de longa permanência, entre outras vicissitudes. Esse sofrimento se avoluma mais quando passam a ter limitações próprias do envelhecimento, sofrem violência patrimonial e se tornam dependentes social e fisicamente, atingindo fortemente o sentimento de dignidade.

Limitações do estudo

Importante relembrar que algumas limitações deste estudo possam relacionar-se ao número limitado de participantes por cidades analisadas, justificado pela dificuldade em localizá-las, bem como pelo silêncio legitimado em torno do fenômeno; a subnotificação dos casos de tentativas de suicídio é uma realidade brasileira, o que contribui para mantê-las invisíveis.

Contribuições para a enfermagem

As práticas de cuidado de enfermagem devem ser voltadas para a detecção precoce do risco de suicídio e o manejo adequado de idosas que tentaram suicídio. Neste cenário, se considera imprescindível que as intervenções busquem a qualidade de vida na velhice numa perspectiva de valorização do ser humano, o que exige destes profissionais o cuidado qualificado e humanizado, com solidariedade e apoio mútuo. Esses cuidados são possíveis ao compreender o idoso como pessoa no contexto histórico e cultural, com sentimentos, questionamentos e reflexões sobre as vivências do envelhecer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se que mulheres em situação de pobreza e penúria financeira, com nível educacional baixo ou analfabetas são as que sofreram mais violência ao longo da vida. Nesses casos, os maus-tratos se iniciaram na infância, prolongaram-se na fase de iniciação sexual e continuaram com o casamento e no exercício da maternidade.

A maioria das entrevistadas que têm ideação suicida ou atentaram contra a vida foi violentada por parceiro íntimo ou familiares, enfrenta a velhice destituída de autonomia, perdeu laços significativos, referencias sociais e bens afetivos que foram construídos, com sacrifício, durante a vida. Muitas vivenciaram ou vivenciam situações crônicas de violência física, doméstica, sexual e psicológica perpetradas em grande parte por companheiros e familiares, algumas passaram por depressão pós-parto e todas se sentem em estado de solidão e isolamento social que se expressam em sintomas depressivos.

O comportamento suicida, embora possa ter outras causas associadas, é explicado por meio de narrativas de conflitos familiares, de opressão de gênero, de desvalorização social e do cansaço da vida “sem sentido”, já que ela perdeu valor para as pessoas próximas e mais queridas.

Fica também claro, por fim, que valores patriarcais e de dominação masculina enraizados na cultura nordestina são, em grande parte, responsáveis pela limitação social, cultural, educacional e laboral dessas mulheres, apagando seus sonhos e projetos de vida.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2018

Histórico

• Recebido
  26 Jun 2017
• Aceito
  26 Out 2017