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Morte de crianças por acidentes domésticos: desvelando a experiência materna

RESUMO

Objetivos:

desvelar os sentidos de mães cujos filhos morreram em decorrência de acidentes domésticos na infância.

Métodos:

pesquisa qualitativa, à luz da fenomenologia heideggeriana, com dez mães cujos filhos morreram por acidentes domésticos. Realizou-se em município da Região Nordeste do Brasil mediante entrevista fenomenológica entre maio e junho de 2017. A analítica existencial constituiu-se pelos momentos compreensivos do método heideggeriano.

Resultados:

os sentidos desvelados apontaram que, para compreender a morte repentina do filho, a mãe oscila entre sentir-se culpada, apontar e negar culpados. Refere vazio, dor permanente, não aceitação da morte do filho e desejo de mantê-lo em seu vivido. Nesse caminhar, revela-se o medo que traz limitações para sua vida e a de seus outros filhos. Considerações Finais: desvelou-se que a morte do filho na infância compromete a integralidade do ser mãe, indicando a necessidade de cuidado sistematizado e contínuo para a condução adequada dos efeitos emocionais e sociais.

Descritores:
Morte; Criança; Acidentes Domésticos; Comportamento Materno; Luto

ABSTRACT

Objectives:

to unveil the meanings of mothers whose children died as a result of domestic accidents in childhood.

Methods:

a qualitative research, in the light of Heideggerian phenomenology, with ten mothers whose children died from domestic accidents. It was carried out in a municipality of the Northeast Region of Brazil through phenomenological interviews between May and June 2017. The existential analytic was constituted by the comprehensive moments of the Heideggerian method.

Results:

the meanings unveiled pointed out that, to understand the sudden death of her child, the mother oscillates between feeling guilty, pointing and denying guilt. She reports emptiness, permanent pain, non-acceptance of her child’s death, and the desire to keep him in her life. In this journey, the fear that brings limitations to her life and that of her other children is revealed. Final Considerations: it was revealed that the death of the child in infancy compromises the integrality of being a mother, indicating the need for systematic and continuous care for the adequate management of the emotional and social effects.

Descriptors:
Death; Child; Domestic Accidents; Maternal Behavior; Bereavement

RESUMEN

Objetivos:

desvelar sentidos de madres cuyos hijos murieron en consecuencia de accidentes domésticos en la infancia.

Métodos:

investigación cualitativa, basada en la fenomenología de Heidegger, con diez madres cuyos hijos murieron por accidentes domésticos. Realizado em municipio del Nordeste brasileño mediante entrevista fenomenológica entre mayo y junio de 2017. Analítica existencial constituida por momentos comprensivos del método de Heidegger.

Resultados:

los sentidos desvelados apuntaron que, para comprender la muerte repentina del hijo, la madre oscila entre sentirse culpable, apuntar y negar culpables. Refiere vacío, dolor permanente, no aceptación de la muerte del hijo y deseo de mantenerlo en su vivido. En ese caminar, revela el miedo que trae limitaciones para su vida y sus otros hijos.

Consideraciones Finales:

se desveló que la muerte del hijo en la infancia compromete la integralidad del ser madre, indicando la necesidad de cuidado sistematizado y continuo para conducción adecuada de efectos emocionales y sociales.

Descriptores:
Muerte; Niño; Accidentes Domésticos; Conducta Materna; Luto

INTRODUÇÃO

Os acidentes estão entre as principais causas de morte em crianças, e parcela significativa destes ocorre no domicílio(11 Al Rumhi A, Al Awisi H, Al Buwaiqi M, Al Rabaani S. Home Accidents among Children: a retrospective study at a tertiary care center in Oman. Oman Med J. 2020;35(1):e85. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000001378
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). Nos Estados Unidos da América do Norte (EUA), são a principal causa de morte entre crianças e adolescentes de 1 a 19 anos de idade e, em 2014, representaram 34,4% de todas as mortes(22 Murphy SL, Mathews TJ, Martin JA, Minkovitz CS, Strobino DM. Annual Summary of Vital Statistics: 2013-2014. Pediatrics. 2017;139(6):e20163239. https://doi.org/10.1542/peds.2016-3239
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). No Brasil, dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (MS) mostraram que, em 2015, ocorreram 3.311 óbitos de crianças menores de 10 anos em todo o país em decorrência de causas externas, dentre as quais se incluíram acidentes e violências. Destes, 581 (17,5%) tiveram como causa o afogamento e submersão acidentais, 127 (3,8%) foram devido às quedas, e 89 (2,6%) decorreram de queimaduras, acidentes que são comuns de ocorrer no domicílio(33 Ministério da Saúde (BR). Datasus. Informações de saúde. Estatísticas de mortalidade: óbitos por ocorrência segundo causas externas do Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2019 Feb 17]. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10uf.def
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).

O elevado índice de acidentes domésticos entre as crianças brasileiras impulsionou o MS a desenvolver dispositivos legais e materiais para nortear os profissionais de saúde na orientação de cuidadores e familiares sobre as estratégias preventivas(44 Ministério da Saúde (BR). Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.130, de 5 de agosto de 2015. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2021 Sep 18]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2015/prt1130_05_08_2015.html
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). Essas ações condizem principalmente com o papel dos profissionais da Atenção Básica (AB) pela sua proximidade com crianças e famílias das comunidades com as quais trabalham e pela oportunidade de realização de atividades educativas por meio de visitas domiciliares(55 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2021 Set 18]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2015/prt1130_05_08_2015.html
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). No entanto, em muitos casos, verifica-se negligência nesse tipo de abordagem, o que pode dificultar a assistência a essa população para a redução da morbimortalidade decorrente desse agravo(66 Rocha AM, Cunha NGT, Paula LN, Oliveira JIL, Cruz MVO, Praxedes TF. A atuação do enfermeiro na prevenção de acidentes na infância. Rev Interdiscip. 2020;13(1):17. https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7981224
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).

A morte na infância por acidentes domésticos desencadeia implicações importantes no cotidiano das pessoas envolvidas. Frequentemente, as mães apresentam risco maior de luto complicado em comparação com os pais(77 Morris S, Fletcher K, Goldstein R. The grief of parents after the death of a young child. J Clin Psychol Med Settings. 2019;26(3):321-38. https://doi.org/10.1007/s10880-018-9590-7
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). A partir do momento que o relacionamento físico com o filho termina, um longo processo de dor materna começa. Geralmente, esse processo de sofrimento é complexo e multifacetado e envolve respostas adaptativas ao luto(88 Gerrish NJ, Bailey S. Maternal grief: a qualitative investigation of mothers’ responses to the death of a child from cancer. Omega J Death Dying. 2020;81(2):197-241. https://doi.org/10.1177/0030222818762190
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). Em particular, mães cujos filhos morreram mais jovens são mais afetadas do que aquelas que perderam filhos mais velhos(77 Morris S, Fletcher K, Goldstein R. The grief of parents after the death of a young child. J Clin Psychol Med Settings. 2019;26(3):321-38. https://doi.org/10.1007/s10880-018-9590-7
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,99 Zetumer S, Young I, Shear MK, Skritskaya N, Lebowitz B, Simon N, Reynolds C, et al. The impact of losing a child on the clinical presentation of complicated grief. J Affect Disord. 2015;170:15-21. https://doi.org/10.1016/j.jad.2014.08.021
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).

Independentemente da causa, a morte de uma criança é sempre uma experiência difícil para a maioria das mães(88 Gerrish NJ, Bailey S. Maternal grief: a qualitative investigation of mothers’ responses to the death of a child from cancer. Omega J Death Dying. 2020;81(2):197-241. https://doi.org/10.1177/0030222818762190
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,1010 Price JE, Jones AM. Living through the life-altering loss of a child: a narrative review. Issues Compr Pediatr Nurs. 2015;38(3):222-40. https://doi.org/10.3109/01460862.2015.1045102
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11 Proulx M, Martinez AM, Carnevale F, Legault A. Fathers’ experience after the death of their child (Aged 1-17 Years). Omega J Death Dying. 2016;73(4):308-25. https://doi.org/10.1177/0030222815590715
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-1212 Snaman JM, Kaye EC, Torres C, Gibson D, Baker JN. Parental grief following the death of a child from cancer: the ongoing odyssey. Pediatr Blood Cancer. 2016;63(9):1594-602. https://doi.org/10.1002/pbc.26046
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). Contudo, para as mães cujos filhos morreram de modo súbito e inesperado, não há oportunidade de preparação para a perda ou apoio ao luto, desencadeando, em geral, reação de sofrimento mais intenso nestas do que naquelas cujas crianças morreram de condição crônica. Em razão do caráter repentino, apresentam maior risco de desenvolver problemas de saúde mental(77 Morris S, Fletcher K, Goldstein R. The grief of parents after the death of a young child. J Clin Psychol Med Settings. 2019;26(3):321-38. https://doi.org/10.1007/s10880-018-9590-7
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,1010 Price JE, Jones AM. Living through the life-altering loss of a child: a narrative review. Issues Compr Pediatr Nurs. 2015;38(3):222-40. https://doi.org/10.3109/01460862.2015.1045102
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), tais como luto complicado, depressão e transtorno do estresse pós-traumático clinicamente significativos(1313 Huh HJ, Huh S, Lee SH, Chae JH. Unresolved bereavement and other mental health problems in parents of the sewol ferry accident after 18 months. Psychiatry Investig. 2017;14(3):231. https://doi.org/10.4306%2Fpi.2017.14.3.231
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), além de ansiedade e uso de medicamentos psicotrópicos(1414 Wall-Wieler E, Roos LL, Bolton J. Duration of maternal mental health-related outcomes after an infant's death: A retrospective matched cohort study using linkable administrative data. Depress Anxiety. 2018;35(4):305-12. https://doi.org/10.1002/da.22729
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).

É preciso considerar que os impactos da morte infantil envolvem também aspectos sociais relativos ao isolamento materno persistente, além de implicações que podem se estender a outras crianças que vivem em suas famílias(1515 Goldstein RD, Lederman RI, Lichtenthal WG, Morris SE, Human M, Elliott AJ, et al. PASS Network. the grief of mothers after the sudden unexpected death of their infants. Pediatrics. 2018;141(5):e2017365. https://doi.org/10.1542/peds.2017-3651
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). Nesse contexto, o enfermeiro deve estar atento à mãe enlutada, com o objetivo de realizar diagnóstico de enfermagem, apontando o grau de dependência materno e, por meio de habilidades técnicas, sociais e afetivas, estabelecer a melhor intervenção em cada caso(1616 Lopes BG, Borges PKO, Garden CR, Corasassi CE, Sales CM, Damasceno NFP. Maternal mourning: pain and coping with the loss of a baby. Rev Rene. 2017;18(3):307-13. https://doi.org/10.15253/2175-6783.2017000300004
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).

Algumas investigações envolvendo mães cujos filhos morreram ainda na infância se concentraram principalmente na identificação, quantificação e caracterização de reações de sofrimento, com o objetivo de identificar mães com risco de desenvolver o quadro de luto complicado ou patológico(99 Zetumer S, Young I, Shear MK, Skritskaya N, Lebowitz B, Simon N, Reynolds C, et al. The impact of losing a child on the clinical presentation of complicated grief. J Affect Disord. 2015;170:15-21. https://doi.org/10.1016/j.jad.2014.08.021
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,1717 Delalibera M, Presa J, Coelho A, Barbosa A, Franco MHP. Family dynamics during the grieving process: a systematic literature review. Ciênc Saúde Coletiva. 2015; 20(4):1119-34. https://doi.org/10.1590/1413-81232015204.09562014
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). No entanto, a complexidade da temática requer enfoque nas relações intersubjetivas e na compreensão do vivido das mães(1212 Snaman JM, Kaye EC, Torres C, Gibson D, Baker JN. Parental grief following the death of a child from cancer: the ongoing odyssey. Pediatr Blood Cancer. 2016;63(9):1594-602. https://doi.org/10.1002/pbc.26046
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). Apesar da crescente produção científica nesse âmbito, o significado do vivido de mães cujos filhos morreram ainda na infância necessita de compreensão constante e contínua(1818 Denhup CY. A new state of being: the lived experience of parental bereavement. Omega J Death Dying. 2017;74(3):345-60. https://doi.org/10.1177/0030222815598455
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).

A mortalidade infantil global em decorrência de acidentes se situa entre as poucas causas sem projeção para a diminuição de casos até o ano 2030(1919 Liu L, Oza S, Hogan D, Perin J, Rudan I, Lawn JE, et al. Global, regional, and national causes of child mortality in 2000-13, with projections to inform post-2015 priorities: an updated systematic analysis. Lancet. 2015;385(9966):430-40. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61698-6
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). Tendo em vista a necessidade premente de elaboração de medidas preventivas, com o objetivo de reduzir o número de óbitos entre crianças por essa causa, torna-se também imprescindível oferecer atenção e cuidado de modo a fornecer suporte adequado às famílias, em especial às mães após a morte de um filho, a fim de promover o bem-estar físico, mental e social entre essas mulheres(2020 Koyanagi A, Oh H, Haro JM, Hirayama F, DeVylder J. Child death and maternal psychosis-like experiences in 44 low-and middle-income countries: the role of depression. Schizophr Res. 2017;183:41-6. https://doi.org/10.1016/j.schres.2016.11.012
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).

Com a intenção de conhecer o fenômeno, estabeleceu-se a seguinte questão norteadora da pesquisa: Como as mães cujos filhos morreram em decorrência de acidentes domésticos na infância significam seu vivido?

OBJETIVOS

Desvelar os sentidos de mães cujos filhos morreram em decorrência de acidentes domésticos na infância.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, buscando atender às exigências éticas e legais do Conselho Nacional de Saúde, no que diz respeito à realização de pesquisas envolvendo seres humanos. Previamente às entrevistas, as participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para assegurar o anonimato, as pessoas envolvidas tiveram sua identificação codificada.

Referencial teórico-metodológico

O método fenomenológico heideggeriano permite que o fenômeno seja desvelado, manifestando o sentido de ser e as estruturas fundamentais do Dasein. Tem o caráter de recusa de encobrimentos e distorções, uma vez que o fenômeno, na maioria das vezes, é mal compreendido ou insuficientemente interpretado do ponto de vista ontológico. Desse modo, Heidegger propõe a fenomenologia como a via de acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve constituir tema da ontologia, de forma a assegurar a sua legitimidade. Estabelece que a ontologia somente é possível como fenomenologia e propõe o conceito fenomenológico de fenômeno como o que se mostra, o ser dos entes, seu sentido, suas modificações e derivações. Nessas condições, o mostrar-se não é um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

Procedimentos metodológicos

O período de coleta de dados ocorreu entre maio e junho de 2017. Para a realização da etapa de campo, os agentes comunitários de saúde (ACS) da AB colaboraram para a indicação de possíveis participantes que se enquadravam nos critérios pré-estabelecidos para o estudo. Acordou-se um prazo para possibilitar que esses profissionais elencassem os casos de acidentes domésticos na infância em suas microáreas. Procedeu-se à construção de um cronograma de atividades, para que, individualmente, todos os ACSs pudessem indicar os domicílios das possíveis participantes. Esses profissionais informaram as mães sobre o estudo e agendaram data e horário para a realização de uma visita domiciliar pela pesquisadora. No dia agendado, o ACS aguardava a pesquisadora na Unidade Básica de Saúde (UBS) para acompanhá-la na visita.

Nesse momento, antes de sair para o encontro com a possível participante, o ACS apenas informava o nome da mãe e a idade do filho. A pesquisadora optou por desconhecer detalhes do acidente doméstico e do vivido da participante anteriormente ao encontro, com a finalidade de reduzir pressupostos e pré-conceitos, impregnados da compreensão dominante de teorias tradicionais e de opiniões sobre o ser(2222 Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
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). Na visita domiciliar, a pesquisadora deu seguimento à ambientação e apresentou às possíveis participantes a proposta do estudo e, mediante o aceite, agendou a entrevista, cujo local, data e horário ficaram a critério destas.

Tipo de estudo

Pesquisa qualitativa, fundamentada no referencial teórico-filosófico-metodológico da fenomenologia heideggeriana(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). A pesquisa atendeu aos itens da lista de verificação do Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ).

Cenário de estudo

Estudo desenvolvido na AB de um município da Região Nordeste do Brasil. De acordo com o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil, essa AB é composta de 24 estabelecimentos de saúde classificados como Programa/Projeto de Saúde ou UBS. Dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) apontam que o município conta com 14 UBSs localizadas na zona urbana e 10 na zona rural.

Fonte de dados

Os ACSs indicaram 17 nomes de mães cujos filhos morreram em decorrência de acidentes domésticos na infância, porém apenas 10 participantes foram incluídas. Destaca-se que, ao realizar a produção de dados concomitantemente ao movimento analítico, permitiu-se a conclusão da etapa de campo quando os significados expressos nos relatos das mães mostraram suficiência de estruturas essenciais para a compreensão do fenômeno investigado(2222 Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
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). Isso fez dispensar o uso do processo de amostragem. Todas as mães que foram convidadas aceitaram contribuir para a pesquisa.

Foram estabelecidos como critérios de inclusão: mães com idade igual ou superior a 18 anos; e que o acidente doméstico tivesse ocorrido com a criança na faixa etária entre 1 dia de nascido e 12 anos. Estabeleceu-se como critério de exclusão: mães que apresentassem alterações no processo cognitivo de pensamento. Enfatiza-se que não houve delimitação de tempo decorrido entre a morte da criança e aquele momento no qual a mãe se encontrava, pois a vivência das mães é afetada após a morte de um filho de forma permanente(1818 Denhup CY. A new state of being: the lived experience of parental bereavement. Omega J Death Dying. 2017;74(3):345-60. https://doi.org/10.1177/0030222815598455
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,2323 Casellato G. Luto pela perda de um filho: a recuperação possível diante do pior tipo de perda. In: Franco MHP. Uma jornada sobre o luto a morte e o luto sob diferentes olhares. Campinas, SP: Livro Pleno; 2002. p. 11-21.).

Coleta e organização dos dados

Como técnica, utilizou-se a entrevista fenomenológica, que envolve um processo de interação e de diálogo entre a pesquisadora e a participante a partir do momento do encontro existencial e intersubjetivo. Nesse encontro, a pesquisadora buscou considerar as subjetividades de cada participante e colocarse em uma posição de escuta ativa e atentiva, reduzindo pressupostos e juízos de valor(2424 Amorim TV, Souza IEO, Salimena AMO, Padoin SMM, Melo RCJ. Operationality of concepts in Heideggerian phenomenological investigation: epistemological reflection on Nursing. Rev Bras Enferm. 2019;72(1):304-8. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0941
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).

A questão norteadora que conduziu a entrevista foi: “O que significou a morte de seu/sua filho(a) por acidente doméstico?” Outras questões empáticas foram utilizadas ao longo da entrevista quando se fazia necessário esclarecer aspectos emergentes do discurso das participantes. Entretanto, atentava-se para não induzir respostas ou expressar prejulgamentos, buscando-se retomar, com base nas próprias palavras/expressões/frases/ideias da participante, questões de interesse da pesquisa que precisavam ser elucidadas, de modo a melhor compreender os significados(2525 Amorim TV, Souza IEO, Salimena AMO, Queiroz ABA, Elias EA. Women with cardiopathy in the context of reproductive planning: contributions of phenomenological hermeneutics. Esc Anna Nery. 2020;24(1):e20190164. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0164
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).

As entrevistas foram realizadas individualmente com duração entre 30 e 90 minutos, em local previamente acordado com a participante, em geral no domicílio ou em sala privativa cedida pela UBS. Realizou-se audiogravação dos encontros em gravador digital, com autorização prévia e informações validadas quanto ao conteúdo pelas participantes que, ao final da entrevista, eram indagadas se gostariam de fazer algum(s) acréscimo(s) aos depoimentos. A gravação foi transcrita na íntegra com o apoio do programa Microsoft Word.

Para atender à identificação, as participantes foram designadas com código iniciado pela letra M seguida do número arábico correspondente à ordem de realização das entrevistas (M1, M2, M3… M10). O nome do filho que morreu por causa de acidente doméstico foi substituído pelo código constituído pela letra F seguida do número arábico correspondente à ordem em que a mãe foi entrevistada (F1, F2, F3… F10). Ademais, os nomes de outras pessoas envolvidas no vivido das participantes, citados nas falas, foram substituídos de forma aleatória.

Análise dos dados

O movimento de análise concomitante à etapa de campo iniciou-se com escuta e transcrição das gravações, seguidas da leitura dos transcritos, de modo a diferenciar estruturas essenciais das ocasionais, tendo o objetivo da investigação como guia para as primeiras, que são reveladoras da dimensão fenomenal(2525 Amorim TV, Souza IEO, Salimena AMO, Queiroz ABA, Elias EA. Women with cardiopathy in the context of reproductive planning: contributions of phenomenological hermeneutics. Esc Anna Nery. 2020;24(1):e20190164. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0164
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).

A analítica balizada no referencial metodológico heideggeriano envolveu dois momentos metódicos baseados na fenomenologia de Heidegger e alicerçados na obra “Ser e Tempo”: a compreensão vaga e mediana; e a compreensão interpretativa ou hermenêutica. A primeira, compreensão vaga e mediana, é a descrição da vivência das mães com base na experiência de perder um filho por acidente doméstico. Essa experiência vivida pela mãe pode estar impregnada do senso comum, constituindo fonte de compreensão dominante(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). A segunda parte do momento metódico é a hermenêutica, que consiste em uma análise para interpretação dessa experiência, removendo a compreensão dominante, no intuito de obter a experiência verdadeira, que se caracterizaria pelo fenômeno da vivência em si(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.,2626 Zveiter M, Souza IEO. Solicitude constituting the care of obstetric nurses for women-giving-birth-at-the-birth-house. Esc Anna Nery. 2015; 19(1):86-92. https://doi.org/10.5935/1414-8145.20150012
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).

Fundamentadas nessa análise, foram construídas Unidades de Significação, intituladas com base no sentido da experiência atribuído pelas participantes. Desse modo, emergiram três unidades temáticas, a saber: 1) “Negar a sua culpa pela morte dos filhos, pois destes cuidavam… e apontar e negar a existência de culpados”; 2) “Relembrar como se sentiram ao saber da morte do filho… e de como ainda não entendem o que aconteceu”; 3) “Sentir medo que traz inquietações e limitações para sua vida e a de seus outros filhos”.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa dez mães com idades entre 28 e 82 anos, em sua maioria casada ou em união estável (n = 6). Quanto à escolaridade, duas se consideravam analfabetas, três referiram ter concluído o ensino fundamental; duas cursaram o ensino fundamental incompleto; duas, o ensino médio incompleto; e uma afirmou estar cursando o ensino superior. A maior parte (n = 4) referiu ter como ocupação a realização de atividades no lar. No que diz respeito ao acidente doméstico que vitimou as crianças, três envolveram envenenamento; três, acidentes por choque elétrico; três, afogamentos; e um envolveu engasgo. Sobre o sexo das vítimas, eram seis meninos e quatro meninas, com idades variando entre 1 e 11 anos. O tempo transcorrido desde o acidente variou entre 1 e 53 anos.

Considerando o referencial empregado, a análise dos dados possibilitou compreender que, para as mães participantes do estudo, a experiência da morte do filho por causa de acidente doméstico na infância significa:

Negar a sua culpa pela morte dos filhos, pois destes cuidavam... e apontar e negar a existência de culpados

As mães cujos filhos morreram por causa de acidente doméstico na infância negaram sentirse culpadas pela morte dos filhos, apesar de essa culpa lhes ser imputada algumas vezes por si e, em outras circunstâncias, pela sociedade representada por vizinhos e profissionais de saúde.

[…] eles não foram maltratados, foram bem cuidados[…] a gente estava sempre focado neles, preocupados […] porque o acidente foi por desobediência da parte deles, eles já tinham entendimento das coisas […] eu falei para a irmã [mais velha] dele [F1] que ela não saísse de casa com eles, e ela teimou em levar eles para o rio […] mas foi uma fatalidade, não foi culpa minha, nem culpa dele [esposo] […] Deus me deu e Deus tirou. Deus não permitiu que ele permanecesse comigo. (M1)

[…] eu trabalhava, mas eu chegava meio-dia para arrumar ela, pentear, fazer a comida, dar o almoço, para mandá-la para escola, eu me preocupava muito em cuidar dela […] às vezes, sinto que tenho culpa. Mas, eu não estava em casa, eu estava trabalhando para sustentar ela e o irmão dela […] eu acho que não foi culpa de ninguém. (M2)

[…] a sobrinha do meu marido ficou implicando enquanto minha filha comia […] quando eu vi, eu disse: Antônia, tu mataste minha filha. Eu notei que F3 já estava engasgada, não estava mais conversando […] aí Pedro [esposo] pegou a menina e levou para o hospital. Nesse tempo, não tinha a junta médica, não tinha nada, só uns “dotorzinho” mesmo, que não sabia de nada […] o médico empurrou o osso que F3 estava engasgada e meu esposo aceitou. Se eu tivesse ido, não tinha aceitado […]. (M3)

[…] eu ocupada, ele veio e pegou a vasilha e comeu, sem eu saber […] eu não vi quando ele comeu. Tem dias que penso que era para eu ter prestado atenção na hora que ele pegou a macaxeira, mas eu não vi, eu não tive culpa […]. (M5)

O povo queria que eu botasse a dona da casa [onde o acidente ocorreu] na justiça para ela pagar, porque a geladeira dela era velha […] não foi falta de cuidado, muita gente me acusou, que era falta de cuidado [emocionada], meus vizinhos, principalmente […] Mas, porque era para não ser minha. Porque era o dia dela [morrer]. (M6)

[…] o médico disse para mim que, se eu tivesse metido o dedo na garganta dela para ela vomitar […] [ela não teria morrido] mas eu não podia adivinhar que ela estava comendo mandioca […] eu fiquei desesperada […] significou muita tristeza e dor que toda mãe sente. Não consigo explicar, não dá para medir […]. (M9)

A pessoa pensa que nem existe mesmo Deus. Porque acontece tudo com os outros, quando bate na porta da gente, a gente fica perguntando: “Por que Ele fez isso?” (M10)

Justificaram a ausência de culpa com base na afirmação e reafirmação do cuidado que dispensavam ao filho antes da ocorrência do acidente. Esse cuidado foi manifestado pelas participantes considerando a negação da negligência ou descuido, as orientações fornecidas às crianças, a proteção conferida, a ausência de violência, o “bem-cuidado” prestado, o enfoque dado à criança (ocupando-se em alimentá-la, vesti-la), a preocupação com a criança, a supervisão e o trabalho doméstico e externo para prover as necessidades dos filhos.

Compreenderam que a própria criança poderia ter sido capaz de evitar a morte, ao referirem que já tinha idade para entender situações de risco. Por outro lado, consideraram que a criança poderia ter sido cuidada por outras pessoas e buscaram, assim, apontar culpados pela morte do filho. Atribuíram também a Deus a responsabilidade pelo ocorrido, demonstrando-se resignadas quanto a esse destino. Ao mesmo tempo, mencionaram a inexistência de culpados, atribuindo a ocorrência do acidente doméstico à fatalidade e ao destino, reproduzindo ditos populares.

Relembrar como se sentiram ao saber da morte do filho... e de como ainda não entendem o que aconteceu

Nas falas, as participantes significaram que, quando a morte da criança foi constatada, foram confrontadas com a sensação de vazio, a qual foi revelada de diferentes formas.

[…] é como se a gente tivesse aqui e do nada desaparecesse tudo […] você fica sem chão, fica aérea […] Eu nunca usei nenhum tipo de droga, mas eu acho que é a mesma sensação […] eu lembro do momento, da notícia, aí um fala, outro fala e você está ali, parece que está só ouvindo um zumbido [imita o som do zumbido] […] A gente não pode fazer nada […] às vezes, eu lembro do que aconteceu, e me dá aquele desespero novamente, o desespero de você não conseguir fazer nada. É uma hora que você vê que é totalmente impotente. […] Não tem nem uma explicação cabível […] A dor da perda é uma dor diferente de você perder ente querido de um filho, é diferente quando morre um pai ou avô seu, eu acho que não se compara […] então, era tudo difícil demais. (M1)

[…] senti um vazio enorme […] meu vizinho falou que a viu com um ferro na mão, mas nessa hora, eu não vi nada na mão dela […]. (M2)

[…] foi muita tristeza. Grande demais, sofri muito, eu chorava muito, noite e dia. (M3)

[cabisbaixa] […] perdi o mundo de vista. Passei foi horas sem ver o mundo [estala os dedos] [chora copiosamente] […] se fosse assim uma coisa que ele já estava doente, mas foi de repente […]. (M5)

Quando deram a notícia, minha pressão baixou de vez. Eu não via nada […] fiquei desesperada […] não podia fazer nada. Perdi minha filha, pronto! A gente nunca esperava, foi uma coisa assim de repente […] sofri um bocado pela morte dela […] uma dor grande mesmo. (M6)

[a perda do filho] significou muita tristeza e dor que toda mãe sente! Não consigo explicar, não dá para medir […]. (M9)

As mães compararam também a sensação impactante da notícia/visão da morte do filho ao entorpecimento causado pela utilização de drogas, que desencadeou desorientação e desorganização. Relataram sensações físicas que envolveram, sobretudo, o sentido da audição e da visão, gerando zumbidos e diminuição da acuidade visual/cegueira, respectivamente. Narraram desespero diante da impotência e incapacidade em face da perda irreparável; e, ao rememorarem a experiência, reviveram esses sentimentos.

As mães expressaram que a morte dos filhos gerou sofrimento profundo em suas vivências, relatado como dor inexplicável, incomparável, incomensurável, inesperada, difícil e triste. Expressaram muita dificuldade para dar significado a essa dor, enfatizando não encontrar referências para compará-la. Ressaltaram que a diferença desse sofrimento em relação às outras perdas, como a morte de outros parentes, está na intensidade e na característica de ser um fato inesperado, por ter acontecido na infância e ter sido um acidente.

Sentir medo que traz inquietações e limitações para sua vida e a de seus outros filhos

Ao encararem o cotidiano após a morte do filho, as mães se compreenderam com medo, o qual trouxe limitações para sua vida e a de seus outros filhos. Esse medo se refere à possibilidade de ocorrência de novos acidentes domésticos, entre outros fatores que possam trazer riscos.

Após o ocorrido, eu falava que não queria ter filhos […] eu tinha medo de engravidar. Hoje, eu não tenho coragem de deixar ele [o filho que nasceu após a morte do irmão por acidente] só, eu não confio em ninguém […] parei de trabalhar porque eu tenho medo de deixar ele com alguém, porque estando comigo, eu estou vendo […] Ele vai para a escola, mas o coração fica apertado. Eu só fico em paz quando eu busco ele na escola e estou com ele em casa comigo, porque eu tenho medo do telefone tocar e dizer “teu filho passou mal, aconteceu alguma coisa” […] tenho medo de perder de novo […]. (M1)

Meu outro menino, o mais novinho, eu não deixo, ele não pega em ferro [de passar] […]. (M2)

[…] já passou muito tempo esse negócio de macaxeira em casa, eu não queria mais. (M5)

[…] eu não vou mais para essa beira de rio […] nem eu vou e nem eles [filhos] vão, eu não deixo, porque eu tenho medo […]. (M8)

Eu via que acontecia na família dos outros, mas na [família] da gente, a gente nunca pensa que vai acontecer […] desde então, fico assim, com medo. A minha menina de 2 anos já sabe, ela não desliga ventilador, não liga ventilador, não liga lâmpada, não bota a mão na tomada. Porque aqui não deixa. Se nós vamos sair, deixo tudo botado. (M10)

Listaram os motivos do medo, os quais estavam direta e indiretamente relacionados com o acidente doméstico que vitimou os filhos: medo de que elas ou outro filho sofram o mesmo acidente doméstico; medo de deixar os filhos sob a supervisão de outras pessoas; medo de os filhos sofrerem outros acidentes quando não estiverem sob sua supervisão; medo de receberem, novamente, a notícia de que algo aconteceu com os filhos.

Independentemente do tempo transcorrido após a morte dos filhos, as mães impuseram mudanças e limitações em suas rotinas familiares. Referiram que, devido ao trauma causado pela morte, demoraram a ter novas gestações; não trabalhavam fora de casa; evitavam deixar os filhos com outras pessoas, pois confiavam apenas em sua supervisão; não deixavam os filhos sozinhos; não permitiam que os filhos manuseassem objetos ou similares ou vivenciassem rotinas parecidas com as que causaram o acidente doméstico que desencadeou a morte do filho.

DISCUSSÃO

Antes de adentrar nesta etapa, é preciso explicitar alguns conceitos heideggerianos que sustentaram o objetivo do estudo. Desenvolveu-se o estudo do ser humano que vive em sociedade em determinado contexto e sob algumas condições. Esse pensamento é expresso por palavras hifenizadas, com o propósito de preservação etimológica para indicar a raiz e as aglutinações; e pelo uso do itálico, para destacar palavras/expressões próprias do referencial teórico de Martin Heidegger. Ainda, esclarece-se que esse filósofo utiliza o termo ente para se referir às pessoas e coisas do cotidiano e o ser-aí para se referir às pessoas em essência, sendo que o termo -aí indica que se assume o lugar de protagonista de suas vivências, experiências e relações(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.,2727 Schmidt L. Hermenêutica. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2013.).

Neste estudo, a hermenêutica heideggeriana possibilitou desvelar as mães como ser-aí-mãe. A composição da palavra hifenizada ser-no-mundo faz referência ao ser que compartilha vivências e experiências em constante relacionamento consigo, com outras pessoas e coisas(2828 Langendorf TF, Souza IEO, Padoin SMM, Paula CC, Queiroz ABA, Moura MAV et al. Possibilities of care for sorodiscordant couples for HIV who got pregnant. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1199-205. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0344
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).

Seguindo esse direcionamento como ser-no-mundo, a mãe é, essencialmente, ocupação, no sentido do exercício da maternidade. Por conseguinte, ao negar a culpa pela morte do filho, recusa aceitar a responsabilização pelo ocorrido com base na racionalização fundamentada na lida com o filho no seu cotidiano, ou seja, por meio do cuidado que lhe dispensava(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). Nesse contexto, o seraímãe exerce o papel que já é, desde sempre, determinado como de sua responsabilidade e, por isso, lhe é familiar.

As falas revelam que o ser-aí-mãe se encontra imerso nas ocupações do cotidiano e perdido na publicidade do impessoal, categoria heideggeriana que estabelece todo o modo pelo qual o mundo e o ser-aí-mãe são interpretados(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). A mãe se compara constantemente com as outras, tentando acompanhá-las, igualar-se a elas ou ultrapassá-las. Ao comparar-se com outras mães, na perspectiva de diminuir suas diferenças em relação às outras, a mãe se mostra dentro da categoria heideggeriana do afastamento, que significa transparecer o modo de existir das outras mães. Nesse sentido, ao negar qualquer culpa pela morte do filho, recusa-se a ser a mãe de um filho que morreu porque não foi cuidado adequadamente. Em razão disso, apressa-se em mostrar e retomar repetidas vezes em suas falas os afazeres e cuidados que exercia e que, na sua compreensão, eram capazes de adjetivá-la como boa mãe. Desse modo, desvia-se do caminho existencial e, ao anular-se, deixa de se tornar “si mesma” e se torna o que os outros desejam que seja: impessoal e inautêntica em sua vivência(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

A mãe, ao falar sobre sua experiência, busca compreender a morte repentina do filho e, para isso, oscila entre apontar e negar a existência de culpados. Algumas vezes, culpa a própria criança ou atribui o acidente/morte ao acaso ou ao destino. Essa culpabilização do outro é decorrente de sentimentos de incapacidade de manter seu filho vivo e coloca as enlutadas em situação de sofrimento, principalmente por perderem a possibilidade de reparação(2929 Rodrigues L, Lima DD, Jesus JVF, Lavorato Neto G, Turato ER, Campos CJG. Understanding bereavement experiences of mothers facing the loss of newborn infants. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2020;20(1):65-72. https://doi.org/10.1590/1806-93042020000100005
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-3030 Fuchs, T. Presence in absence. The ambiguous phenomenology of grief. Phenomenol Cogn Sci. 2018;17(1):43-63. https://doi.org/10.1007/s11097-017-9506-2
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). Ao imputar a culpa aos outros, a mãe parece se des-culpar. Ao passo que afirma saber que a culpa pelo acidente doméstico que vitimou o filho não é sua, sente-se em alguns momentos culpada. Essa ambiguidade permeia o discurso materno em diversos momentos.

Em busca de alívio e conforto para sua revolta, a mãe se mostra em uma categoria de existência que Heidegger chamou de falatório, que é a fala desarticulada de sua experiência particular. Essa fala, por sua vez, transmite uma interpretação geral, a qual é absorvida por meio da vivência relacionada com os costumes da cultura em que está inserida. A visão da mãe de que a morte da criança por acidente doméstico ocorreu por uma fatalidade ou porque era seu destino não se baseia em sua experiência pessoal, mas no fato de que todos citam esse dito popular(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

Por influência de um pensamento religioso da já enfatizada influência cultural em que a mãe se encontra inserida e instigada pelo falatório, responsabiliza Deus pela morte do filho, ao afirmar que “Deus me deu e Deus tirou”, entre outros ditos construídos sobre o alicerce de um discurso pronto e difundido no âmbito religioso para a promoção do conforto daqueles que sofrem pela perda de entes falecidos. Por meio de tal responsabilização, encontram alívio, e a religião se apresenta no mundo dessas mães não apenas como doutrina, mas também como algo que dá sentido à sua existência e proporciona conforto e amparo diante de situações relacionadas com a finitude(3131 Oliveira ALB, Menezes TMO. The meaning of religion/religiosity for the elderly. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 2):770-6. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0120
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).

Com a morte do filho, um vínculo é rompido, mas, na ruptura, a mãe enlutada permanece conectada a ele, muitas vezes com mais força do que antes. É precisamente essa contradição que pode lhe parecer insuportável. A mãe pode se revoltar contra o fato da morte, acusar a si, familiares ou os médicos de imperícia e, simultaneamente, apresentar raiva contra o destino ou contra Deus(3030 Fuchs, T. Presence in absence. The ambiguous phenomenology of grief. Phenomenol Cogn Sci. 2018;17(1):43-63. https://doi.org/10.1007/s11097-017-9506-2
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).

Independentemente da racionalização dos fatos envolvendo o acidente e a morte do filho, as mães geralmente examinam várias maneiras pelas quais poderiam ter antecipado a ocorrência e intervindo, mesmo que tais expectativas sejam irrealistas. As mães precisam se perdoar, o que pode levar muito tempo para acontecer. Certamente, o reforço de realidade de outras pessoas de confiança acelera essa cura(3232 Meisenhelder JB. Maternal grief: analysis and therapeutic recommendations. BMJ Support. Palliat. Care. 2021;11(1):101-6. https://doi.org/10.1136/bmjspcare-2020-002673
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). Por esse motivo, o cuidado no luto materno, ainda frágil no contexto brasileiro em hospitais e/ou na AB(3333 Paris GF, Montigny F, Pelloso SM. Professional practice in caring for maternal grief in the face of stillbirth in two countries. Rev Bras Enferm. 2021;74. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0253
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), é essencial. Enfermeiros e outros profissionais de saúde devem dar atenção cuidadosa aos significados que as mães atribuem à perda, devem apoiar os valores espirituais e fortalecer mecanismos eficazes de enfrentamento para mães enlutadas(3434 Razeq NMA, Al-Gamal E. Maternal bereavement: Mothers’ lived experience of losing a newborn infant in Jordan. J Hosp Palliat Nurs. 2018;20(2):137-145. https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000417
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).

Para tal, o enfermeiro precisa estar preparado para realizar escuta ativa considerando os aspectos relativos à culpabilização materna, fazer diagnósticos de enfermagem direcionados às necessidades da mãe enlutada e, com base nestes, prescrever intervenções individuais e coletivas, que incluem acolhimento, constituição/encaminhamento para grupos terapêuticos e acompanhamento pela equipe de referência e apoio matricial.

Ao rememorar a ausência definitiva do filho, conforme expressado na segunda categoria, é perceptível nos relatos maternos (também sob influência do falatório) a sensação de vazio, descrita como entorpecimento e marcada pela perda de percepção adequada da realidade(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). Inferese que a mãe deixa de vivenciar os momentos de cuidado que caberiam a ela, que preenchiam sua vida, seu existir como mãe. Toda a sua vida se torna afetada e desestruturada, pois, com a morte do filho, o cotidiano perde o significado: a familiaridade habitual entra em colapso(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). Isso ocorre porque a morte leva à separação não somente da intercorporalidade, mas também do mundo compartilhado, que inclui hábitos e práticas comuns, sobretudo o cuidado dispensado à criança. A mãe enlutada é, repentinamente, arrancada desse mundo compartilhado. Agora o ambiente familiar se transforma em um lugar de dolorosa ausência e vazio(3030 Fuchs, T. Presence in absence. The ambiguous phenomenology of grief. Phenomenol Cogn Sci. 2018;17(1):43-63. https://doi.org/10.1007/s11097-017-9506-2
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).

Nesse processo, são visíveis a não aceitação da morte repentina do filho e a dor permanente pela fatalidade, demonstradas pelo esforço significativo das mães para explicar seu sofrimento. Embora se perceba a dificuldade em relatar, explicar ou mesmo entender essa dor, falar sobre a morte da criança pode beneficiar essas mulheres na medida em que elas são capazes de compartilhar uma experiência real(3535 Ramos CM, Pacheco ZML, Vargas IMA, Araújo PA. Existential analysis of mothers in the care of their children with Sickle Cell Disease. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 4):e20180521. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0521
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) e trazer para o seu mundo a criança falecida, amenizando a dor da perda ao manter contato contínuo com ela(3030 Fuchs, T. Presence in absence. The ambiguous phenomenology of grief. Phenomenol Cogn Sci. 2018;17(1):43-63. https://doi.org/10.1007/s11097-017-9506-2
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).

Ressalta-se que a dor intensa referida pelas mães independe do tempo transcorrido desde a morte da criança. Por essa razão, abordagens tradicionais da cultura ocidental com foco em estágios do luto (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação) e ênfase geral em aconselhamento sobre aceitação como um indicador da resolução do enlutamento se mostram problemáticas para as mães enlutadas(1515 Goldstein RD, Lederman RI, Lichtenthal WG, Morris SE, Human M, Elliott AJ, et al. PASS Network. the grief of mothers after the sudden unexpected death of their infants. Pediatrics. 2018;141(5):e2017365. https://doi.org/10.1542/peds.2017-3651
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). Cuidados de enfermagem fundamentados em teorias contemporâneas, como a teoria dos vínculos contínuos, podem apresentar maior efetividade nesse subtipo distinto de luto, pois sugerem que as relações com o falecido são remodeladas e mantidas em vez de abandonadas(3636 Klass D. Continuing conversation about continuing bonds. Death Stud. 2006;30(9):843-8. https://doi.org/10.1080/07481180600886959
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).

Nessa perspectiva, intervenções como atividades de rememoração podem colaborar para o manejo dos sentimentos de vazio e dor ao fornecerem a oportunidade para as mães se sentirem conectadas à criança em sua nova realidade e relembrarem sobre sua vida. É também um meio de experimentarem o apoio de amigos, familiares, profissionais de saúde e da comunidade(3737 Kochen EM, Jenken F, Boelen PA, Deben LMA, Fahner JC, Hoogen A, et al. When a child dies: a systematic review of well-defined parent-focused bereavement interventions and their alignment with grief-and loss theories. BMC Palliat Care. 2020;19(1):1-22. https://doi.org/10.1186/s12904-020-0529-z
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).

Ainda que apresente dificuldades para expressar seus sentimentos, a mãe tenta explicar sua dor comparando-a com a de outras perdas, como aquela decorrente de outros parentes adultos ou idosos, destacando a diferenciação pelo caráter inesperado da morte do filho, ou seja, por esta ter ocorrido na infância e proceder de uma causa aparentemente evitável. Nessa perspectiva, a mãe nivela-se pelo que a percepção comum determina como ciclo esperado da vida: os filhos devem morrer depois dos pais(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

Infere-se que a intensidade e a extensão da resposta ao luto materno são teoricamente decorrentes da interrupção da ordem natural da vida. Destaca-se, portanto, a impropriedade materna em relação ao ser-para-a-morte, quando, ao serem lançadas em um mundo enlutado, e agora conscientes da fragilidade da existência, não aceitam essa facticidade. Nesse contexto, os enfermeiros possuem o papel de evitar possíveis complicações no processo de elaboração do luto materno, visto que a enfermagem possui caráter atemporal na manutenção do cuidado e da humanização, estando presentes nos mais diversos pontos da Rede de Atenção à Saúde. Com isso, vislumbra-se o desenvolvimento de estratégias efetivas de cuidado contínuo às mães enlutadas(3838 Santos MR, Wiegand DLMH, Sá NN, Misko MD, Szylit R. Da hospitalização ao luto: significados atribuídos por pais aos relacionamentos com profissionais em oncologia pediátrica. Rev Esc Enferm USP. 2019;53. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018049603521
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).

Ao expressar seus sentimentos em relação à morte do filho, revela-se, também o medo que traz inquietações e limitações para sua vida e a de seus/suas outros(as) filhos(as). Na analítica heideggeriana, o fenômeno do medo se caracteriza como disposição imprópria, pois é determinado pelo que se aproxima prejudicialmente no mundo circundante pelos entes que vêm ao seu encontro(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

Devido à morte do filho por acidente doméstico, a mãe não deixa seus outros filhos sem supervisão. Sente-se desconfortável quando ele vai para a escola, teme receber a notícia de que algo aconteceu com ele, não permite que ele vivencie rotinas ou desenvolva ações iguais ou parecidas com aquelas que culminaram com a morte do irmão falecido. Ao mesmo tempo, seu vivido modifica o porvir quando teme uma nova gravidez.

Em seu cotidiano reconfigurado após o acidente doméstico que vitimou o filho, a mãe se torna amedrontada diante da possibilidade da ocorrência de novos acidentes e, sobretudo, de outros filhos morrerem. Esse prejudicial, o acidente doméstico, é conhecido e se mantém como ameaça dentro do da conjuntura na qual a família se encontra: o rio continua às margens da casa, a macaxeira (venenosa) ainda pode ser consumida, o ferro de passar e o ventilador (energia elétrica) continuam sendo utilizados. Acercandose da proximidade, o acidente doméstico ameaça, pois pode ocorrer novamente ou não. Portanto, existe a possibilidade de o acidente doméstico não se concretizar, no entanto isso não diminui nem resolve o medo: ao contrário, o constitui(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.).

O fenômeno do medo possui os seguintes momentos constitutivos: pavor, horror e terror. Na facticidade de ter perdido o filho por acidente doméstico, o medo se torna pavor, em vista de ser o que ameaça algo conhecido e familiar(2121 Heidegger M. Ser e Tempo. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2015.). A morte na infância faz agora parte do vivido do seraímãe, pois essa tragédia se abateu repentinamente sobre a sua família quando esperava que acontecesse apenas na família de outras pessoas.

Nesse sentido, possibilitar a ampliação do conhecimento das mães acerca da prevenção de acidentes domésticos e de primeiros socorros contribuirá para aumentar a confiança em sua capacidade de maternagem e proteção de seus outros filhos, o que pode colaborar para manejar o medo e reduzir os impactos que a morte infantil trouxe para sua vida e a de sua família. Em razão disso, intervenções educativas realizadas por profissionais de saúde se mostram efetivas nesse contexto(3939 Barcelos RS, Del-Ponte B, Santos IS. Interventions to reduce accidents in childhood: a systematic review. J Pediatr. 2018;94:351-67. https://doi.org/10.1016/j.jped.2017.10.010
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).

Limitações do estudo

A partir da analítica realizada, recomenda-se, a fim de contribuir com o aprofundamento das discussões aqui apresentadas, a realização de novos estudos que possibilitem compreensão mais ampla das facetas que a pesquisa em tela mostrou-se limitada a abranger. Entre estas, encontra-se a possibilidade da abordagem de outros membros da família que foram citados nos relatos das mães, como copartícipes do vivido e da dor, em especial outros filhos e esposo.

Contribuições para a área da Enfermagem, saúde e políticas públicas

O desvelamento do vivido materno com base na morte de um filho por causa acidental na infância sugere que o fortalecimento da atenção integral, considerando a subjetividade dessas mães e o estabelecendo de empatia, é uma questão urgente. É preciso discorrer sobre a morte, desmitificá-la, ainda que ocorra na infância, e recolocá-la em sua posição de fenômeno intrínseco à vida, evitando o sigilo e as dificuldades de abordagem que ainda cercam esse tema e que geram significativo e adicional sofrimento às mães e famílias que lidam com a perda. A recomendação é que o planejamento do cuidado na assistência ao luto materno deve ser constituído considerando três elementos essenciais: 1) Necessidade de abordagem integral, que permita desvelar a essência do ser para que, de fato, se encontre as reais demandas dessas mães, visto que essas pessoas se mostraram na inautenticidade em seu movimento existencial; 2) Desenvolvimento de estratégias de ajustamento gradual ao luto, baseadas na manutenção da memória do filho e vínculos contínuos, diferentemente do que é, muitas vezes, preconizado em abordagens tradicionais do enlutamento; 3) Realização de intervenções educativas acerca da prevenção de acidentes domésticos na infância e realização de primeiros socorros com o objetivo de manejar o medo materno diante da possibilidade de ocorrência de novos agravos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A morte de um filho como constituinte e possibilidade de ser mãe, longe de representar ausência, no sentido de negatividade, faz parte do horizonte desvelado de possibilidades que garantem a realidade de ser. Com a morte do filho, essa mãe não deixou de ser mãe, apenas modificou o modo de ser ao ser lançada nessa facticidade. O fato de o filho ter morrido na infância por causa de acidente doméstico ainda constitui possibilidade fenomênica de ser mãe. De outro modo, é preciso considerar que essa morte traz significativas e permanentes repercussões para a vivência familiar e materna. Quando a causa da morte é aparentemente evitável, como no caso dos acidentes domésticos, o enlutamento se torna mais complexo, pois, em geral, a ausência da criança se conecta à culpa, ao sentimento de ter falhado em seu papel de proteção e cuidado, bem como ao medo da ocorrência de novos acidentes no cotidiano.

Desvelou-se que a morte do filho na infância compromete a integralidade do ser mãe, o que indica a necessidade de cuidado sistematizado, humanizado, qualificado e contínuo para a condução adequada dos efeitos emocionais e sociais relacionados com o luto materno. Nesse contexto, os profissionais de saúde, com destaque para o enfermeiro, podem possibilitar que as mães falem sobre seu vivido, sua criança e sentimentos que surgem com a morte dela. Ademais, o apoio da família e de sua rede social também pode contribuir para o bem-estar biopsicossocial e espiritual da mãe. Para tal, é preciso quebrar os tabus que estabelecem o silêncio acerca da morte na infância e dificultam o ajustamento da mulher à nova realidade.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Ana Cristina Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2021
  • Aceito
    15 Out 2021
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