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Desafios do cuidado de enfermagem na reabilitação psicossocial: um estudo sob a perspectiva construcionista

RESUMO

Objetivo:

Identificar as dificuldades da equipe de enfermagem na prestação do cuidado em reabilitação psicossocial aos usuários do CAPS.

Métodos:

Estudo qualitativo, baseado no referencial do construcionismo. Participaram do estudo 16 membros da equipe de enfermagem do CAPS na cidade do Rio de Janeiro. Os dados coletados nas entrevistas e na observação foram organizados no software Nvivo e analisados com base no conteúdo temático.

Resultados:

As dificuldades identificadas foram: a violência territorial que impõe um silenciamento às ações do CAPS, a baixa escolaridade do usuário como barreira ao protagonismo, a adesão familiar prejudicada, o desconforto técnico-conceitual da enfermagem em atuar na crise e o sucateamento material e humano do CAPS.

Considerações finais:

Os desafios consistem em superar o esgotamento da equipe, contudo não impedem que a enfermagem aposte na possibilidade do cuidado protagonizador. Para tanto, tal cuidado é dimensionado pela relação clínica-política-ética em uma negociação constante com o território.

Descritores:
Enfermagem Psiquiátrica; Cuidados de Enfermagem; Reabilitação; Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental

ABSTRACT

Objective:

To identify the nursing staff’s difficulties in providing care in psychosocial rehabilitation to CAPS users.

Methods:

Qualitative study based on constructionism. Sixteen members of the CAPS nursing staff participated in the study in the city of Rio de Janeiro. The data collected in the interviews and observations were organized in Nvivo software and analyzed based on thematic content.

Results:

The difficulties identified were: the territorial violence that imposes a silence to the actions of CAPS, low user education as a barrier to protagonism, impaired family adhesion, the technical-conceptual discomfort of nursing in acting in the crisis and material and human of CAPS dismantlement.

Final considerations:

The challenges consist of overcoming staff exhaustion; however, they do not prevent nursing from betting on the possibility of protagonist care. Therefore, such care is dimensioned by the clinical-political-ethical relation in constant negotiation with the territory.

Descriptors:
Psychiatric Nursing; Nursing Care; Rehabilitation; Mental Health; Mental Health Services

RESUMEN

Objetivo:

Identificar dificultades del equipo de enfermería en prestación del cuidado en rehabilitación psicosocial a los usuarios del CAPS.

Métodos:

Estudio cualitativo, basado en el construccionismo. Participaron 16 miembros del equipo de enfermería del CAPS en Rio de Janeiro. Los datos recogidos en las entrevistas y en la observación organizados en software Nvivo y analizados con base en el contenido temático.

Resultados:

Las dificultades identificadas son: la violencia territorial que impone un silenciamiento a las acciones del CAPS, baja escolaridad del usuario como barrera al protagonismo, adhesión familiar perjudicada, incomodidad técnico-conceptual de la enfermería en actuar en la crisis y desvalorización material y humana del CAPS.

Consideraciones finales:

Los desafíos consisten en superar el agotamiento del equipo, pero no impiden que la enfermería aposte en la posibilidad del cuidado esencial. Para tanto, tal cuidado es dimensionado por la relación clínica-política-ética en una negociación constante con el territorio.

Descriptores:
Enfermería Psiquiátrica; Cuidados de Enfermería; Rehabilitación; Salud Mental; Servicios de Salud Mental

INTRODUÇÃO

A reabilitação psicossocial é direcionada por práticas de serviços com base territorial e comunitária. Dessa perspectiva, almeja-se o rompimento da lógica manicomial na atenção à saúde.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços destinados a acolher os usuários em sofrimento psíquico, romper com a lógica do entretenimento, estimular a integração social e familiar e apoiá-los em suas inciativas de busca de autonomia, além de oferecer atendimento de enfermagem, médico e psicológico. Para isso, é necessária uma prática transformadora e um cuidado pautado no campo da ética para além das práticas institucionalizadoras(11 Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(suppl 6):2067-74. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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).

Nesse contexto, a enfermagem tem um papel fundamental ao estabelecer seus cuidados cotidianos por meio de mecanismos que permitam aumentar o poder de contratualidade do usuário no território, com intermédio da relação terapêutica e da rede de apoio social(22 Oliveira RMP, Alves M, Porto IS, Cavalcanti PCS. The psychiatrical nursing clinic and its new care technologies. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2016;8(supp 1):3922-34. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i1.3922-3934
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3 Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20160284. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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-44 Maftum MA; Pagliace AGS; Borba LO; et al. Changes in professional practice in the mental health area against Brazilian psychiatric reform in the vision of the nursing team. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2017;9(suppl 2):309-14. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i2.309-314
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). Dessa forma, a enfermagem volta as suas ações para o aumento da autonomia e participação do indivíduo acolhido em um serviço de saúde mental(33 Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20160284. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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).

Entretanto, desde a criação do CAPS, é notado que a promoção da saúde e da cidadania para o sujeito atendido no serviço ainda se configura como um grande desafio. Este estudo traz o seguinte questionamento: Quais são as dificuldades encontradas pela equipe de enfermagem no cotidiano de cuidados aos usuários do CAPS?

O estudo se justifica porque o serviço de base territorial, vinculado à Atenção Primária na assistência em saúde mental, passa ainda por transformações relacionadas aos desafios apontados pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A enfermagem em saúde mental também se confronta com um passado pautado em práticas institucionalizantes e com a necessidade atual de integrar-se em grupo multiprofissional assim como de realizar um cuidado que produza autonomia, inclusão social e reabilitação psicossocial.

Esta pesquisa tem relevância ao elencar os diversos desafios do campo social, político e clínico para um saber/fazer da equipe de enfermagem na reabilitação psicossocial.

OBJETIVO

Identificar as dificuldades da equipe de enfermagem na prestação do cuidado de reabilitação psicossocial aos usuários do Centro de Atenção Psicossocial.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Foram cumpridos os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos, preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde, de acordo com as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016. O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil, sendo aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis e da Secretaria Municipal da Saúde do Rio de Janeiro.

Referencial teórico-metodológico

É uma pesquisa na perspectiva do construcionismo social de Kenneth J. Gergen. Trata-se de um referencial apologético a uma teoria relacional ligada à prática. Portanto, referencia-se nas descrições teóricas que, amiúde, fazem parte das nossas experiências cotidianas por meio da construção social de sentidos coletivizados(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.). Dessa forma, empregar a perspectiva construcionista implica pensar o encontro e a pesquisa como um espaço possível de transformação para uma construção social inovadora na reabilitação psicossocial. Assim, o construcionismo social também constitui-se como um referencial para estudos da assistência em enfermagem nesse cenário, pois o trabalho de enfermagem deve promover saúde de forma não excludente e atrelada aos princípios humanistas.

Tipo de estudo

Estudo descritivo-exploratório de natureza qualitativa. Essa investigação foi conduzida e estruturada com base no instrumento Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR), da Rede Equator, para orientar a metodologia do estudo(66 O'Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recomendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51. https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000388
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).

Procedimentos metodológicos

Foram utilizadas entrevistas não estruturadas e observação participante com as equipes de enfermagem que atuam na assistência da atenção psicossocial. As entrevistas foram gravadas em gravador de áudio MP3, e a observação foi registrada no diário de campo do pesquisador.

Cenário de estudo

O cenário da pesquisa ocorreu em dois Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tipo III, localizados no município do Rio de Janeiro. Um dos serviços fica próximo a uma favela, e o outro situa-se em uma região mais central e urbanizada. O período da pesquisa foi de setembro de 2017 a janeiro de 2018.

Os pesquisadores não fazem parte da equipe assistencial dos cenários de estudo e não possuem vínculo profissional com os participantes. É importante ressaltar que apenas um pesquisador esteve presente na coleta de dados.

Fonte de dados

A seleção dos participantes ocorreu mediante a técnica de amostragem por conveniência e de escolha intencional. Foram incluídos os enfermeiros e técnicos com tempo igual ou superior a seis meses, contrato de trabalho permanente ou temporário. O critério de exclusão foi estar em período de férias durante o estudo. Foram entrevistados 16 participantes, dos quais 9 (56 %) são técnicos de enfermagem; e 5 (44%), enfermeiros. A média de atuação no CAPS é de três anos.

Coleta e organização dos dados

A produção de dados ocorreu ao longo de 112 horas de observação participante e de entrevista não estruturada, e cada depoimento durou em média uma hora. As entrevistas e o registro da observação foram cessados após a exaustividade da comunicação, isto é, ao ser notada a repetição de temas.

Os dados provenientes das entrevistas não estruturadas e da observação participante foram tratados manualmente e transcritos em programa Microsoft Word 2016. Essas entrevistas foram devolvidas para os respectivos participantes do estudo, via e-mail pessoal, para aprovação do conteúdo transcrito. Vale ressaltar que nenhum participante solicitou alteração do material. Os depoimentos dos entrevistados foram identificados com a letra E acompanhada do numeral correspondente à ordem da realização das entrevistas.

Para a organização e codificação dos dados, o estudo utilizou o software N Vivo Pro 12. Este é um dispositivo para análise de conteúdo temático em pesquisas qualitativas da saúde que permite criar categorias, codificar, filtrar, fazer buscas e questionar os dados, a fim de responder às questões de um estudo científico(77 Qrs. Nvivo. Versão Nvivo Pro 12 for Windows 2018 [Software][Internet]. 2018 [cited 2020 Jan 25] Available from: http://www.qsrinternational.com/nvivo-portuguese
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).

Análise dos dados

A codificação dos dados no software N Vivo foi realizada por pares. Após a organização e codificação dos dados, efetuou-se a análise de conteúdo. Tanto os dados das transcrições dos depoimentos quanto o registro da observação foram analisados. O estudo aborda, à luz do construcionismo social, as seguintes categorias temáticas de produção de sentido: 1) A violência territorial impõe um silenciamento às ações do Centro de Atenção Psicossocial; 2) A baixa escolaridade do usuário como barreira ao protagonismo; 3) Adesão familiar prejudicada; 4) O desconforto técnico-conceitual da enfermagem em atuar na crise; 5) O sucateamento material e humano do Centro de Atenção Psicossocial.

RESULTADOS

A violência territorial silencia o Centro de Atenção Psicossocial

A violência territorial foi o fenômeno que teve maior expressividade de sentidos. Tal evidência está relacionada à violência urbana, tráfico de drogas, violência policial, desigualdades sociais, segurança pública e pouco investimento em políticas públicas no território:

Do tráfico […] ele não podia entrar nessa região por conta de dívidas com drogas entendeu? E o pessoal respeita em saber que ele está em tratamento, só que é um respeito, mas se tiver uma oportunidade não vai passar em branco. (E4)

Essa vulnerabilidade social por meio da violência territorial impede o CAPS de atuar mais amplamente:

[…] Hoje tá bem complicado a gente não está circulando mais, não tá desenvolvendo mais ações territoriais com os usuários por conta da violência territorial; a qualquer hora do dia, a qualquer momento, tem confronto, não tem mais hora marcada. Isso interfere até o acesso deles ao serviço, o acesso da gente à comunidade. (E1)

A violência nas favelas e territórios vulneráveis impõe uma carga pesada ao bem-estar da população(88 Sawaya AL, Albuquerque MP, Domene SMA. Violência em favelas e saúde. Estud Avan. 2018;32(93):243-50. https://doi.org/10.5935/0103-4014.20180041
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):

A gente acaba se expondo, agora subir na comunidade para pegar paciente que está quebrando […] a grande maioria dos lugares lá em cima, na verdade, o bombeiro ou a SAMU não chega, não vai por conta do risco territorial também. (E1)

[...] muitas vezes, você é abordado com um fuzil na sua direção para saber se primeiro você é um profissional da área da saúde ou se é um policial que tá ali à paisana querendo entrar dentro do território. (E8)

Outrossim, a violência nos serviços de saúde é um fenômeno que tem proporcionado adoecimento psíquico na equipe de enfermagem(99 Bordignon M, Monteiro MI. Violence in the workplace in Nursing: consequences overview. Rev Bras Enferm. 2016;69(5):939-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2015-0133
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):

[…] O pessoal do tráfico está muito na rua, porque eles ficam geralmente armados, então a gente não consegue subir, mas a gente tem uma sorte muito grande que esse CAPS trabalha quase que junto com uma clínica da família, então os agentes comunitários de saúde ajudam muito a gente. (E7)

O CAPS, também, é um local para fugir da violência territorial:

Porque muitos não vêm, então a gente tem que ir na casa do paciente para fazer essa medicação e, às vezes, a gente não consegue dar conta de ir por conta da demanda do serviço e por conta da violência territorial. (E1)

Eu acho que eles, no território, eles ficam muito silenciosos, eu acho que se participa de alguma atividade lá é mínima e eles realmente vêm em busca do CAPS que é onde eles se sentem mais seguros e se sentem melhor e eles têm voz. Lá eles não têm voz, eles são só mais um que são manipulados. (E6)

Conforme dados do diário de campo, foi observado pelos pesquisadores que a questão da violência relacionada aos conflitos policiais com o tráfico de drogas tem gerado desconforto e medo aos usuários e profissionais do CAPS. A realização da coleta de dados ocorreu em um dia de um intenso tiroteio na comunidade próxima ao serviço, de modo que os pesquisadores necessitaram encerrar a coleta e aguardar o aviso dos membros da equipe para voltar ao trabalho. Foi percebido que alguns membros da equipe de enfermagem já naturalizavam tal episódio como parte cotidiana do território.

A violência no território do CAPS III no município do Rio de Janeiro traz um agravante não só para a integridade física do indivíduo em sofrimento psíquico e/ou com transtorno mental, mas também para o usuário devido à dificuldade de exercer o seu protagonismo e a sua cidadania. A violência social configura-se como um aspecto que marginaliza ainda mais o indivíduo inserido no CAPS e dificulta o trabalho e a terapêutica do território.

A baixa escolaridade do usuário como barreira ao protagonismo

No contexto do CAPS, a dificuldade de alfabetização gera obstáculos de comunicação, de instrução para os direitos e de compreensão sobre a terapêutica. Expressar-se não é algo fácil para o usuário, e mesmo que a equipe de enfermagem crie mecanismos para ultrapassar essa barreira, ela permanece marcando a vida em sociedade:

[…] ele não aceita a medicação justamente porque não tem conhecimento daquela medicação e, assim, a questão da… da sociedade, novamente falando, difícil a gente conseguir integrar eles, até mesmo porque pelo fato dele não saber ler, sabe? Ele se isola mais. Fica mais difícil trabalhar assim, entendeu? É isso, é complicado, complicado quando o usuário é analfabeto. (E5)

Para o construcionismo, a comunicação está na relação, em que os sentidos são produzidos. Logo, as pessoas falam pela perspectiva de uma tradição cultural(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.):

O cuidado de enfermagem nesse protagonismo […] nós temos aqui uma oficina de café com letras, por exemplo, onde as pessoas eram estimuladas a retirar pequenos trechos ou palavras e ali iam formando… eu acho que com isso a pessoa começou a se descobrir. Como eu disse, ela saiu do anonimato e viu que era uma pessoa, que podia fazer coisas nesse sentido. (E2)

[...] Eu não vi aqui ainda uma oficina de alfabetização que seria interessante, não estou falando em criar uma escola, mas seria uma coisa como “Vamos ler um livro, vamos ver como que se lê esse livro”, começar tudo de novo mesmo, começar com aqueles livros que você abre assim. (E13)

É importante ressaltar que há iniciativa para o acesso do usuário à alfabetização. Tal mecanismo está relacionado à comunicação criativa por intermédio das oficinas e ao estímulo da equipe de enfermagem:

A gente tem muitos usuários que são semianalfabetos. Muitos, muitos, muitos, né? […] Por ser algo muito verbal, por ser atenção psicossocial algo muito da conversa, é algo muito […] então, eu acho que não tem atrapalhado muito. (E2)

A gente aqui no CAPS quando a gente vê que um paciente não é alfabetizado, não terminou seus estudos, né, a gente vê a vontade deles de voltar a estudar e matricula ele, corre atrás, bota para fazer curso. Aqui a gente tem um livre leque de opções até onde o paciente quer ir, tanto que a gente insere até no local de trabalho, né, tendo vaga. (E16)

Os pesquisadores perceberam a necessidade de uma usuária ser alfabetizada, porque ela havia solicitado aos membros do Centro em assembleia, a fim de aprender a ler e a escrever. Na realidade do CAPS III, muitos sujeitos não tiveram a oportunidade de se alfabetizarem, por questões financeiras e sociais, quando necessitaram de trabalhar precocemente ou não puderam frequentar a escola. Essa privação de acesso à escolarização ficou mais acentuada nos pacientes que vivenciaram as internações de longa permanência e a institucionalização em hospitais psiquiátricos.

Adesão familiar prejudicada

É clara a preocupação da equipe de enfermagem do CAPS em relação à adesão familiar:

Tem muitas famílias que ainda vê [sic] o CAPS ainda como se fosse um manicômio […] trabalho todo mundo dá; as famílias não estão ainda com aquela consciência que o seu parente não precisa ficar internado para ser cuidado. (E11)

[…] a família é o grande problema até do fato deles ficarem acolhido, porque, às vezes, não têm necessidade de ficar, e a família insiste, a família não faz nenhum esforço e ameaça se você não deixar e você não acolher, eles ameaçam colocar em um hospital psiquiátrico! (E13)

A família compõe a parceria do cuidado ao indivíduo que sofre psiquicamente, mas necessita receber o suporte adequado para superar situações de desgaste físico e emocional, devendo encontrar, nos serviços substitutivos em saúde mental, o acolhimento de suas necessidades e apoio para sua reestruturação(1010 Belloti M, Fraga HL, Belloti L. Family and psychosocial attention: care for the person with abusive use of alcohol and other drugs. Cad Bras Ter Ocup. 2017;25(3):617-25. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR0988
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):

Se a família não tiver conscientização, ela simplesmente não entende a questão da doença que seu parente tem […] E aqui é justamente onde ela pode encontrar as palavras certas para que ela possa entender e promover como que ela vai… é criar alternativas de lidar com isso no dia a dia. (E6)

Dificulta todo o trabalho; às vezes, a gente está aqui, libera o indivíduo bem, ficou bem e tal. Está aí um tempo, aí pode mandá-lo para casa, porque está bem organizado, e a família não quer recebê-lo em casa. (E11)

A existência de sofrimento psíquico também entre familiares, eventualmente com transtorno mental, é um fator determinante para a não adesão ao tratamento e para a ausência de corresponsabilidade:

[…] Às vezes, a família também precisa de cuidado e aí não consegue trazer essa pessoa, esse usuário. Às vezes, a rede. (E12)

Tem familiar que a gente precisa atender mesmo, receber de forma individual, às vezes, a gente precisa até separar a referência, por mais que a família não se trate, não precisa de um tratamento medicamentoso, ou que não tem um transtorno, mas precisa de um cuidado. (E14)

Na atenção psicossocial, as propostas de cuidado ao usuário não são uma questão apenas técnico-profissional, uma vez que o sofrimento do sujeito envolve seu ambiente social, portanto familiar. A família é parte fundamental no acolhimento para um cuidado protagonizador, e seu afastamento desse processo terapêutico prejudica o protagonismo do usuário.

O desconforto da enfermagem em cuidar na crise

A intervenção nas crises, nos espaços do CAPS, é sempre um momento de muita tensão nas relações entre a equipe e o usuário em questão, uma vez que essa contenção vem sendo, predominantemente, física e química, perdendo-se as dimensões comunitárias e institucionais.

A gente fala sobre um serviço substitutivo aos manicômios e que vai lidar com a crise, que a princípio é bem difícil de lidar. A gente tenta tomar sempre da forma partindo do vínculo. Aí, depois medicação, não tendo resposta aí, a contenção […]. Então, às vezes, é difícil lidar. (E1)

A gente que fica na ponta, porque paciente agitou, chama enfermagem. Enfermagem que está ali, como se diz no militarismo, a infantaria que está ali na frente. Então, a enfermagem é o primeiro a ser chamado, assim, a experiência, eu tenho várias experiências tanto com contenção física quanto contenção química. (E8)

Em relação à contenção nas crises realizada no CAPS III, a equipe de enfermagem tem uma explícita relação de desconforto:

Depois, me dá um alívio, mas me dá uma certa pena do usuário. Já teve uma questão não de participar da contenção, quando cheguei aqui, ele já estava contido. Mas, assim, depois ele começou a chorar […], me deu uma pena. (E12)

É complicado, tem diversos sentimentos assim… É muito ruim […] quando um paciente está agressivo[…] Ninguém gosta de ver ninguém preso, né? Eu não gosto de ver um animal preso, imagina uma pessoa, entendeu? É ruim falar sobre isso. (E16)

Tal desconforto está intrinsecamente ligado à dificuldade de comunicação e à compreensão sobre os significados da crise na loucura, podendo implicar vivência desagradável para a equipe de enfermagem e, principalmente, para o usuário:

[…] A contenção é realmente o que nos move muito, nos machuca muito. A aposta em não tentar conter, ela é muito grande, que a gente se coloca muito em risco. Eu já tomei soco, já tomei cotovelada, já tomei uma cadeirada nas costas. Vou ficar, cuidado corpo a corpo, não vou conter, vamos tentar aqui pelo vínculo e, às vezes, isso é insustentável demais, porque a gente tenta fazer diferente. (E1)

Eu não gostaria de estar, eu não gostaria de estar preso ali por várias horas na contenção física. É ruim, isso é muito ruim, é muito ruim, mas tem momentos que é necessário. Tanto para o usuário, para o paciente, como para o profissional. Assim, não tem como, não tem como para gente colocar o paciente numa contenção física e até química. (E8)

A equipe de enfermagem sente-se incomodada e despreparada quanto ao sentido terapêutico da contenção física na crise; também, não conta com a participação real de outros profissionais do CAPS nesse manejo clínico da urgência:

Geralmente, eu não gosto de contenção física, isso me remete ao passado, remete à violência, muitos atos que aconteceram no passado, mas a diferença, quando a gente precisa fazer. (E3)

Não é que me incomoda, mas acho que a equipe não chega muito junto e a gente fica muito sozinho fazendo isso; eu entendo que a contenção mecânica é um instrumento de trabalho, mas a gente tem que ter muita delicadeza ao usá-la. (E14)

Os participantes trouxeram a necessidade dessa contenção, apesar do mal-estar na equipe de enfermagem:

É algo desumano, reproduzir essa questão da punição e tentar não entender o sujeito quando ele tenta se comunicar através dessa construção com a base psicótica, ver que aquilo está muito invasivo, insuportável para ele. (E15)

A crise está presente no CAPS, e é esperado que ela aconteça dentro desse espaço de cuidado a pacientes graves. Apesar do desconforto vivenciado pela equipe, ela consegue, mesmo com dificuldades diante da urgência da crise, humanizar essa intervenção objetivando o retorno à autonomia e à ressocialização(1111 Krachenski NB, Holanda AF. Crisis management in psychosocial care centers: a systematic literature review. Rev Psicol Fae [Internet]. 2019 [cited 2020 Jan 25];8(1):23-42. Available from: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/233/143
https://revistapsicofae.fae.edu/psico/ar...
).

O sucateamento do Centro de Atenção Psicossocial

O sucateamento do CAPS é uma realidade que se explicita na falta de recursos humanos e materiais. Parece não haver interesse da gestão municipal em prover um planejamento adequado:

Eu realizo muitas visitas domiciliares. A dificuldade é no transporte, não tem transporte. Eu a realizo por meios próprios com meu próprio veículo. (E2)

[…] A gente vê qual o usuário tem acompanhante para pagar a passagem do outro. Às vezes, a gente acaba tendo que pagar uma passagem ou outra. Eu acho que muito do financeiro, tem gente que não tem dinheiro, a gente passa do cartão do CAPS ou então está no final do mês e já foi todo o dinheiro, e, às vezes, o usuário acaba não conseguindo ir. (E14)

Os dados dos diários de campo mostraram que, em uma assembleia de usuários sobre valorização do SUS e dos serviços públicos e territoriais, a pauta se concentrou na discussão relacionada à reivindicação de pagamentos em dia e mais recursos da prefeitura para os CAPS. Há uma tensão nas falas dos participantes profissionais de saúde quando abordam a questão da sobrecarga de trabalho devido à falta de investimentos e recursos humanos:

Eu tô cansado, estressado com meu trabalho. Semana passada que eu estava com uma dor na nuca contínua e uma dor de cabeça, eu sou hipertenso, quase 40 anos […] Foi o tempo de eu sair de lá e vir para cá, eu tinha uma acatisia, eu entrei em pânico […] a sobrecarga do trabalho, o serviço nos adoece. (E15)

A equipe de enfermagem encontra desafios na promoção do protagonismo do usuário, na construção efetiva de um projeto terapêutico singular (PTS), na distribuição de tarefas cotidianas com outras profissionais de saúde e no cuidado protagonizador:

O enfermeiro de saúde mental, ele não tem o desgaste só físico como os colegas têm nas clínicas […] tem um desgaste mental muito grande como a gente está ali como mediadora da crise entre um insuportável e o sujeito, de novo nós somos o muro. (E15)

A realidade do sucateamento desencadeia, segundo o pessoal da enfermagem, um processo de trabalho que não auxilia na produção de cuidados em saúde mental atrelados à Reforma Psiquiátrica Brasileira:

Eu tive toda minha formação em enfermagem norteando muito as questões clínicas. Ela é 95% do tema, as questões clínicas. Pouco se fala da questão psicológica, pouco mesmo. (E2)

A formação da saúde é muito “hospitalocêntrica” ainda; você sai da faculdade sabendo trabalhar num hospital, sabendo cuidar de uma infecção renal crônica conjuntiva, mas você não sai sabendo ouvir o sujeito […]. (E14)

Os pesquisadores observaram, conforme dados analisados no diário de campo, uma preocupação forte dos profissionais do CAPS III durante o evento final de despedida da equipe de pesquisadores, relacionada, sobretudo, à situação do SUS e do CAPS no município do Rio, devido ao precário financiamento e planejamento dos serviços, bem como à desvalorização profissional.

Portanto, diante de narrativas culturais, como é o caso destas que aqui foram expostas, o construcionismo social aponta a necessidade de compreendê-las a fim de se descobrir um sentido coletivo de sua história e destino(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.).

DISCUSSÃO

A violência em suas distintas formas representa um novo perfil no quadro mundial dos problemas de saúde, e os profissionais da assistência em saúde estão propícios a sofrerem pelas diversas formas de violência em seu ambiente de trabalho(1212 Fernandes H, Sala DCP, Horta ALM. Violence in health care settings: rethinking actions. Rev Bras Enferm . 2018;71(5):2599-601. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0882
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

Segundo o construcionismo social, os conflitos sociais existem porque são tratados de forma individualizada, isto é, sem o diálogo necessário para compartilhar no campo das relações o que é verdadeiro, real e bom. Tal individualismo na resolução das desordens vai acarretar o não compartilhamento de ideias e diálogos, tendendo a aumentar as desordens(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.). Os conflitos fazem parte do mundo, e mesmo que alguns deles sejam apavorantes, apenas com o diálogo será possível uma solução. É o que no construcionismo chama-se de “práticas de redução de conflitos”(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.).

Para o construcionismo social, quando se entende que o problema não está em nós, mas no sistema, desaparece uma parte da dúvida acerca de nós mesmos, abrindo possibilidades para novas alternativas de ações e resoluções de conflitos(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.).

A evidência da violência como um fenômeno que impede o CAPS de avançar no território é um alerta de saúde pública para a sociedade. Quando esse CAPS não avança, ele se fecha em si mesmo, institucionalizando-se e rompendo com a lógica do paradigma psicossocial e da reforma psiquiátrica. Mesmo que a violência proporcione um afastamento dos usuários do CAPS III porque há uma clínica presente no território, torna-se urgente o manejo de tal conflito por meio de um diálogo intersetorial com políticas públicas mais atuantes em territórios vulneráveis.

Em suma, a violência territorial diminui a possibilidade de o usuário exercer seu protagonismo de forma plena e cria obstáculos para a equipe de enfermagem cumprir o cuidado protagonizador. Segundo a percepção da equipe de enfermagem, esse medo silencia o cuidado ao usuário no território que os profissionais também não acessam. Vale reiterar que o CAPS também se constitui em local de proteção e de acolhida ao usuário, marcado por vulnerabilidades ligadas à violência territorial em um contexto urbano como o da cidade do Rio de Janeiro. Portanto, a violência territorial afeta um dos pilares da reabilitação psicossocial no que diz respeito ao habitar, prejudicando a capacidade do usuário de estar nos espaços do CAPS e do território. Essa dificuldade de acesso cria barreiras para o cuidado de enfermagem baseado na atenção psicossocial e na inclusão social, pois terá que abrir mão dos espaços comunitários. Além disso, a violência dificulta e, às vezes, impossibilita as trocas no território bem como a formação de vínculo e apoio social.

A questão da baixa escolaridade é outra barreira para o protagonismo do usuário do CAPS e uma realidade identificada pela equipe de enfermagem como um desafio permanente, já que, na rua, no trabalho e na sociedade, esses sujeitos sofrerão alguma marginalização por não terem tido acesso à alfabetização. Tal fenômeno afeta, principalmente, o campo da reabilitação psicossocial no que se refere à inclusão pelo trabalho, uma vez que o usuário não é absorvido pelo mercado de trabalho devido às limitações impostas pelo analfabetismo.

O construcionismo social privilegia o reconhecimento da tradição cultural, que será compartilhada. É um contexto do tempo vivido, pois os fatos narrados podem ser semelhantes, mas a descrição deles depende da tradição, de quem estiver escrevendo(55 Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo Social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010. 119p.). Nesse sentido, a equipe de enfermagem do CAPS III se esforça por construir formas de instrução e comunicação (p.ex., a atividade intitulada “Café com letras no CAPS”), para amenizar as barreiras impostas pelo alto índice do analfabetismo dos usuários.

A equipe de enfermagem é atuante na criação de mecanismos para o reconhecimento dos valores culturais. Dessa forma, a enfermagem se utiliza de uma linguagem próxima ao usuário e de ações criativas, a fim de estabelecer uma conexão positiva. Apesar disso, ela reconhece que o analfabetismo é um fenômeno com necessidade de ser trabalhado para além do CAPS III, um problema que envolve uma resolução intersetorial, isto é, para além dos serviços de saúde.

Sobre o desafio relacionado à não adesão familiar, é necessário dizer que a visão clássica acerca da família e sua responsabilização sobre o adoecimento dos seus membros não vem oferecendo as possibilidades de aliança para o cuidado. Reforçando essa dificuldade, os profissionais de saúde tendem a estabelecer alianças com os usuários, assumindo de certa forma a crítica aos familiares, o que dificulta a intervenção neutra no modo de funcionamento familiar. Num contexto ideal, seria necessária a corresponsabilização entre a família e o usuário para o melhor cuidado em saúde mental(1010 Belloti M, Fraga HL, Belloti L. Family and psychosocial attention: care for the person with abusive use of alcohol and other drugs. Cad Bras Ter Ocup. 2017;25(3):617-25. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR0988
https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR0...
).

A relação familiar do usuário com o CAPS é um dispositivo primordial na produção do cuidado protagonizador, cujo avanço terapêutico requer adesão ao tratamento e acompanhamento. Sendo assim, as dificuldades de adesão dos familiares, assim como negação da doença, devem ser trabalhadas como parte do cuidado e ser transformadas em diálogos construtivos do cuidado.

A equipe de enfermagem constrói mecanismos para convocar essa participação familiar no tratamento do usuário do CAPS III, entendendo que há também a necessidade desse familiar em ser cuidado e orientado. Este é um trabalho de desconstrução cultural da figura do louco excluído e que se inicia na célula primeira da família, para ela compreender a complexidade do adoecer mental, que não deve resultar em exclusão social.

Outro desafio identificado no estudo refere-se às dificuldades no manejo da crise, que produzem desconforto na equipe de enfermagem. Esse mal-estar no momento da intervenção vai variar de acordo com o grau de vínculo estabelecido. Nesse sentido, um estudo já identificou padrões de manejo pelo enfermeiro a pessoas em surtos psicóticos, em que grande parte da equipe de enfermagem mostra despreparo(1313 Oliveira A, Garcia APRF, Toledo VP. Patterns of knowledge used by nurses in caring for the patient in the first psychotic outbreak. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20170001. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0001
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).

A contenção da crise do usuário do CAPS feita pela equipe de enfermagem é percebida pelos profissionais como um limite paradoxal entre tensão e alívio. Também se apresenta como um dilema moral, porque eles se sentem empurrados, solitários e com a obrigação permanente de decidir entre o limite da tensão da equipe com risco de agressão física e o alívio de conseguir conter um paciente que estará, então, mais protegido.

A contenção física representa um passado profissional agressivo e passível de críticas para a enfermagem e expõe uma contradição diante das novas práticas de cuidado. Entretanto, tal prática continua sendo demandada por muitos profissionais de várias áreas, cuja execução permanece como ação de enfermagem, que vai arcar sozinha com os custos emocionais dessa intervenção física.

Ainda, uma questão a ser abordada são os sinais claros de que os profissionais do CAPS estão insatisfeitos com a gestão do trabalho em razão da falta de investimentos e de infraestrutura, bem como da organização inadequada do processo de trabalho(1414 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(6):1723-28. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018
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-1515 Bittencourt MN, Oliveira DCP, Souza RPO, Pena JLC, Pantoja PVN, Pereira MO. Ombudsman's experience in Psychosocial Care Centers for alcohol/drugs. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 5):2287-94. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0924
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). O pouco aporte de recursos aos serviços de saúde pública rompe com o princípio da inclusão social e equidade, visto que grande parcela da população fica à margem da assistência no Sistema Único de Saúde.

Por fim, a formação técnica deficiente da equipe de enfermagem é destacada como um agravante para a qualidade do cuidado em saúde mental prestado e para a produção do protagonismo. Sem educação continuada e permanente, as velhas práticas manicomiais serão reproduzidas, acriticamente, no CAPS. Portanto, é necessário fortalecimento do modelo de atenção psicossocial, que implica a revisão dos currículos das escolas formadoras e a criação de novos cenários para formação profissional(1313 Oliveira A, Garcia APRF, Toledo VP. Patterns of knowledge used by nurses in caring for the patient in the first psychotic outbreak. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20170001. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0001
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).

Limitações do estudo

O estudo aponta limitação referente ao cenário da coleta de dados, uma vez que não foi desenvolvido em outros contextos da assistência em saúde mental, tampouco em outros tipos de CAPS, devido a confronto entre a política militar e os traficantes de drogas durante o período da pesquisa.

Contribuições para área de enfermagem, saúde e políticas públicas

O trabalho traz contribuições sobre os desafios para uma clínica de enfermagem no campo social, no cenário da reabilitação psicossocial e da construção do cuidado protagonizador. Ainda aponta: as dificuldades existentes para esse tipo de cuidado nos CAPSs, que são organizadores do cuidado em saúde mental na Rede de Atenção Psicossocial; e a necessidade de investimentos em políticas públicas. Ainda, o estudo evidencia o trabalho da equipe de enfermagem em uma negociação permanente com território e territorialidades do indivíduo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os desafios encontrados pela enfermagem para o cuidado protagonizador no Centro de Atenção Psicossocial são a violência territorial, o alto índice de usuários que possuem baixa alfabetização e as dificuldades dos familiares em compreenderem e se integrarem a uma forma de cuidar que exige o maior grau possível de autonomia do sujeito. O fenômeno da violência no território apresenta o risco de os serviços “fecharem-se em si “, sem envolver nem a família nem o território.

A baixa escolaridade dos usuários é um problema cuja solução ou enfrentamento ainda não conseguiu ser elaborada nos Centros e vem gerando, nesses indivíduos, exclusão social e dificuldade de organização pessoal. A família, em sua diversa e plural dimensão, é autora-chave nos processos de trocas sociais e inclusão do usuário do serviço. O seu apego ao tratamento tradicional de diagnóstico e intervenção medicamentosa, que por si não têm potência para inclusão social porque carecem de elaborar laços, tem sido uma questão a discutir com cuidado. Parece relacionar-se com a história cultural da loucura e solução de apartação social como solução simplista para as dificuldades que a cultura apresenta de incluir a loucura no cotidiano da vida.

A equipe de enfermagem se sente desconfortável em cuidar do usuário em crise/com possibilidade de contenção física. Esse desconforto mescla dificuldades relativas ao desafiador manejo clínico da situação, frequente obrigação de conter fisicamente um indivíduo com quem foi estabelecido um vínculo e alguma solidão profissional na execução dessa intervenção.

O sucateamento do Centro de Atenção Psicossocial e o desmonte do Sistema Único de Saúde trazem muitas dificuldades para o avanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Ademais, os desafios para o cuidado de enfermagem aos usuários indicam um esgotamento da equipe, contudo não impedem que a enfermagem aposte na possibilidade do cuidado protagonizador.

Perante todos os desafios colocados pela equipe de enfermagem, fica evidente a necessidade de maiores investimentos em políticas sociais para o processo de reabilitação psicossocial no território do Centro de Atenção Psicossocial. Mesmo diante desse cenário, a equipe de enfermagem que traz consigo a valorização da reabilitação psicossocial é como um mecanismo clínico para promover autonomia e liberdade do usuário, bem como romper com processos de exclusão e marginalização.

AGRADECIMENTO

Agradecemos aos/às participantes do estudo.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2020
  • Aceito
    20 Out 2020
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