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A CONSTRUÇÃO COTIDIANA DA GREVE NA UFRGS: O MOVIMENTO CONTRA AS REFORMAS NO FINAL DE 20161

THE EVERYDAY CONSTRUCTION OF THE UFRGS’ STRIKE: THE MOVEMENT AGAINST THE REFORMS AT THE END OF 2016

LA CONSTRUCCIÓN COTIDIANA DE LA HUELGA EN LA UFRGS: EL MOVIMIENTO CONTRA LAS REFORMAS EN LOS FINES DE 2016

RESUMO

Na segunda metade de 2016, vários acontecimentos movimentaram o cotidiano dos trabalhadores de todo o Brasil. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), técnicos-administrativos em educação e docentes deflagraram greves em oposição a então chamada PEC do Fim do Mundo e a Reforma do Ensino Médio. Participando ativamente destes movimentos e, ao mesmo tempo no fazer acadêmico estudando a obra de Henri Lefebvre, foi inevitável aproximar estes fazeres, organizando uma pesquisa-militante com o objetivo de analisar a construção cotidiana destes movimentos grevistas. O estudo da greve, através da vida cotidiana – este lugar de transição, encontros, interações e conflitos, permite compreender a sua construção desde baixo, a partir do vivido e do viver, do individual e do coletivo. Além disto, destacam-se as ações e práticas que suspendiam a repetição e desafiavam a alienação.

Palavras-chave:
Greve; Vida Cotidiana; Henri Lefebvre; UFRGS

ABSTRACT

At the second half of 2016, many events changed the everyday life of the workers all over the country. At the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), technicians and teachers started a strike against the so-called PEC of the End of the World and the Reform of Secondary School. Being active participants at this movements, and at the same time in our academic practice studying the oeuvre of Henri Lefebvre, it was inevitable to approximate these two activities, organizing a militant-research with the aim of analysing the everyday construction of these strikes. The study of the strike, through everyday life – this place of transition, encounters, interactions and conflicts -, allowed the understanding of its construction from below, from the lived and the living, the individual and the collective. Besides, we highlight the action and practices which suspend the repletion and challenge alienation.

Keywords:
Strike; Everyday Life; Henri Lefebvre; UFRGS

RESUMEN

En la segunda mitad de 2016, muchos eventos cambiaron la vida cotidiana de los trabajadores en muchos lugares del país. En la Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), técnicos y docentes deflagraron una huelga contra la así llamada PEC del Fi del Mundo y la Reforma de la Enseñanza Secundaria. Siendo activos participantes en eses, y al mismo tiempo estudiando la obra de Henri Lefebvre en nuestro hacer académico, fue inevitable aproximar eses dos actividades y organizar una investigación-militante, por medio del tema de la vida cotidiana – ese lugar de transición, encuentros, interacciones y conflictos -, permitiendo el entendimiento de su construcción desde abajo, desde el vivido e del vivir, del individual y del colectivo. Además, destacamos acciones y prácticas que suspenden la repetición y desafían la alienación.

Palabras-clave:
Huelga; Vida Cotidiana; Henri Lefebvre; UFRGS

INTRODUÇÃO

Os trabalhadores seguem, no desempenho de sua rotina de trabalho, uma lógica constituída por padrões e fluxos definidos. Mesmo quando as características da atividade pressupõem uma não rotina, a alternância se torna a própria lógica do trabalho. Neste caso, as surpresas e imprevistos fazem parte da normalidade esperada. O desempenho rotineiro de atividades, o cotidiano de trabalho é, portanto, fonte de experiências sociais e constitui uma noção da realidade que, por sua vez, está recheada de ilusões e dissimulações que o privam da consciência sobre as contradições próprias do sistema em que vive. Em seu fazer diário, o trabalhador não se dá conta de que essa realidade é, também, criada por ele: “E isso é precisamente o que a alienação humana consiste – o homem dividido de si mesmo, da natureza, da sua própria natureza, da sua consciência, arrastado para baixo e desumanizado pelos seus próprios produtos sociais” (LEFEBVRE, 1991aLEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life. V. 1. London: Verso, 1991a., p. 180).

Sem dar-se conta, o trabalhador está criando a si mesmo, ainda que sem fazer uso de sua capacidade criativa. Esta contradição se reflete de forma distorcida em sua vida cotidiana como uma ambiguidade. Quebrando a rotina, a deflagração de uma greve impõe o extraordinário. Ela é um momento no qual não se pratica o trabalho formalizado, mas o trabalho (entendido como pôr teleológico) em prol dos objetivos do movimento.

Durante períodos de agitação social, a ambiguidade da vida cotidiana abre possibilidades de escolha para grupos sociais que percebem as alternativas que se apresentam, tomando partido em uma ou outra direção. Isto remete a entender a greve como um projeto de superação do presente. Esse exercício amplia o horizonte de possibilidades do trabalhador, já que propicia experiências para além da luta por pautas específicas.

Para os que aderem ao movimento, a rotina (ou não rotina) da greve o absorve de tal maneira que as relações sociais, o contato com os instrumentos e o próprio objeto do trabalho, passam a lhe ser estranhos. Como no intervalo de um filme, o roteiro do cotidiano é interrompido, as preocupações comuns ao ambiente de trabalho se tornam vazias de sentido e uma nova dinâmica cotidiana é criada. Se a experiência de uma greve transforma o cotidiano, para muitos trabalhadores uma nova visão da realidade ganha espaço, e contradições ocultas pela alienação da rotina são descortinadas (ainda que novas possam surgir).

Com o apoio de Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 348), se pode entender a greve como sendo um “momento”, uma “tentativa de alcançar a total realização de uma possibilidade”, um vir-a-ser. Nela, o trabalhador se abre para a prática criativa humana genuína, para a humanização de sua realidade.

É através da reinvenção diária das táticas e estratégias em uma greve que a vida cotidiana encontra sua forma de metamorfosear-se. Nesse sentido, a elaboração destas práticas organizadas de mudança se dá a partir da crítica à antiga forma de viver, abrindo uma janela para a transformação: “Na medida em que todos os dias há uma realidade que deve ser metamorfoseada, desafiada e impugnada pela crítica, isto pode ser observado no nível das táticas, das forças e suas relações, dos estratagemas e suspeitas. A sua transformação ocorre no nível dos eventos, estratégias e momentos históricos” (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 135).

Feita esta introdução para explicitar nossa posição sobre o tema da greve, podemos situar o contexto original no qual o estudo deste artigo foi realizado.

Na segunda metade de 2016, vários acontecimentos movimentaram o cotidiano dos trabalhadores de todo o Brasil. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), técnicos-administrativos em educação (TAEs) e docentes deflagraram greves em oposição a então chamada “PEC do Fim do Mundo”, que congelou por 20 anos os investimentos públicos em saúde e educação e, contra a Reforma do Ensino Médio, que restringiu a oferta de disciplinas como filosofia e sociologia, eliminou a disciplina de espanhol e permitiu que professores sem a devida qualificação passassem a ensinar em programas tecnológicos. Junto ao movimento dos trabalhadores, uma onda de ocupações estudantis rompeu com a rotina da vida cotidiana.

Participando ativamente das greves na UFRGS (um de nós é técnico, a outra docente) e de seus comandos, ao mesmo tempo em que em nosso fazer acadêmico estudando a obra de Henri Lefebvre, foi inevitável aproximar estes fazeres, organizando uma pesquisa-militante (BOOKCHIN et al., 2013BOOKCHIN, N. et al. Militant reserch handbook. 2013. Disponível em: http://www.visualculturenow.org/wp-content/uploads/2013/09/MRH_Web.pdf. Acesso em: 24 Fev. 2017.
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) com o objetivo de analisar a construção cotidiana dos movimentos grevistas ocorridos em novembro e dezembro de 2016 na UFRGS3 3 No dia 8 de novembro de 2016 teve início a greve dos TAEs. Em 22 de novembro foi a vez dos docentes do magistério superior deflagrarem greve. Com isso, essas categorias de trabalhadores somaram-se aos estudantes que desde o dia 26 de outubro realizavam ocupações de unidades acadêmicas. As greves deflagradas a partir da convocação de assembleias pela Seção Sindical do ANDES e pela ASSUFRGS duraram 21 e 44 dias, respectivamente. . Os procedimentos incluíram diários de campo e entrevistas com seis TAEs e três docentes4 4 Na apresentação dos resultados os entrevistados são identificados como T1 a T6 e D1 a D3. Além de fazer parte do Comando, o critério na escolha dos docentes entrevistados foi um com maior trajetória no movimento sindical, e dois com vínculo mais recente com a Universidade e em sua primeira greve. ativos nos respectivos comandos, realizadas logo após o encerramento do movimento, além da consulta aos registros nas redes sociais. O tratamento analítico foi dialógico-interpretativo, articulando as informações obtidas com memórias e com o referencial lefebvriano sobre a vida cotidiana. Trata-se, portanto, de um estudo no qual se conectam ativismo e teoria, resultando em significados inseparáveis da própria luta que o inspirou.

Na sequência se encontra uma breve sistematização do aporte de Lefebvre para o estudo crítico da vida cotidiana, a apresentação de alguns resultados analíticos organizados a partir de categorias encontradas neste aporte. A escolha e o uso destas categorias não implica em uma separação de conteúdos analíticos, visa apenas organizar o texto. Seguem as considerações finais.

1 HENRI LEFEBVRE E O ESTUDO CRÍTICO DA VIDA COTIDIANA

Os estudos de Lefebvre sobre a vida cotidiana foram desenvolvidos ao longo de mais de 30 anos. Destacam-se “Crítica da vida cotidiana”, escrito em três volumes (1947, 1958 e 1981), alguns textos esparsos e “Crítica da vida cotidiana no mundo moderno”, publicado em 1968. Cada volume acompanhou não só o desenvolvimento intelectual do autor, mas as mudanças conjunturais.

Para Lefebvre (1991aLEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life. V. 1. London: Verso, 1991a., p. 147), o marxismo é o “conhecimento crítico da vida cotidiana”, pois sua construção teórica é feita a partir da situação material a que a classe trabalhadora está exposta: objetivada como mercadoria. O autor enfatiza a importância da vida cotidiana, desta “mistura da natureza e cultura, do histórico e vivido, do individual e social, do real e irreal, um lugar de transição, de encontros, interações e conflitos, um nível da realidade” (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 47). Fica, então, aberto o caminho “para mostrar sua dualidade, sua decadência e fecundidade, sua miséria e riqueza”, tirando dela “a atividade criadora inerente, a obra inacabada” (LEFEBVRE, 1991bLEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991b., p. 38).

Estudar a vida cotidiana de forma crítica é estudar a diferença entre como o ser humano vive e como ele pensa que vive. A consciência não só parte dos problemas que se apresentam, mas também das soluções encontradas para eles, ela é a busca das possibilidades que esses problemas indicam. Assim, a ação que resulta dela reflete uma complexa teia de representações, mediações, interações e conflitos.

O ‘vivido’, a experiência concreta da realidade, é definido por Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 216), como o mundo percebido, a focalização da consciência em uma prática, um “centro de densidade e calor”. Seu contraponto dialético é o 'viver', que representa a virtualidade projetada, fruto das expectativas de um futuro desejado dentre aquilo que o 'vivido' diz ser possível. Nesta relação, o 'vivido' é um possível realizado. A vida cotidiana é composta por essa viagem de ida e volta entre 'viver' e 'vivido'. Afora a banalidade dos tempos onde a ambiguidade reina, uma constante tentativa de realização do 'viver' é empreendida, e o resultado disso é sempre um novo 'vivido', ora mais e ora menos próximo àquilo que se buscou, mas nunca igual (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 216).

Um dos temas centrais da obra de Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. é a compreensão de como a alienação se desenvolve no cotidiano. A alienação tem relação com a ambiguidade, um traço constitutivo da vida cotidiana. A ambiguidade é a situação regular em que a vida cotidiana se desenvolve, ela significa a não escolha, o não posicionamento diante de uma situação que não se faz notar em sua clareza. Para Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., o ser humano vive em ambiguidade e age em contradição, embriagado por ideologias que dão a falsa impressão de encaixe entre as diversas esferas da consciência e da prática.

Em períodos de estagnação social a ambiguidade reina e a continuidade das relações sociais se reproduz. A práxis humana é repetitiva. Contudo, a possibilidade da práxis criativa está sempre presente. Por isso, “o cotidiano é o lugar onde a repetição e a criatividade se encontram e se confrontam”. A práxis social não pode ser confinada ao apoio, manutenção e reprodução, já que as estruturas, estabilidades, constantes e equilíbrios têm sempre um caráter relativo. Portanto, “a práxis repetitiva nunca atinge o equilíbrio definitivo, automático, um equilíbrio sem contradições - a alienação suprema”, ficando aberta a possibilidade para que a práxis criativa se expresse “nas fronteiras da inventividade”, em atos que transformam o cotidiano (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 239-240). O autor aponta, ainda, que é em fases de tensão e agitação social que a vida cotidiana é suspensa ou transformada, em oposição à banalidade e a trivialidade dos momentos de estagnação e relaxamento (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 109).

Se a ambiguidade é a regra, o momento é a exceção. A teoria dos momentos de Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. surge como uma sistematização de diversos conceitos e categorias. Neles, o ser humano decide, revela as possibilidades que estão à sua frente, rompe com o comportamento condicionado pela ambiguidade. No entanto, essa possibilidade se revela no cotidiano como uma totalidade parcial, que apesar de ter suas “essências” ou “poderes” está fadada ao fracasso. Nesse sentido, Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 349) explica que o objetivo prático da teoria dos momentos é transformar essas “essências” ou “poderes” em algo “imprevisto e novo, algo genuinamente total, que superaria a contradição, a 'trivialidade / tragédia'”.

Assim, o momento revela o duplo aspecto da vida cotidiana: a pobreza da alienação e a possibilidade de ascensão. Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. fala em trágico e magnífico para explicar que o ser humano comum (e não só o filósofo, o artista ou o intelectual) pode emergir da alienação, pois pode vivenciar esses momentos que se articulam com o cotidiano preenchendo seus espaços vazios. Eles nascem e morrem nele, pois “a vida cotidiana é o solo nativo onde o momento germina e cria sua raiz”. Nesse sentido, ao proclamar-se como um absoluto, propõe-se como impossível. Se ele se constitui de “atividades que são realizadas no vivido” (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 356-357), no coração da vida cotidiana, “como podemos esperar que algo que seja claramente relativo e, pior ainda, ambíguo, seja absoluto?”. Se o momento busca o impossível, rompendo com uma ambiguidade, isso não significa que ele esteja dirigido à solução de todos os problemas e de toda forma de alienação. A possibilidade que se revela é determinada, limitada e parcial (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 348). Além disso, a ação que busca realizar a possibilidade inicialmente revelada em um momento sujeita-se, no seu decorrer, às representações, ambiguidades e alienações inerentes à vida cotidiana.

Os momentos possuem duração específica: eles querem durar por muito tempo, mas não podem. Ainda assim, eles possuem memória, forma e conteúdo e, mesmo após sua passagem, eles têm sua singularidade na história garantida. Viver o momento é exauri-lo, e isso ocorre antes que ele se torne um formalismo. Os momentos têm seus limites. Ao buscar o impossível, tornam-se possíveis, mas logo se frustram, não sem antes alterar as fronteiras do possível (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002.).

Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. explica que os momentos têm seus antecedentes, formam-se antes mesmo de sua explosão, e quando devidamente orientados operam uma ruptura, uma descontinuidade em relação à trivialidade de onde emergem. Eles elevam-se em relação às atividades fragmentadas, porém caem em nova alienação: “O momento impõe uma ordem sobre o caos da ambiguidade, mas tomado por si só, essa ordem é ineficaz e inútil. O momento não aparece simplesmente em qualquer lugar, em qualquer hora. Ele é um festival, uma maravilha, mas não é um milagre. Ele tem seus motivos, e sem esses motivos ele não fará qualquer intervenção no cotidiano” (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 356). Por um lado, os momentos criticam a vida cotidiana através da ação, tendo em vista que representam sua contestação; por outro, são criticados pela vida cotidiana através das fatalidades que os assolam (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 356).

A teoria dos momentos de Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. permite tratar a construção da greve como uma tentativa de realização de uma possibilidade. Além disso, esse possível perseguido deriva de uma projeção virtualmente construída ('viver'), que se contrapõe ao materialmente percebido ('vivido'). Assim, um pode negar o outro, e, portanto, pode resultar tanto em continuidades como em descontinuidades.

Enfim, a vida cotidiana é um local de encontros e desencontros, terreno comum onde o todo está contido e por meio do qual a sociedade escreve sua história. É nela que a humanidade obrigatoriamente se desenvolve. A crítica da vida cotidiana revela sua miséria e sua riqueza, mas descrevê-la não é o bastante, é preciso transformá-la.

2 A CONSTRUÇÃO COTIDIANA DOS MOVIMENTOS GREVISTAS DE TÉCNICOS E DOCENTES DA UFRGS NO FINAL DE 2016

O processo de escolha das categorias que organizam este item resultou do diálogo interpretativo entre as declarações dos entrevistados, nossa própria vivência dos movimentos grevistas e as proposições teóricas de Lefebvre. São elas: ambiguidade; momentos; rupturas, descontinuidades e criações; vivido e viver. Os trechos selecionados e apresentados abaixo acabam sendo ilustrativos, tendo em vista a limitação de espaço. Ainda assim, contribuem para que os trabalhadores se expressem em sua própria voz e para apresentar o potencial teórico-analítico da abordagem escolhida.

Se, por um lado, a ambiguidade é a situação regular em que a vida cotidiana se desenvolve, a tomada de consciência acerca de uma situação contraditória traz consigo a revelação das possibilidades que a ação cria. No momento em que os técnicos e docentes paralisaram suas atividades e deflagraram as greves, decidiram e romperam com a ambiguidade da vida cotidiana. E o fizeram por diversas razões.

T4 aponta que a greve buscava “levar para a sociedade a pauta da greve e a necessidade de lutar contra o congelamento dos investimentos na educação e na saúde, então dialogando e panfletando na esquina democrática, na rua, nos estacionamentos, nas sinaleiras, dialogando com a sociedade”. Para T2, “só o fato de tu conversar com teu colega tu conscientiza, eu acho que isso me instiga a participar: a conscientização, é, por mínima que seja tua participação, a conversa com as pessoas, isso que me move a fazer greve, é conscientizar”.

D1 explica que os docentes paralisaram “muito em função dos alunos, como uma espécie de apoio para tentar garantir a legitimidade deles, para que eles não fossem prejudicados pelo que estavam fazendo e, também, para a gente poder atuar junto”. Na mesma linha, D2 explica que “o que mudou nossa rotina em primeiro lugar foi a ocupação”. A luta dos estudantes rompeu com a ambiguidade do cotidiano e apontou para a necessidade de fazer algo mais, como se dissesse que estava na hora de agir, de ir além dos debates e declarações.

O rompimento com a ambiguidade não se dá apenas no momento em que se decide fazer greve. Algumas práticas em que o trabalhador se envolve fortalecem a noção de que ele é parte ativa na construção da sociedade. Para T3, os espaços construídos durante as greves são o “mais próximo da democracia que a gente pode fazer, então eles representam uma ruptura muito grande com o teu dia a dia de trabalho, até, digamos assim, a gente não tá acostumado a ter esse espaço, a produzir uma coisa que de fato nos represente, então, claro, no trabalho a gente questiona, critica e fica reclamando e tal, e o trabalho nunca vai deixar de ser isso, pelo menos enquanto não muda a sociedade como um todo. Então no movimento eu acredito que esse questionamento tem a possibilidade de se transformar de fato numa mudança de ação. […] acho que nós vivemos de fato nesses momentos, espaços abertos, democráticos, que tu vai ganhar, vai perder, mas vai poder de fato colocar as questões que te incomodam, então isso é uma coisa mais geral do movimento, eu acho que a gente é pouco acostumado a ter esses espaços, então nós não sabemos muito como lidar com eles [...], porque eu não sou acostumado, ninguém é treinado a ter liberdade”.

E complementa, a experiência da greve se torna um aprendizado em que “tu aprendes a partir do exemplo dos outros, claro tu vais ler, tu vais tentar reconhecer, se reconhecer no mundo e tal, mas sem vivenciar uma prática como essa tu não tem como saber como é que ela funciona”.

Um aspecto importante ressaltado pelos entrevistados foi a preocupação em levar o debate sobre a adesão à greve para seus colegas que ainda não haviam enfrentado a decisão. Nesse sentido, T2 comenta:

“[…] isso é engraçado, não, é triste na verdade, tu tens uma posição, uma revolta, ah, isso tá errado e tal, aí quando tem a greve as pessoas não aderem à greve, é um pouco triste. Todo mundo, aqui mesmo na unidade, que antes de eu vir, prá eles todos tinham o mesmo pensamento: ah, é errado e não sei o que, só que eles nunca fechavam esse setor. […] eles conversaram entre si e disseram que não iam fechar, daí como um não vai os outros também não iam”.

Entre os motivos que justificam a omissão dos trabalhadores de sua unidade, T2 acredita que existe “um pouco de medo da hierarquia, a direção daqui que agora está lá em outra unidade ela era muito perseguidora, muito autoritária”. Já D3 afirma que em sua unidade “[…] a maioria se dizia contra a PEC, contra várias dessas reformas que estão tendo, trabalhista, enfim. Mas, ao mesmo tempo, o pessoal não se mobiliza, até bota pra trás quem se mobiliza. Eu notei até uma certa perseguição. Lá tem vários problemas e daí quando eu comecei a mandar esses e-mails com questões políticas, eu comecei meio a sentir uma certa perseguição”.

Para D2, são várias as questões que dificultam a adesão dos docentes à greve, já que a rotina diária na Universidade possui elementos que afastam os trabalhadores do envolvimento em causas coletivas. Para ele, “os professores novos são mais pressionados pela lógica produtivista, já entraram numa dinâmica de muita demanda, de fazer muita pesquisa, de virar pesquisador CNPq, portanto, ter muitos artigos, muitas orientações e tal”.

Ao comentar o comportamento dos colegas que não se envolvem nas causas coletivas da categoria, T3 afirma que isso se dá, entre outros motivos, porque muitos trabalhadores preferem desdramatizar as relações, evitando enfrentar a chefia em situações com interesses contrapostos. Assim, ele afirma que,

[...] muitas vezes alguns setores funcionam a partir de relações afetivas da chefia com seus subordinados, o que até acaba sendo normal. Mas eu vejo assim como um padrão de amaciamento das relações, então tu trazes um presentinho, faz um mimo, e daí fica forçando a pessoa a fazer coisas que se ela fosse parar pra pensar mesmo e tivesse liberdade ela não faria. […] as pessoas estão preocupadas em se aliviar do sofrimento. Eu vejo lá nos meus colegas, muitos buscam conforto e um trabalho harmônico, assim e tal, sabe, mesmo que tu tivesses no frigorifico ali matando boi todo dia e escutando música clássica pra se aliviar daquele sofrimento. Então o pessoal prefere ficar amigo do chefe, ficar perguntando sobre a família, isso aí do que ficar colocando princípios éticos, embarreirando a ação da chefia.

Para Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 219), na busca de conforto, as pessoas desdramatizam suas relações e comportam-se de maneira ambígua, “os dramas desaparecem, a tragédia do todo é obscurecida por uma comédia de pequenos detalhes”. Nestas relações “há uma imparcialidade (ilusória) e uma objetividade (enganosa)”; “qualquer coisa contenciosa é empurrada para o lado” e “as pessoas falam sobre coisas tão pequenas quanto possível”. Sob esta aparente tranquilidade, criam-se conflitos que permanecem em estado de ambiguidade: “uma contradição embotada, sempre reavivada e sempre sufocada” (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 222).

Nesse sentido, o principal elemento de ruptura com a ambiguidade para aqueles que aderiram ao movimento está relacionado à decisão de agir frente à situação que se colocava, expressando a conscientização de que se é parte ativa no mundo, podendo mudar, somar e influir. É a decisão de participar ativamente da política, das decisões, de reconhecer-se como ator.

D2 relata que na atividade cotidiana dos docentes ainda há margem para romper com a ambiguidade: “[…] todos nós fazemos pesquisa então acho que todo mundo é antenado, lê muito e tal, na verdade existe um processo de alienação que é essa compartimentação, que todo mundo lê, estuda e fala sobre sua pequena área de especialização. Então uma coisa que eu acho que é muito legal que acontece nesses períodos que é, que põe no papel de discutir outros assuntos, assuntos que dizem respeito à comunidade, e surgem questões, será que tem que ser assim, será que pode ser de outro jeito, então as pessoas começam a pensar sobre possibilidades diferentes de organizar o cotidiano”.

Desse modo, os docentes passaram a atuar por si mesmos e “[...] a se perguntar. E esse se perguntar que eu acho que tem em comum com o que acontece aqui e o que tem na fábrica, pensar que tem outras possibilidades, ter alguma margem de escolha, as coisas não precisam ser exatamente como são”.

T4 afirma que “na greve a gente vê que a gente tem sim, coletivamente, a opção e a condição de mudar a realidade”. Ou; como afirma T2, “a greve é muito incentivadora para que a gente continue acreditando que dá para fazer, seja lá o que for, seja barrar a PEC, seja conquistar um aumento do teu salário”. Segundo D3, alguns técnicos de sua unidade passaram a ter uma atitude mais contestatória, enfrentando as “decisões da direção que achavam que não tinham sido debatidas, não tinham sido democráticas, coisa que eles não teriam coragem antes, porque eles eram muito tolhidos”. D3 explica que estava “todo mundo querendo ter um debate”, participar das decisões.

O cotidiano de um trabalhador da Universidade, como se sabe, é caracterizado pelo exercício de atividades que variam conforme o local de trabalho e a área de atuação. Ao desenvolver essas atividades, a consciência desses trabalhadores não só parte dos problemas que se apresentam na vida cotidiana, mas também das soluções encontradas para eles. Em consequência, o foco do trabalhador atinge um pequeno fragmento da totalidade, impedindo-o de perceber as contradições do sistema que se reproduzem no cotidiano. Com isso, a atitude pacífica em relação às regras e lógicas do sistema estabiliza a vida cotidiana na estrutura existente, é quando a banalidade e a trivialidade dominam.

Apesar disso, Lefebvre (2002)LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002. afirma que em fases de tensão e agitação social a vida cotidiana é suspensa ou transformada, representando os momentos em que o ser humano encara as contradições do sistema e escreve sua história de forma consciente. É quando ocorre a conscientização sobre um problema que a consciência se eleva em relação aos fragmentos isolados e revela possibilidades de ação. Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 260) explica que “os interessados veem os problemas decorrentes do processo de tornar-se, e no que esses problemas trazem veem as ações que podem modificá-los. Ao tornar os problemas reais, eles resolvem o conflito estabelecendo uma unidade superior”.

A suspensão que se deu na vida cotidiana da Universidade interrompeu sua continuidade, a ordem se desestabilizou e diversas questões que se mantinham em uma zona nebulosa do cotidiano tiveram que ser enfrentadas. Lefebvre (2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002., p. 348) explica que “a necessidade de escolher se torna aparente e marca um momento de bifurcação no processo de desenvolvimento e transformação social”. A partir disso, o momento revela o descontentamento e contrariedade em relação ao modo de vida com que se convivia pacificamente, apesar das contradições. Por isso, ele a recusa e, ao mesmo tempo, cria o novo.

Ao comentar o impacto da greve na vida cotidiana de sua unidade, após o encerramento do movimento, D1 explica que os docentes tentaram “trazer para dentro das decisões da unidade, e os alunos também, técnicos e terceirizados quando possível”, algumas práticas realizadas durante a construção da greve, como o “tipo de discussão horizontal em assembleia”. D1 afirma, ainda, que o “momento da greve serviu muito para a gente ganhar confiança no sindicato. Muitos dos colegas se filiaram ao sindicato nessa época, eu inclusive não era membro, passei a ser, e essas atividades continuam, o pessoal continua mobilizado”. Mas, ao mesmo tempo, relata que “por problemas pessoais na família e excesso de trabalho” não está conseguindo participar, embora veja “esse desejo de participação contínua e, também, esse desejo de ter uma unidade mais horizontal, mais, participando todos”.

A greve, como um momento, foi contestada pela vida cotidiana através das suas fatalidades. O momento quer manter-se, quer ser um todo, quer perpetuar-se e atingir o absoluto, porém ele não pode, e diante das fatalidades da vida cotidiana ele se exaure no ato de ser vivido (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002.). Para T3, durante a greve, “os trabalhadores vão o mais longe que conseguem ir em suas ambições de mudança”.

T1 afirma que as atividades da greve rompem com o cotidiano do trabalhador, elas trazem uma “perspectiva que sai daquela voa do cotidiano, daquela questão da aparência”. A transformação que a greve opera no cotidiano do trabalhador está relacionada ao abandono das atividades rotineiras e na resolução de seus problemas mais imediatos e, às vezes, distantes do conjunto da sociedade. Nela, os debates políticos se tornam próximos do trabalhador, sua visão do mundo é ampliada. Como afirma T1, “quando tu abres um debate ou tu fazes uma construção política, tu sais daquele ambiente, e tu fazes uma visão do todo”.

Os momentos criticam a vida cotidiana instaurando uma ruptura no “esquema operacional da ordem existente” (LEFEBVRE, 2014LEFEBVRE, Henri. Critique of daily life. London: Verso, 2014., p. 838). No entanto, a ruptura nunca reflete perfeitamente a forma como a possibilidade de ação se apresentou inicialmente. A ação que visa alcançar uma possibilidade será dada em meio à vida cotidiana e, portanto, estará sujeita a novas contradições, representações e mistificações que mediam as relações.

Algumas rupturas realizadas durante as greves se mantiveram após seu encerramento, outras foram abandonadas pelas fatalidades do cotidiano. As rupturas e descontinuidades se originaram de questões diferentes, porém relacionados. Uma das primeiras rupturas que, em boa parte se relaciona com as demais, é a adoção de uma postura ativa frente à situação. T4 entende que “na greve é diferente, a greve é um movimento dinâmico que a gente tem que estar em intensa articulação analisando o cenário, a conjuntura, fazendo atividades distintas tanto de esclarecimento da necessidade da greve e das coisas da greve para a sociedade como atividades de repercussão, atividades mais radicalizadas que a gente chama, para tentar atingir os nossos objetivos”.

À toda ruptura corresponde uma criação. Neste processo, uma descontinuidade é realizada na vida cotidiana. D1 explica que sua unidade é um “lugar em que as decisões costumam ser sempre verticais, é uma pessoa que diz assim e pronto e os outros tem que seguir”. Porém, com as ocupações e as greves, “de repente, os alunos começaram a não aceitar aquele tipo de hierarquia vertical, eles começaram a querer uma hierarquia mais horizontal” e, com isso, questionaram o antigo modelo de debates e tomadas de decisão e, ao mesmo tempo, construíram algo diferente:

“Todo esse ano passado foi de uma construção de um dia a dia diferente na universidade, de uma unidade diferente. Culminou com a eleição de uma chapa progressista para a direção, com uma proposta para reestruturar a unidade e nosso jeito de atuar aqui, e desde então nós temos sentido realmente que a gente está mais próxima dos estudantes, a gente está mais aberto para ouvi-los, eles também estão mais abertos, também, para nos inserir nas atividades deles, para participar de nossas atividades”.

O convívio em meio ao clima de agitação gerado pelas greves e ocupações estudantis despertou relações sociais que se mantiveram após o movimento. A greve reestabeleceu a socialização no cotidiano, o convívio em torno do que é comum. T5 destaca que o envolvimento na greve “fortalece o coletivo”, e sempre se faz, “vários amigos, vários companheiros de luta”.

Grevistas e estudantes romperam com as hierarquias e divisões, visando construir um ambiente livre de relações mecanizadas e impessoais. Nesse sentido, T3 afirma que houve uma “troca de informações grande entre os comandos de greve, tanto dos funcionários quanto professores com os estudantes das ocupações”. Em algumas atividades, a organização foi com a participação dos três segmentos, rompendo, ainda que parcialmente, com a fragmentação da luta e resultando, segundo T3, em “um ato importante, assim positivo, que aponta para a necessidade da unidade das categorias da Universidade em torno da defesa do próprio interesse da Universidade”.

Com essas mudanças houve, segundo D1, um movimento de retorno à condição natural de existência do ser humano, reconstruindo a vida cotidiana de outra maneira:

“Isso é uma questão interessante, durante a ocupação, a gente teve uma das atividades de conversa, com um dos meus colegas, ele falou algo nesse sentido que eu achei que foi muito marcante. Ele falou, justamente, muitas vezes as pessoas falam que a greve rompe com o cotidiano, mas que ele via de outra forma. Ele via que o trabalho é que rompia com o cotidiano. Trabalhando aqui a gente deixava um monte de coisa, deixava de conversar com os outros, de, realmente, interagir e existir um com o outro, de uma forma mais natural, e que a greve não é o rompimento da vida, o trabalho que é o rompimento da vida, e quando a gente para tudo, para de trabalhar. é que a gente está se reintegrando no curso natural das coisas de agir com os outros”.

D3 explica que, embora estivesse entusiasmado com o horizonte que se projetava durante as ocupações e greves, a vida cotidiana reassumiu o seu caminho de uma forma que não contemplou as mudanças projetadas. Assim, ao buscar, em meio à vida cotidiana, a possibilidade contida no viver, algumas intenções esbarraram nos problemas, práticas e experiências que o cotidiano do trabalhador impõe. D3 afirma que a continuidade das iniciativas de luta e mobilização “não está tão forte quanto a gente previa no início, a gente achou que ia conseguir manter. No dia a dia não é fácil, mantendo as atividades acadêmicas todas, manter um debate”. Além disso, “tem toda uma corrente que quer que as coisas continuem rígidas como eram”.

O contato com a população foi uma das atividades mais realizadas durante as greves. D1 conta:

“[...] as reações que a gente teve distribuindo panfletos para as pessoas foram as mais diversas, desde as que não queriam ouvir, as pessoas que ficavam com um pouco de medo quando você se apresentava como professor da UFRGS, já ficavam meio assim. Teve uma pessoa que quando, eu ia entregar ela falou assim: É sobre a PEC? É. Eu já tô sabendo, eu sou lá da Restinga e a gente já está com um grupo montado lá no bairro. A gente está conscientizando as pessoas, está conversando, tentando descobrir um modo de como a gente pode agir pra denunciar isso e tentar parar esse negócio que é muito importante. Isso me comoveu muito, isso assim, pontos de luz”.

O trabalho de divulgação do movimento e suas pautas com a população colocou os trabalhadores em contato com realidades e perspectivas que saiam da sua rotina. Com isso, o vivido sofreu uma transformação, saindo da repetitividade das atividades na Universidade e encontrando uma realidade ampliada nas diversas experiências adquiridas durante a greve. Para T1, o contato com as pessoas nas ruas foi uma das experiências mais marcantes do movimento:

“E a gente foi no Consulado da Argentina, que é ali no Moinhos de Vento, que é uma área extremamente burguesa. E aí a gente fez um ato rápido e tal e aí alguns colegas vieram lá de cima, do Montserrat até a UFRGS, eu fui inclusive distribuindo panfletos. E daí eu pude distribuir panfletos e conversar com pessoas das mais diversas classes sociais, e daí tu percebe como é que o impacto dessa medida [...], o prazer que algumas pessoas tinham, e diziam: - é isso aí, fora Temer!, ou aquela coisa, até uma certa arrogância de algumas pessoas: - não, não quero envolvimento com isso! Sabe essa percepção muito clara do contato com uma realidade diversa foi o que mais me marcou”.

T3 comenta que era preciso “enfrentar o bloqueio midiático que a emenda do teto dos gastos” possuía e, para isso,

“[...] em vários momentos a gente fez atos públicos, a gente fez panfletagem no centro da cidade, dialogando com a população. Ao longo do processo, enquanto a gente fazia isso e nacionalmente outras categorias também faziam, eu acredito que tenha aumentado a consciência do trabalhador em geral em relação aos efeitos da PEC. Só que isso não chegou a se transformar também em uma adesão geral nos atos públicos, então nós tivemos assim, uma resistência à PEC que foi brava, mas que não conseguiu fazer frente ao bloco que estava bancando. E tivemos a PEC aprovada, mas não morreu aí, ainda teremos 20 anos para lutar contra ela”.

Durante a greve, além de conhecer a realidade das outras pessoas, o trabalhador compreende as dificuldades de concretizar um modo de viver mais democrático. Essa experiência serve como mediadora entre o cotidiano no ambiente de trabalho e a forma mais avançada que esses trabalhadores conseguem imprimir no movimento, as perspectivas de avanço que conseguem projetar (viver) de acordo com o que vivenciam (vivido).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a construção cotidiana da greve, os processos de escolha transformaram a rotina de trabalho em uma luta social organizada. Essa mudança atinge a alienação decorrente da falta de contato entre a prática individual e o caráter social do trabalho. Afinal, o foco é a busca de conquistas que são socialmente demandadas e que é a própria necessidade desse grupo social (LEFEBVRE, 2002LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002.). Assim, a construção da greve faz uma crítica ao individualismo, à hierarquização e à alienação presentes nas relações capitalistas de trabalho.

Ao tomar a causa coletiva para si, os trabalhadores fortaleceram sua coesão em meio à construção de relações que vão além dos temas do trabalho. A observação dos relatos aponta que, além de impulsionar ou frear o movimento, a socialização foi um elemento de grande importância. As relações sociais criadas possuíam vibração, profundidade e, em muitos casos, permaneceram após o movimento. D2 chega a dizer que os amigos que têm na Universidade são os que conheceu nas greves que participou. Desse modo, conforme relatado por D1, o cotidiano de trabalho passa a representar a verdadeira ruptura da vida cotidiana, pois é nele que se deixa “de conversar com os outros, de, realmente interagir e existir um com o outro de uma coisa mais natural”. Assim, a greve seria uma reintegração ao “curso natural das coisas”, uma desalienação em que o ser humano reencontra sua essência social.

Além disso, o convívio diário com os colegas da categoria, o contato com os outros segmentos da Universidade e a articulação com entidades e categorias externas à Universidade permitiu outros processos de desalienação. Entre eles, a redução da parcialidade do cotidiano de trabalho em relação à totalidade, representado pelo isolamento em uma área do conhecimento (docentes) ou pelas práticas e rotinas mecanizadas do setor de trabalho (TAEs). Assim, cada qual ao seu modo, os trabalhadores movimentaram sua consciência, ampliando a percepção sobre os diferentes problemas, realidades e concepções políticas existentes na sociedade, além de adquirir “uma visão mais rica e mais completa do que é a realidade do trabalho” (T1). Afinal, ao construir a greve, “o trabalho deixa de ser só uma tarefa que tu realizadas ali no espaço restrito e passa a ser toda uma gama de relações sociais que estão espalhadas pelo mundo”.

Ao mesmo tempo em que os trabalhadores iniciaram a construção das greves, viveram os problemas que o processo de tornar-se enfrenta. Em meio à necessidade de agir ocorrem transições e mediações entre o repetitivo e o criativo, resultando em algo novo que se confunde, em meio às pressões do cotidiano, com as regras e lógicas que sustentam o sistema. Assim, novas alienações são criadas. Se a consciência dos trabalhadores é formada pelas condições materiais experimentadas na vida cotidiana, na resolução dos pequenos problemas e afazeres, ao retornar às atividades do cotidiano de trabalho é esperado que se abandone muitas das mudanças realizadas. Apesar disso, viver a experiência de construir a greve amplia os horizontes de possibilidades dos trabalhadores, afinal, depois de se saber algo, não se pode deixar de saber, ainda que se mergulhe em nova ambiguidade, em representações e armadilhas voltadas a evitar os conflitos e o desconforto que o processo de mudança traz.

Cabe afirmar que, para além da nossa militância e experiências anteriores em movimentos grevistas, a análise da construção cotidiana da greve com base no referencial teórico adotado possibilitou reconhecer categorias, organizar elementos e produzir novos sentidos.

Cabe, também, esclarecer que reconhecemos os limites dos movimentos grevistas. Embora a construção da greve seja uma ação coletiva, em muitos momentos as ações são individualizadas. Enquanto as decisões sobre os grandes temas da greve são tomadas durante Assembleias e reuniões dos seus comandos, contando com a adesão massiva dos trabalhadores, a maioria das atividades é executada por uma minoria. Embora os trabalhadores participem das decisões coletivas nesses espaços, boa parte deles decide em âmbito individual quais os atos irá participar e o que irá fazer. Nesse sentido, o movimento se torna a possibilidade para o trabalhador estar livre para realizar as atividades que quiser. Assim, temos a fragmentação da ação e a perda qualitativa na organização do movimento. Ao agir assim, alguns trabalhadores reproduzem a lógica individualista das relações de trabalho capitalista e enfraquecem o caráter coletivo do movimento. Por isso, o rompimento de seu isolamento nunca é completo, o trabalhador parte, em seu cotidiano de trabalho, de uma dinâmica baseada nessa lógica, ele possui laços muitos fortes com essa forma de agir, romper com esse isolamento é um desafio no processo de transformação social que muitas vezes não é superado. Por isso, como ensina Vieira Pinto (1962VIEIRA PINTO, Álvaro. Por que os ricos não fazem greve?. Rio de janeiro: Civilização brasileira. 1962., p. 49-50), “a greve não significa a recusa do homem ao que o define como homem, - a natureza social de trabalhador, - mas a doação de si aos outros homens, aos outros trabalhadores, num gesto que contribui, portanto, para confirmá-lo na condição humana”.

  • 3
    No dia 8 de novembro de 2016 teve início a greve dos TAEs. Em 22 de novembro foi a vez dos docentes do magistério superior deflagrarem greve. Com isso, essas categorias de trabalhadores somaram-se aos estudantes que desde o dia 26 de outubro realizavam ocupações de unidades acadêmicas. As greves deflagradas a partir da convocação de assembleias pela Seção Sindical do ANDES e pela ASSUFRGS duraram 21 e 44 dias, respectivamente.
  • 4
    Na apresentação dos resultados os entrevistados são identificados como T1 a T6 e D1 a D3. Além de fazer parte do Comando, o critério na escolha dos docentes entrevistados foi um com maior trajetória no movimento sindical, e dois com vínculo mais recente com a Universidade e em sua primeira greve.

REFERÊNCIAS

  • BOOKCHIN, N. et al. Militant reserch handbook 2013. Disponível em: http://www.visualculturenow.org/wp-content/uploads/2013/09/MRH_Web.pdf Acesso em: 24 Fev. 2017.
    » http://www.visualculturenow.org/wp-content/uploads/2013/09/MRH_Web.pdf
  • CASTRO, Pedro. Greve: fatos e significados. São Paulo: Ática, 1986.
  • LEFEBVRE, Henri. Problèmes actuels du marxisme. Paris: Presses Universitaires de France,
  • LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life V. 1. London: Verso, 1991a.
  • LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno São Paulo: Ática, 1991b.
  • LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life: Foundations for a sociology of the everyday. V. 2. London: Verso, 2002.
  • LEFEBVRE, Henri. Critique of daily life London: Verso, 2014.
  • VIEIRA PINTO, Álvaro. Por que os ricos não fazem greve?. Rio de janeiro: Civilização brasileira. 1962.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2019
  • Aceito
    10 Out 2019
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