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INTERDISCIPLINARIEDADE NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EM ADMINISTRAÇÃO: PARA ALÉM DA PLURALIDADE MONOEPISTÊMICA

De maneira ciclotímica, surgem aqui e acolá debates que questionam sobre o caráter científico, técnico ou artístico da Administração. Por isso, cabe situar alguma diferença entre essas práticas. Remontando a Aristóteles, Penna (2017PENNA, T. A Poética de Aristóteles: conceito e racionalidade. 2017. 235f. Tese (Doutorado em Filosofia)- Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. Disponível em https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/12029/1/Arquivototal.pdf. Acesso em: 12 ago. 2023.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstr...
, p. 14) menciona cinco formas de conhecimento, ou dianoéticas, como prefere o grego: “a arte (teckné); a ciência ou conhecimento científico (epistême); a sapiência ou sabedoria filosófica (sophía); a prudência, ou discernimento, ou sabedoria prática (phrônesis); e a razão intuitiva ou inteligência (nôus)” a partir das quais o ser humano pode de argumentar, discursar ou proceder. Cada uma exige um modo específico de raciocínio, por meio de um método de investigação e de, assim, alcançar a verdade.

A aparente cisão entre essas formas de conhecimento na Administração é superada por Ribeiro (1969, p. 172), quem estipula que o administrador se coloca não como um técnico, mas um humanista, isto é, “[um] praticante da ciência social, intérprete da realidade e agente da mudança [...]” - posição que eventualmente é questionada por pensadores e/ou praticantes de Administração com um viés mais pragmático.

No entanto, ao reconhecer as distinções entre as formas de conhecimento e os seus limitados alcances na transformação da realidade, é possível dar-se conta da necessidade de articular as dianoéticas para qualificar a capacidade de intervenção na realidade e transformação das condições existentes, em direção a uma sociedade onde as potencialidades humanas sejam realizadas e que a relação com a natureza seja ressignificada. No entanto, como essas formas de conhecimento são postas em relação no nosso campo de conhecimento?

Ainda que seja corriqueiro, na Administração, ouvir a defesa da pluralidade, ou mesmo da necessidade de representatividade das diversas áreas temática das sociedades e associações acadêmicas, subáreas de conhecimento reconhecidas pelos órgãos de fomento ou mesmo programas de pós-graduação, essa suposta diversidade certamente é circunscrita à dianoética da epistême. Enquanto uma ciência social aplicada, a Administração se volta para uma ampla gama de fenômenos, os quais, por sua vez, demandam teorias e métodos de análise específicos e coerentes consigo. Se a visão cartesiana que define o método como delimitador de o que é ciência fosse considerada, a Administração seria qualquer coisa, menos ciência.

De modo a dar conta da diversidade de fenômenos sobre os quais se debruça e avançando no seu potencial de transformar a realidade, a Administração incorpora os saberes de outras disciplinas. Há quem defenda uma maior interdisciplinaridade no ensino e na pesquisa em Administração, entendida como

o estudo que se realiza nas fronteiras e pontos de contato entre diversas ciências, culminando na produção, por fusão, de uma perspectiva interdisciplinar. Neste esquema de construção do conhecimento, utilizar-se-á das conexões e pontos de interseção entre os saberes para a construção do conhecimento e análise sistêmica dos problemas. A perspectiva interdisciplinar encontra seus pilares na verificação da importância de análise do todo, com suas inter-relações e particularidades das partes (CAGGY; FISCHER, 2014CAGGY, R. C. DA S. S.; FISCHER, T. M. D. Interdisciplinaridade revisitada: analisando a prática interdisciplinar em uma faculdade de administração da Bahia. Administração: Ensino e Pesquisa, v. 15, n. 3, p. 501-531, 30 set. 2014. Disponível em: https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/12. Acesso em: 12 ago. 2006
https://raep.emnuvens.com.br/raep/articl...
, p. 508).

Para dar conta do todo, como propõem Caggy e Fischer (214), não basta que as distintas subáreas da Administração estejam contempladas - o que a manteria ainda dentro da dianoética da epistême e, provavelmente, de um mesmo paradigma científico. É preciso avançar na construção de conhecimento interdisciplinar com outras epistêmes e com outras formas de saber, da ordem da práxis, da phronesis, do nôus, da sophía e da teckné.

Como instrumento de divulgação científica da Administração, a REAd “publica ensaios e trabalhos teórico-empíricos das diversas áreas da Administração. Acolhemos trabalhos das diversas vertentes onto-epistemológicas, com alta consistência teórica e rigor metodológico (quando for o caso)”. Ainda que sem explorar o conceito da interdisciplinaridade, a política editoral da REAd acolhe não apenas as subáreas temáticas da Administração, mas o conhecimento produzido na interface com outras epistêmes e outras dianoéticas; sem recorrer ao significante vazio2 2 Sobre esse conceito, recomendo BARTHES, R. Oeuvres Completes. 5T. Nouvelle edition revue, corrigée e presentée par Eric Marty. Paris: Seuil, 2002. ‘sociedade’, como tornou-se usual à política editorial ou ao título de periódicos da área com o intuito de recebe contribuições mais arejadas e abordagens ainda pouco usuais.

Com isso, a REAd contribui para superar a pretensa pluralidade das subáreas que pode, ainda que com sob as vestes representatividade, carregar o mono-epistêmico da gestão, que tem pretensão de conhecimento total na Administração. A política editorial sinaliza justamente que a REAd acolhe trabalhos que cumpram com os critérios da alta densidade teórica e, em se tratando de artigo de pesquisa, adequados procedimentos metodológicos - inclusive os que versam sobre gestão, sem, contudo, se limitar a eles. Ao adotar a alta consistência teórica como critério para considerar a pertinência de um manuscrito à revista, tem-se um compromisso com o fortalecimento da Administração enquanto uma epistême.

Ao longo dos praticamente quatro anos em que estive como editor-chefe, inclusive como pro tempore, tive a oportunidade de ler e estabelecer contato com autores e avaliadores que se engajam na produção de conhecimento na área, ampliando os seus horizontes para além da monoepistêmica pluralidade das subáreas de conhecimento da Administração, ainda centrada na gestão. Ao tornar-se ponte entre pares da comunidade acadêmica comprometidos com o fortalecimento da Administração, a REAd se consolidou como um dos principais periódicos da área no Brasil.

Esse número, com o qual encerro meu trabalho à frente da REAd, celebra o potencial interdisciplinar da área. Agradeço às(aos) autoras(es) e avaliadoras(es) que contribuíram para que ele fosse possível. Bons augúrios à nova editora-chefe, Cláudia Viegas, acompanhada pelos editores associados Julice Salvagni, Henrique Ramos Pinto e Lisiane Closs, que certamente ampliarão o alcance da revista. Despedindo-me, faço votos de excelente trabalho às colegas e apresento os artigos que compõem esse número da REAd.

Patrick Pereira, Gustavo Forapani, Rafael Santana e Karina Roglio abrem o número com um Mapeamento da produção sobre processo decisório estratégico: revisão sistemática e agenda de pesquisa, no qual mapeiam as publicações sobre processo decisório estratégico em periódicos classificados com alto fator de impacto no SCImago Journal Rank - SJR, no período de 2010 a 2020. Apontam a predominância de trabalhos de base positivista e quantitativos, além da abundância de estudos sobre altos escalões, indicando que o campo segue estático frente à sua própria dinamicidade.

A tomada de decisão também é tem do artigo Versão brasileira do inventário geral de estilos de tomada de decisão - GDMS: tradução, adaptação e validação, de Eliete dos Reis Lehnhart, Julia Tontini, Carolina Schneider Bender e Rafaela Dutra Tagliapietra. Nele, as autoras traduzem, adaptam transculturalmente e validam no contexto brasileiro o Inventário Geral de Estilos de Tomada de Decisão - GDMS. O modelo pode ser útil para a investigação dos estilos de tomada de decisão individual.

Olhando para o poder público, Juliana Maria de Araújo e Marco Aurélio Marques Ferreira fazem uma Análise das capacidades estatais no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil, para compreender em que medida as capacidades influenciaram no resultado do enfrentamento da Covid-19. Foram utilizadas na análise dos dados a Modelagem de Equações Estruturais e testes de médias. O artigo joga luz sobre a importância da capacidade estatal, da estrutura operacional e da capilaridade da saúde primária enquanto fatores condicionantes do sucesso na gestão de crises em saúde.

O quarto artigo também se dá na interface com a ciência política. O desenvolvimento e validação de uma escala de participação política, de Dias Rafael Magul e Carlos Eduardo Cavalcante tem o objetivo de desenvolver e validar uma escala de mensuração da participação política. O instrumento foi avaliado por dez especialistas e, posteriormente, testado e validado usando-se dados duas amostras diferentes, coletadas em Moçambique e contém 27 indicadores da participação política podem ser utilizados em qualquer contexto geográfico.

A análise de posicionamentos públicos sobre a licença social para operar da mina Guaíba - RS, de Pedro Luz Tomaz e Rafael Kruter Flores, traz esse conceito, que é utilizado tanto como mecanismo estratégico de empresas, para obter aceitação de seus empreendimentos, quanto como elemento de reivindicação por parte de movimentos sociais que os confrontam. O artigo aponta a relevância das ações organizadas por movimentos sociais e organizações ambientalistas no sentido de conscientização social.

Priscila Bühler e Letícia de Oliveira realizam uma Revisão de literatura sobre holding familiar e sucessão rural para investigar as características da produção científica das teses e dissertações que tratam acerca dos temas da holding familiar e da sucessão rural no Brasil. Defendem que a holding pode ser uma alternativa eficaz no planejamento sucessório no meio rural.

O sétimo artigo do número também trata de empresas familiares. Em Práticas de liderança em empresas familiares: um olhar fenomenográfico, Tatiane Meurer e Franciele Beck buscam compreender como os tops managers entendem e praticam o estilo de liderança nas empresas familiares. Elas entendem que há variabilidade no estilo de liderança das empresas familiares, sendo que esse estilo advém do envolvimento da família, em que os valores e a conduta organizacional exposta pelos fundadores reporta os traços de comportamento dos líderes com seus subordinados.

Teorias Tradicionais de Liderança a partir de uma perspectiva crítica é o texto de Jussara Jéssica Pereira, Carolina Machado Saraiva e Ana Flávia Rezende, no qual elas visam compreender a construção teórica da liderança e as transformações ocorridas no campo da Administração, desde a Teoria Crítica como suporte epistemológico para analisar conceitos e condições históricas das Teorias Tradicionais da Liderança. Entendem que as teorias de liderança naturalizaram interesses gerenciais sem considerar a natureza conflituosa das organizações.

O nono artigo desse número, de José Augusto Thomaz Neto, Claudio Barbedo e Eduardo Camilo-da-Silva realizam Um estudo exploratório do efeito disposição no mercado de ações durante a pandemia de Covid-19. Nele, buscam avaliar a ocorrência do efeito disposição, transação a transação, no mercado brasileiro de ações durante a Pandemia de COVID-19; e identificar variáveis que podem explicar tal efeito através de uma aplicação empírica de mínimos quadrados ordinários. O estudo propõe diferentes métricas de efeito disposição a partir de dados intradiários.

Em Paixão empreendedora: uma revisão de escopo, Flávia Maria da Silva, Vânia Maria Jorge Nassif e Luís Eduardo Brandão Paiva discorrem as teorias utilizadas para relacionar a paixão empreendedora ao comportamento empreendedor. Apontam que as emoções são antecedentes para a motivação empreendedora, e empreendedores que são apaixonados por seus empreendimentos são mais propensos a perseverar e ter uma chance maior de sucesso.

Em The contribution of unstructured data from social media for prediction in marketing management, Sylvio Ribeiro de Oliveira Santos e Daniel Max de Sousa Oliveira, discutem os benefícios de dados “sujos” ou desestruturados para a tomada de decisão em marketing. Os autores pontuam seis desafios de marketing que a análise de dados desestruturados pode ajudar a superar.

Boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • CAGGY, R. C. DA S. S.; FISCHER, T. M. D. Interdisciplinaridade revisitada: analisando a prática interdisciplinar em uma faculdade de administração da Bahia. Administração: Ensino e Pesquisa, v. 15, n. 3, p. 501-531, 30 set. 2014. Disponível em: https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/12 Acesso em: 12 ago. 2006
    » https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/12
  • PENNA, T. A Poética de Aristóteles: conceito e racionalidade. 2017. 235f. Tese (Doutorado em Filosofia)- Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. Disponível em https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/12029/1/Arquivototal.pdf Acesso em: 12 ago. 2023.
    » https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/12029/1/Arquivototal.pdf
  • RIBEIRO, J. U. Política e Administração. Organizações & Sociedade, [S. l.], v. 13, n. 37, 2006[1969]. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/10841 Acesso em: 29 nov. 2006.
    » https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/10841
  • 2
    Sobre esse conceito, recomendo BARTHES, R. Oeuvres Completes. 5T. Nouvelle edition revue, corrigée e presentée par Eric Marty. Paris: Seuil, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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