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A CARTOGRAFIA COMO FAZER-METODOLÓGICO DE PESQUISADORES ORGANIZACIONAIS: INVESTIGANDO FENÔMENOS CONTEMPORÂNEOS

CARTOGRAPHY AS A METHODOLOGICAL METHOD FOR ORGANIZATIONAL RESEARCHERS: INVESTIGATING CONTEMPORARY PHENOMENA

LA CARTOGRAFÍA COMO UN HACER METODOLÓGICO DE LOS INVESTIGADORES ORGANIZACIONALES: INVESTIGANDO LOS FENÓMENOS CONTEMPORÁNEOS

RESUMO

Este artigo tem como objetivo descrever um processo de pesquisa, em que utilizamos o método cartográfico para estudo de um tema fronteiriço no campo dos estudos organizacionais e do trabalho: o fenômeno slash. Propomos uma discussão metodológica sobre a cartografia, ampliando as possibilidades teóricas e empíricas, principalmente, para os estudos organizacionais. Descrevemos o processo cartográfico da nossa pesquisa em 03 (três) rotas: sobre a cartografia; sobre o cartógrafo; e cartografando. Como resultados, apresentamos 04 (quatro) sínteses, quais sejam: (i) o pesquisador-cartógrafo como parte da geografia de sua pesquisa; (ii) a convicção de que o trabalho do cartógrafo é construído aos poucos e em detalhes; (iii) as principais características observadas em campo sobre a cartografia nos estudos organizacionais; e (iv) contraponto a uma possível glamourização da dinâmica do fenômeno slash.

Palavras-chave:
Cartografia; Flexibilidade metodológica; Estudos Organizacionais; Fenômeno slash

This article aims to describe a research process in which we use the cartographic method to study a frontier theme in the field of organizational studies and work: the slash phenomenon. We propose a methodological discussion about cartography, broadening the theoretical and empirical possibilities, especially for organizational studies. Based on the rhizomatic concept proposed by Deleuze and Guattari, we describe the cartographic process of our research on 03 (three) routes: on cartography; on the cartographer; and mapping. As results, we present 04 (four) syntheses, which are: (i) the researcher-cartographer as part of the geography of his research; (ii) the conviction that the work of the cartographer is built slowly and in detail; (iii) the main characteristics observed in the field on cartography in organizational studies; and (iv) counterpoint to a possible "glamorization" of the dynamics of the slash phenomenon.

Keywords:
Cartographic; Methodological flexibility; Organizational studies; Slash phenomenon


Este artículo tiene como objetivo describir un proceso de investigación en el que utilizamos el método cartográfico para estudiar un tema fronterizo en el campo de los estudios organizacionales y laborales: el fenómeno del slash. Proponemos una discusión metodológica sobre cartografía, ampliando las posibilidades teóricas y empíricas, especialmente para los estudios organizacionales. Partiendo del concepto rizomático propuesto por Deleuze y Guattari, describimos el proceso cartográfico de nuestra investigación en 03 (tres) rutas: sobre cartografía; sobre el cartógrafo; y mapeo. Como resultado, presentamos 04 (cuatro) resúmenes, a saber: (i) el cartógrafo-investigador como parte de la geografía de su investigación; (ii) la convicción de que la obra del cartógrafo se construye poco a poco y con detalle; (iii) las principales características observadas en el campo de la cartografía en los estudios organizacionales; y (iv) contrapunto a una posible “glamorización” de la dinámica del fenómeno del slash.

Palabras clave:
Cartografía; Flexibilidad metodológica; Estudios organizacionales; Fenómeno de barra


INTRODUÇÃO

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. (ROSA, 1967ROSA, J. Primeira Estorias: O espelho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1967., p. 77)

A cartografia nos estudos sobre trabalho e organizações é o objeto deste artigo. O nosso objetivo é descrever um processo de pesquisa, em que utilizamos o método cartográfico para o estudo de um tema fronteiriço no campo dos estudos organizacionais e do trabalho: o fenômeno slash5 5 Refere-se a uma geração de profissionais que acumula e pratica múltiplas atividades, tais como: bancária/confeiteira/cerimonialista ou publicitário/mágico/cantor. .

Acreditamos numa prática científica onde teoria, objeto, método, campo e sujeitos de pesquisa (pesquisador e pesquisados) caminham juntos, o que nos desafia a elaborar e socializar o processo de pesquisa como ele é vivenciado, em suas múltiplas possibilidades. O avançar das investigações foi revelando a pertinência de sermos inventivos no fazer metodológico enquanto cientistas do social.

Buscamos, portanto, neste texto, partilhar experiências metodológicas, fazendo desta escrita um chamamento, um convite ao método cartográfico nas investigações dos estudos organizacionais. Nota-se que este método vem sendo utilizado no Brasil, principalmente por pesquisadores das áreas de ciências da saúde coletiva, sociais e humanas, mas, fundamentalmente, quando os objetos de estudo apontam para processos e produção de subjetividades (SOUZA; FRANCISCO, 2016SOUZA, S. R.; FRANCISCO, A. O método da cartografia em pesquisa qualitativa: estabelecendo princípios, desenhando caminhos. Investigação Qualitativa em Saúde, v. 2, n. 1, p. 811-820, 2016.).

Experimentamos, então, a cartografia como uma prática, como um fazer-experimentativo e metodológico de um artesanato intelectual (MILLS, 2009MILLS, C.W. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.), sem reduzila a uma simples técnica metodológica de análise. Não se trata, nesse caso, de uma proposta de pesquisa sem direção, a lógica é:

Um caminhar que traça as suas metas e considera os efeitos do processo de pesquisa sobre o objeto estudado, o pesquisador e seus resultados. Com isso, dá outro rigor metodológico, no sentido de que sua precisão é tomada como compromisso e interesse em conhecer, como implicação com a realidade para a sua transformação, cujo percurso está voltado para a produção de vida. (CINTRA et al., 2017CINTRA, A. M. S.; MESQUITA, L. P.; MATUMOTO, S.; FORTUNA, C. M. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Revista de Psicologia, v. 29, n. 1, p. 45-53, 2017., p. 46)

Além de outros pontos que serão abordados ao longo deste artigo, consideramos que a adoção da cartografia nos permitiu desenhar o território de pesquisa de forma processual. Território construído a partir das relações estabelecidas entre pesquisador, pesquisados e pesquisa. Nesse sentido, destacamos outro importante contributo da cartografia para a pesquisa, qual seja a “territorialização do campo”. Delimitar espaços e limites da pesquisa poderia ter nos privado de conhecer sujeitos interessantes e distintos. Os territórios são dinâmicos, sem demarcações aparentes e esse pensamento de “deslocalização” proporcionou encontros marcantes e simbólicos. Nossos próprios entrevistados revelavam deslocalizações em suas histórias, por exemplo: um deles nasceu no sul do país, mas já morou no norte, no nordeste e hoje reside no sudeste do Brasil.

Ressaltamos, ainda, nosso posicionamento pouco rígido frente aos objetivos e estratégias metodológicas inicialmente traçados, uma vez que a “cartografia defende a manutenção de um posicionamento flexível e de um pensamento aberto a tudo aquilo que possa emergir” no campo, com o “rigor metodológico que se traduz exatamente pela capacidade do pesquisador em acompanhar o processo de mostrar-se no objeto investigado no contexto que o sustenta e lhe dá (no sentido de produzir) significado” (SOUZA; FRANCISCO, 2016SOUZA, S. R.; FRANCISCO, A. O método da cartografia em pesquisa qualitativa: estabelecendo princípios, desenhando caminhos. Investigação Qualitativa em Saúde, v. 2, n. 1, p. 811-820, 2016., p. 813).

Dessa forma, a produção deste texto oferece à comunidade acadêmica a cartografia como método de pesquisa no campo dos estudos organizacionais. Dividimos o nosso fazer metodológico, bem como a estrutura deste trabalho, em 3 rotas para facilitar a compreensão e a utilização do método cartográfico por outros pesquisadores organizacionais.

A rota 1 percorre os marcos conceituais da cartografia, socializando suas definições mais usuais e seus marcos de referência. A rota 2 envereda pelas peregrinações dos cartógrafos, expressando as predisposições necessárias ao pensar e ao agir daquele que cartografa. A rota 3 passeia por uma prática cartográfica, onde apresentamos um “mapa das ideias” dos sujeitos que entrevistamos e observamos, como um dos resultados da pesquisa; porém, evidenciamos o próprio texto narrativo e suas formas plurais de ser construído como contribuição essencial do método.

1 ROTA 1: SOBRE A CARTOGRAFIA

Liberman e Lima (2015, p. 183)LIBERMAN, F.; LIMA, E. M. F. A. Um corpo de cartógrafo. Interface, 19(52), 183-194, 2015. afirmam que “a cartografia só pode ser pensada como método se entendermos método como aquilo que nos faz compreender a nossa potência de conhecer”. As autoras falam sobre a cartografia como lugar onde o pesquisador está mergulhado na produção de dados a partir de encontros e experiências vividas com os pesquisados, bem como de uma cartografia construída pelos afetos e sensações ali produzidas.

Souza e Francisco (2016, p. 812)SOUZA, S. R.; FRANCISCO, A. O método da cartografia em pesquisa qualitativa: estabelecendo princípios, desenhando caminhos. Investigação Qualitativa em Saúde, v. 2, n. 1, p. 811-820, 2016. afirmam que “cartografar é, antes de tudo, uma arte. Mas é, também, uma ciência”. Como ciência que procede da geografia, “refere-se à habilidade de elaborar mapas, cartas ou outras formas de representar, descrever detalhadamente ou expressar objetos, fenômenos”. A cartografia utilizada como método de pesquisa foi teorizada, originalmente, pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari em cinco volumes que compõem os “Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia”. Costa (2014)COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014., em uma de suas interpretações sobre o método cartográfico, sugeriu que os filósofos buscavam pensar a realidade a partir de dispositivos diferentes aos que, normalmente, se via na comunidade científica.

O principal conceito proposto por Deleuze e Guattari (1995, p. 14)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. é o rizomático, que parte da lógica de que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem”. Cintra et al. (2017, p. 45)CINTRA, A. M. S.; MESQUITA, L. P.; MATUMOTO, S.; FORTUNA, C. M. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Revista de Psicologia, v. 29, n. 1, p. 45-53, 2017. argumentam que “o rizoma não se fecha sobre si, é aberto a experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam”.

Essa lógica sinaliza para uma possível percepção de que não há uma única maneira de utilizar a cartografia, justamente porque ela não busca estabelecer regras e procedimentos engessados, mas passos e rotas possíveis para um fim, compreendendo o processo, fundamentalmente, como o maior interesse do pesquisador. Pesquisador que deverá ser inventivo para criar os seus próprios caminhos, respeitando o processo e estabelecendo conexões que compõem o próprio território da pesquisa (COSTA, 2014COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014.).

Realizamos uma revisão sistemática na literatura (SILVA, 2019SILVA, W. Contribuições e limitações de revisões narrativas e revisões sistemáticas na área de negócios. Revista de Administração Contemporânea (RAC), v. 23, n. 2, 2019.), orientados pela questão: “como o método cartográfico tem sido utilizado pelos estudos organizacionais?”. A partir disso, buscamos publicações em sites de base de dados (Scielo, Spell e Capes), utilizando os termos cartografia, ciências sociais aplicadas, cartography e cartographic methodology em títulos, palavras-chave e resumos, filtrando, sempre que possível, a busca para a produção realizada na área dos estudos organizacionais ou da Administração.

Após essa etapa, encontramos 22 artigos em periódicos, de 2012 a 2019, que relacionavam, de alguma forma, os termos utilizados na busca. Desses, apenas 1 artigo (vide Quadro 1) aproxima-se da área dos estudos organizacionais, os demais trazem outros assuntos, tais como: cidades, historicismo, âmbito público, consumo e, principalmente, estudos orientados à geografia, revelando a pouca produção científica nacional e internacional com esse método na área de Administração. Essas e outras leituras nos conduziram a uma experiência cartográfica para além da imagem representativa do mapa, a saber: (i) dos múltiplos acessos de um rizoma; (ii) dos territórios e suas representações e (iii) da experimentação e inventividade no processo de pesquisa.

Quadro 1
Relação dos artigos analisados (período: 2012 a 2019)

Com isso, é fundamental pensar a cartografia como linhas que se encontram em novos pontos, novos mapas, novas territorialidades, novos agenciamentos. E nosso interesse foi desenvolver uma metodologia que interagisse “com e entre o conhecimento territorializado, que pode, de algum modo, ser descrito e capturado a partir de representações” dos atores envolvidos na pesquisa. Ou seja, uma metodologia que considerasse e destacasse o protagonismo do pesquisador-cartógrafo (SHUMACK; TUCKWELL, 2010SHUMACK, K. TUCKWELL, J. Mapping as Assemblage for Cultural Research. ICS Occasional Paper Serie, v. 1, n. 5, p.1-18, 2010., p. 7).

2 ROTA 2: SOBRE O CARTÓGRAFO

Os cartógrafos não estabelecem muitos objetivos a priori, respeitam a processualidade da pesquisa e caminham traçando “as suas metas e considerando os efeitos [desse] processo” (CINTRA et al., 2017CINTRA, A. M. S.; MESQUITA, L. P.; MATUMOTO, S.; FORTUNA, C. M. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Revista de Psicologia, v. 29, n. 1, p. 45-53, 2017., p. 46). O protagonismo do pesquisador é fundamental na cartografia, já que o conhecimento é produzido a partir de suas percepções, sensações e afetos compartilhados em campo (ROMAGNOLI, 2009ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & Sociedade, v. 21, n. 2, p. 166-173, 2009.).

O cartógrafo, considerando a sua autonomia, vai desbravando territórios e ocupando espaços sem saber de antemão o que vai encontrar. Ele precisa, muitas vezes, se desdobrar em tantos outros e encarar os efeitos dos itinerários investigativos para dar corpo a sua pesquisa. Corpo que, por sinal, simboliza “uma importante imagem no exercício de uma cartografia, corpo que nos remete ao corpo do pesquisador e ao corpo dos encontros estabelecidos” (COSTA, 2014COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014., p. 67). Corpo sobre o qual o cartógrafo estabelece lugar de reflexão, produção e criação de conhecimento.

Em termos metodológicos, a pesquisa envolve “corpos que devem se colocar à espreita dos acontecimentos que emergem. [...] à espreita de acontecimentos que abram o corpo para que possamos exercitar a arte dos encontros” (LIBERMAN E LIMA, 2015LIBERMAN, F.; LIMA, E. M. F. A. Um corpo de cartógrafo. Interface, 19(52), 183-194, 2015., p. 187). Assim, para o cartógrafo, pesquisar é caminhar. E assim como as configurações dos caminhos alteram-se diariamente, consideramos, também, que a pesquisa pode mudar. Então, personalizar os percursos metodológicos da cartografia é uma de suas principais características, considerando a especificidade de cada território, onde a cartografia estabelece lugar de criação com traços que se unem em mapas construídos “de dentro” ou “por dentro”.

O que “acontece entre” é o que mais interessa para o cartógrafo, que é o pesquisador preocupado com o que ocorre no intervalo constituinte do que explora. Entendemos que é necessário ao pesquisador estar atento ao que ocorre nas regiões fronteiriças da pesquisa para evitar o fechamento, que é por vezes observado em pesquisas consideradas tradicionais, que tentam enquadrar “dados, conclusões e resultados, com os quais o mundo e a vida parecem não se adequar” (COSTA, 2014COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014., p. 67). Diferentemente disso, uma prática de pesquisa construcionista, como é a cartografia, não permite que o pesquisador se limite a “imitar práticas e análise que são conhecidas e previsíveis” (MAZZEI; MCCOY, 2010MAZZEI, L. A.; MCCOY, K. Thinking with Deleuze in qualitative research. International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 23, n. 5, p. 503-509, 2010., p. 506).

Cada experiência de pesquisa é única e permeada de diversas camadas, como as camadas de histórias, vivências e pontos de encontros de/entre territórios. O pesquisador, nesse caso, precisa capturar o que está nesse intervalo, no meio, perceber os movimentos e produzir conhecimento sob a perspectiva “de dentro”, revelando aspectos tão particulares quanto o próprio método nos sugere (RICHTER; OLIVEIRA, 2017ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.). O conceito rizomático, dessa forma, nos direciona a observar os fenômenos contemporâneos a partir dos territórios e do que eles representam no campo de investigação.

Porque o conceito rizomático de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. foge de uma simples relação binária de causa-efeito, o cartógrafo precisa estar atento ao que circunscreve o fenômeno investigado, reparando no que há de mais fugidio, nas características particulares, na produção de subjetividade a partir do que não se mostra à primeira vista. Tentar compreender os múltiplos caminhos que vão surgindo e se conectando a tantos outros ao longo da pesquisa, provavelmente, seja uma das principais experiências do cartógrafo em campo. O fato é que cartografar dá ao pesquisador a possibilidade de aproximação dos “fluxos, linhas e forças que compõem um mapa de determinado território” (WEBER; GRISCI; PAULON, 2012WEBER, L.; GRISCI, C. L. I.; PAULON, S. M. Cartografia: aproximação metodológica para produção do conhecimento em gestão de pessoas. Caderno EBAPE.BR, v. 10, n. 4, p. 841-857, 2012., p. 845). E como território que pode ser percorrido em múltiplos acessos, a pesquisa pode ser construída a partir dos múltiplos movimentos do fenômeno investigado, como um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.).

E o pesquisador também precisa ser multi para acompanhar as distintas possibilidades de configuração de uma pesquisa cartográfica. Um desses seres do pesquisador, por assim dizer, é o ser flexível, já que “o método da cartografia dá primado ao caminho da investigação, ao seu processo, e não às metas preestabelecidas a serem alcançadas” (PASSOS; KASTRUP, 2013PASSOS; E.; KASTRUP, V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 391-414, 2013., p. 395). Dessa forma, estar aberto aos múltiplos acessos da pesquisa, às mudanças e às reinvenções de rotas parece direcionar o ser multi do cartógrafo em campo, que não deve se aprisionar às formulações iniciais, mas sim personalizar o seu fazer-metodológico a partir da sua realidade vivida.

De acordo com Richter e Oliveira (2017, p. 29-30)ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016., “toda pesquisa opera em campos, em territórios de naturezas distintas: filosóficas, sociais, artísticas, sentimentais, [...] e nestes territórios encontra-se o pesquisador”. Observamos que, para compreender o fenômeno investigado, o cartógrafo deixa de perguntar “o que estou vendo?” – numa perspectiva de distanciamento – e passa a questionar “como interajo ou reajo com o que estou vendo?” – olhando de dentro, participando e vivenciando, então, o cotidiano do que investiga. Assim, o pesquisador-cartógrafo, mais do que nunca, tem destaque e papel central na elaboração de conhecimento a partir desse método. Ele é o “criador da realidade, um compositor, aquele que compõe na medida em que cartografa” (COSTA, 2014COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014., p. 70), realidade que carrega um fluxo contínuo e mutável (MARTIN; KAMBERELIS, 2013MARTIN, A. D.; KAMBERELIS, G. Mapping not tracing: qualitative education research with political teeth, International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 26, n. 6, p. 668-679, 2013.).

O pesquisador elabora os seus produtos de pesquisa, a exemplo o mapa e o texto/narrativa, cartografando o fenômeno de dentro da pesquisa. Ele precisa estar inserido no território que teoriza para teorizar, que desenha para desenhar. De acordo com Souza e Francisco (2016, p. 815)SOUZA, S. R.; FRANCISCO, A. O método da cartografia em pesquisa qualitativa: estabelecendo princípios, desenhando caminhos. Investigação Qualitativa em Saúde, v. 2, n. 1, p. 811-820, 2016., “o mapeamento de um território, de uma realidade vai se processando no traçado de linhas que expressem os seus movimentos e suas intensidades, suas conexões, suas entradas e saídas, suas possibilidades e potencialidades”.

Cabe ao cartógrafo mergulhar nesses terrenos e em suas intensidades, afetar e ser afetado pelo processo em curso, adentrar nas possibilidades que circunscrevem o fenômeno e descobrir as implicações representadas pelos discursos dos sujeitos (SOUZA; FRANCISCO, 2016SOUZA, S. R.; FRANCISCO, A. O método da cartografia em pesquisa qualitativa: estabelecendo princípios, desenhando caminhos. Investigação Qualitativa em Saúde, v. 2, n. 1, p. 811-820, 2016.). Costa (2014)COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014. fala, ainda, que esses territórios funcionam como encontros e são neles que a cartografia também acontece. Esses “encontros são algo que não acontecem em linha reta, acontecem entre dois ou mais elementos, sobrevoam todos os campos que compõem seu múltiplo território de pesquisa” (RICHTER; OLIVEIRA, 2017ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016., p. 31).

Assim, os trabalhos dos cartógrafos sugerem passos, nem sempre retilíneos, a serem seguidos; e não métodos prontos (RICHTER; OLIVEIRA, 2017ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.). Socializamos, na próxima rota, o que pensamos a esse respeito e o relato descritivo da nossa experiência em campo, demonstrando que diversas realidades podem ser compreendidas a partir desse método, partindo da concepção de que acompanhar os processos é fundamental para uma cartografia próxima do real.

3 ROTA 3: CARTOGRAFANDO

Temas diferentes estão cada vez mais presentes na agenda de pesquisa de estudiosos organizacionais. E, com isso, a utilização de métodos considerados não tradicionais para tentar compreender fenômenos contemporâneos. O método cartográfico é um desafio, mas o caráter transitório entre diferentes disciplinas contribui para a construção de boas investigações (GRIFFIN; ROBINSON; ROTH, 2017GRIFFIN, A. L.; ROBINSON, A. C.; ROTH, R. E. Envisioning the future of cartographic research. International Journal of Cartography, 2017.).

A experiência relatada a seguir parte do próprio contexto pelo qual a cartografia é constituída: produzir-se a partir de, costurando linhas, traçando rotas, interagindo com o objeto e criando conhecimento de dentro (WEBER; GRISCI; PAULON, 2012WEBER, L.; GRISCI, C. L. I.; PAULON, S. M. Cartografia: aproximação metodológica para produção do conhecimento em gestão de pessoas. Caderno EBAPE.BR, v. 10, n. 4, p. 841-857, 2012.). É uma cartografia que experimentou na prática novas formas de observar fenômenos contemporâneos nos estudos organizacionais (JONES; HARRIS, 2016JONES, S. H.; HARRIS, A. Traveling Skin: A Cartography of the Body. Journal of Performances Studies (Liminalities), v. 12, n. 1, p. 1-27, 2016, p. 1).

O fazer científico na Administração, por vezes, implica demasiada preocupação com o método, a teoria e as codificações de especialistas que, em muitos casos, não vivenciaram tudo o que uma pesquisa pode proporcionar. Buscamos gerar conhecimento com o rigor requerido pelo objeto, mas sem cair nas armadilhas da rigidez, justamente por acreditar que processos considerados engessados podem não ter as melhores respostas sobre os questionamentos da vida e da academia nos campos das “ciências do homem”, como os são nas ciências sociais aplicadas, tal qual a Administração.

Nesse sentido, acreditamos que não há ciência sem experiência e, de modo geral, atuar no campo do experimento é encarar, pelo menos no primeiro momento, que não há situações ou condições absolutas. As experiências nos permitem dialogar com as possibilidades, com o diverso, com as dispersões, com o sutil, com o distinto. Nessa perspectiva, direcionamos nosso olhar para o que há de mais fugitivo na empiria, para tentar compreender contextos mais amplos. Por isso, separamos esse espaço para descrever a nossa experiência em campo, na expectativa de despertar outros pesquisadores organizacionais para a cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.) como metodologia possível em suas investigações.

Realizamos uma pesquisa qualitativa, com a utilização da cartografia como método, para tentar compreender, numa perspectiva interdisciplinar, as características das trajetórias dos slashers. O fenômeno slash – sinal gráfico da barra diagonal (/) – caracteriza uma geração de trabalhadores que acumula e pratica múltiplas atividades, como: administrador/DJ; médica/cantora/professora. Acompanhamos 06 slashers nas cidades de Fortaleza e São Paulo no período de setembro de 2017 a janeiro de 2019.

À medida que fomos deixando o objeto falar por si, fomos inspirados a participar não somente dos entornos da pesquisa, mas dos acontecimentos internos (RICHTER; OLIVEIRA, 2017ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.), mais próximo da realidade de sujeitos que pareciam ter prazer em falar e compartilhar suas rotinas. Com base no convívio e em entrevistas, como conversas abertas que foram gravadas com o consentimento dos interlocutores, bem como do rastreamento a partir de outros mecanismos a serem relatados mais a frente, utilizamos a cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.) como metodologia possível para tentar compreender a dinâmica das trajetórias profissionais dos slashers no mundo do trabalho contemporâneo.

Estávamos abertos às mudanças e as personalizações do nosso fazer-metodológico a partir das próprias requisições do objeto, inspirados pelas práticas de um artesanato intelectual em todos os processos da pesquisa. Bebemos dessa fonte, principalmente, considerando nossa aproximação pessoal com o objeto, influenciados pelo fato de que os “mais admiráveis pensadores da comunidade acadêmica em que decidiu ingressar não separaram seu trabalho de suas vidas. [...] querem usar uma coisa para o enriquecimento da outra” (MILLS, 2009MILLS, C.W. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., p. 21).

Permitimos que o ser flexível tomasse conta de cada etapa metodológica da pesquisa (PASSOS; KASTRUP, 2013PASSOS; E.; KASTRUP, V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 391-414, 2013.), por exemplo, o próprio processo de descoberta do campo que foi acontecendo em pequenas aberturas e acessado em múltiplas entradas, constituindo-se de forma rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.). Aliás, nosso primeiro contato com ele foi, essencialmente, exploratório. Buscamos entender, inicialmente, algumas das características dos slashers a partir de um caso particular, uma publicitária/superintendente de cobrança/empreendedora de uma startup, e deixamos que o campo fosse se revelando à medida que interagíamos e nos relacionávamos com outros pesquisados e com a pesquisa.

E aí está, provavelmente, a primeira personalização metodológica da pesquisa: a (des)territorialização do campo. Assim como Costa (2014)COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014. e Richter e Oliveira (2017)ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. discorreram sobre o ser transitável do pesquisador-cartógrafo nos territórios da pesquisa, não delimitamos os espaços e os sujeitos a priori e nos mantivemos ligados ao que poderia acontecer nas regiões fronteiriças da pesquisa. Eugenio (2012, p. 210)EUGENIO, F. Criatividade situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas práticas profissionais contemporâneas. In: PAIS, J. M.; ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Criatividade, juventude e novos horizontes profissionais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012., em uma de suas investigações, preferiu “ir deixando emergir o desenho da rede de pessoas que partilhariam da pesquisa por meio dos encontros suscitados em campo”.

E, assim, fomos desenhando a nossa pesquisa, ouvindo e mantendo contato com pessoas que partilhavam um mesmo modo de vida, sem a utilização de quaisquer targets6 6 Expressão usada, principalmente na web, para designar um público-alvo. que pudessem pré classificá-los e nos afastar de possíveis encontros ao acaso que a empiria, por vezes, nos reserva. Aqui, acionamos a nossa própria rede de contatos em conversas despretensiosas sobre a temática de investigação; o campo foi tomando forma, ganhando corpo; e os interlocutores, aos poucos, surgindo.

Os entrevistados – representados dessa forma apenas a posteriori – formaram um grupo composto por três homens e três mulheres, variando entre 28 e 50 anos, nas cidades de Fortaleza e São Paulo, que compartilhavam o mesmo pensamento sobre os principais aspectos da dinâmica slash. A flexibilidade cartográfica permitiu que o sentir, nesse caso, fosse mais importante do que a busca por textos que justificassem a saturação do campo. Debruçamo-nos sobre os dados coletados e deixamos o perceber tomar conta dos nossos olhares, fugindo das narrativas consideradas tradicionais, que resumem e generalizam a vida dos sujeitos.

Ainda sobre os sujeitos, observamos que uma pré-categorização dos entrevistados poderia nos afastar da tentativa de representar um “todo”, por isso permitimos que qualquer pessoa, simpática à dinâmica slash, participasse da pesquisa e revelasse o caráter transitório de sujeitos que não se prendem a indicadores, tais como a idade (FORQUIN, 2003FORQUIN, J. C. Relações entre gerações e processos educativos: transmissões e transformações. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COEDUCAÇÃO DE GERAÇÕES, 2003, São Paulo. Anais... São Paulo: SESC SP, 2003.). Assumimos, ainda, que não tínhamos qualquer pretensão de nos manter neutros ou distantes de quem iria participar da pesquisa pois, apesar de não termos criados categorias a priori, tínhamos algum tipo de relação com os participantes. Sabemos que o simples fato de termos decidido estudar esse objeto nos coloca, automaticamente, e nesse caso, num nível de envolvimento que não poderíamos desconsiderar em nosso fazer-metodológico.

No entanto, a inquietude surgida após essa reflexão nos fez estabelecer formas que garantissem o equilíbrio para não desenvolvermos um trabalho fixado “em extremos”. Pesquisar sobre esse tema há, pelo menos, três anos, nos revelou que a partir das experiências pessoais é possível estudar as experiências humanas de forma ampla e, desse modo, não colocamos o conhecimento científico acima do que vimos e vivenciamos no real como conceito totalizante. E também não queríamos ser meros relatores dos discursos dos sujeitos, nossa intenção sempre esteve no campo do equilíbrio científico, promovendo o encontro entre teoria e campo, objetividade e subjetividade.

Traçamos alguns caminhos iniciais como prévia orientação, mas respeitamos o processo do percurso cartográfico e as mudanças que, muitas vezes, eram requisitadas pelo próprio objeto. Como veremos mais adiante, tivemos que nos (des)territorializar/(re)territorializar e acompanhar os nossos interlocutores a partir de lugares até então não observados, como as suas representações no ciberespaço (SILVA; TEIXEIRA; FREITAS, 2015SILVA, T. M.; TEIXEIRA, T. O.; FREITAS, S. M. P. Ciberespaço: uma nova configuração do ser no mundo. Psicologia em Revista, v. 21, n. 1, p. 176-196, 2015., p. 178). Além disso, tivemos que incluir em nossas análises teorias ainda desconhecidas, como os conceitos de paragens e desmobilizações (ALMEIDA; EUGENIO, 2016ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.) e identidade e representações de papéis (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961., 2002____ . A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2002.), que emergiram durante o processo de pesquisa.

Atestamos, nesse contexto de (des)territorialização/(re)territorialização criativa do nosso fazer-metodológico, o entendimento de que pesquisar é processo e cartografar, enquanto método que envolve produção da realidade, é uma possibilidade de produzirmos conhecimento a partir da subjetividade que há no objeto de estudo (CINTRA et al., 2017CINTRA, A. M. S.; MESQUITA, L. P.; MATUMOTO, S.; FORTUNA, C. M. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Revista de Psicologia, v. 29, n. 1, p. 45-53, 2017.). Ou seja, existe uma copresença entre o pensar e o fazer, entre o próprio devir da pesquisa e o agir a partir de, trabalhando com o que se tem no real e fazendo conexões improváveis, exigindo astúcia e sensibilidade do pesquisador para não deixar escapar nenhuma informação do campo.

Diante do que expomos, percebemos, a partir da lógica de viver próximo aos slashers, outras formas de observá-los: horizontalizamos a nossa atenção ao ocupar os seus espaços; criamos e recriamos esboços em diários de campo; elaboramos contos sobre os interlocutores; acompanhamos os seus passos no ciberespaço; e trocamos ideias e percepções ao final de cada etapa da pesquisa. E foi no campo onde experimentamos grande realização do esforço profissional enquanto pesquisadores. É como se ali, na empiria, como cartógrafos, fôssemos banhados pelos afetos dos encontros, escritos e registros. É quando permitimos acessar, por exemplo, a dimensão do prazer ao vivenciar, de fato, um bom encontro com os interlocutores.

Claro que nem tudo ficou no campo da ideia e do prazer. Existiu uma dimensão do “trabalho braçal”, como desenrolar em linhas tudo o que foi visto e transcrever horas e horas de gravações, tudo isso após um dia cansativo. O fato é que demos o devido valor e atenção à parte técnica da pesquisa, mas não permitimos escorrer uma gota sequer da sensibilidade de cada história revelada.

Um novo fazer-metodológico-criativo foi tomando forma à medida que cartografávamos as trajetórias profissionais dos slashers. O desenho da pesquisa foi sendo alterado e foi ganhando novos traços a partir do cruzamento desses diferentes procedimentos. A inventividade surge, mais uma vez, como lugar constante do cartógrafo. Nesse sentido, o papel do pesquisador parece ser fundamental, já que o conhecimento é produzido a partir de suas percepções, sensações e afetos compartilhados na etapa de campo (ROMAGNOLI, 2009ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & Sociedade, v. 21, n. 2, p. 166-173, 2009.).

Tivemos que orquestrar o tempo e ponderar, sem deixar escapar o que parecia ser idiossincrático para os slashers, o que despontava a partir de cada encontro, de cada experiência em campo. E sem o fetiche procedimental de utilizar isso apenas como um discurso metodológico, vivenciamos o que era importante para cada um dos nossos entrevistados.

Cartografar, para nós, só foi possível, também, com o auxílio da técnica do relato oral dos nossos entrevistados que, segundo Queiroz (1988, p. 15)QUEIROZ, M. I. Relatos orais: do indizível ao dizível. In: SIMSON, O. M. (Org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vertice, 1988., é uma “técnica útil para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação escrita, o não conservado, o que desapareceria se não fosse anotado”. Serve, por exemplo, para captar o que não está explícito ou até mesmo o indizível. A partir das falas dos sujeitos e das entrevistas gravadas e transcritas, utilizamos como inspiração, principalmente, os princípios da técnica de análise e interpretação dos núcleos de sentido (ANS), adaptada por Mendes (2007)MENDES, A. M. B. Pesquisa em psicodinâmica do trabalho: a clínica do trabalho. In: MENDES, A. M. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007..

A cartografia, então, tem relação direta com a participação e intervenção do pesquisador com o objeto estudado, procurando compreender mais “o que difere” do que “o mesmo” que já é tratado pela literatura; ponderar as expectativas do pesquisador com o que o objeto pode entregar; e capturar as especificidades do fenômeno ao longo do processo de pesquisa (PASSOS; KASTRUP, 2013PASSOS; E.; KASTRUP, V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 391-414, 2013.).

Observamos que, por vezes, o processo de realização do produto final de uma investigação científica não é relatado como poderia ser. É como se o material utilizado para a pesquisa e os dados que observamos no real estivessem prontos, aguardando apenas a disposição dos pesquisadores em utilizar instrumentos adequados para a correta extração.

Consideramos que a definição do objeto de pesquisa e as opções metodológicas escolhidas pelos pesquisadores ocupam um lugar tão importante quanto a própria elaboração do texto pelos pesquisadores (DUARTE, 2002DUARTE, R. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cadernos de Pesquisa, v. 2, n. 115, p. 139-154, 2002.). E, assim, buscamos construir o texto da nossa pesquisa e, especificamente, este que socializa algumas das nossas principais experiências utilizando a cartografia como inspiração metodológica, na expectativa de apresentar e despertar outros pesquisadores organizacionais para esse método em suas investigações.

Desse modo, o cartógrafo, segundo Costa (2014, p. 71)COSTA, L. B. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista digital do LAV, v. 7, n. 2, p. 66-77, 2014., é “um amante dos acasos, ele está disponível aos acasos que o seu campo lhe oferece”, aos distintos encontros a serem feitos no decorrer do caminho, ele está aberto às mudanças que o próprio objeto requisita. Como método que não se propõe a descrever modos fixos para realiza-lo, o pesquisador-cartógrafo terá que inventar o seu fazer-metodológico nessa relação de misturar-se com e começar a fazer parte do próprio território de pesquisa à medida que experiencia o campo.

Descobrimos que é fundamental ser astuto e sensível às sinalizações do fenômeno e inserir outros elementos que figurem como peças do que se cartografa. Além disso, ser flexível, como já discorremos, equivale a permitir novas rotas, outros acessos, retornos e o que surgir como necessário para prosseguir com o trabalho investigativo. Identificamos, ainda, que mesmo casos isolados podem representar grandes achados para o resultado final da pesquisa, como as teorias que tivemos que incluir em nossas análises.

E, assim, decidimos por adentrar e nos misturar de tal modo que começamos a vivenciar algumas das rotinas dos nossos entrevistados, o que nos permitiu produzir um mapa que chamamos de “Cartografia das rotas dos slashers” (Figura 1). O mapa pode ser interpretado como um conjunto de aspectos gerais e específicos, de encontros e desencontros dos slashers em seus percursos profissionais. Atende, teoricamente, ao que dizem Weber, Grisci e Paulon (2012, p. 850)WEBER, L.; GRISCI, C. L. I.; PAULON, S. M. Cartografia: aproximação metodológica para produção do conhecimento em gestão de pessoas. Caderno EBAPE.BR, v. 10, n. 4, p. 841-857, 2012. sobre a cartografia ser útil na compreensão das transversalidades que existem nos territórios, “a partir do exercício de aproximação e afastamento, naquilo que, sem reforçar dualismos, remete aos pares: grupo-indivíduo; horizontalidade-verticalidade; vida online-vida offline” e tantas outras descobertas de si.

Figura 1
Mapa: Cartografia das rotas dos slashers

O mapa é um esforço do pesquisador para representar, visualmente, o resultado de materiais observados e produzidos nos territórios. É a tentativa de reproduzir no papel a própria trajetória cursada pelo pesquisador com os sujeitos da pesquisa, suas múltiplas conexões materiais e afetivas, novos elementos incorporados nos diversos acessos. O cartógrafo opera a partir do desejo (ROLNIK, 2016ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2016.) e da “tentativa de marcar intensidades, ‘camadas de ser’ – de corpos, lugares, ações – em suas múltiplas versões” (JONES; HARRIS, 2016JONES, S. H.; HARRIS, A. Traveling Skin: A Cartography of the Body. Journal of Performances Studies (Liminalities), v. 12, n. 1, p. 1-27, 2016).

Um dos marcos deste trabalho foi compreender que a cartografia pode ser campo construído a partir de relações sociais. Os diários de campo, anotações e tantos outros rabiscos feitos com pensamentos que emergiam nas diversas conversas que tivemos, funcionavam como um “arquivo pessoal do artesão intelectual” proposto por Mills (2009)MILLS, C.W. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., apreendendo o real a partir dos pensamentos marginais registrados no papel.

Então, baseados no que a cartografia nos autorizava a fazer, começamos a interagir com o objeto por meio de mecanismos considerados não convencionais para as teorias duras da administração, a saber: acompanhamos o Felipe7 7 Felipe é publicitário/sommelier de cervejas. , por exemplo, em um encontro de cervejeiros para tentar compreender as dimensões que eram acionadas por ele; fui com a Camila8 8 publicitária/superintendente de cobrança/empreendedora de startup a algumas aulas de surf e, em contrapartida, escutei conversas telefônicas de natureza profissional que ela gerava com a sua equipe e com os sócios da startup; e fiz um tour pelas cafeterias de São Paulo com o Marcelo9 9 Marcelo é analista de sistemas de TI/micro digital influencer/empreendedor. , para perceber os sentidos do trabalho para ele.

Como mencionamos, estávamos abertos ao que a cartografia poderia permitir no percurso da pesquisa. Deixamo-nos ser afetados pelas narrativas dos nossos entrevistados e permitimos que novos elementos integrassem o que, inicialmente, havíamos planejado. Além da inclusão da análise imagética como inspiração para acompanharmos os nossos entrevistados em suas redes sociais, algumas teorias foram assimiladas durante o processo de pesquisa para tentarmos compreender aspectos que só emergiram caminhando com eles.

Camila contava com empolgação sobre as inúmeras descobertas de si ao longo de sua trajetória profissional e algo sobre “ter alcançado o topo” em sua carreira, lugar onde muitos consideram “ter sucesso” no mundo do trabalho. Camila ocupava um alto cargo em uma das maiores empresas de cobrança do país, mas chegou a dizer que se sentia escrava do que ela havia construído. E resolveu largar tudo.

Até então, havíamos hipotetizado que os slashers ocupavam, principalmente, a dimensão do prazer ao acumular mais de uma atividade de trabalho. Mas o discurso de Camila nos levou a pesquisar sobre os conceitos de paragens e desmobilizações (ALMEIDA; EUGENIO, 2016ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.) como alternativa de enfrentamento a possíveis conflitos e situações de sofrimento no contexto de trabalho para os slashers. Para as autoras, esses movimentos acontecem entre sujeitos que “procuram estancar a mobilização por meio da tática de habitar a pausa, o parêntese provisório e a paragem [...]. Desmobilizam porque preferem não fazer”, vivem um tempo onde “tudo pode”, inclusive “poder não escolher, poder não exercitar a potência própria” (ALMEIDA; EUGENIO, 2016ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016., p. 28 e 29).

Do mesmo modo, uma das frases de Mariana10 10 Mariana é médica/cantora/professora de capoeira. , qual seja: “sei que sou uma profissional médica e uma profissional da música. Eu me considero as duas coisas”, nos despertou para as teorias de identidade e representações de papéis de Goffman (1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.; 2022). É ainda mais curioso perceber a utilização da conjunção “e” na referida frase, que parece reunir desejo e prazer na experiência de Mariana em ser médica “e” música profissional. Para Deleuze e Guattari (2010)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, 2010., o desejo é revolucionário, é produção do real e transborda para fora do indivíduo transformando a realidade.

A centralidade do trabalho para os trabalhadores parece ser reforçada por práticas como as que foram identificadas e mencionadas. Apesar de demonstrarem versatilidade ao acumular mais de uma atividade entre as barras, tais trabalhadores carregam a função social e fundamental na formação de suas identidades (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.; KANTORSKI, 1997KANTORSKI, L. P. As transformações no mundo do trabalho e a questão da saúde: algumas reflexões preliminares. Revista latino-americana de enfermagem, v. 5, n. 2, p. 5-15, 1997.; ANTUNES, 2009ANTUNES, R. As configurações do trabalho na sociedade capitalista. Revista Katálysis, v. 12, n. 2, p. 131-132, 2009.; BATISTA-DOS-SANTOS et al., 2014BATISTA-DOS-SANTOS, A. C.; CARDOSO, M. F.; LESLYE, D.; MÓL, A. L. R.; OLIVEIRA, J. A. O trabalho na contemporaneidade: estudo sobre as dimensões que trabalhadores de uma organização pública associam ao trabalho. Revista Ciências Administrativas, v. 20, n. 1, p. 347-379, 2014.; ALCADIPANI; MEDEIROS, 2016ALCADIPANI, R.; MEDEIROS, C. R. O. O herói-envergonhado: tensões e contradições no cotidiano do trabalho policial. Revista brasileira de segurança pública, v. 10, n. 2, p. 134-153, 2016.) e precisavam atuar de forma particular a depender da atividade de trabalho (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.).

Além disso, percebemos que os nossos interlocutores, em sua totalidade, ocupavam, ativamente, o mundo virtual através de postagens de fotos e vídeos, até mesmo como possibilidade de negócio. Por isso, entendemos que precisávamos acompanhá-los no ciberespaço. Silva, Teixeira e Freitas (2015, p. 178)SILVA, T. M.; TEIXEIRA, T. O.; FREITAS, S. M. P. Ciberespaço: uma nova configuração do ser no mundo. Psicologia em Revista, v. 21, n. 1, p. 176-196, 2015. falam sobre o ciberespaço como “plataforma de uma nova realidade humana, síntese da relação homem-máquina, homem-homem, cuja acronia e atopia ampliam os limites das possibilidades do homem”, revelando o poder inventivo e criativo de Marcelo para ressignificar o que pensava sobre ter um negócio próprio, transferindo os seus esforços e fazendo negócio no mundo virtual.

Relatar a nossa jornada cartográfica de forma descritiva tem, principalmente, o caráter de produzir conhecimento através de um comportamento que respeita a individualidade de cada interlocutor, mas que traz o desafio de construir, coletivamente, modos específicos de (re)existir de um grupo, características que se desdobram em certos padrões ou conjunto que nos ajudam a compreender contextos mais amplos. O desafio maior, provavelmente, seja o de assimilar que a cartografia não tem um único modo de utilização cabendo ao pesquisador multiplicar-se em outros seres para atender ao rigor requerido pela ciência, sem perder as vias da flexibilidade metodológica.

4 REFLEXÕES FINAIS

Considerando o objetivo do estudo – descrever um processo de pesquisa em que utilizamos o método cartográfico para estudo de um tema fronteiriço no campo dos estudos organizacionais e do trabalho – encerramos este texto descritivo apresentando quatro sínteses.

Como primeira síntese, entendemos o pesquisador-cartógrafo como parte da geografia de sua pesquisa e, por estar inserido e misturado ao próprio desenho construído “de dentro” do que se investiga, distancia-se da normalidade considerada positivista que alguns métodos considerados tradicionais nos propõem. A cartografia tem em suas bases o errante, o disperso, o fugitivo, em que não coleta dados, mas produz conhecimento a partir de sua interação com o objeto. Faz, refaz e se adapta ao que vivencia em campo.

O cartógrafo não sabe exatamente o que pode acontecer na empiria, não sabe quais encontros terá, quais movimentos o afetarão e mudarão os percursos de sua pesquisa. O pesquisador precisa ser flexível e, como segunda síntese, apresentamos a convicção de que o trabalho do cartógrafo é construído aos poucos, em detalhes, com os seus próprios passos, num tempo e espaço que respeitam o processo, reconhecendo os territórios, mas nunca se fechando neles mesmos. Portanto, há flexibilidade quando o cartógrafo experimenta, improvisa, quando constrói teoria a partir do corpo que sente, baseando-se “nas urgências indicadas pelas sensações, ou seja, os sinais da presença do outro corpo vibrátil” (ROLNIK, 2016ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2016., p. 20). Tudo o que puder ser utilizado como matéria de expressão ou mesmo como gerador de sentido é bem-vindo para o cartógrafo, que parece beber de fontes variadas (ROLNIK, 2016ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2016.; RICHTER; OLIVEIRA, 2017ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. Horizontes da finitude: desmobilizações e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas. In: ALMEIDA, M. I. M. de (Org.). Cartografias da Paragem: desmobilizações jovens contemporâneas e o redesenho das formas de vida. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.).

A terceira síntese, na verdade, centraliza as principais características que foram observadas em campo sobre a cartografia nos estudos organizacionais, um método construído pelos encontros; em territórios formados pela sensibilidade investigativa do pesquisador; que cria corpo à medida que caminha e interage com o fenômeno estudado; que respeita o processo da pesquisa e entende os momentos de avançar, retornar e refazer novas rotas; que entende o conceito rizomático desde a formação do campo à análise do que foi produzido como resultado; e, numa perspectiva subjetiva, procura estabelecer a inventividade como lugar de criação e reflexão.

Mantivemo-nos astutos, inclusive, ao que dizia a literatura sobre o nosso objeto de pesquisa. Por isso, como quarta síntese, observamos que os textos traziam apenas aspectos de prazer em relatos que convergiam para um modelo glamourizado ou romantizado do fenômeno slash, no sentido de que esses sujeitos acionam apenas o lado bonito das suas práticas profissionais. No entanto, percebemos ao cartografar as trajetórias dos nossos slashers que nem tudo é tão bonito quanto parece ser. Claramente, o prazer é acionado por vezes durante a dinâmica slash, mas as dimensões de sofrimento, ansiedade, preocupação e nervosismo, pouco exploradas pela literatura, foram bastante percebidas por nós na quase totalidade dos nossos entrevistados.

Novos estudos interdisciplinares podem ser realizados a partir do que relatamos como possibilidade metodológica e sínteses reflexivas. Temas que relacionam a cartografia ao conceito de desejo de Rolnik (2016)ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2016. podem ser melhor explorados e, consequentemente, ser frutíferos. Sugere-se, ainda, ampliar o tempo de intervenção do pesquisador em campo e diversificar o acesso aos interlocutores com mais pesquisadores atuando em campo.

Por fim, concluímos a escrita deste artigo sem qualquer pretensão de colocar o método cartográfico como idealmente criativo e pouco procedimental, como se exigisse grandes performances do pesquisador. Defendemos a utilização da cartografia para pesquisadores interessados em olhar para objetos de forma refinada, de perto, atentos ao que parece ser quase invisível, abrindo e ampliando repertórios e formas de conexões com o mundo, experimentando o “fazer” e o “fazer-criativo” no processo da pesquisa.

  • 5
    Refere-se a uma geração de profissionais que acumula e pratica múltiplas atividades, tais como: bancária/confeiteira/cerimonialista ou publicitário/mágico/cantor.
  • 6
    Expressão usada, principalmente na web, para designar um público-alvo.
  • 7
    Felipe é publicitário/sommelier de cervejas.
  • 8
    publicitária/superintendente de cobrança/empreendedora de startup
  • 9
    Marcelo é analista de sistemas de TI/micro digital influencer/empreendedor.
  • 10
    Mariana é médica/cantora/professora de capoeira.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2021
  • Aceito
    04 Jul 2022
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