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Neofascismo, neoliberalismo e direito do trabalho no governo bolsonaro

Neo-fascism, neoliberalism and labor law in bolsonaro’s government

Resumo

Este artigo investiga a relação entre Direito do Trabalho, Neoliberalismo e Neofascismo no governo Jair Bolsonaro. São mobilizadas formulações teóricas sobre autoritarismo e neofascismo no contexto contemporâneo buscando compreender as implicações do trabalho e do Direito do Trabalho nesse enredo. Há identificação de elementos neofascistas na conjuntura brasileira a partir da análise das políticas para o trabalho e dos discursos emulados pelo Presidente da República sobre o trabalho.

Palavras-chave:
Neofascismo; Neoliberalismo; Direito do Trabalho

Abstract

This article investigates the relationship between Labor Law, Neoliberalism and Neofascism in the Jair Bolsonaro government. Theoretical formulations on authoritarianism and neo-fascism are mobilized in the contemporary context, seeking to understand the implications of labor and Labor Law in this scenario. There is identification of neo-fascist elements in the Brazilian conjuncture based on the analysis of policies for labor and the speeches about labor emulated by the President of the Republic.

Keywords:
Neo-fascism; Neoliberalism; Labor Law

INTRODUÇÃO

Antes da campanha presidencial de 2018, o Brasil já passava por um processo de intensificação das políticas neoliberais, especialmente a partir do golpe parlamentar que conduziu Michel Temer à Presidência da República. Em matéria trabalhista foram editadas as Leis n. 13.429/2017 e 13.467/2017, que, em seu conjunto, constituíram a Reforma Trabalhista e representaram uma retração significativa dos direitos trabalhistas no Brasil, enquanto vetor de afirmação de uma regulação privada do trabalho em detrimento da regulação pública (KREIN, 2018KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo soc. [online]. 2018, vol.30, n.1, pp.77-104. ISSN 1809-4554. http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.138082.
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).

Nesse contexto de desmonte do social, Jair Bolsonaro, considerado até então um político de segundo escalão no cenário federal, ganhou popularidade e foi eleito Presidente da República a partir de um discurso que mobilizava o descontentamento social traduzido no antipetismo e no apelo do combate à corrupção, centrado numa semântica de combate ao “inimigo” constituída pela operação Lava-jato.

Esse mesmo discurso mesclava apelos ao tradicionalismo (entendido como saudosismo em relação a um passado conservador representado pela Ditadura Militar e pela moralidade da família brasileira) e a promessa de adoção de uma agenda econômica neoliberal, em flerte aberto com os interesses do grande capital, mas também ancorado na mobilização do discurso do sujeito-empresa ou do sujeito-empreendedor, em oposição a uma perspectiva de proteção dos vulneráveis e suas representações coletivas, ridicularizados como vitimistas e, também, apontados como “inimigos” em diversas falas do presidente (CAVALCANTE, 2021CAVALCANTE, Sávio Machado. 2021. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, São Leopoldo, 19(1): 4-17. DOI: 10.4013/cld.2021.191.01
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).

Tal plataforma política, em que pese o desgaste da popularidade do presidente em face da crise econômica e da pandemia, acomoda e é acomodada por um projeto específico e contundente para a regulação do trabalho no país, o qual envolve o regresso das dimensões protetivas, o esvaziamento da noção de trabalho com direitos, um pacote de condutas antissindicais e a negação dos conflitos e das dimensões classistas da questão social (BOITO, 2021).

É diante desse cenário que o presente artigo pretende discutir a relação entre Neofascismo, Neoliberalismo e Direito do Trabalho no governo Jair Bolsonaro, mobilizando, para tanto, as formulações teóricas sobre autoritarismo e neofascismo no contexto contemporâneo e buscando compreender as implicações do trabalho e do Direito do Trabalho nesse enredo. O objetivo, portanto, é contribuir com a discussão a respeito dos elementos neofascistas presentes na conjuntura brasileira a partir da análise das políticas para o trabalho e dos discursos emulados pelo Presidente da República sobre o trabalho.

Em relação à metodologia, partiu-se, ao lado da revisão bibliográfica, do levantamento das normas trabalhistas editadas no período, às quais somou-se a análise do discurso de justificação pública que as amparou politicamente. A verificação normativa permitiu a elaboração de uma tabela síntese das medidas de regulação do trabalho editadas no período. Para acompanhar o discurso foi feita análise de tweets (mensagem publicada na rede social Twitter) do presidente Jair Bolsonaro em matéria trabalhista a fim de demonstrar como as formulações teóricas efetivamente se aproximam da retórica bolsonarista.

Embora se reconheça a existência de limitação nas manifestações realizadas através do Twitter, seja em razão da quantidade de caracteres máximos de um tweet - apenas 140 -, que não permite um maior aprofundamento dos argumentos, seja em razão do alcance limitado de público por essa rede social, a opção por este meio justifica-se pela crítica contínua do presidente aos meios de comunicação tradicionais, os rechaçando em diversas ocasiões, e pela sua manifesta preferência por se pronunciar sobre assuntos de interesse nacional diretamente em seu perfil particular, bem como pela relevância das redes sociais para a ascensão e sustentação do fenômeno do bolsonarismo.

Os tweets citados foram resultado da pesquisa dos termos “Bolsonaro” e “twitter” combinados com as seguintes palavras-chave em sites de busca: trabalho, trabalhador, desemprego, atividade essencial, sindicato e normas de saúde. Os parâmetros de busca foram considerados a partir dos eixos temáticos das principais normas jurídicas trabalhistas do período. O período abarcado pelas mensagens vai de 01.05.2018 até 12.04.2021.

Assim, colhidos esses três subsídios, procedeu-se à análise sobre Neofascismo, Neoliberalismo e Direito do Trabalho no governo Jair Bolsonaro, cuja apresentação está estruturada a partir dessa introdução e de mais três tópicos: 1) Neoliberalismo: de uma política antidemocrática a uma política neofascista?; 2) “Brasil acima de tudo, deus acima de todos”: medidas trabalhistas implementadas por Jair Bolsonaro; 3) Bolsonarismo e neofascismo: reflexões a partir da categoria trabalho. Por fim, apresentaremos nossas considerações finais.

1. NEOLIBERALISMO: DE UMA POLÍTICA ANTIDEMOCRÁTICA A UMA POLÍTICA NEOFASCISTA?

Grupos de extrema direta ascenderam ao poder em diferentes democracias liberais nos últimos anos para surpresa de todos, inclusive deles próprios, após passarem um período escondidos (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.). A complexidade da conjuntura atual perpassa por duas questões centrais: a crença incondicionada nos valores e instituições ocidentais e a aglomeração de elementos aparentemente contraditórios do neoliberalismo e do conservadorismo (BROWN, 2019). São mobilizadas conjuntamente questões como “favorecimento do capital, repressão do trabalho, demonização do Estado social e do político, ataque às igualdades e exaltação da liberdade” (BROWN, 2019, p. 10) e “nacionalismo, imposição da moralidade tradicional, antielitismo populista e demandas por soluções estatais para problemas econômicos e sociais” (BROWN, 2019, p. 10).

Para demonstrar que a contradição entre os elementos do neoliberalismo e do conservadorismo é apenas aparente, Wendy Brown (2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.) retoma o pensamento de Friedrich Hayek, constatando que, para ele, todas as concepções em torno do social, como justiça social e sociedade, são falsas e devem ser desconsideradas, já que, em última instância, serviriam de fundamento para intervenção estatal nos mercados e nos códigos morais, o que seria inadmissível. Para o economista, o mercado e a moral, transmitidos pela tradição e não pela política, seriam o verdadeiro fundamento da liberdade, da ordem e do desenvolvimento e somente poderiam funcionar corretamente quando se impede a intervenção estatal (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.).

Ainda segundo Hayek, essa conjunção da moral e do mercado revelaria, inclusive, a verdadeira natureza da justiça, que se referiria a princípios corretos a serem aplicados universalmente a todos, independentemente da repercussão concreta (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.). Assim, preconiza Hayek que a “verdadeira justiça exige que as regras do jogo sejam conhecidas e aplicadas universalmente, mas todo jogo tem vencedores e perdedores, e a civilização não pode evoluir sem deixar para trás os efeitos da fraqueza e do fracasso, bem como o acaso” (apud BROWN, 2019, p. 47).

Para garantir o desenvolvimento civilizatório, que somente seria alcançado através do mercado e da moral, a sociedade precisaria, segundo a gênese do pensamento neoliberal, ser desmantelada, o que é feito em diferentes frentes: epistemologicamente (negação da existência da sociedade e recusa à pauta de redução das desigualdades sociais), politicamente (desmonte e privatização do Estado social), legalmente (reivindicação da liberdade como direito absoluto apto a fazer frente a igualdade e às proteções de cunho ambiental, securitário, laboral e consumidor), eticamente (objeção à justiça social através da autoridade dos valores tradicionais) e culturalmente (empreendedorização do ser humano) (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.).

Retomamos a crítica de Brown ao neoliberalismo, visto que revela que a gênese de tal racionalidade consiste no ataque direto à democracia, tal como compreendida no contexto atual do capitalismo. A autora (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.), em sua articulação, busca demonstrar que o pensamento neoliberal também apresentou uma visão de desconfiança do político, tendo se preocupado em conter o espaço político, separando-o da soberania e da democracia. Essa perspectiva deu origem a caminhos tecnocráticos, economicistas e privatistas. Em concepções mais radicais, várias vertentes neoliberais chegaram a defender “uma ‘ditadura liberal’ como um regime de transição legítimo da ‘democracia totalitária’ (a social-democracia) para a liberdade” (BROWN, 2019, p. 76).

Embora a crítica da democracia e do político no pensamento neoliberal seja ocultada por meio de uma suposta defesa da liberdade individual, base da redução do Estado social e da limitação da participação popular (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.), a observação dessas diversas matizes deixa claro que não há composição harmônica possível entre neoliberalismo e democracia. Os neoliberais, de acordo com Brown (2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 79), “se contentam com o voto e as liberdades pessoais como partes que constituem a extensão da democracia e, seja como violação ou norma, todos endossam o liberalismo autoritário - o poder político não democrático que subjaz às liberdades privadas”.

Dessa forma, “mais que um projeto de ampliação da esfera da competição e valoração de mercado” (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 24), o neoliberalismo “é um projeto político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático nos Estados-nação” (BROWN, 2019, p. 24). Assim, enquanto o político e a democracia são atacados pelo neoliberalismo, forças políticas antidemocráticas ganharam espaço a partir da desigualdade e insegurança geradas pelo próprio receituário neoliberal (BROWN, 2019).

Diante desse quadro, Wendy Brown(2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.) defende que a conjuntura atual teria particularidades, não se confundindo com outras formas de autoritarismos, fascismos, despotismos, tiranias e conservadorismos tradicionais experimentados na história, de modo que não haveria que se falar, por exemplo, em retorno dos anos 30. Para Brown, portanto, as novas ameaças democráticas têm contornos próprios, que, antes de conduzir-nos de volta ao passado fascista, se colocaram como desafios igualmente ameaçadores à democracia.

A discussão sobre um eventual retorno ao fascismo histórico ou uma possível renovação daquela experiência a partir das peculiaridades do contexto atual, no qual o neoliberalismo se apresenta com importância, tem feito parte dos debates de cientistas políticos, historiadores e sociólogos. O debate, travado de forma ampla, em razão da ascensão política de lideranças de extrema direita implicadas em discursos que mobilizam abertamente elementos presentes no fascismo original ou seus correlatos no contexto contemporâneo, adquiriu relevância singular no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro e da sequência de atos e pronunciamentos públicos que se aproximam, de modo direto ou velado, dessa vertente.

De fato, há, entre os pesquisadores do fascismo, posições restritivas que entendem ser irrepetível o fenômeno havido na Itália em 1930 e, portanto, que propugnam pela impossibilidade de observá-lo em cenários tão diversos como o do Brasil de 2021, como é o caso de Gentile (apudMATTOS, 2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.).

Autores como Enzo Traverso (2019TRAVERSO, E. (2019). Do Fascismo ao Pós-Fascismo. Revista De Estudos E Pesquisas Sobre As Américas, 13(2), 12-44.) utilizarão a terminologia pós-fascismo, por considerar que “o conceito de fascismo parece ser inapropriado e indispensável para se compreender esta nova realidade”. A perspectiva do autor é a de que há movimentos que apresentam tais características sem reivindicar abertamente a continuidade da tradição fascista, como fazem os movimentos classificados como neofascistas. Exatamente o que caracterizaria esses outros movimentos seria o resgate de elementos do fascismo, porém permeado por contradições e antinomias com as filosofias políticas que embasaram o fascismo originalmente (TRAVERSO, 2019TRAVERSO, E. (2019). Do Fascismo ao Pós-Fascismo. Revista De Estudos E Pesquisas Sobre As Américas, 13(2), 12-44.).

Virgínia Fontes (2019FONTES, Virgínia. O núcleo central do governo bolsonaro: o proto-fascismo. Esquerda online 8 jan 2019. Disponível em http://www.grupodetrabalhoeorientacao.com.br/Virginia_Fontes/blogs-sites/proto-fascismo.pdf Acesso em 10 ago 2021.
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) trabalha com o conceito de proto-fascismo, entendendo que há tendências fortes na direção do fascismo na conjuntura contemporânea, mas que tal apresentação do fenômeno se diferencia do fascismo original em razão de alguns deslocamentos de elementos centrais, tais como o extremo liberalismo econômico atual, contraposto ao corporativismo clássico fascista, que se soma ao permanente elemento da aversão pela participação das maiorias (democracia) e pela igualdade. A autora entende que a aposição do pré-fixo “pós”, já abusivamente manejado para designar fenômenos como pós-modernismo e afins, não daria conta de contemplar as peculiaridades desse fenômeno, optando então pelo termo proto-fascismo, em detrimento da expressão pós-fascismo.

Por outro lado, a partir de uma discussão marxista sobre o conceito de fascismo e sem desprezar a historicidade dos fenômenos sociais, Armando Boito Jr. (2020) busca indicar elementos centrais da experiência fascista italiana a fim de compreender eventos semelhantes que passam a ser retomados em momentos históricos distintos, de modo a poder qualificá-los, a partir dos eixos centrais, como neofascistas.

Nessa mesma perspectiva, Graça Druck e Luiz Filgueiras (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020.) entendem que o fascismo histórico não se repete no presente sem modificações importantes, sobretudo considerando o caráter periférico da experiência brasileira. Entretanto, consideram que o fascismo histórico e as experiências observadas no presente consistem em manifestações de uma mesma “família” e mobilizam o conceito de neofascismo para se referir a certos elementos da conjuntura política brasileira pós-2013, partindo da distinção entre os elementos fascistas presentes em condutas individuais, em movimentos políticos, no governo e no regime. Para os autores, o governo de Jair Bolsonaro, eleito como um líder de extrema-direita, sofre um processo de fascistização que se acentua no contexto pandêmico.

Badaró Mattos(2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.), com cautela, também entende, à luz das contribuições do historiador português Manuel Lott, que há na análise dos regimes políticos formas híbridas e transicionais nas quais dimensões democráticas se encolhem, dando lugar a dimensões autoritárias. Entretanto, para o autor, o recurso à categoria do neofascismo pode ser útil para pensar uma dimensão (entre outras) da realidade brasileira. Mattos considera que um governo com fortes elementos neofascistas não necessariamente daria ensejo a um regime neofascista, mas defende que a compreensão e a identificação desses elementos são chaves de análise relevantes a respeito das corrosões da nossa democracia.

Nessa esteira, Mattos (2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) recupera a contribuição de Lazzarato, para quem “o novo fascismo é a outra face do neoliberalismo”, para assentar que, embora no fascismo histórico estivesse presente uma ideologia profundamente antiliberal, os discursos dos governos influenciados por neofascistas oscilam entre a crítica meramente retórica até a defesa ostensiva do neoliberalismo e seu receituário.

Para Boito (2021), o fascismo se manifesta enquanto forma de organização do aparelho e do poder de Estado, apresentando-se como uma variante da forma ditatorial do Estado capitalista, mas é também a ideologia que justifica essa ditadura e o movimento que, transformado em coeso por ela, pode lutar para implantar tal tipo de ditadura.

Demian Melo(2020MELO, Demian. O bolsonarismo como fascismo do Século XXI. In: REBUÁ, E.; COSTA, R.; GOMES, R.; CHABALGOITY, D.. (Org.). (Neo)fascismo e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. 1ed.Rio de Janeiro: Mórula, 2020.) explica que, a partir da análise dos componentes dessa forma ditatorial e desse movimento, existem estágios para esse processo, ressalvando que não necessariamente os movimentos fascistas/neofascistas percorrerão todos os estágios, se convertendo em ditaduras.

Boito (2021) considera relevante “tratar-se de um movimento de massa de uma camada intermediária e apresenta, portanto, elementos ideológicos e interesses econômicos de curto prazo que podem destoar da ideologia e dos interesses econômicos imediatos da burguesia”. A eclosão desse movimento vincula-se, para o autor, à existência de uma ambiência de crise política e, também, da anterior fragilização dos movimentos de trabalhadores.

Com base nesses elementos, a identidade neofascista do bolsonarismo é invocada a partir da existência de uma crise política, de derrotas anteriores do grupo que se apresentava como representação trabalhadora no país, o que inclui a materialização das próprias reformas laborais, bem como da deposição de lideranças anteriormente comprometidas com tais interesses classistas, e da difusão, por meio das redes sociais, de um movimento, amalgamado entre estratos altos da burguesia, mas também entre camadas médias e camadas baixas, mobilizados por discursos de revanchismo, ressentimento, tradicionalismo, negacionismo - conjunto de emoções que Paxton denomina de paixões mobilizadoras que colocam o fascismo como alternativa política (apudMELO, 2019MELO, Demian. Bolsonaro, fascismo e neofascismo. In: Marx e o Marxismo 2019: Marxismo sem tabus - Enfrentando opressões, 2019, Niterói. Anais do Marx e o Marxismo 2019: Marxismo sem tabus - Enfrentando opressões, 2019. v. 1. p. 1-11.) - e militarização encetados em torno da figura de um líder que se apresenta como manifestação mítica. Boito (2021, p. 8) explica:

O neofascismo surgiu no século XXI e, no caso brasileiro, na semiperiferia do sistema imperialista. É um movimento reacionário de massa predominantemente de alta classe média, e não pequeno-burguês; voltado contra o movimento democrático e popular, e não contra um movimento socialista e comunista de massa que não existe no Brasil atual; mobiliza uma crítica conservadora, de classe média, à corrupção e à política democrática, e chegou ao governo cooptado pelo capital financeiro internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele integrada, e não por uma burguesia nacional expansionista que, de fato, não existe no Brasil.

A conjunção desses fatores, entre os quais Boito (2021) considera também a característica de cooptação pelo capital financeiro internacional, apresentará como elemento do neofascismo a articulação central com as ideias neoliberais, que se desdobram em um processo de subjetivação das massas que se engajam no neofascismo, tal como posto por Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) e, também, pela adesão a uma agenda político econômica de desmonte da proteção social, de austeridade e de desproteção ao trabalho, fortemente associada ao antissindicalismo.

A associação entre o neoliberalismo e o neofascismo, no contexto brasileiro, é bem articulada por Druck e Filgueiras (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020., s/p):

Desse modo, estabelece-se cada vez mais uma relação simbiótica entre neoliberalismo-capital financeiro e o neofascismo, por duas razões. De um lado, o capitalismo financeirizado neoliberal, ao não conseguir incorporar em seu movimento as grandes massas da população, tem dificuldades crescentes de conviver com a participação política dos “de baixo” e, por consequência, com o Estado de Direito e suas Instituições, ou seja, com a democracia formal criada pelas revoluções burguesas. A permanente precarização das condições de vida e trabalho da maioria da população não é mais apenas produto de uma situação extraordinária que aparece em momentos de crise; a “normalização” dessa nova situação exige, cada vez mais, um Estado de Exceção: a exceção se transforma em norma. De outro lado, o capitalismo financeirizado neoliberal, conforme já visto anteriormente, cria e reproduz as circunstâncias e o ambiente econômico-social no interior do qual surge e se difunde o autoritarismo e o neofascismo.

Compreendendo que a análise, sobretudo empreendida por Boito (2020; 2021), Mattos (2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) e Druck & Filgueiras (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020.) faz a opção por perceber, nesse resgate do passado, um processo que se combina com uma série de estratégias e movimentos típicos do fascismo, optaremos, nesse texto, por investigar o contexto brasileiro a partir dessa chave.

É importante firmar que a categoria neofascismo, como caracterização do regime político, do governo ou de elementos de um determinado governo desperta divergências teóricas. Não se pode deixar de mencionar, contudo, que embora o manejo da referida categoria seja considerado com mais reserva por alguns autores e de forma mais assertiva por outros, sobretudo no caso brasileiro observou-se, com a pandemia, um deslocamento consistente desses entendimentos, tendo em vista que os atos do presidente Jair Bolsonaro - incitação ao contágio, negacionismo científico, invocação do sacrifício em prol da economia e do nacionalismo, política de morte - revelaram não apenas um flerte com elementos neofascistas, sobretudo em sua matiz neoliberal, como também, e impressionantemente, o manejo de elementos do fascismo histórico, na observação atualizada de Mattos (2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) e de Cavalcante (2021CAVALCANTE, Sávio Machado. 2021. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, São Leopoldo, 19(1): 4-17. DOI: 10.4013/cld.2021.191.01
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).

Mapeado o debate, de modo a demonstrar sua consistência, e sem pretensão de esgotar categoricamente um enquadramento, passamos à análise dos elementos neofascistas presentes nos discursos e nas políticas para o trabalho como forma de oferecer uma contribuição para a composição desse panorama de dimensões neofascistas no Brasil de 2021. Para tanto, percorreremos, no próximo tópico, as medidas efetivadas pelo Presidente da República em matéria de Direito do Trabalho.

2. “BRASIL ACIMA DE TUDO, DEUS ACIMA DE TODOS!”: MEDIDAS TRABALHISTAS IMPLEMENTADAS POR JAIR BOLSONARO

Em 28 de outubro de 2018, Jair Bolsonaro, até então do Partido Social Liberal (PSL), foi eleito presidente do Brasil. Em sua campanha, mobilizou-se a combinação de elementos conservadores e neoliberais, caracterizadores da ascensão de grupos de extrema direta ao poder nas democracias liberais nos últimos anos.

Com uma proposta de plano de governo que alinhou elementos conservadores, como a defesa do que considera valores da nação e da família brasileira, a elementos neoliberais, como a apresentação da liberdade como direito absoluto orientador das relações sociais, Jair Bolsonaro foi eleito para a chefia do poder executivo federal, mobilizando pontos que caracterizam a ascensão da política antidemocrática no ocidente de uma forma geral, bem como contornos centrais do trabalho sob o fascismo e o neofascismo.

Considerando os atos governamentais praticados até 2021, observa-se que se aprofundou o desmonte dos direitos trabalhistas, tanto através da ampliação da flexibilização na legislação, quanto por meio do enfraquecimento das ações fiscalizatórias do Estado. Ainda, na chave da fragilização da atuação sindical, que reverbera necessariamente sobre o grau de proteção social ao trabalho, o governo federal foi além da defesa do fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, aspecto que já constara da Reforma Trabalhista, e impôs, ainda que de forma temporária e oportunista (porque no contexto da deliberação sobre a reforma da previdência), novos contornos limitadores da forma de recolhimento da contribuição. A supressão do diálogo social por meio do trato das matérias trabalhistas por medidas provisória atinge seu ápice no contexto da pandemia, em que a representação sindical é excluída até mesmo dos acordos para redução de trabalho e jornada (MP nº 936/2020).

Nesse processo, os discursos presidenciais e ministeriais efetivamente encontraram eco numa produção normativa no bojo da qual há uma reafirmação do desprezo pelo Direito do Trabalho enquanto eixo de proteção coletiva, sendo apresentado o ramo juslaboral como entrave à economia nacional. Nesse sentido, articularam-se discursivamente a mobilização das cores da bandeira nacional em prol de figuras contratuais precárias, a naturalização do lugar precário da classe trabalhadora, com a defesa da aproximação dos trabalhadores formais da realidade informal, a ênfase à atuação do sujeito-empresa e ao auto sacrifício, além do antissindicalismo. Do ponto de vista normativo, a persistente, desmedida e não dialogada flexibilização da legislação do trabalho materializa o discurso.

O advento da pandemia do novo coronavírus, inclusive, prestou-se a uma escalada dessa agenda. Em um contexto cuja principal medida de contenção era o isolamento social e no qual a sociedade brasileira demandava um conjunto de medidas que protegesse a população tanto dos impactos sanitários quanto econômicos, o governo optou pelo recrudescimento das políticas neoliberais em relação ao trabalho. Defendeu a manutenção da classe trabalhadora nas ruas e se colocou contra os lockdowns, ainda que insuficientemente realizados, por determinação dos governos estaduais e municipais. A afirmação renova assim o descrédito nas instituições sociais de solidariedade e resgata a noção de trabalho como sacrifício e até como patriotismo, curiosamente imputando a crueldade e a fome dos que não podem trabalhar aos defensores das medidas de intervenção estatal.

Para oferecer um panorama geral da atuação do governo contra a tela de proteção social, antes e durante a pandemia da COVID-19, apresenta-se uma tabela ilustrativa das principais medidas editadas no período. Na primeira coluna encontram-se listadas as medidas adotadas e na segunda coluna uma breve síntese do seu conteúdo:

Medida adotada Breve síntese Medida Provisória n. 870/2019 (convertida na Lei n. 13.884/2019) Extinção do Ministério do Trabalho, que passou a integrar estruturalmente o Ministério da Economia na qualidade de Secretaria Especial da Previdência e Trabalho. As competências foram distribuídas entre o Ministério da Justiça, o Ministério da Cidadania e o Ministério da Economia, com especial concentração neste último (BRASIL, 2019e). Posteriormente foi convertida na Lei n. 13.884/2019 (BRASIL, 2019c). Redução do orçamento destinado à fiscalização do trabalho Na comparação com a média dos anos anteriores, o valor destinado para as fiscalizações e o combate ao trabalho análogo ao de escravo caiu quase pela metade, de R$55,6 milhões para R$ 29,3 milhões no governo Jair Bolsonaro (RESENDE; BRANT, 2020). Revisão das Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho Além da revogação da NR 2 (inspeção prévia), foram alteradas as NRs 1 (disposições gerais), 3 (embargo e interdição), 5 (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), 7 (Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional), 9 (Programa de prevenção de riscos ambientais), 10 (segurança em instalações e serviços em eletricidade), 12 (segurança no trabalho em máquinas e equipamentos), 13 (caldeiras, vasos de pressão, tubulações e tanques metálicos de armazenamento), 15 (atividades e operações insalubres), 16 (atividades e operações perigosas), 18 (segurança e saúde no trabalho na indústria da construção), 20 (segurança e saúde no trabalho com inflamáveis e combustíveis), 22 (segurança e saúde ocupacional na mineração), 24 (condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho), 28 (fiscalização e penalidades), 32 (segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde), 33 (segurança e saúde nos trabalhos em espaços confinados), 34 (condições e meio de trabalho na indústria da construção, reparação e desmonte naval), 35 (trabalho em altura) e 37 (segurança e saúde em plataformas de petróleo) (BRASIL, 2021d). Medida Provisória n. 873/19 Estabeleceu que a contribuição sindical precisaria ser autorizada de forma prévia, voluntária, individual e expressa por escrito pelo trabalhador, sendo considerada nula cláusula de norma coletiva que fixasse a obrigatoriedade. Além disso, vetou o desconto em folha de pagamento e determinou que o recolhimento fosse feito exclusivamente mediante boleto bancário ou meio eletrônico equivalente, a ser enviado para residência do trabalhador ou, em caso de impossibilidade, à empresa (BRASIL, 2019f). A Medida provisória caducou sem ser convertida em Lei. Medida Provisória n. 881/2019 (convertida na Lei n. 13.874/2019) Pretendeu estabelecer uma Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e garantias de livre mercado. Em matéria trabalhista, a redação original da medida trouxe a dispensa de autorização prévia dos órgãos estatais para empresas de baixo risco (BRASIL, 2019g). Durante o seu processo de conversão na Lei n. 13.874/2019 foram acrescentadas novas regras trabalhistas, como a ampliação do prazo para anotação da CTPS, permissão da adoção do registro de ponto por exceção, controle de jornada obrigatório para estabelecimentos com mais de 20 empregados (anteriormente o limite era de 10 trabalhadores), facultatividade da pré-assinalação do repouso e possibilidade de abertura de bancos aos sábados (BRASIL, 2019d). Medida Provisória n. 905/2019 Instituiu o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo para as pessoas entre 18 e 29 anos de idade, modalidade contratual em que, além da desoneração de inúmeras parcelas sobre a folha de pagamento, como a contribuição previdenciária, foi realizada a retirada de direitos trabalhistas, como a redução da indenização de FGTS para 20% e da alíquota mensal para 2%. Além disso, foram efetuadas outras modificações: expansão da autorização do trabalho aos domingos e feriados, ampliação da jornada de trabalho de parte dos empregados do setor bancário, critério da dupla visita para lavratura de auto de infração, aplicação do índice da caderneta de poupança aos débitos trabalhistas, dispensa da participação sindical na fixação da PLR e revogação da obrigatoriedade de inspeção prévia de novos empreendimentos (BRASIL, 2019h). Auxílio emergencial Após intensa pressão política, foi criado um auxílio emergencial para trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados no valor de R$ 600,00, salvo no caso de mulher responsável por prover financeiramente a casa, que faz jus ao valor de R$ 1.200,00 (DUTRA; LIMA, 2020). Em janeiro de 2021, entretanto, o auxílio emergencial foi suspenso (LIMA; GERBELLI, 2021), sendo retomado apenas em abril de 2021 sob novos parâmetros: quatro parcelas no valor de R$ 150,00 para famílias compostas por apenas uma pessoa, R$ 250,00 para famílias com mais de uma pessoa e R$ 375,00 para famílias que possuem dependente menor de dezoito anos e a mulher é responsável financeiramente (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2021). Medida Provisória n. 927/2020 Estabeleceu uma série de medidas que poderiam ser adotadas pelos empregadores durante a pandemia, como teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, banco de horas, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, diferimento do recolhimento do FGTS, além do polêmico direcionamento do trabalhador para qualificação sem o pagamento de salário. Também trouxe: possibilidade de celebração de acordo individual com preponderância sobre norma coletiva; presunção de natureza não ocupacional da contaminação pelo coronavírus; e, atividade meramente orientadora dos Auditores Fiscais do Trabalho pelo prazo de 180 dias, estas duas últimas posteriormente consideradas inconstitucionais pelo STF (BRASIL, 2020c) (BRASIL, 2020g). Importante registrar que essa MP previa originalmente suspensão do contrato de trabalho, sem salário, por até 4 meses, para cursos de qualificação virtuais, estabelecidos por acordo individual entre empregado e empregador, que poderiam prever ajuda de custo, desvinculada de qualquer piso mínimo, e sem garantia do emprego. Entretanto, após a grave repercussão negativa da medida, no mesmo dia da sua edição, uma nova Medida Provisória foi editada - a MP nº 928/2020 - que, além de afastar a incidência de diversos dispositivos relacionados à transparência da gestão pública e ao acesso à informação, declarou revogado o mencionado artigo da MP nº 927/2020. Medida Provisória n. 936/2020 (convertida na Lei n. 14.020/2020) Instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, segundo o qual o empregador poderia reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho e o salário ou suspender temporariamente o contrato de trabalho, mediante acordo individual, ficando o Governo Federal responsável pelo pagamento de um benefício compensatório (BRASIL, 2020d). Convertida na Lei n. 14.020/2020, que, dentre outras modificações, concedeu ao executivo a possibilidade de prorrogação do programa (BRASIL, 2020a). Medida Provisória n. 945/2020 (convertida na Lei n. 14.047/2020) Determinou que trabalhadores portuários com sintomas relacionados à Covid-19, que morem com pessoa diagnosticada com a doença ou integrante grupo de risco não podem ser escalados pelo Órgão Gestor de Mão de Obra, fazendo jus à indenização no valor correspondente à metade da média mensal auferida entre 01.10.2019 e 31.03.2020 (BRASIL, 2020e). Posteriormente convertida na Lei n. 14.047/2020, que ampliou o valor da indenização para 70% do valor mensal recebido pelo trabalhador entre 01.04.2019 e 31.03.2020, o qual não pode ser inferior ao salário-mínimo caso o trabalhador possua vínculo apenas com o OGMO (BRASIL, 2020b). Medida Provisória n. 955/2020 Revogação da Medida Provisória n. 905/2019 (BRASIL, 2020f). Medida Provisória n. 1.045/2021 Instituiu o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, segundo o qual o empregador poderia reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho e o salário ou suspender temporariamente o contrato de trabalho, mediante acordo individual, ficando o Governo Federal responsável pelo pagamento de um benefício compensatório (BRASIL, 2021a). O PL de conversão dessa MP em Lei, que acrescentou à medida três programas de “geração de emprego” pautados na degradação das condições de trabalho (PRIORE, REQUIP e trabalho voluntário), acabou sendo rejeitado no Senado Federal (KREIN, DUTRA, 2021) Medida Provisória n. 1.046/2021 Renovou uma série de medidas que podem ser adotadas pelos empregadores durante a pandemia, já vistas na MP 927: teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados (inclusive religiosos), banco de horas, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho e diferimento do recolhimento do FGTS (BRASIL, 2021b). Medida Provisória n. 1.058/2021 Recriação do Ministério do Trabalho e Previdência (BRASIL, 2021c).

3. BOLSONARISMO E NEOFASCISMO: REFLEXÕES A PARTIR DA CATEGORIA TRABALHO

Antes do avanço da retórica neoliberal e da sua crítica à promessa de justiça social dentro do capitalismo, considerada “iconoclasta nas décadas do pós-guerra” (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 51), o fim dos regimes fascistas inaugurou um período mais democrático das relações de trabalho na Europa, criando um Direito do Trabalho Capitalista pautado pelo constitucionalismo social, pelo reconhecimento do trabalhador como sujeito de direitos1 1 Sobre os problemas em torno da categoria sujeito de direito, conferir: PIRES, 2019. , pelo espaço para voz coletiva da classe trabalhadora, tudo isso atrelado diretamente à cidadania e à própria ideia de democracia (REY, GUAMÁN, 2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.).

Esse avanço vislumbrado nos países do capitalismo central, especialmente na Europa, não pode, entretanto, ser incorporado sem mediações à realidade brasileira, que não passou pela mesma trajetória histórica. Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi inaugurada, ao menos no plano normativo2 2 Diz-se no plano normativo porque, diferentemente do que ocorreu nos países do capitalismo central, o Brasil jamais chegou a vivenciar, na prática, a plenitude de uma tela de proteção ao trabalho. Sobre o assunto, ver o tópico 2, intitulado “A precarização do trabalho no brasil: entre informalidade, contratações precárias e o desmonte do estatuto do emprego” em: DUTRA, LIMA, 2020. , uma regulamentação do trabalho pautada nas ideias de democracia e cidadania, com expansão dos direitos individuais trabalhistas, inclusive mediante a inserção de categorias historicamente excluídas, e com a valorização dos sindicatos, especialmente através da exclusão da intervenção estatal nessas entidades, ainda que com a manutenção de alguns institutos de caráter autoritário (DUTRA, 2020DUTRA, Renata Queiroz; LIMA, Renata Santana. Relações de Trabalho, Reformas Neoliberais e a Pandemia do Covid-19: as Políticas para o Trabalho no Epicentro da Estratégia de Saúde Coletiva. RDP, Brasília, Volume 17, n. 94, 465-492, jul./ago. 2020.).

De qualquer modo, o espírito em torno das relações de trabalho advindo após o fim dos regimes fascistas tem como texto mais representativo a Declaração referente aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho (Declaração de Filadélfia), que incorpora uma tentativa de conciliação entre capital e trabalho, subordinando a organização econômica à justiça social (SUPIOT, 2014SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 22. https://doi.org/10.21057/10.21057/repamv13n2.2019.26801
https://doi.org/10.21057/10.21057/repamv...
, p. 22). É o que anos mais tarde o Brasil vai encontrar no texto da Constituição Federal de 1988: a manutenção do capitalismo a partir dos postulados da justiça social (SOUTO MAIOR, 2017SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do Direito do trabalho no Brasil: Curso de Direito do Trabalho - volume I - Parte II. 1. ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 355., p. 355).

Essa perspectiva social, entretanto, é combatida na medida em que o pensamento neoliberal avança a partir dos anos 1970. O avanço dessa agenda atravessa a própria promulgação e vigência da Constituição Federal de 1988. São adotados caminhos diversos para o desmonte da vertente protetiva do Direito do Trabalho, todos com consequências semelhantes: intensa mercantilização do trabalho, exclusão da questão do debate público, invisibilização do trabalho, eliminação das conquistas da classe trabalhadora (REY, GUAMÁN, 2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.).

Joaquín Pérez Rey e Adoración Guamán (2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.) denominam esse fenômeno de Direito Neoliberal do Trabalho ou Direito do Trabalho do Inimigo. António Casimiro Ferreira (2011FERREIRA, António Casimiro. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 95, 2011.), por sua vez, irá chamá-lo de Direito do Trabalho de Exceção, afirmando que é um fenômeno que visa romper com “os pressupostos do direito do trabalho, eliminando o conflito enquanto elemento dinâmico das relações laborais e a proteção do trabalhador enquanto condição de liberdade” (FERREIRA, 2011FERREIRA, António Casimiro. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 95, 2011., p. 130). A conversão das ilegalidades trabalhistas (“direito subversivo do trabalho”) no próprio direito posto, para Ferreira, caracterizaria a exceção na política de austeridade. Druck e Filgueiras (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020.), pensando o processo continuado e banalizado de precarização do trabalho, instituída como regra, bem como na adesão das instituições e seus agentes políticos a esse projeto, entendem ser indissociável do neofascismo uma noção de Estado de Exceção, notadamente projetado para as relações sociais.

Em razão do afastamento do Estado de outras áreas com o avanço do neoliberalismo, como saúde, educação e seguridade social, acentua-se a dependência de homens e mulheres dos resultados do trabalho para a sobrevivência e, na prática, encontram situações cada vez mais instáveis, precárias ou sequer alcançam qualquer tipo de trabalho (ANTUNES, 2017ANTUNES, Ricardo. O privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2017.). Assim, ao mesmo tempo em que há uma redução dos postos de trabalho, aqueles que conseguem ocupar as vagas existentes “presenciam a corrosão dos seus direitos sociais e a erosão de suas conquistas históricas” (ANTUNES, 2017, p. 27), o que na realidade brasileira se soma à presença estrutural da informalidade.

Para garantir suas altas taxas de lucros, as empresas transferem “aos trabalhadores e trabalhadoras a pressão pela maximização do tempo, pelas altas taxas de produtividade, pela redução dos custos, como os relativos à força de trabalho, além de exigir a “flexibilização” crescente dos contratos de trabalho” (ANTUNES, 2017ANTUNES, Ricardo. O privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 33-34). Surgem e/ou se proliferam processos que intensificam a precarização estrutural do trabalho, como a terceirização, a pejotização, a uberização, a informalidade e os contratos atípicos de trabalho.

Aquilo que antes aparecia como um “ajuste” da estrutura do Direito do Trabalho às demandas oriundas da reestruturação produtiva pós-fordista e do novo padrão de acumulação flexível, passa a revestir-se de um discurso cada vez mais ostensivo de negação da própria existência e razão de ser do Direito do Trabalho, numa disputa de narrativa para reposicionar o lugar do trabalho na sociedade e as dinâmicas sociais que se desenham em torno dele, em um resgate agressivo das ideias do livre mercado.

Se havia nas formulações iniciais do neoliberalismo um apelo discreto por flexibilidade dos contratos de trabalho e modificação do papel dos sindicatos e das negociações coletivas, avança-se (ou melhor, regride-se) para um contexto em que as relações de trabalho sequer são reconhecidas enquanto tal, negando-se a existência do contrato de trabalho e as responsabilidades mínimas do contratante, e a hostilidade contra os sindicatos culmina na substituição dos pactos coletivos pelas avenças individuais.

Essa guinada não se faz sem uma base ideopolítica, que culpabiliza o Direito do Trabalho, ao tempo que reivindica a garantia do trabalho como meio de ganhar a vida, em detrimento do trabalho como mecanismo de inserção social, cidadania e centro organizador de direitos: se o neoliberalismo, como observaram Laval e Dardot (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), se ocupa da retórica correspondente a essa nova racionalidade, a escalada de negação das estruturas de proteção social e do discurso do trabalho com direitos não se fez sem uma mobilização significativa do novo repertório político da extrema direita, inclusive em seus apelos neofascistas.

Do contrário, como observam Druck e Filgueiras (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020.), uma combinação caótica de ideias embala o neofascismo brasileiro, oscilando entre a deslegitimação da política, das instituições democráticas e do Estado de Direito; o reacionarismo moral e cultural, de “valores individualistas (neoliberais) sintetizados no par empreendedorismo-meritocracia, avessos às políticas sociais e aos direitos trabalhistas”; o anticomunismo e “um nacionalismo vazio, próprio dos países periféricos dependentes (sem conteúdo, retórico e abstrato), expresso apenas na exposição e valorização de símbolos nacionais (bandeira e hino)”, associados ademais ao seletivo discurso anticorrupção.

Em postagem no twitter de março de 2019, por exemplo, Jair Bolsonaro comemorou a criação de novas vagas de trabalho com carteira assinada, ressaltando que isso havia sido possível em razão da visão liberal do seu governo que “passa confiança a economia real, e os empresários começam a contratar mais” (BOLSONARO, 2019bBOLSONARO, JAIR (@jairbolsonaro). 26 mar. 2019. 6:36. Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1110475632486596610. Acesso em: 02 set. 2021. (BOLSONARO, 2019b).
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). Na sequência deste fio, o presidente ainda ressaltou que seriam adotadas diversas medidas alinhadas ao receituário neoliberal, tais como “concessão de portos, aeroportos, ferrovias, rodovias e linhas de transmissão de energia”, “redução de mais de 21.000 cargos comissionados e gratificações e número de ministérios...”, “estudos para extinções de estatais e outros assuntos relativos em andamento para mais enxugamento da máquina pública”, tudo isso com o objetivo declarado de ganhar confiabilidade e atrair investimentos (BOLSONARO, 2019b). Essa declaração, vale ressaltar, apresenta-se em alinhamento com as declarações do economista Paulo Guedes, Ministro da Economia, e dissociadas de uma realidade de desemprego de 11,9% registrado na PNAD Contínua (2019).

Em outra oportunidade, o presidente utilizou o twitter para informar que modernizaria “as normas de saúde, simplificando, desburocratizando, dando agilidade ao processo de utilização de maquinários, atendimento à população e geração de empregos” (BOLSONARO, 2019cBOLSONARO, JAIR (@jairbolsonaro). 13 maio 2019. 10:04. Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1127922618374467584. Acesso em: 02 set. 2021. (BOLSONARO, 2019c).
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). A ideia, portanto, é da criação de postos de trabalho através da redução dos investimentos realizados pelos empregadores em saúde e segurança no ambiente de trabalho.

Aqui nos interessa especificamente destacar a conformação do trabalho sob o fascismo e como ela se apresenta nesse modelo intitulado neofascista, observando continuidades e peculiaridades das suas manifestações contemporâneas, de modo a contribuir, da perspectiva do Direito do Trabalho, com a compreensão desse fenômeno.

Joaquín Pérez Rey e Adoración Guamán (2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.)3 3 REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Op. Cit., p. 134-167 rememoram a relação entre trabalho e fascismo, destacando uma das perguntas contidas na famosa Escala F, de Theodor W. Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e Nevitt Sanford como representativa da questão: “Se as pessoas falassem menos e trabalhassem mais, todos estariam melhor” (REY, GUAMÁN, 2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167., p. 136). Trata-se da corporificação do trabalho enquanto ato de patriotismo, em que ninguém deve reclamar ou contestar, mas apenas contribuir com o seu melhor em favor do seu país (REY, GUAMÁN, 2020).

O trabalho não perdeu a sua centralidade nos regimes fascistas, mas houve uma tentativa de ocultamento do seu componente de classe por meio da eliminação da autonomia coletiva, com intensa perseguição à liberdade sindical e favorecimento ao corporativismo, especialmente através da criação de organizações sindicais vinculadas ao Estado (REY, GUAMÁN, 2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.). Além disso, investiu-se na naturalização da exploração da classe trabalhadora a partir do postulado de que cada um deve compreender o seu papel na sociedade (REY, GUAMÁN, 2020).

Uma outra questão que merece destaque diz respeito à mobilização, pelo regime franquista, da identidade do trabalhador com a nação: nem vermelha e nem azul, em referência às disputadas políticas no país na época, apenas espanhóis (REY, GUAMÁN, 2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.). A alegoria às cores da bandeira brasileira, como superação das divergências partidárias, e o manejo das mesmas cores como designação de programas voltados à contratação precária de trabalho (DUTRA, MARQUES, 2021DUTRA, Renata Queiroz ; MARQUES, F. W. A. . Revivendo a falsa promessa: a Medida Provisória nº 905 de 2019 e o contrato verde e amarelo. Revista AMATRA-V: vistos etc., v. 1 n.16, p. 93-102, 2021.) pelo bolsonarismo, em uma tentativa de negação do conflito de classes, não destoam dessa chave.

Jason Stanley (2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019.), analisando o nazifascismo, na experiência original da Alemanha e da Itália, a partir da perspectiva do trabalho, evidencia a articulação do trabalho como elemento de sacrifício em prol da nação e do conjunto de pessoas entendido como “nós” na perspectiva fascista. Ou seja, a construção do inimigo a partir do binômico “nós-eles” implicava atribuir a “eles” a inaptidão para o trabalho e para o comportamento social ético, o que justificaria a ideia de “cura” ou castigo pelo trabalho nos campos de concentração (“o trabalho liberta”). Interessante observar que a exaltação da nação não correspondia à exaltação do Estado ou de um papel redistributivo deste. Stanley (2019, p. 154) aponta, desde então, a ideia de que o suporte estatal privaria os indivíduos de sua independência e favoreceria minorias sem mérito.

A recorrente mobilização da noção de sacrifício como medida de valor parecer ser um ponto de encontro importante entre a construção do sujeito de valor pregado pelo fascismo e a ideologia neoliberal do vencedor ou do sujeito empresa, que dialoga com concepções políticas sobre o lugar do trabalho e da proteção social4 4 Ver também BROWN, 2018. .

A indiferença com os vulneráveis teve componentes raciais em alguns momentos históricos e é requentada pelos movimentos neofascistas xenófobos europeus, que manifestam rejeição a políticas que possam beneficiar imigrantes (STANLEY, 2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019.). Entretanto, essa construção do inimigo social, que se modifica no tempo e no espaço, pode apresentar outras variáveis. No conjunto de experiências, o trabalho apresenta-se como divisor entre o “cidadão de bem” e o criminoso ou marginal, mas evidentemente tal categorização é manipulada ao sabor dos interesses que presidem a política fascista, cuja dissociação discursiva em relação à realidade é um componente persistente.

Situação ilustrativa é a manifestação de Jair Bolsonaro às acusações de que havia defendido o trabalho infantil. Na oportunidade, o presidente afirmou em seu twitter que estava sendo atacado pela esquerda “por defender que nossos filhos sejam educados para desenvolver a cultura do trabalho desde cedo. Se eu estivesse defendendo a sexualização e uso de drogas, estariam me idolatrando” (BOLSONARO, 2019eBOLSONARO, JAIR (@jairbolsonaro). 05 jul. 2019. 115:30. Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1147211166009253888. Acesso em: 02 set. 2021. (BOLSONARO, 2019e).
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). Há uma mobilização, assim, da esquerda enquanto inimigo social, identificada como defensora de concepções contrárias à moralidade e aversa ao trabalho como fator imprescindível da boa constituição do cidadão, ao mesmo tempo em que desconsidera as perversidades do trabalho infantil.

É persistente também, a despeito de uma suposta valorização do trabalho, o esvaziamento do trabalho em relação ao componente da luta de classes, o que se faz, sobretudo, por meio da aversão ao sindicalismo. Enquanto ainda estava em campanha, por exemplo, Jair Bolsonaro comemorou em seu perfil do twitter não ter sido convidado para eventos do Dia do Trabalhador promovido por sindicatos. De acordo com a mensagem postada, ser o único pré-candidato à presidência não convidado foi a melhor notícia do seu dia (BOLSONARO, 2018). Já no cargo de presidente, Bolsonaro conclamou as pessoas a ficarem atentas para o efetivo cumprimento da Medida Provisória n. 873/2020, “pois todo dia é um jogo de xadrez” e a medida não teria agradado os líderes sindicais (BOLSONARO, 2019a). Em outra oportunidade, comemorou decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu liminarmente a cobrança de contribuição sindical sem autorização do trabalhador (BOLSONARO, 2019d).

Na prática, a Medida Provisória em referência, ao mesmo tempo em que criou um embaraço para o recolhimento das contribuições sindicais, que desde a redação originária da CLT é feita mediante desconto em folha de pagamento, foi contra o sentido do art. 611-A trazido pela Lei n. 13.467/2017, que estabelecia a prevalência do negociado sobre o legislado. Tudo isso em um contexto paradoxal de forte retração da receita sindical (CONTRIBUIÇÃO SINDICAL CAI 95% DOIS ANOS APÓS...2019) e aumento das possibilidades de negociação sindical, que fragilizou as entidades sindicais e favoreceu o desmantelamento de direitos trabalhistas (KREIN, 2018KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo soc. [online]. 2018, vol.30, n.1, pp.77-104. ISSN 1809-4554. http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.138082.
http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts....
).

A medida era oportunista porque, a despeito da flagrante inconstitucionalidade, a vigência limitada à validade da MP cumpriria o objetivo de desmobilizar o sindicalismo durante o período de votação da Reforma da Previdência - na pertinente expressão de Sayonara Grillo e José Luiz Soares (2021), o manejo de uma “obsolescência programada” da norma jurídica cumpriria a um só tempo a finalidade de ceifar o diálogo social, minar as resistências coletivas e fragilizar as organizações dos trabalhadores, num “xadrez” antissindical.

Segundo Stanley, “a aversão pelos sindicatos é um tema tão importante que o fascismo não pode ser totalmente compreendido sem um entendimento disso” (2019, p. 165). Eles seriam acusados de contrapor os interesses da nação, criando segmentações a partir de interesses de classe e se oporiam ao fascismo justamente pela capacidade de criar laços que se orientam em sentidos diversos daqueles estipulados pelas clivagens raciais, religiosas ou morais que a agitação fascista pode promover.

Também são mobilizadas pelo fascismo, de forma contraposta ao ideal do Direito do Trabalho, a exaltação da liberdade numa perspectiva voltada à liberdade de competir no livre mercado: a ideia de darwinismo social estaria na base da concepção de liberdade ali adotada. Interessante observar que embora lideranças fascistas originalmente tenham se oposto abertamente à noção de democracia, o neofascismo mobiliza a defesa de um sentido próprio de democracia que consiste tão somente na prevalência da noção de liberdade formal e orientada por matriz conservadora, numa perspectiva esvaziada de sentidos sociais (2019).

É ilustrativa a defesa feita por Jair Bolsonaro do direito ao trabalho, ou seja, da liberdade de trabalhar, em oposição às políticas de isolamento social que objetivavam preservar os trabalhadores no contexto da pandemia da Covid-19. Nesse sentido, a análise empreendida por Sávio Cavalcante (2021CAVALCANTE, Sávio Machado. 2021. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, São Leopoldo, 19(1): 4-17. DOI: 10.4013/cld.2021.191.01
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) em relação ao discurso do Presidente da República no início da pandemia. Essa retórica, inclusive, apareceu nos tweets levantados nesta pesquisa.

Em março de 2021, por exemplo, Bolsonaro postou, em caixa alta, que “atividade essencial é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão para dentro de casa” (BOLSONARO, 2021aBOLSONARO, JAIR (@jairbolsonaro). 04 mar. 2021. 14:34 Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1367528858606575619. Acesso em: 02 set. 2021. (BOLSONARO, 2021a).
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). Dias depois o presidente compartilhou um vídeo onde o goleiro do Clube Sportivo Sergipe, Marcão, defende o retorno do campeonato brasileiro, argumentando que, para os que recebem salários altos na série A, a paralisação dos jogos é mais simples, mas que os que trabalham, como ele, nas demais divisões chegaram até mesmo a não ter dinheiro para comprar alimentos (BOLSONARO, 2021b). Com base neste depoimento, então, o presidente mobiliza mais uma vez a retórica da luta contra o desemprego e o sofrimento daqueles que ficam sem salário durante a pandemia, afirmando que “o mesmo se aplica a todos os trabalhadores formais ou informais” (BOLSONARO, 2021b). Silenciou, todavia, quanto ao auxílio emergencial tão demandado pela sociedade, ocultando a possibilidade de o Estado e a sociedade garantirem a sobrevivência das pessoas que dependem do trabalho enquanto elas se resguardam da exposição ao vírus: o discurso nacionalista e sacrificial do neofascismo se coloca a serviço da concorrência de todos contra todos sob as leis do mercado total, ao melhor sabor do neoliberalismo.

Jair Bolsonaro voltou a tratar do assunto em seu twitter em abril de 2021. Na oportunidade, vinculou as restrições impostas pelos governos estaduais e municipais durante a pandemia ao comunismo (BOLSONARO, 2021cBOLSONARO, JAIR (@jairbolsonaro). 12 abr. 2021. 14:31. Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1381661299105542155. Acesso em: 02 set. 2021. (BOLSONARO, 2021c).
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). Apresentou a perda do emprego e da renda dos brasileiros como decorrentes dessas medidas e como um exemplo do que representaria o fim da liberdade no país, o que, nas palavras do presidente, certamente teria acontecido caso a facada que sofreu durante a campanha eleitoral tivesse sido fatal e Fernando Haddad ou Ciro Gomes tivessem sido eleitos (BOLSONARO, 2021c). Conclamou, ao final, que cada um se prepare para defender o Brasil e a sua liberdade (BOLSONARO, 2021c). A mobilização do discurso de campanha quando o governante já está investido no poder enquanto artifício retórico para mobilização de suas bases aparece recorrentemente e se associa, na emulação da figura mítica do “comunismo” - inimigo tão comum às experiências fascistas -, como elemento de dispersão das críticas e justificação dos fracassos do governo: o cenário é ruim, mas poderia ser pior.

Stanley (2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019., p. 174) também aponta a intimidade entre a extrema desigualdade social, a exaltação das políticas empresariais liberais e a demagogia fascista. Ilustra com uma fala de Hitler em que ele apontava a incompatibilidade entre uma esfera política democrática e uma esfera econômica autoritária, indicando que as empresas já funcionariam de acordo com o princípio do líder ou “princípio do Führer”. Para o autor, reportando-se à eleição de Trump nos EUA, “quando os eleitores de uma sociedade democrática anseiam por um CEO como presidente, eles estão respondendo aos seus próprios impulsos fascistas implícitos” (STANLEY, 2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019., p. 176). Tais elementos também aparecem no governo Jair Bolsonaro, por meio de participações informais, em decisões centrais do governo, de indivíduos que se apresentam como empresários bem-sucedidos apoiadores do presidente. Subvertendo totalmente a noção de institucionalidade, atravessam os espaços de tomada de decisão e construção de políticas públicas de forma irresponsável, apenas reproduzindo ali as posições e estratégias que supostamente sustentam para o gerenciamento de suas empresas, com ocorre no ainda investigado “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde.

A partir dessa perspectiva ultraliberal, aliada à ideia de simplificação da existência humana pelo fascismo, Stanley (2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019.) fornece uma perspectiva que parece interessante para compreender o atravessamento da ideologia fascista entre classes sociais menos favoráveis, bem como a construção de um discurso de tolerância à violência e à indiferença social, as quais estão na base do recrudescimento das políticas para o trabalho:

A atração da política fascista é poderosa. Ela simplifica a existência humana, nos dá um objeto, um “eles” cuja suposta preguiça ressalta nossa própria virtude e disciplina, nos encoraja a nos identificar como um líder forte que nos ajuda a entender o mundo, um líder cuja franqueza em relação às pessoas “indignas” do mundo é reconfortante. Se a democracia parece uma empresa bem-sucedida, se o CEO é durão e pouco se importa com as instituições democráticas, até mesmo as denigre, tanto melhor. A política fascista ataca a fragilidade humana que faz com que nosso sofrimento pareça suportável se soubermos que aqueles que menosprezamos estão sofrendo mais (STANLEY, 2019STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2019., p. 176).

Essa mobilização de afetos como o ressentimento e a perspectiva de superação dos “inimigos” pode explicar, em alguma medida, a adesão das classes populares ao discurso bolsonarista em um contexto francamente recessivo.

O avanço da agenda neoliberal no país, alavancando a subjetividade que a embasa, encontrou em 2018, oportunisticamente, condições ideais (descrença na política, mobilização afetiva do discurso contrário à corrupção e de outros ressentimentos sociais) para a ascensão de uma liderança política atrelada a uma base que, como visto, tem sido vinculada por cientistas políticos, sociólogos e historiadores ao neofascismo.

Essa análise atrela-se a um contexto geopolítico mais amplo em que, na ruptura com a construção jurídica protetiva que sucedeu o pós-guerra na Europa (inclusive como reação aos desarranjos fascistas), há, a partir da década de 1970, um progressivo avanço do neoliberalismo, calcado em uma agenda específica para o trabalho.

As transformações do capitalismo e a reestruturação produtiva, com os impactos produzidos no nível de emprego e na qualidade dos empregos subsistentes, marcadamente afetados pela precarização, se fazem acompanhar de uma base ideopolítica que, em ambiente de crise econômica, abre espaço para movimentos políticos de caráter autoritário, aos quais, como visto em Brown, o neoliberalismo não se opõe, mas se associa. No caso brasileiro, para além do autoritarismo e da negação da política, as peculiaridades do contexto político e econômico local propiciaram a escalada de um movimento neofascista.

Nesse contexto, há uma apropriação populista por meio de promessas contraditórias, como a de recuperação dos empregos perdidos, através do desmonte da legislação trabalhista, inclusive por meio do tratamento diferenciado e rebaixado a determinados grupos sociais, como evidentemente ocorreu com o projeto de conversão da MP nº 1045 em Lei, rejeitado pelo Senado Federal, e com a acusação persistente de inimigos públicos que adotariam uma agenda ofensiva ao volume de emprego: sindicatos e movimentos sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Wendy Brown, “a menos que sejam enganados, condicionados ou efetivamente marginalizados, os trabalhadores e os pobres vão sempre combater os mercados como injustos em sua distribuição de oportunidades e recompensas” (2019, p. 78), de modo que o engano da classe trabalhadora é fundamental, o que tem sido feito “com apelos a outras linhas de privilégio e poder, como a branquitude ou a masculinidade, especialmente porque é a liberdade, e não a igualdade, que reproduz e assegura esses poderes” (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 78).

Para Joaquín Pérez Rey e Adoración Guamán (2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167., p. 135), trata-se de uma “velha fórmula usada pela direita neoautoritária para aglutinar e se apropriar do descontentamento de uma classe trabalhadora maltratada e esquecida, condenada ao desemprego ou à precariedade” (tradução própria). Nesse sentido, governos antidemocráticos ascenderam ao poder com a promessa de uma agenda de desmonte dos direitos trabalhistas, inclusive no Brasil.

A partir das contribuições teóricas de Brown (2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.) e Perez-Rey & Guamán (2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.), bem como das análises situadas no contexto brasileiro produzidas por Filgueiras & Druck (2020FILGUEIRAS, Luiz; DRUCK, Graça. O Brasil nas trevas (2013-2020). Boitempo Editorial. Edição do Kindle. 2020.), Boito (2020BOITO JR, Armando. Porque caracterizar o bolsonarismo como neofascismo. Crítica Marxista, n.50, p.111-119, 2020., 2021BOITO JR, Armando. O caminho brasileiro para o fascismo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-23, e021009, 2021.), Cavalcante (2021CAVALCANTE, Sávio Machado. 2021. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, São Leopoldo, 19(1): 4-17. DOI: 10.4013/cld.2021.191.01
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), Mattos (2020MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) e Fontes (2019FONTES, Virgínia. O núcleo central do governo bolsonaro: o proto-fascismo. Esquerda online 8 jan 2019. Disponível em http://www.grupodetrabalhoeorientacao.com.br/Virginia_Fontes/blogs-sites/proto-fascismo.pdf Acesso em 10 ago 2021.
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), algumas chaves podem ser interessantes para compreender a adesão da classe trabalhadora ao neofascismo e, ao mesmo tempo, a associação do neofascismo à concretização da agenda neoliberal.

Nesse enredo, pode-se apontar: a fragilização dos sindicatos e das suas lutas, inclusive por meio da construção do inimigo; a emulação do discurso do sujeito-empresa e do auto sacrifício, associada a um descrédito nas estruturas estatais e nos sistemas de proteção coletiva; o saudosismo, por parte de determinadas camadas ressentidas por ameaças aos seus privilégios, não apenas do regime militar, mas também de estruturas e relações de trabalho em moldes informais, semi-escravagistas, extremamente precários e violentos, invocadas como passado digno do valor do trabalhador brasileiro, em sua agregação nacional pautada no sacrifício; e, sobretudo, na colocação dos “inimigos” (politicamente identificados ou oponíveis enquanto classe) em posição de desvantagem.

Esses elementos podem situar, em grande medida, o desfazimento de vínculos de solidariedade e a alta tolerância a condições desfavoráveis, que são moldadas pelo medo do desemprego, afeto constantemente mobilizado pelo neofascismo, e pela noção de superioridade em relação aos grupos apontados como inimigos.

Não supreendentemente, a escalada de legitimação do arbítrio empresarial no âmbito das relações de trabalho - para a qual concorrem não apenas as figuras públicas do neofascismo brasileiro, mas também a elite e as instituições públicas, como o parlamento e o Poder Judiciário (com destaque para o STF) (COUTINHO, 2021COUTINHO, Grijalbo. Justiça Política do Capital: A desconstrução do direito do trabalho por meio de decisões judiciais. São Paulo: Tirant, 2021.) - não poderia nos conduzir a outro lugar que não a gradativa tolerância com o arbítrio no âmbito das instituições políticas. A corrosão de mínimos democráticos no âmbito das relações de produção esteve de braços dados com a corrosão da democracia na esfera política.

A partir da revisão bibliográfica empreendida, compreende-se o fascismo como movimento difuso, que o líder alimenta, mas que pressupõe uma base social. Dentro desse contexto, as análises formuladas sobre o trabalho nos regimes fascistas do século XX servem para demonstrar os aspectos neofascistas que perpassam o Direito do Trabalho no governo Bolsonaro. O ocultamento do componente de classe do trabalho é realizado tanto através da banalização da precarização do trabalho e dos ataques ao que são consideradas “ideologias perversas”, quanto por meio da fragilização das entidades sindicais. É interessante perceber que aqui esse processo não ocorre por uma tentativa de cooptação das entidades sindicais, como Joaquín Pérez Rey e Adoración Guamán (2020REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Derecho del trabajo del enemigo: Aproximaciones histórico-comparadas al discurso laboral neofascista. In: GUAMÁN, Adoración; ARAGONESES, Alfons; MARTÍN, Sebastian (dirs.). Neofascismo: La bestia neoliberal. [Espanha]: epublibre, 2020, p. 134-167.) apontam que aconteceu nos regimes fascistas, mas sim mediante uma tentativa de aniquilação das resistências sindicais.

Capturar elementos e ressignificações dos símbolos e retóricas do fascismo compreendendo-os comparativamente a partir das peculiaridades do presente permite instrumentalizar o conhecimento da história como resistência, desmontando a suposta novidade de velhos discursos e convidando a reflexão crítica sobre as possibilidades do novo. Esperamos, com o texto, lançar uma dimensão do debate, a partir da regulação do trabalho.

Referências bibliográficas

  • 1
    Sobre os problemas em torno da categoria sujeito de direito, conferir: PIRES, 2019PIRES, Thula. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. Lasa Forum, v. 50, p. 69-74, 2019..
  • 2
    Diz-se no plano normativo porque, diferentemente do que ocorreu nos países do capitalismo central, o Brasil jamais chegou a vivenciar, na prática, a plenitude de uma tela de proteção ao trabalho. Sobre o assunto, ver o tópico 2, intitulado “A precarização do trabalho no brasil: entre informalidade, contratações precárias e o desmonte do estatuto do emprego” em: DUTRA, LIMA, 2020DUTRA, Renata Queiroz; LIMA, Renata Santana. Relações de Trabalho, Reformas Neoliberais e a Pandemia do Covid-19: as Políticas para o Trabalho no Epicentro da Estratégia de Saúde Coletiva. RDP, Brasília, Volume 17, n. 94, 465-492, jul./ago. 2020..
  • 3
    REY, Joaquín Pérez; GUAMÁN, Adoración. Op. Cit., p. 134-167
  • 4
    Ver também BROWN, 2018BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial, neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2021
  • Aceito
    25 Fev 2022
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