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Fascismo pelos olhos de Pachukanis

Fascism through Pachukanis eyes

PACHUKANIS, B. Evguiéni. Fascismo.Almeida, Paula Vaz de. 1. ed.São Paulo: Boitempo, 2020

Resumo

A resenha tematiza os quatro textos que compõem a coletânea Fascismo, publicados em 2020, do jurista soviético Evguiéni B. Pachukanis. Formando um conjunto de textos produzidos em períodos diferentes e sobre experiências diferentes, eles têm uma dupla serventia para o leitor da área do direito: primeiro, apresenta uma análise muito sofisticada e detalhada, do ponto de vista de um jurista, sobre o fascismo italiano e o fascismo alemão, apontando para suas distinções internas, bem como sua diferença frente a experiência bolchevique. Segundo, o texto pode ser visto como uma fonte em si para o historiador do direito, pois ali se pode observar os embates entre ele e outros teóricos do direito do período, bem como as próprias mudanças retóricas e estilísticas de Pachukanis, fruto de seu esforço para adaptar-se ao processo de avanço do estalinismo na União Soviética.

Palavras-chave:
Evguiéni Pachukanis; Fascismo; Teoria do Direito; Teoria do Estado

Abstract

This review addresses the four texts that make up the collection Fascism, published in Brazil for the first time in 2020, by the Soviet jurist Evguiéni B. Pachukanis. Forming a collection of texts produced in different periods and about different experiences, it has a double purpose for the reader of legal theory and legal history: first, it presents a very sophisticated and detailed analysis, from a jurist's point of view, about Italian fascism and German fascism, pointing out their internal distinctions, as well as their difference from the Bolshevik experience. Secondly, the text can be seen as a source in itself for the legal historian, as one can observe the clashes between him and other legal theorists of the period, as well as Pachukanis' own rhetorical and stylistic changes, fruit of his effort to adapt to the advancing process of Stalinization of the Soviet Union.

Keywords:
Evguiéni Pachukanis; Fascism; Legal Theory; Theory of State

A ascensão de líderes do chamado “populismo de direita” no início do século XXI criou as condições concretas para um novo surto de estudos sobre o fascismo, o autoritarismo e suas relações com as instituições e com o pensamento jurídico. Personagens como Viktor Órban, Rodrigo Duterte, Donald Trump e Jair Bolsonaro foram responsáveis por uma nova guinada nas práticas políticas que recolocaram o fascismo - e o neofascismo - no centro das reflexões das ciências humanas e sociais. Na imprensa, importantes historiadores especialistas debateram a racionalidade e a conveniência de se nominar “fascista” as práticas e os líderes acima mencionados1 1 Trata-se, por exemplo, dos artigos produzidos por Timothy Snyder no New York Times, por Robert Paxton na Newsweek e por Richard J Evans na Newstatesman. .

Nesse bojo, foi remobilizada a montanha bibliográfica produzida no século XX sobre esse que foi uma das ideologias e práticas políticas mais marcantes dos novecentos. Foram resgatadas e reformadas análises de tradição marxista, como os textos de Enzo TraversoTRAVERSO, Enzo. The new faces of fascism: populism and the far right. Verso Editorial, 2019. ou de Fernando RosasROSAS, Fernando. Salazar e os fascismos. Lisboa: Editora Tinta da China, 2019., também foram publicadas, traduzidas e discutidas as compreensões mais tipológicas do fascismo, como aquelas realizadas por Michael MannMANN, Michael. Fascistas. Lisboa: Edições 70, 2017.. Novos textos, como os de Federico FichelsteinFICHELSTEIN, Federico. Do fascismo ao populismo na História. Lisboa: Edições 70, 2020. ganharam espaço nas livrarias, e mesmo o fascismo brasileiro - o integralismo - que andava desaparecido do debate público ganhou novas publicações em grandes editoras com o objetivo de atingir um público não especialista, como é o caso dos livros de Leandro Gonçalves e Odilon Caldeira NetoGONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO; Odilon. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020., e também o livro de Pedro DóriaDÓRIA, Pedro. Fascismo à brasileira. Editora Planeta, 2020..

Em suma, o fascismo voltou infelizmente à moda, seja nas suas práticas políticas que assolam o Brasil e muitos países do mundo, mas seja também - e nesse sentido é um reflexo positivo - na academia como um objeto de estudo, pesquisa e revisitação. É dentro deste contexto mais amplo que foi publicado no Brasil, e pela primeira vez em português, em fins do conturbado ano de 2020, Fascismo, de Evguiéni B. PachukanisPACHUKANIS, Evguiéni B. Fascismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. - 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2020. (1891-1937). Trata-se de uma coletânea de textos, escritos pelo mais importante jurista soviético, sobre as características jurídicas, políticas, sociais e econômicas desse fenômeno que marcou de forma incontornável o turbulento século XX.

Traduzidos diretamente do russo pela competente Paula Vaz de Almeida, e acompanhado de um detalhado e instrutivo prefácio do professor Alysson Leandro Mascaro, o livro reúne quatro textos produzidos em períodos diferentes, com objetivos diversos, mas todos versando sobre o fascismo. Em um arco temporal que vai de 1926 a 1933, os artigos ali reunidos podem tanto instruir o leitor sobre a condição histórica do fascismo quanto servir ao historiador do direito como uma fonte luminar sobre a história do pensamento jurídico marxista no início dos novecentos.

Um fato patente já destaca sua relevância: trata-se de uma análise sobre o fascismo, feita no calor do momento, dentro da tradição marxista, que à época contava com outros pioneiros tais como Leon Trotsky e Clara Zetkin, e levada a cabo por um jurista que, àquela altura, havia acabado de terminar de escrever seu livro mais importante, Teoria Geral do Direito e Marxismo (1924)PACHUKANIS, Evguéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. - 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2017. A condição de jurista não deve criar expectativas tecnicistas no leitor, sendo seus escritos muito distantes de um compilado de detalhes legislativos, modificações pequenas ou minúcias jurídicas mais estreitas. Antes disso, Pachukanis mobiliza o manancial de instrumentos disponíveis ao jurista do início do século XX para compreender a realidade política, social e institucional da Itália e Alemanha. O segundo fato, ou camada textual, que invoca a relevância e o interesse para o historiador do direito é a posição particular desse jurista: trata-se de um marxista e um dos principais teóricos da tradição leninista, produzindo suas análises na União Soviética e mobilizando suas análises tomando partido em favor dos comunistas.

Longe de compor um mero panfleto pró-soviético ou uma manifestação daquilo que poderia se entender como um marxismo vulgar, Pachukanis não deixa de bem compreender os elementos normativos, as alterações institucionais e inovações legislativas, ao mesmo tempo que as conjuga com um diagnóstico mais amplo sobre o funcionamento dos regimes fascistas, sem com isso reduzir o direito à direta causalidade mecânica da realidade material, nem submetendo-o ao imediato controle do capitalismo, como uma manifestação unilateral de interesses de classe. Aliás, o autor apresenta no primeiro e mais relevante texto da coletânea, Para uma caracterízação da ditadura fascista (1926), uma frase que já o afasta de qualquer leitura mais dogmática das relações de determinação: "dizer que o fascismo é a ditadura do capital é dizer muito pouco" (PACHUKANIS, p. 26). Nesse sentido, por serem textos que modulam interpretação de conjuntura com instrumental teórico e analítico, os artigos de Pachukanis soam ou rimam com o estilo e as pretensões de Karl Marx em seus escritos mais jornalísticos e políticos, como o caso de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e outros.

Durante todo o primeiro texto da coletânea, Pachukanis versa sobre o surgimento e as características do Fascismo italiano, a experiência originária e influente em todo o mundo dessa nova caracterização de ditadura. Ali vê-se um jurista do início do século XX manejando interpretação política e histórica dos acontecimentos recentes, muito bem informado pela imprensa local italiana e por jornais dos mais diversos cantos do globo, conhecedor das alterações econômicas realizadas nos últimos três anos e detentor de uma fina sensibilidade do que viria a ser o desenrolar dos fatos nos anos seguintes. Trata-se, fundamental frisar, de um texto de 1926, contexto relevante na história do fascismo, posto que no ano seguinte ocorrerá a publicação da famosa Carta del Lavoro, e naquele ano estavam em plena expansão as chamadas leis fascistíssimas, produzidas com o escopo de expandir e confundir as funções do Estado italiano com as funções e ideologia do Partido Nacional Fascista. É nesse contexto que se articulam as normas que submeterão cada vez mais a rígida e forte vigilância as entidades sindicais italianas. Não obstante, ainda que reconheça a eficácia do PNF e das ações de Benito Mussolini para se aproveitar das instabilidades políticas na Itália pós-Biênio Rosso (1919-1920), o autor identifica desde o início o caráter ambíguo e contraditório do fascismo, o que não garantiria um futuro muito longevo a essa base política alternativa ao comunismo bolchevista. Em 1926 já era visível que a condição de possuir uma retórica antiplutocrática, antiliberal, nacionalista e em defesa da expansão de direitos sociais não passava de uma demagogia e um artifício retórico para aproximar as camadas proletárias do norte da Itália de uma alternativa supostamente "ordeira" e "restauradora" em contraposição ao comunismo bolchevista, frágil e instável naquele momento. Entretanto, tão logo o fascismo deixou de ser um mero "movimento" para tornar-se "instituição", para recorrer a uma distinção analítica hodierna, viu-se uma sequência de acordos, conciliações e arranjos com o empresariado, bancos e outras instituições tradicionalmente liberais que se apoiaram nessa novidade fascista para conter o avanço comunista. Não à toa Pachukanis já aponta para a tendência à formação de alianças entre liberais e fascistas, como de fato ocorreu, por exemplo, na Áustria, onde Ludwig von Mises serviu ao Regime profundamente influenciado pela experiência italiana do Austrofascismo de Engelbert Dollfuss.

Esse primeiro e mais relevante artigo ainda traz à luz um argumento que com renitente e enjoativa postura insiste em retornar aos dias de hoje, de que o bolchevismo e o fascismo seriam irmãos siameses e que, portanto, não haveria verdadeira distinção entre ambas as experiências a não ser uma cosmética alteração retórica. Rechaçando essa postura, hoje dir-se-ia "teoria da ferradura", Pachukanis apresenta de forma muito fina e detalhada, citando para afastar Nitti e Kelsen, como as experiências revolucionárias do bolchevismo e do fascismo possuem não apenas um conteúdo distinto como também uma forma inconfundível. Mostrando a postura aristocrática, monárquica, tendente a naturalizar hierarquias e esvaziar canais representativos diretos, o fascismo seria uma experiência viciada e desesperada de fazer mudanças para impedir mudanças. Já a experiência bolchevique, de atuação, violência e estratégia distinta, teria por objetivo não mudar para salvar o sistema produtivo, mas mudar para superar esse mesmo sistema. Reflexão com semelhante preocupação, tema assemelhado e resultados complementares é aquela que se pode ler nas entrelinhas da posição defendida por Walter Benjamin em seu famoso texto Para uma crítica da violência (1921BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre mito e linguagem. Editora 34, 2013.) em que ele busca distinguir o uso mítico e repetitivo da violência (aqui poder-se-ia dizer, fascista) do uso liberador e destituinte da violência divina (aqui poder-se-ia dizer, revolucionária). Produzido no mesmo contexto, ambos os textos mostram como se manejava a capacidade de distinção de fenômenos, ferramenta tradicional de um jurista, para se demarcar, para além das marcas e traves do liberalismo, diferentes experiências políticas emergentes.

O segundo texto da coletânea, intitulado simplesmente Fascismo (1927), é a versão resumida do texto anterior, e em forma de verbete para a Enciclopédia do Estado e do Direito da Academia Comunista, publicado em Moscou. Curto, porém cirúrgico, o verbete sintetiza esse olhar caleidoscópico desenvolvido no primeiro artigo trazendo a conjunção entre política, história, economia e direito.

A partir do terceiro texto uma nova camada de complexidade começa a se abrir para o leitor. Trata-se de uma alteração de década, agora textos dos anos 1930, e uma mudança temática, focando agora mais no fascismo alemão que no italiano. Além disso, começa a ser possível notar a entrada em cena dos meios de constrição e censura do então em marcha processo de estalinização da União Soviética, ainda que de forma lateral.

Resgatado a partir do estenograma revisado de um relatório apresentado na plenária da União das Associações das Sociedades de Estadistas Marxistas, o texto intitulado A crise do capitalismo e as teorias fascistas do Estado (1931) constitui a primeira análise das características do nazismo feitas pelo autor russo. Pachukanis, como se sabe, manteve longa e profunda relação com a cultura jurídica alemã, tendo realizado seu doutorado nesse país e tendo sido uma espécie de adido diplomático da Rússia no imediato pós-revolução e pós-guerra. Essa sua condição específica permite que ele faça uma interessante leitura daqueles conturbados anos pós-crack de 1929 na Alemanha. Atento às condições do proletariado alemão, bem como da população empobrecida em geral naqueles anos, Pachukanis observa o florescimento e a expansão de um conjunto de ideias que constituíram a base ideológica da alternativa nazista em franco desenvolvimento. Ele identifica alterações nas ciências sociais e jurídicas alemãs, em especial através de autores como Tönnies, Walz e Höhn, que defendem a necessidade de se distinguir a ideia de Gesellschaft [sociedade], encarada como uma categoria explicativa do coletivo humano eminentemente atomística e fundada em uma lógica econométrica, estruturada na soma de indivíduos diversos que nada possuem em comum a não ser as contingências passageiras da história; da ideia de Gemeinschaft [comunidade], compreendida como origem histórica, cultural e natural de laços sociais estabelecidos desde o medievo, capaz de afirmar uma experiência social harmônica e "verdadeira" representante dos interesses coletivos do mundo germânico. A partir dessa distinção é que o jurista soviético vai mostrando como o nazismo mobilizou ideias contraditórias e demagógicas que buscavam de um lado criticar a concepção de luta de classes, vista como excessivamente conflitiva, e de outro lado afirmar a necessidade de se restaurar um passado ordeiro através do aumento de prerrogativas do Executivo que coordenaria esse processo, em detrimento, ou com a abolição, do parlamento.

Em meio ao caos econômico vivido pela Alemanha no fatídico ano de 1931, o mais abismal daquela crise, vê-se como essas ideias ganharam espaço e vinham conquistando trabalhadores que poderiam engrossar as fileiras do Kommunistische Partei Deutschlands mas acabavam sendo cooptados pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei. Não obstante, novamente aparece nas linhas pachukanianas a crítica de que o fascismo promoveu alianças com os liberais e, apesar de suas promessas restauradoras da Gemeinschaft, soube muito bem manter intocada a base do sistema econômico capitalista: a propriedade privada. Outro ponto relevante é a capacidade que o autor tem de distinguir o fascismo italiano, institucionalmente baseado na lógica do corporativismo de juristas como Giuseppe Bottai, dessa dimensão específica alemã da Gemeinschaft que se manifestava mais permeável a estruturas e instituições paralelas, capazes de corroer com maior velocidade e vigor a institucionalidade parlamentar e representativa alemã, fato esse que seria compreendido posteriormente, e também melhor explicado, por Ernst Fraenkel em seu Der Doppel Staat (1941)FRAENKEL, Ernst. The Dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Oxford University Press, 2017.

É suavemente visível nesse texto o início do processo da chamada "autocrítica de Pachukanis"2 2 Segue-se, nessa cronologia, as propostas de Marcio Bilharinho Naves e Alysson Leandro Mascaro. , dado a partir de 1930, em que há um intenso processo de revisão das posições do autor inicialmente estabelecidas em Teoria Geral do Direito e MarxismoPACHUKANIS, Evguéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. - 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2017, em grande medida por pressão do processo de estalinização do regime. É por esse motivo que em alguns momentos desse relatório há indicações de autores que teriam sido indevidamente publicados na revista que ele editava e críticas a outros comunistas de cepa não estalinista. Esse fator levaria, anos mais tarde, ao reconhecimento, forçado pelas circunstâncias, de "desacertos" em seus diagnósticos anteriores, mas isso já à beira de seu assassinato em 1937.

O quarto escrito encerra a coletânea e também trata do fascismo alemão. Intitulado Como os sociais-fascistas falsificaram os sovietes na Alemanha (1933), trata-se de um texto publicado na revista Estado Soviético, de intenso teor narrativo, contendo uma análise política e histórica da falência das pretensões revolucionárias na Alemanha do imediato pós-guerra. Tudo foi baseado na leitura e interpretação das atas do I Congresso de Deputados Operários e Soldados, evento que reuniu a esquerda revolucionária, independente e social-democrata em dezembro de 1918.

O texto traz um tema politicamente sensível, qual seja, a traição dos social-democratas aos anseios revolucionários de 1918, representados especialmente por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, líderes assassinados da Liga Espartaquista. Provavelmente por isso, vê-se nessas linhas um autor muito mais adjetivado, com constantes ataques ao caráter e a personalidade de figuras políticas alemãs. Os social-democratas são os "social-traidores", os "social-covardes", os "social-canalhas" e os independentes são constantemente chamados de pequeno burgueses descompromissados e tendencialmente traidores. Ao lado desses ataques, o texto traz contrastes entre os destinos da Revolução Alemã e da Revolução Russa, mostrando os paralelos possíveis de serem pensados entre mencheviques e social-democratas. Tudo isso parece compor um conjunto retórico que pode dizer tanto sobre esses dois eventos de ruptura, quanto sobre o contexto e tramas que cercavam o autor no interior da União Soviética.

Apesar dos motivos e disputas políticas que movimentam o texto, é possível se extrair uma quantidade relevante de informações e ideias acerca dos usos do direito e seus expedientes naquele contexto. Pachukanis aponta para as várias estratégias e usos matreiros dos regimentos internos do Congresso com vistas a escantear ou impedir o surgimento de uma força progressista mais à esquerda que a própria social-democracia.

Os principais mecanismos para conter os espartaquistas e comunistas revolucionários em geral dividiam-se em dois diferentes expedientes: a) primeiro, os social-democratas emplacaram nas várias reuniões do congresso meios de reduzir o papel dos sovietes locais alemães, submetendo-os ao soviete central, sob controle dos social-democratas, em especial dos Scheidemannistas, ou seja, a vertente principal e majoritária do Sozialdemokratische Partei Deutschlands que apoiava o então futuro Chanceler da República de Weimar, Phillip Scheidemann. A segunda maneira articulada pela centro-esquerda para frear os comunistas e seus desejos era b) a aposta em uma terminologia vaga para definir as funções dos sovietes, terminologias estas como "funções de controle" ou "funções de supervisão parlamentar", que pouco ou nada dizem objetivamente sobre as competências que caberiam aos poderes locais. Assim, lentamente, mas constantemente, houve uma submissão dos revolucionários aos reformistas do SPD.

Outro tema central nesse congresso que dividiu comunistas e social-democratas era a defesa ou não de uma Assembleia Constituinte. Os comunistas eram francamente contrários a qualquer Constituição, por compreendê-la como um produto liberal clássico, manifestação jurídica da "Ditadura da Burguesia", e instrumento por excelência impeditivo de qualquer ruptura e alteração real das bases representativas da sociedade. Pachukanis aponta explicitamente que "a Assembleia Constituinte significava fortalecer a ordem burguesa, significava restaurar a ditadura do capital", e que essa pauta "anticonstitucional" dos comunistas acabou gerando uma concentração à direita e à esquerda em torno do SPD que defendia a pauta constituinte, fazendo com que "toda a burguesia" visse naquele momento "em Ebert-Scheidemann o mais verdadeiro baluarte contra o comunismo". Por fim, a defesa da constituinte foi o golpe final contra os comunistas, pois "toda a reação capitalista foi agrupada sob a bandeira da democracia, sob a bandeira da assembleia constituinte" (PACHUKANIS, p. 111).

Um último tema a ser destacado desse último texto é mais uma rima com as reflexões produzidas por Walter Benjamin. São conhecidas as críticas à social-democracia feitas por ele em seu célebre escrito "Teses sobre o conceito de História". Ali, Benjamin aponta a postura excessivamente otimista dos social-democratas e a leitura evolucionista e continuísta dos positivistas, crentes de que a superação da sociedade de classes viria naturalmente, numa escada etapista, a cada avanço reformista produzido pelo SPD. Argumento semelhante é sustentado por Pachukanis, ao apontar a retórica social-democrata que acabava por desmobilizar as energias revolucionárias com falsas promessas e ilusões de que a estrutura representativa em forma de sovietes seria naturalmente incorporada aos estados modernos, como fruto da evolução racional da política.

A diversidade de suportes textuais (artigos, relatórios, verbetes) e o fato de tê-los sido escritos no calor do momento, fazem com que sua leitura não seja das mais fáceis e didáticas. A linguagem multifacetada, ora direcionada ao leitor acadêmico em geral, ora como parte de um texto lido para uma assembleia, permitem que o historiador visualize as nuanças no estilo, e cacoetes na escrita. Também há recorrentes citações a eventos e personagens contemporâneos à escrita que acabaram por cair no rio do esquecimento, e seu resgate através desses textos já são por si só muito úteis.

Ao historiador do direito brasileiro, o texto aqui resenhado, entendido agora como uma fonte e não como uma análise histórica do fascismo per se, tem imensas potencialidades. Pode-se, por exemplo, comparar os diagnósticos pachukanianos sobre o fascismo com a circulação de ideias e teorias fascistas no Brasil, visível por exemplo nos textos de juventude de Santiago Dantas, no conjunto doutrinário integralista de Miguel Reale, bem como nas visões de juristas de esquerda brasileiros do início dos anos trinta, como Leônidas Resende ou Luiz Carpenter. Caberia, ainda, avaliar como se dava o uso político e jurídico de ideias fascistas e antifascistas, ou da experiência soviética, no imediato pós-Revolução de 1930, em documentos como as Atas da Subcomissão do Itamaraty ou nas Atas da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34.

Os pesquisadores e pesquisadoras do fascismo atentos aos últimos desdobramentos historiográficos sobre o tema, sejam marxistas ou não, partidários ou não da tese da ditadura do capital, encontrarão nesse livro um manancial de informações e análises, mas especialmente uma fonte histórico-jurídica relevante da primeira onda de interpretações sobre o fenômeno fascista.

Aos interessados em teoria do direito, podem com esse texto ter a oportunidade de ler e acompanhar o raciocínio sobre as relações entre autoritarismo e direito produzidas pelo mais abalizado representante do pensamento jurídico da União Soviética do período revolucionário.

  • 1
    Trata-se, por exemplo, dos artigos produzidos por Timothy Snyder no New York TimesSNYDER, Timothy. The American Abyss. In The New York Times Magazine. Publicado em versão digital em 09 de janeiro de 2021. https://www.nytimes.com/2021/01/09/magazine/trump-coup.html Acesso em 13 de março de 2021.
    https://www.nytimes.com/2021/01/09/magaz...
    , por Robert Paxton na NewsweekPAXTON, Robert. I’ve Hesitated to Call Donald Trump a Fascist. Until Now. In: Newsweek, publicado em versão digital em 11 de janeiro de 2021. https://www.newsweek.com/robert-paxton-trump-fascist-1560652 Acesso em 13 de março de 2021.
    https://www.newsweek.com/robert-paxton-t...
    e por Richard J Evans na NewstatesmanEVANS, Richard J. Why Trump isnt a Fascist. In: NewStatesman, publicado digitalmente em 13 de janeiro de 2021. https://www.newstatesman.com/world/2021/01/why-trump-isnt-fascist Acesso em 13 de março de 2021.
    https://www.newstatesman.com/world/2021/...
    .
  • 2
    Segue-se, nessa cronologia, as propostas de Marcio Bilharinho Naves e Alysson Leandro Mascaro.

Referências Bibliográficas

  • BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre mito e linguagem Editora 34, 2013.
  • DÓRIA, Pedro. Fascismo à brasileira Editora Planeta, 2020.
  • EVANS, Richard J. Why Trump isnt a Fascist In: NewStatesman, publicado digitalmente em 13 de janeiro de 2021. https://www.newstatesman.com/world/2021/01/why-trump-isnt-fascist Acesso em 13 de março de 2021.
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  • FICHELSTEIN, Federico. Do fascismo ao populismo na História Lisboa: Edições 70, 2020.
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  • PAXTON, Robert. I’ve Hesitated to Call Donald Trump a Fascist. Until Now In: Newsweek, publicado em versão digital em 11 de janeiro de 2021. https://www.newsweek.com/robert-paxton-trump-fascist-1560652 Acesso em 13 de março de 2021.
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  • ROSAS, Fernando. Salazar e os fascismos Lisboa: Editora Tinta da China, 2019.
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  • TRAVERSO, Enzo. The new faces of fascism: populism and the far right. Verso Editorial, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2021
  • Aceito
    30 Maio 2021
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