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Marcha das vadias e a liberdade de manifestação: controle social e a criminalização da mulher negra

"Slutwalk” and freedom of manifestation: social control and the criminalization of black women

Resumo

O artigo tem por objetivo reescrever sentença criminal que resultou na condenação de uma manifestante feminista pela prática de crime definido como ato obsceno, consistente na exibição de seus seios desnudos durante protesto público conhecido como “Marcha das Vadias”, em 8 de junho de 2013, na cidade de Guarulhos, em São Paulo. Para a elaboração do novo julgado foi proferida a análise dos autos do processo no qual constam as versões apresentadas na fase policial, bem como a prova posteriormente produzida ao longo da tramitação dos autos perante um dos juizados especiais criminais de São Paulo. Os elementos probatórios neste artigo foram interpretados pela lente hermenêutica de uma epistemologia feminista interseccional decolonial e resultaram, diversamente da sentença original, na absolvição da ré por atipicidade da conduta.

Palavras-chave:
Marcha das vadias; Ato obsceno; Epistemologia feminista interseccional decolonial; Liberdade de expressão

Abstract

The objective of the article is to rewrite the sentence of the case involving Roberta, accused of indecent exposure for showing her breast in the Slut March, Guarulhos, in June the 8th, 2013. The new judgment takes into consideration the evidence in the police procedure and the process brought to the special criminal justice unit. The reasoning is based on the evidence and legislation applicable to the case to rewrite the judgment. The evidence that we interpreted now, through the lens of a decolonial intersectional feminist epistemology, led us, instead of the original decision, to a not guilty sentence.

Keywords:
Slut march; Indecent exposure; Decolonial interseccional feminist epistemology; Right of Demonstration

1. Introdução

Nos últimos anos as agendas de diferentes áreas das ciências sociais foram impactadas pelas demandas dos movimentos sociais. O campo de estudos feministas é certamente um dos mais prolíficos em reflexões que articulam o debate teórico com intervenções práticas que contemplem outras formas de conhecimento e novos horizontes da práxis (CALDEIRA, 2013CALDEIRA, Cleusa. Hermenêutica Negra Feminista: um ensaio de interpretação de Cântico dos Cânticos 1.5-6. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013.; CHAVEZ, 2012CHAVEZ, Nelly Lucero Lara. La propuesta de la hermenéutica feminista como método en los estudios de comunicación. Derecho a comunicar, n° 4, abril/2012, p. 33-45.; COLLINS, 2002________. Black Feminist Thought. 2 ed. New York: Routledge, 2002., 2016; DE LOS RÍOS, 2018; GONZALES, 2011GONZALES, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-Americano. Cadernos de Formação Política do Círculo Palmarino. N. 1. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%2 0um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 13fev2018.
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; HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, (5), 2009, p. 7-41.; SEGATO, 2012_________. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES, Coimbra, 18, p. 106-131, 2012., 2015; PIEDADE, 2017PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017.). De fato, a emergência de epistemologias, muitas vezes silenciadas, tem sido o nascedouro de novas e mais ricas possibilidades de enquadramento teórico em todos os lugares do saber.

Nesse sentido, o feminismo em sua face bifronte, que conjuga tanto o que nas ruas se apresenta como pauta política de reivindicações quanto o que se produz no mundo da ciência, significa um contínuo processo de reflexão sobre como as demandas dos movimentos feministas, e em especial do feminismo negro, sugerem outros horizontes para pensar não apenas a teoria, mas também o modo como atores e atrizes do sistema de justiça atuam na prática jurídica. Para tanto são necessitárias ações investigativas, como o pioneiro projeto capitaneado por Hunter, Mcglynn e Rackley (2010RACKLEY, Erika. The Art and Craft of Writing Judgments: Notes on the Feminist Judgments Project. In: HUNTER, Rosemary; MCGLYNN, Clare; RACKLEY, Erika. Feminist judgements: from theory to practice, Oxford, Hart Publishing, p. 44-56, 2010., p. 3), que propõe o enfrentamento e os desafios de reescreverem julgamentos, sob o enfoque feminista, a partir dos procedimentos previstos na legislação como parâmetros para a atuação judicial. Uma proposta que reclama o (re)pensar sobre o quanto muitas práticas do sistema de justiça, supostamente descritas como neutras, nada mais são do que o espelhamento da estrutura dominante ditada pelo patriarcado.

Deve-se considerar que os vieses de gênero impactam a atividade jurisdicional, bem como a própria escrita jurídica. A possibilidade de pensar a reescrita da sentença evidencia que ainda precisamos avançar para a real inclusão das mulheres nas vivências jurídicas. É central contemplar as experiências femininas na argumentação jurídica (HUNTER, 2010HUNTER, Rosemary. An Account of Feminist Judging. In: HUNTER, Rosemary; MCGLYNN, Clare; RACKLEY, Erika. Feminist judgements: from theory to practice, Oxford, Hart Publishing, 2010, p. 30- 43., p. 35). Daí porque, na linha do projeto (HUNTER, MCGLYNN, RACKLEY, 2010RACKLEY, Erika. The Art and Craft of Writing Judgments: Notes on the Feminist Judgments Project. In: HUNTER, Rosemary; MCGLYNN, Clare; RACKLEY, Erika. Feminist judgements: from theory to practice, Oxford, Hart Publishing, p. 44-56, 2010.), propõe-se neste artigo, após uma breve descrição do caso selecionado, “proferir uma nova sentença”, no âmbito da qual o centro epistemológico contemple a experiência de ser uma mulher, negra, militante feminista, processada pela prática do crime de ato obsceno, por desnudar os seios em sinal de protesto durante a Marcha das Vadias em 2013.

O caso criminal objeto da presente análise iniciou-se com termo circunstanciado instaurado no Juizado Especial Criminal da Comarca de Guarulhos-SP - TJSP, no dia 8 de junho de 2013, em face de Roberta, autuada em flagrante durante a Marcha das Vadias, na cidade de Guarulhos, em São Paulo, sob a acusação da prática do crime de ato obsceno por protestar com seus seios desnudos. Consta do procedimento que Ana Beatriz e Roberta foram detidas pela Polícia Militar sob a mesma imputação de ato obsceno. Remetida a questão ao Juizado Especial Criminal da Comarca de Guarulhos, nos termos do procedimento previsto na Lei 9.099/1995, o Ministério Público requereu a designação de audiência preliminar para oferecimento de proposta de transação penal a Ana Beatriz, pelos crimes de desacato e resistência; e a Roberta, pelo delito de ato obsceno.

A indiciada Ana Beatriz aceitou a transação penal oferecida pelo Ministério Público, extinguindo-se a punibilidade. Roberta, por sua vez, recusou-se a aceitar a proposta ministerial, ocasião em que foi oferecida denúncia pelo Ministério Público pela prática do crime tipificado como ato obsceno, artigo 233 do Código Penal. Encerrada a instrução foi proferida sentença condenatória de Roberta pela prática do crime imputado na denúncia (art. 233 do CP) à pena de 3 (três) meses de detenção, no regime aberto, substituída por sanção pecuniária de R$ 1.000,00 (mil reais). É importante observar que da mencionada sentença foi interposto recurso de apelação ao TJSP, mas foi improvido. Em seguida foram interpostos embargos de declaração com a finalidade de pré-questionamento da matéria constitucional, que também foram negados em 9 de agosto de 2017. Foi então interposto Recurso Extraordinário dirigido ao Excelso Supremo Tribunal Federal, até o momento pendente de resposta.

Na sentença de primeiro grau o magistrado fundamentou que a sociedade “tem o direito de ser respeitada no sentimento do pudor e da sua dignidade”. Ressaltou que, se a acusada desejasse exercer seu direito constitucional de expressão, “poderia tê-lo feito em local outro e de modo a não ferir o pudor público, em manifesto desrespeito aos demais transeuntes, que, incomodados, buscaram a intervenção policial”. Segundo o julgador:

As condutas ofensivas ao pudor público estão diretamente relacionadas à moralidade e à sexualidade e, como condição ao esclarecimento destas definições, é preciso ter consciência de que os entendimentos relacionados ao sexo sofrem modificações de acordo com o momento histórico.

Além disso, é imprescindível para a caracterização do delito que a conduta seja cometida em lugar público (pleno acesso público), lugar aberto ao público (acesso livre ao público ou mediante condições) ou lugar exposto ao público (embora não seja público, pode ser observado por um número indefinido de pessoas). No caso dos autos, a ré praticou a conduta em local muito movimentado e em que transitam, diariamente, número elevado de pessoas, cercado por comércio local, igreja, instituições bancárias e órgãos públicos, inclusive.

Em relação à tipicidade subjetiva afigura-se imprescindível o dolo, configurado pela consciência e pela vontade de praticar o ato obsceno nas condições descritas no artigo. Vislumbra-se, in casu, o elemento cognitivo ou intelectual (conhecimento da ação típica) e o elemento volitivo, intencional ou emocional (vontade intencional da conduta). Tanto é verdade que, como asseverou o representante do Ministério Público, o dolo teria sido evidenciado pelo fato de a ré, uma cidadã maior de idade e plenamente imputável, ter conscientemente desnudado o corpo naquela situação, ofendendo assim o pudor público (Autos n.º 3020103-33.8.26.0224.2013, p. 144).

A sentença proferida no âmbito do Juizado Especial Criminal da Comarca de Guarulhos foi objeto de recurso dirigido à Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na segunda instância, atuou como amicus curiae o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher - CLADEM/BRASIL, organização feminista internacional responsável pela apresentação, dentre outros, do Caso Maria da Penha perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Contudo, foi mantida a decisão condenatória contra Roberta. Com a contribuição do CLADEM/BRASIL foi, então, interposto recurso extraordinário ao qual foi negado seguimento pela Justiça Paulista de 2a. Instância, o que resultou na interposição de recurso de agravo ao Supremo Tribunal Federal (ARE 1.151.655) com o objetivo de promover a admissibilidade do recurso extraordinário. O Ministério Público, por sua vez, manejou agravo interno ao STF, que se encontrava sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, tendo sido incluído em pauta de julgamento virtual pela 1a. Turma em 5 de outubro de 2018 e retirado de pauta em 9 de outubro do mesmo ano. Até o momento não houve decisão pelo STF.

A condenação de Roberta abre a perspectiva de análise sobre como o sistema de justiça criminal pode reagir ao enquadramento de ações de integrantes de movimentos sociais. No entanto, o conteúdo argumentativo trazido pelo magistrado na sentença, pautado no que ele e a doutrina dominante entendem como “moral” e “bons costumes” deixa antever que, no caso das mulheres, particularmente as mulheres negras, a lógica criminalizadora ultrapassa o que tradicionalmente se entende como a resposta de uma “classe” em relação às ações reivindicatórias da outra. Há mais no julgamento de Roberta: há gênero e há raça em um esquema de pré-compreensão colonial.

Como se observa o processo de dominação epistêmica colonial é a chave para a leitura de decisões judiciais que orienta o que pensa o sujeito-de-suposto-saber (GONZALES, 2011GONZALES, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-Americano. Cadernos de Formação Política do Círculo Palmarino. N. 1. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%2 0um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 13fev2018.
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) cis, hétero, branco (masculino ou feminino), assentado nos espaços de dominação como é o judiciário (MENDES, 2020MENDES, Soraia; MACHADO, Bruno Amaral. Negras vadias: a criminalização do corpo negro que ousa protestar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 10, 2, p. 188-203, 2020.). Nota-se que Gonzales (2011GONZALES, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-Americano. Cadernos de Formação Política do Círculo Palmarino. N. 1. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%2 0um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 13fev2018.
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) foi precisa ao apontar que aquelas que não são sujeitas do seu próprio discurso, são somente “faladas” pelos outros. Nesse aspecto, destaca que a criança, ao ser referida pelos adultos na terceira pessoa é, consequentemente, excluída, ignorada, colocada como ausência, a despeito de sua presença. Ela, a criança, reproduz o discurso dos adultos sobre ela e é por essa razão que fala de si em terceira pessoa. Por essa razão a interseccionalidade de gênero, raça e classe (CRENSHAW, p. 177) torna-se valiosa ferramenta teórica para a finalidade descritiva e explicativa de sentenças judiciais, que dizem muito mais nas entrelinhas do que é apresentado como “verdade” assentada na leitura restrita da lei e nos fundamentos da doutrina.

A pensadora Kimberlé Crenshaw propõe a interseccionalidade como categoria que expressa o reconhecimento que cada um tem de suas experiências únicas de discriminação e opressão. Assim, devemos considerar todas as relações que possam marginalizar as pessoas, como gênero, raça, classe, orientação sexual e capacidade física (CRENSHAW, p. 177). Deve-se considerar também como essas desigualdades operam conjuntamente, de forma a acentuar vulnerabilidades. A esse respeito Carla Akotirene discute e problematiza o conceito cunhado por Crenshaw, e adverte como no Brasil a categoria por ser apropriada por instituições e movimentos sociais invisibiliza a autoria feminista negra. Para ela, além da reflexão sobre múltiplas identidades, a interseccionalidade revela de que modo as “mulheres negras são discriminadas e estão posicionadas em avenidas identitárias que farão delas vulneráveis das estruturas e fluxos modernos” (2019, p. 63). Ela também é crítica em relação ao termo feminismo interseccional como substituto do feminismo negro, pois equivaleria a explorar a “riqueza intelectual da África e chamar de modernidade” (2019, p. 51).

Nesse contexto, a proposta da abordagem decolonial ainda nos remete aos estudos de Quijano (1997QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Anuario Mariateguiano, Lima, Amauta, Vol. IX, Nº 9, 1997.; 1992). Deve-se considerar que a colonialidade se manifesta tanto na persistência de dispositivos de poder que remetem a estruturas do modelo de dominação colonial quanto na hegemonia epistêmica dos saberes da metrópole. Movido pela suposta superioridade racial do branco europeu o ponto de partida colonial sustenta a inferioridade dos povos que habitam as áreas colonizadas e opera, assim, a legitimação das formas de dominação nas regiões submetidas ao processo de colonização. Nessa equação, uma abordagem decolonial desvela a reprodução da lógica colonial e racista a partir de uma estratégia emancipatória, ao propor chaves de leitura que contemplem a nossa realidade histórica e privilegiem as vozes, as trajetórias e os saberes locais.

É a partir dessa leitura que a (re)escrita da sentença do caso envolvendo Roberta, repita-se, condenada pela prática do crime de ato obsceno, por ter exibido os seios na manifestação Marcha das Vadias, em 8 de junho de 2013, em Guarulhos está epistemologicamente orientada pela perspectiva feminista interseccional decolonial. Sem deixar de levar em conta a legislação aplicável, bem como a prova produzida, e especialmente a legalidade constitucional e convencional, o desfecho do julgamento, sob a perspectiva decolonial, é outro bem diverso da decisão tradicional. Na construção dos fundamentos da sentença, logo no início, optou-se por recuperar o que foi identificado como parte das referências tradicionalmente acionadas pelo pensamento jurídico hegemônico. A partir dessa interpretação foi sustentado que, embora incompletas e cegas para as questões de gênero e raça, essa nova perspectiva sugere abertura suficiente para o direcionamento epistêmico por meio da lente feminista proposta. Decidiu-se, assim, explorar esse potencial hermenêutico para ir além da literatura jurídica tradicional, que informa todas as experiências vivenciadas pela ré em sua participação no evento. A lente feminista interseccional decolonial é a mais ajustada à interpretação do fato.

Uma questão estilística deve também ser considerada nesse percurso. Hunter, Mcglynn e Rackley (2010RACKLEY, Erika. The Art and Craft of Writing Judgments: Notes on the Feminist Judgments Project. In: HUNTER, Rosemary; MCGLYNN, Clare; RACKLEY, Erika. Feminist judgements: from theory to practice, Oxford, Hart Publishing, p. 44-56, 2010.) apontam para as diferenças entre a escrita acadêmica e o estilo judicial. A primeira não raramente expõe as contingências dos resultados apresentados, ou desvela múltiplas possibilidades, ao passo que a decisão judicial se fundamenta na suposta verdade dos fatos levados em conta e o direito aplicável para a tomada da decisão. A propósito, adverte Rackley (2010, p. 55-56) a respeito dos estudos recentes que sugerem a aproximação estilística das sentenças judiciais da escrita acadêmica, o que certamente não retira o status e o poder da escrita judicial. Um dos desafios do projeto “julgamentos feministas” consiste em evidenciar outros percursos para a reconstrução dos parâmetros a serem utilizados no julgamento dos casos, a partir das mesmas fontes legais, mas sob perspectivas feministas, particularmente aquelas abertas às nossas vivências históricas.

2. A reescrita do julgamento: da criminalização do corpo negro a uma releitura feminista decolonial

O representante do Ministério Público da Comarca de Guarulhos-SP ofereceu denúncia em desfavor de Roberta da Silva Pereira, nas penas do art. 233, caput, do Código Penal Brasileiro. A conduta da denunciada foi narrada nos seguintes termos:

Consta do incluso termo circunstanciado que no dia 08 de junho de 2013, por volta das 17h01, na Rua Dom Pedro II, n° 1, Centro, nesta Cidade e Comarca, ROBERTA DA SILVA PEREIRA, qualificada em fls. 04, praticou ato obsceno em lugar exposto ao público.

Consta, ainda, que nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, ANA BEATRIZ FERREIRA FELIPPE DA SILVA, qualificada em fls. 03, desacatou funcionário público no exercício da função e em razão dela.

Conforme caderno investigatório, por ocasião dos fatos ocorria no logradouro acima descrito a manifestação nominada “Marcha das Vadias”.

É dos autos que, em dado momento, a denunciada ROBERTA retirou suas vestes, expondo seus seios em via pública. Ante tal fato, milicianos que acompanhavam o evento solicitaram que a agente vestisse sua blusa, ao que foram desatendidos, momento em que, ao se aproximarem de ROBERTA, formou-se uma aglomeração em torno dos envolvidos. Nesse momento, a denunciada ANA BEATRIZ voltou-se contra os policiais militares e os desacatou, xingando-os de “polícia do caralho, vai tomar no cú seus filhos da puta, vão se fuder”.

Posto isto, denuncio a Vossa Excelência ROBERTA DA SILVA PEREIRA, como incursa no artigo 233, caput, do Código Penal, bem como ANA BEATRIZ FERREIRA FELIPPE DA SILVA, como incursa no artigo 331, do Código penal (sic), e requeiro seja esta autuada e recebida, dando-se início a ação penal, citando-as para interrogatório e demais fases, até final sentença condenatória, prosseguindo-se na forma do art. 77 e seguintes da Lei n° 9.099/95, a fim de que, julgadas, venham a ser condenadas pelas infrações que cometeram, ouvindo-se, oportunamente, as testemunhas abaixo arroladas: (...). (Sem sublinhados no original).

A acusação formal foi proposta no âmbito do procedimento originário (autos n.º 3020103-33.2013.8.26.0224.2013), remetido ao Juizado Especial Criminal da Comarca de Guarulhos-SP, decorrente da autuação de Roberta da Silva Pereira por crime de “ato obsceno”, supostamente ocorrido no contexto da manifestação denominada “Marcha das Vadias”.

Nos moldes do art. 69 e seguintes da Lei n.º 9099/95, foi designada data para audiência preliminar com a finalidade de oferecimento de proposta de transação penal, nos termos da manifestação do Ministério Público.

Por ocasião da audiência preliminar, realizada no dia 8 de agosto de 2013, a manifestante Roberta não aceitou a proposta de transação penal, por meio da qual deveria pagar multa no valor de R$ 300,00 (trezentos reais), cujo montante seria revertido para entidades beneficentes da cidade de Guarulhos-SP. Diante da recusa houve o oferecimento da denúncia precedentemente descrita.

Após o oferecimento da denúncia foi realizada a audiência no dia 27 de outubro de 2015, oportunidade em que, a despeito dos argumentos defensivos articulados pela advogada de Roberta, a denúncia foi recebida.

Na sequência houve oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei n.º 9099/1995, consistente nas seguintes condições: 1) comparecimento bimestral; e 2) pagamento de multa no valor de R$ 800,00 (oitocentos reais). A referida proposta foi prontamente recusada pela denunciada ROBERTA.

Em despacho posterior foi designada audiência de instrução e julgamento para o dia 28 de abril de 2016. Por meio de petição isolada a Defesa arrolou 3 (três) testemunhas que, diante da impossibilidade de comparecimento na data anteriormente designada para a instrução processual, 28/4/2016, resultou no adiamento do ato para o dia 19 de maio de 2016.

Na referida data, 19/5/2016, a audiência foi gravada em áudio, oportunidade em que foram ouvidos os policiais militares Cláudia Pereira de Assis e William Mota Ananias da Conceição, bem como o adolescente Marcos Santos da Silva. Em seguida a denunciada Roberta foi interrogada.

No final da instrução probatória o Promotor de Justiça manifestou-se pela condenação de Roberta, oportunidade em que postulou pela fixação da pena no mínimo legal cominado para o tipo penal em questão. Por conseguinte requereu a aplicação do regime aberto, bem como a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.

A defesa requereu inicialmente a rejeição da denúncia ou, alternativamente, a absolvição sumária da denunciada. Em relação ao mérito postulou pela absolvição sob o argumento de ausência de dolo específico na conduta de Roberta, destacando a aceitação social de sua conduta.

Importa destacar ainda as seguintes peças dos autos: folheto com as diretrizes da manifestação “Marcha das Vadias” e folha de antecedentes penais da acusada (vide autos de n.º n. 3020103-33.2013.8.26.0224.2013).

É o relatório.

DECIDIMOS.

O caso sob análise ocorreu na cidade de Guarulhos-SP, no dia 8 de junho de 2013, por ocasião da “Marcha das Vadias”, movimento inicialmente idealizado no Canadá como reação organizada contra o estupro de uma universitária. No contexto da manifestação relatada nos autos, a ativista Roberta, feminista e negra, foi autuada pela polícia militar sob a alegação de ter praticado o crime previsto no artigo 233 do Código Penal Brasileiro, descrito como “ato obsceno”.

No mais, consta nos autos que a autuação e detenção de Roberta foi motivada pelo fato de ter participado do referido protesto com a exposição dos seus seios. Esse episódio gerou reação por parte da equipe policial que acompanhava a manifestação, contexto em que um dos policiais ordenou que Roberta vestisse novamente sua blusa. Naquele momento, consta no processo que ao tentar alcançar Roberta, o policial foi impedido pelas demais participantes daquele evento, que formaram um “bloqueio” ao redor da referida manifestante. Momentos depois outras manifestantes seguiram o ato de Roberta com a retirada das suas respectivas camisetas.

Na fase instrutória os policiais militares que faziam parte da guarnição no dia do fato e uma testemunha presencial foram reinquiridos sobre a dinâmica dos acontecimentos. A testemunha Cláudia, policial que conduziu a ocorrência, não se recordava mais da fisionomia de Roberta. Além disso, também não esclareceu se era Roberta a pessoa que havia participado da “Marcha” com os seios desnudos. A aludida policial esclareceu ainda que não havia se sentido incomodada com a exposição dos seios por parte das manifestantes no contexto do movimento.

A testemunha Marcos Santos da Silva, adolescente que presenciou o ocorrido, afirmou em audiência que não se recordava dos fatos, tampouco da presença de Roberta no local. Acrescentou ainda que não tinha presenciado as manifestantes com os seios à mostra. Declarou, por fim, que não se recordava do teor de seu depoimento prestado na delegacia de polícia.

Apenas o policial militar William Mota Ananias da Conceição, que figurou no contexto dos autos como vítima e testemunha, reconheceu Roberta por ocasião da referida audiência de instrução probatória.

Em seu interrogatório em Juízo Roberta declarou-se inocente, pois, embora tenha admitido a exposição dos seus seios no âmbito da “Marcha” referida, esclareceu que o tinha feito como expressão do seu direito constitucional de manifestação pública. Quanto ao mais, informou que tinha vestido sua blusa logo após a advertência policial.

Em análise atenta dos autos não se vislumbram elementos suficientes para sustentar a condenação da denunciada Roberta. Nesse aspecto, observa-se inicialmente que se trata de fato ocorrido no contexto de uma manifestação composta por mulheres que, na referida ocasião, defendiam uma pauta composta de denúncias contra violência sexual e outras formas de agressões contra as mulheres. Convém reiterar ainda que o referido movimento é originário de outros países, conhecido por “Marcha das Vadias”, denominação que resultou da indignação das mulheres diante do insulto advindo de um policial canadense que, a respeito da ocorrência de estupros comumente praticados contra mulheres, afirmou, em síntese, que a forma de vestir delas autorizava esse modo de violência.

Esse, portanto, foi o contexto em que a manifestante Roberta, ora acusada, despiu a parte superior de seu corpo, deixando à mostra seus seios no interior do ato público. Sobre o tipo penal que lhe foi imputado na ocorrência policial e posteriormente na denúncia, descrito no art. 233 do Código Penal e identificado como “ato obsceno”, trata-se de conduta relacionada aos crimes de “ultraje público ao pudor”, que tem como bem jurídico a ser protegido justamente o “pudor público”.

Como se nota, a questão central para a análise da subsunção da conduta de Roberta ao tipo penal mencionado suscita o exame a respeito especialmente da tipicidade que, com os demais elementos do fato típico, consistentes na conduta, no resultado e no nexo causal, demanda do julgador o necessário exercício de modelação. É no aspecto da tipicidade, no entanto, que requer a necessidade de verificação por parte do magistrado da ação fenomênica, pois é preciso que tal fato se ajuste não somente ao aspecto formal, ou seja, à descrição típica, mas, sobretudo, ao aspecto material, traduzido no bem jurídico a ser protegido com a norma penal.

Assim, a análise da tipicidade manifesta-se na verificação da relevância jurídica do fato em comento. No presente caso, pois, não se pode perder de vista aquilo que a lei penal estabeleceu como bem jurídico a ser protegido com a resposta penal para o crime em questão que, conforme já expressado, trata-se do “pudor público”. Essa assertiva, por conseguinte, leva indiscutivelmente à análise subsequente, que consiste na verificação da conduta de Roberta no contexto fático que resultou na sua autuação.

Sobre a mencionada conduta é indispensável observar o teor do folheto distribuído pelas manifestantes nos dias que antecederam a referida manifestação, documento que se encontra juntado aos autos. A respeito do mencionado informe, e pela relevância do seu conteúdo para a análise aqui proposta, convém ser destacados os principais trechos nele inseridos:

Isso não é sobre sexo, é contra violência!

Por que se chama Marcha das Vadias?

Em 2010 no Canadá um policial disse para alunas de uma universidade que deixassem de se vestir como vadias a fim de evitarem abusos sexuais. Em resposta a isso surgiu uma manifestação chamada Marcha das Vadias, para desconstruir esse pensamento de que as roupas ou o comportamento de uma mulher podem justificar um abuso. NADA justifica um abuso.

Por que mulheres marcham nuas ou com roupas pequenas?

É de interesse da indústria da moda, cosmética e da mídia que apenas corpos perfeitos sejam visíveis em outdoors, comerciais, desfiles, novelas, revistas, fazendo uma distorção da realidade que conhecemos bem. Esta exposição durante a Marcha é subversiva, muitas vezes choca, muita gente se ofende e não sabe nem porque, não entende os gritos de liberdade, pois tirar as roupas que nos impõem serem vestidas é mostrar que todas podem se amar como são, todas podem aprender a se aceitar e não ter vergonha de estar fora do padrão imposto.

Mas afinal, o que é feminismo?

Feminismo é um movimento que acredita que as pessoas são iguais, não são as mulheres contra os homens, mas sim uma luta por diversas causas: pelo direito da mulher à sua autonomia e à integridade de seu corpo, pelos direitos ao aborto e pelos direitos reprodutivos (incluindo o acesso à contracepção e a cuidados pré-natais de qualidade), pela proteção de mulheres e garotas contra a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro, pelos direitos trabalhistas, incluindo a licença-maternidade e salários iguais, e contra todas as formas de discriminação. [...]. (Ressalvam-se os itálicos).

Em perspectiva constitucional a lente feminista proposta não se mostra avessa ao diálogo com a literatura jurídica tradicionalmente acionada em casos que discutem direitos fundamentais. Ao contrário, é possível construir pontes, mediadas por diálogos abertos às nossas realidades e demandas dos movimentos sociais. Por isso é preciso ir além, pois não nos parece suficiente.

O constitucionalista espanhol Peces-Barba Martínes aponta para a feição funcional dos direitos fundamentais que se identificam, no sistema normativo, “como norma básica de identificação de normas” (MARTÍNES, p. 416-422), demarcado o pressuposto de que os direitos fundamentais não podem ser entendidos sem a devida contextualização com a moralidade e a realidade social, bem como com os fins e os objetivos a que se propõem. São, sobretudo, “um instrumento para alcançar a liberdade ou a autonomia moral, em pleno desenvolvimento da personalidade” (MARTÍNES, p. 414), tema tratado no art. 5º, caput, da Constituição Federal.

Esse argumento foi utilizado, por exemplo, no acórdão que decidiu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 130, que ao adotar um critério de ponderação, pretende saber “qual dos interesses” previstos em abstrato no Texto Constitucional, possuem “maior peso no caso concreto”. O posicionamento paradigmático adotado pela Suprema Corte brasileira, ao conciliar a regra da “livre manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma” prevista no art. 220, com o direito à liberdade, previsto no art. 5, ambos da Constituição Federal, resultou na seguinte afirmação peremptória:

(...) primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a "livre" e "plena" manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana.

A Constituição impede, portanto, “qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento, vedado o anonimato” (art. 5.º, inc. IV, da Constituição Federal). Outro marco relevante firmado pelo Supremo Tribunal a respeito das liberdades públicas consiste no julgamento da ADPF n.º 187, ocasião em que foi ressaltada a proeminência de “duas liberdades individuais revestidas de caráter fundamental: o direito de reunião (liberdade meio) e o direito à livre expressão do pensamento (liberdade fim)”. Nesse contexto, o “direito à livre expressão do pensamento” foi designado como “pré-condição necessária à ativa participação dos cidadãos no processo político e no de tomada de decisões no âmbito do aparelho de estado”, com o enaltecimento da “legitimidade, sob perspectiva estritamente constitucional, de assembleias, reuniões, marchas, passeatas ou encontros coletivos realizados em espaços públicos (ou privados)” com o intuito de “promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião”.

Referido acórdão contém ainda a afirmação no sentido de que o debate a respeito de certa conduta como criminosa “não se confunde” com a “incitação à prática de delito”, nem tampouco com a “apologia de fato criminoso”, refletindo, em verdade, o exercício das prerrogativas previstas no art. 5º, incisos IV, V e X da Constituição Federal.

Outro tópico decisório importante, a respeito da prática da figura delitiva do “ato obsceno”, revela-se no julgamento do Habeas Corpus nº 83996 - RJ. Nesse caso, para a deliberação a respeito da eventual caracterização de ofensa ao pudor público, a Suprema Corte entendeu, no caso concreto ali examinado, que “não se pode olvidar o contexto em se verificou o ato incriminado” e que “o exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão”.

Certamente a atividade hermenêutica constitucional deve submeter-se à possibilidade de “impor um propósito a um objeto e prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam” (DWORKIN, p. 63-64). A referida atividade consiste em descrever os fatos do mundo e a subsequente estimativa de como as normas jurídicas podem ser aplicadas no caso concreto. Isso não pode ser confundido, em absoluto, com a imposição das crenças pessoais do intérprete. O procedimento interpretativo das leis, para DWORKIN, envolve três distintas etapas hermenêuticas. A primeira delas é a “pré-interpretativa” e nessa fase são identificadas as regras, bem como os padrões que possam fornecer o conteúdo decorrente da prática decisória. A segunda enuncia a determinação da função eminentemente interpretativa, por meio da qual são definidos os principais elementos práticos e normativos evidenciados no momento pré-interpretativo. Finalmente, na terceira, que é a atividade pós-interpretativa haverá o ensejo para que o intérprete ajuste ou mesmo reformule o modelo de aplicação das normas jurídicas anteriormente pensadas, diante de outras variáveis observadas após o transcurso das duas etapas precedentes (DWORKIN, p. 81-88).

A Suprema Corte Brasileira já escreveu os capítulos de seu chain novel a respeito da liberdade de expressão do pensamento, e, como se estivesse a elaborar uma obra de diversos capítulos, descreveu em espaços decisórios específicos o que interpela leitores a pensar que a conduta de Roberta nos sugere o exercício de direito fundamental, na plena fruição de suas liberdades públicas. Liberdades essas que, em uma via ainda mais ampliada, exige de nós julgadoras e julgadores uma nova mirada desde uma perspectiva epistemológica adequada ao contexto que analisamos nos autos. Assim, devemos indagar. Há ação típica e antijurídica na manifestação de Roberta? Há ofensa ao pudor público?

O diálogo proposto com a literatura jurídica tradicionalmente mobilizada para a análise dos direitos fundamentais nos desafia a ir além, conforme já anunciado. A concretização dos direitos supõe levar em conta realidades históricas, vinculadas a processos de dominação colonial, patriarcal e racial que nos dizem muito sobre o caso em análise. E essas não são contempladas nos autores referenciados. E o caso requer. Em seus escritos, Gonzales (2011GONZALES, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-Americano. Cadernos de Formação Política do Círculo Palmarino. N. 1. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%2 0um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 13fev2018.
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, p. 13-14) advertia: “nós mulheres e não-brancas, fomos ‘faladas’, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza”. Em outra posição encontra-se o sujeito-suposto-saber, como aquele que de modo imaginário identifica-se com determinadas figuras (mãe, pai, psicanalista, professor etc.) às quais se atribui um saber que necessariamente elas não possuem. Para Gonzales (2011, p. 14), a categoria de sujeito-suposto-saber possibilita compreender os mecanismos psíquicos inconscientes que se conformam na superioridade que o colonizado atribui ao colonizador. Assim, o eurocentrismo e seu efeito neocolonialista são formas alienadas de uma teoria e de uma prática que são percebidas como liberadoras, mas que, em verdade, não o são.

A advertência de Gonzales é um convite à exploração da limitação dos aportes tradicionalmente acionados ao falarmos em direitos fundamentais. Os saberes locais, conforme nos interpela Haraway (2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, (5), 2009, p. 7-41.) ao discutir feminismo e ciência, sugere, em esforço de interpretação, a superação da literatura jurídica tradicional, pois, embora possa insinuar caminhos, não se mostra suficiente para captar as vivências e dores de quem assimila as experiências do controle formal historicamente dirigido ao corpo da mulher negra.

Também Segato (2015SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo, 2015.) nos alerta para os caminhos que conduzam a uma discussão atualizada sobre os direitos humanos e que contemplem as realidades latino-americanas. A modernidade pós-intrusão foi moldada pela introdução de dispositivos de poder da metrópole, marcada pelo genocídio indígena e pela escravidão negra. Nesse contexto os discursos jurídicos fazem parte da hegemonia epistêmica e legitimadora da dominação exercida pelas instituições de controle formal.

Em perspectiva que dialoga com as autoras mencionadas e em instigante pesquisa sobre o que escrevem os constitucionalistas a respeito da dignidade da pessoa humana, Camilla de Magalhães Gomes (2019GOMES, Camilla Magalhães. Têmis travesty. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.) evidencia os efeitos da pretensa universalização da categoria homem, cega para as realidades experienciadas pelos sujeitos e sujeitas de direitos. Um debate sério sobre direitos fundamentais requer a contemplação das categorias gênero, corpo, raça e sexualidade, que devem ser mobilizadas para a reconstrução dos tópicos jurídicas, contemplando, ainda, a nossa matriz histórica marcada pela dominação colonial.

Com razão as mencionadas autoras, pois o vocabulário pretensamente universal dos direitos fundamentais não é suficiente para nomear a violência praticada no caso dos autos. Em diálogo que propomos com Gonzales (2011GONZALES, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-Americano. Cadernos de Formação Política do Círculo Palmarino. N. 1. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%2 0um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 13fev2018.
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), Haraway (2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, (5), 2009, p. 7-41.), Segato (2015SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo, 2015.) e Gomes (2019GOMES, Camilla Magalhães. Têmis travesty. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.), devemos repensar a gramática dos direitos fundamentais ao contemplarmos a realidade brasileira e as múltiplas formas de violência estrutural, particularmente colonial, patriarcal e racista.

É nessa linha a proposta de interseccionalidade de gênero, raça e classe, como valiosa ferramenta teórica, cuja validade para a finalidade descritiva e explicativa deve orientar-se pela percepção histórica da realidade brasileira, contexto no qual o processo de produção colonial segregou as mulheres negras, exceto da dor. A elas foram impingidas as piores dores que o corpo e a mente podem enfrentar entre as quais estão o estupro histórico que “clareou” a força a pele de muitas mulheres para, em seguida, sexualizá-las ao extremo como “mulatas tipo exportação”. Coisificado, desnudo, sexualizado, explorado, torturado pelo processo escravagista, o corpo negro feminino foi historicamente construído e talhado para o trabalho extenuante ou para a luxúria, jamais para o protesto e para a insurgência, gestos que foram interditados e castigados (MENDES; MACHADO, 2020MENDES, Soraia; MACHADO, Bruno Amaral. Negras vadias: a criminalização do corpo negro que ousa protestar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 10, 2, p. 188-203, 2020.).

O desnudar o corpo como forma de protesto por Roberta, mulher, negra, latino-americana e brasileira, está ligado a dor que a une secularmente às mulheres que com ela estavam e, inclusive, que antes dela viveram neste país e resistiram à opressão. Eis o que Vilma Piedade cunhou como dororidade. Para ela a dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as mulheres pelo machismo. No entanto, quando se trata das mulheres negras há um agravante nessa dor. A pele preta marca seu lugar na escala inferior da sociedade. A Sororidade parece não dar conta da pretitude. Foi a partir dessa percepção que a autora pensou em outra direção, em um novo conceito que, apesar de muito novo, já carrega um fardo antigo, velho conhecido das mulheres: a dor, mas, nesse caso, especificamente, a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais racismo e mais dor (PIEDADE, 2017PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017., p. 17).

Como se nota, a emergência do conceito de dororidade inseriu novos contornos à interseccionalidade naquilo em que ela se mostra ferramenta apta a descrever a nossa realidade histórica (PIEDADE, 2017PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017.). Epistemologicamente alinhados, dororidade e interseccionalidade conformam perspectivas que desvelam o modus operandi político machista, classista e racista na sociedade e nas instituições, inclusive no sistema de justiça. É essa a dimensão hermenêutica dos direitos fundamentais que foi considerada, em perspectiva ampliada pela lente epistemológica feminista interseccional decolonial, e é capaz de nos permitir explicitar e nomear as múltiplas dimensões da liberdade de expressão das mulheres que protestam contra a violência sexual, como é o caso sob análise.

Como se infere dos autos, na lente hermenêutica proposta, o objetivo da marcha, a despeito de ter adotado o desnudamento como artefato semântico poderoso para despertar a atenção às pautas do movimento feminista, não supôs, em nenhum momento, qualquer objetivo de cunho sexual ou libidinoso e, por conseguinte, não pretendeu atingir o pudor público. Ao contrário, verifica-se que a frase inicial do referido folheto, destacada no original em itálico, em referência ao ato público sob análise, ressalva que “isso não é sobre sexo, é contra violência!”. Vale recordar que a estratégia do desnudamento dos seios tem sido adotada em diversos países e circunstâncias relacionadas ao movimento feminista, de modo que se trata de situação a ser analisada com cautela e sempre contextualizada, com a finalidade de evitar-se a subsunção apressada ao tipo penal em questão. No caso da manifestação em Guarulhos-SP, percebe-se que entre os objetivos do movimento encontrava-se justamente a reação das mulheres à violência e aos abusos de natureza sexual.

Anteriormente inscrita no rol dos “crimes contra os costumes” na redação inicial do Código Penal de 1940, a violência sexual contra as mulheres nunca, até alteração legal ocorrida somente neste milênio, tomou a dignidade da mulher, sua liberdade ou integridade física e moral como parâmetro para a proteção penal. Particularmente para o direito penal, durante muito tempo, o que se colocava como “questão” era a honra do homem, seja pai, irmão, marido, isto é, o proprietário e possuidor daquele objeto: o corpo da mulher. Violentar uma mulher significava desonrar a família. O crime, por si só, era um ato de demonstração de força, de diminuição do outro: o patriarca, proprietário das terras, dos escravos, das mulheres (MENDES; PIMENTEL, 2018MENDES, Soraia da Rosa; PIMENTEL, Elaine. C. A Violência Sexual: a epistemologia feminista como fundamento de uma dogmática penal feminista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, p. 305-328, São Paulo, RT, 2018., p. 316).

Com a reforma penal por meio da Lei n. 12.015, de 2009, passou-se a nominar crimes contra a dignidade sexual e crimes contra a liberdade sexual. Sustenta-se, assim, que a interpretação dos direitos fundamentais deve orientar-se pela lente epistemológica feminista interseccional decolonial, o que supõe repensar a dogmática penal em face da vitimização feminina e da condição das mulheres como sujeitos de direito e de sua própria sexualidade. Trata-se de mudança que, no entanto, na releitura proposta nesta sentença, pretende promover a superação das relações de opressão racial e de gênero que estão nas bases sociais das práticas de crimes sexuais contra as mulheres (MENDES; PIMENTEL, 2018MENDES, Soraia da Rosa; PIMENTEL, Elaine. C. A Violência Sexual: a epistemologia feminista como fundamento de uma dogmática penal feminista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, p. 305-328, São Paulo, RT, 2018., p. 317), e particularmente contra as mulheres negras. Por isso mostra-se necessário reconhecer que o ato de protesto no tempo, lugar e forma como foi realizado por Roberta se destina a todas as mulheres.

Diante do contexto precedentemente analisado, Roberta, a despeito de ter exposto seus seios naquela ocasião, situação que foi por ela mesma admitida em Juízo, o fez no exercício de sua livre prerrogativa de manifestação pública, protegida pela Constituição Federal como um dos direitos fundamentais. A conclusão, pois, é que, sendo a ação de Roberta o livre exercício de um direito fundamental, previsto no art. 5.º, inciso IV, c/c art. 220, caput, primeira figura, ambos da Constituição Federal, não pode ao mesmo tempo ajustar-se a uma conduta descrita na lei penal, pois se trata de impossibilidade lógica. Interpretar a participação de Roberta, mulher e afrodescendente, em manifestação pública organizada por um movimento que adota a orientação dos postulados do feminismo impõe levar a sério o nosso constitucionalismo, com urgente abertura às demandas dos movimentos sociais. A defesa da incolumidade do lugar histórico marcado por conquistas e espaços de participação social, econômica, cultural e política, fica, portanto, devidamente reorientada por outras pautas como a liberdade e a autotutela das mulheres sobre o próprio corpo. Por essa razão esses movimentos adotam invariavelmente a posição de defesa da condição feminina contra as agressões, potenciais ou concretas, à esfera jurídica e política das mulheres.

Não é demais reiterar que a acusada informou em suas declarações na delegacia de polícia “que sofreu violência verbal por parte de uma policial Morena, sendo chamada de feia, malcriada e que deveria refletir porque ela estudou e por isso estava do outro lado da cela” (fl. 3 do termo circunstanciado). O relato documentado nos autos desvela aquilo que Patrícia Hill Collins afirma em Black Feminist Thought: “(...) a experiência vivenciada por uma mulher negra define um ponto de vista epistemológico que questiona conteúdos cognitivos atualmente aceitos como verdadeiros, desafiando simultaneamente o processo de obtenção dessa verdade (...)” (p. 271).

Pela análise dos autos e à vista do olhar cuidadoso de Vilma Piedade, nota-se que Roberta, movida pela dororidade, protestou e desnudou seu corpo. A mesma dororidade que levou as demais manifestantes a “bloquearem” o acesso dos policiais a ela. Foi por esse atributo ético que as demais manifestantes também descobriram seus seios. É em virtude dessa mesma dororidade, em sua dimensão interseccional, que Roberta vivenciou a experiência de ser submetida, isoladamente, ao processo penal. Não deixa de ser curioso que, no contexto da manifestação, a despeito de inúmeras ativistas terem desnudados seus seios logo após a intervenção policial em razão do ato de Roberta, a equipe policial tenha selecionado justamente a manifestante negra para submetê-la ao controle formal do sistema de justiça penal.

Conclui-se ao final que as provas dos autos evidenciam que o ato de Roberta exterioriza seu legítimo direito fundamental de manifestação. Por essa razão deve ser reconhecida a atipicidade material da conduta da denunciada, pois não ficou demonstrada a prática do crime nos termos descritos na denúncia.

3. Dispositivo

Diante do exposto, julgamos improcedente a pretensão punitiva estatal deduzida na denúncia, para absolver Roberta da Silva Pereira das penas do art. 233 do Código Penal Brasileiro, com base no inc. III do art. 386 do Código de Processo Penal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2023
  • Aceito
    26 Dez 2023
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