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A relevância do constitucionalismo boliviano para os juristas brasileiros Gladstone Leonel Silva Júnior.

O livro “O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia” é uma descrição dos aspectos jurídicos e constitucionais deste período revolucionário que nossos vizinhos andinos vivenciam desde o início do século XXI. Seu autor é Gladstone Leonel da Silva Junior, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, que realizou um minucioso trabalho descrevendo a realidade boliviana com a prestigiosa orientação, na Universitat de València, do Prof. Rubén Martínez Dalmau - conhecido por assessorar as três Assembleias Constituintes andinas.

É uma característica do trabalho seu cuidado com o método, pautado no materialismo histórico. Por isso, preocupa-se, especialmente, com o concreto e não com as previsões constitucionais, tendo como parâmetros a consolidação desse projeto popular e a criação de mecanismos para a participação popular.

O livro está dividido em três capítulos que correspondem a cada uma das três fases de pesquisa sobre a temática do constitucionalismo latino-americano, cronológicas ou sobrepostas, que foram observadas por Enzo Bello (2016) BELLO, Enzo. Prefácio. In: OLIVEIRA FILHO, G.B.G. Constitucionalismo Boliviano e Estado Plurinacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. : (i) de compreensão da conjuntura latino-americana; (ii) de apresentação da recente normatividade e dogmática constitucional; e (iii) de conhecimento da realidade latino-americana e suas relações com essa normatividade.

O primeiro capítulo trata-se de uma abordagem do contexto histórico boliviano até a “chegada” de Evo Morales ao poder e a posterior elaboração e promulgação da nova Constituição boliviana. Utiliza-se da consagrada contribuição do vice-presidente da Bolívia Álvaro García Linera, sociólogo que foi um espectador privilegiado do processo revolucionário boliviano, e membro do grupo Comuna. E, também, da etnografia da Assembleia Constituinte de 2006-2009 feita por Salvador Schavelzon, do trabalho de Marx, Antonio Negri e Michael Hardt, Zavaleta Mercado, entre outros.

A contextualização feita no livro enfoca as lutas populares: desde o período colonial, o conturbado período da Revolução de 1952, etc., até a conformação do bloco contra hegemônico indígena-popular, durante a Guerra da Água e a Guerra do Gás nos anos 2000, que culmina com a eleição do aymará Evo Morales do partido MAS-IPSP e a realização da referida Assembleia Constituinte.

O segundo capítulo é uma análise deste novo constitucionalismo latino-americano, suas categorias e previsões constitucionais. E de toda sua diferença com o constitucionalismo do Norte, eurocêntrico-estadunidense. A contribuição da peruana Raquel Yrigoyen Fajardo, cada ano mais conhecida dentro das faculdades de direito no Brasil, apresenta esse novo constitucionalismo de forma sistematizada e imprime a perspectiva dos povos indígenas sobre o estado monista que buscavam derrubar. Fajardo explica a evolução do NCLA através de ciclos de reformas constitucionais, segundo avanços nos direitos comunitários e indígenas, relacionando à avanços no direito internacional: (i) o ciclo do constitucionalismo multicultural (1982/1988), que introduz o conceito de diversidade cultural e reconhece direitos indígenas específicos; (ii) o ciclo do constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que, influenciado pela Convenção 169/OIT, trouxe conceitos de nação multiétnica e Estado pluricultural, junto de um amplo catálogo de direitos indígenas, coletivos e étnicos; e (iii) ciclo do constitucionalismo plurinacional (2006-2009), que busca romper com o universalismo, através de um modelo intercultural, e reconhece novas fontes de produção de Direito.

A partir dos autores espanhóis Rubén Martínez Dalmau e Viciano Pastor (2011) PASTOR, Roberto Viciano y DALMAU, Rubén Martínez. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: fundamentos para una construcción doctrinal, Revista General de Derecho Público Comparado, n. 9, p. 1-24, 2011. Disponível em: <https://www.academia.edu/6339900/El_nuevo_constitucionalismo_latinoamericano_fundamentos_para_una_construcci%C3%B3n_doctrinal>. Acesso em 10/10/2017.
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, o livro descreve os aspectos formais e materiais/estruturantes do Novo Constitucionalismo Latino-americano. Mas antes, apontam que um primeiro elemento comum ao Novo Constitucionalismo Latino-americano são os processos constituintes democrático. Todos eles foram marcados pela busca de uma legitimidade ampla, se diferenciando do “velho” constitucionalismo pelo caráter plenamente democrático de suas assembleias constituintes.

Além disto, os autores falam que o novo constitucionalismo se caracteriza por quatro elementos formais. Primeiro, a originalidade de seu conteúdo inovador e caráter experimental. Os textos evitam os transplantes ou enxertos de experiências constitucionais anteriores ou estrangeiras. Isso gera avanços visíveis, especialmente no âmbito institucional. E não exclui a simbiose entre princípios clássicos, que permanecem nos textos, com essas novas fórmulas. O segundo elemento é a amplitude, a partir da relevante extensão de seu alcance, de modo que a vontade do poder constituinte esteja detalhada e não abra margens a outro entendimento. O terceiro elemento é sua complexidade, conjugando elementos técnicos complexos com a utilização de uma linguagem acessível. O último elemento é sua rigidez, apostando na ativação do poder constituinte a partir do povo antes de qualquer transformação. A intenção não é perpetuar o texto atual, mas sim garantir que as alterações sejam realizadas exclusivamente pelo poder constituinte (e originário).

Os constitucionalistas espanhóis também vão falar de alguns elementos materiais que as novas constituições possuem em comum. (a) Os processos constituintes partem da ativação direta do poder constituinte para o avanço das sociedades e da ruptura com modelos anteriores próprios de um constitucionalismo débil (para estabelecer mecanismos de legitimidade e controle do poder constituído). A democracia participativa ganha espaço, sem substituir o modelo representativo. (b) A extensa lista de direitos positivados nas novas constituições, que abarca setores historicamente marginalizados e grupos fragilizados. Além das previsões interculturais, voltadas aos povos indígenas originários. As novas constituições buscam ser mais que meras previsões, imperando a normatividade e superioridade constitucional. (c) Respondem, também, a necessidade de combater desigualdades econômicas e sociais; e de incluir constitucionalmente o novo papel econômico do Estado (com amplos capítulos econômicos nos textos).

Leonel Junior, aqui, se diferencia dos mestres para que seja utilizado o termo elementos estruturantes, por ser mais abrangente que materiais. E aponta os seguintes elementos estruturantes da sociedade que são foco do constitucionalismo boliviano: a diversidade democrática; a Autonomia e reorganização territorial do Estado; a reestruturação jurisdicional; a descolonização constitucional e plurinacionalidade; a economia e o vivir bien.

O terceiro e último capítulo busca pôr à prova essas categorias, analisando-as à luz da empiria. Quase uma década depois da constituição, “os desafios centrais não desapareceram do horizonte político boliviano” (p. 162). É um momento de tensão na unidade deste novo bloco histórico hegemônico; que embora avance, não tem se eximido de questionamentos (basta ver, por exemplo, toda a discussão sobre a construção de uma estrada dentro do Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro-Secure - TIPNIS).

Além disso, o fato da Constituição só ter sido viabilizada após um acordo com a oposição boliviana fez com que seu texto fosse ligeiramente alterado, implicando no enfraquecimento de muitas das previsões do modelo de pluralismo igualitário. Essa incongruência que permitiu unificar grupos antagônicos do país sob a nova Constituição foi um preço alto, que permitiu uma sobrevida maior ao Estado liberal que ainda existe enquanto o Plurinacional é construído. Características liberais permanecem, por exemplo, com a centralidade da propriedade privada e na estrutura organizativa.

Outro desafio abordado é a economia dentro dos marcos do vivir bien. Desde o governo, Garcia Linera vai falar na proposta de um capitalismo andino-amazônico. Aliando construção de uma autonomia relativa do Estado (frente a outros estados e de sua própria elite) com as nacionalizações em áreas estratégicas (como os hidrocarbonetos). Mas a materialização do vivir bien passa, principalmente, pelo fortalecimento da economia comunitária (como as praticadas por ayllus ).

Leonel Junior LEONEL JÚNIOR, Gladstone. O novo constitucionalismo latino-americano: um estudo sobre a Bolívia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. (p. 206-207) chama a atenção para a potência da articulação entre essa estrutura econômica à superestrutura jurídica-política para, inclusive, superar os anseios do próprio Estado Plurinacional. Atualmente, mesmo existindo na Bolívia uma economia plural (onde se articulam a economia estatal, privada, associativa/cooperativa e comunitária), o Estado segue privilegiando a economia privada e a forma de reprodução capitalista. Sendo estas responsáveis por reproduzir a colonização às comunidades indígenas originárias campesinas por meio da economia, são irreconciliáveis com o modelo econômico comunitário. O autor, então, aponta o papel do modelo ancestral comunitário na necessária substituição e superação do atual modelo econômico.

Finalmente, Leonel Gladstone identifica os projetos em disputa no contexto latino-americano do início do século XXI, dividindo-os em três: o primeiro sustentando pelos governos que incorporam as pautas imperialistas; o segundo, onde se inclui o Brasil, os que seguem o neodesenvolvimentismo; o terceiro é o projeto de integração da Pátria Grande, resistindo às políticas neoliberais e imperialistas como na Bolívia. É uma crítica ao papel que nosso país cumpre e um caminho para discutir o papel que deveria cumprir no processo de integração latino-americana.

Os aspectos jurídicos do projeto político popular boliviano, conforme descritos no livro, contribuem a todos pesquisadores que buscam, desde a própria realidade latino-americana, compreender a nós mesmos. Conhecendo exemplos de modelos emancipatórios aplicáveis na região para refletir como nós lidamos com as questões do nosso próprio direito brasileiro.

Não se trata de abordar a Bolívia somente para enfatizar as curiosidades e excentricidades do pluralismo jurídico descrito nas cartas constitucionais. O que os pesquisadores buscam, agora, é compreender o funcionamento prático das instituições necessárias para um Estado Plurinacional existir de verdade, no concreto. A atual relevância do constitucionalismo boliviano para os juristas brasileiros também perpassa por reforçar a exposição da brutal diferença entre o texto da lei e a vida real.

  • O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

Referências bibliográficas

  • BELLO, Enzo. Prefácio. In: OLIVEIRA FILHO, G.B.G. Constitucionalismo Boliviano e Estado Plurinacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
  • LEONEL JÚNIOR, Gladstone. O novo constitucionalismo latino-americano: um estudo sobre a Bolívia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
  • PASTOR, Roberto Viciano y DALMAU, Rubén Martínez. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: fundamentos para una construcción doctrinal, Revista General de Derecho Público Comparado, n. 9, p. 1-24, 2011. Disponível em: <https://www.academia.edu/6339900/El_nuevo_constitucionalismo_latinoamericano_fundamentos_para_una_construcci%C3%B3n_doctrinal>. Acesso em 10/10/2017.
    » https://www.academia.edu/6339900/El_nuevo_constitucionalismo_latinoamericano_fundamentos_para_una_construcci%C3%B3n_doctrinal

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2018
  • Aceito
    10 Mar 2018
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