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Violência sexual de gênero e patriarcalismo jurídico: a falta de credibilidade da vítima em processos judiciais.

Gender-based sexual violence and legal patriarchy: the victim's lack of credibility in legal proceedings.

Resumo

O texto apresenta a reescrita de voto relator em recurso de Apelação de processo judicial que apurou prática de crime de estupro. A decisão original mobiliza argumentos fundados em estereótipos de gênero que descredibilizam a palavra da vítima e atribuem a ela parcela da responsabilidade pela violência sofrida. Através da reescrita, objetivamos demonstrar marcas do que convencionamos designar como “patriarcalismo jurídico”, bem como, a partir de uma perspectiva de gênero, demonstrar possibilidades de seu enfrentamento.

Palavras-chave:
Patriarcalismo Jurídico; Crimes Sexuais; Violência de Gênero

Abstract

The text presents a rewriting of a judicial opinion on a rape case. The original reasoning articulates arguments based on gender stereotypes that discredit the victim's version of the facts, blaming her for the suffered violence. Our rewritten decision, steeped in feminist theory, aims to overcome signs of what we conventionally designate as “legal patriarchalism”, as well as, demonstrate that judges with feminist viewpoints could have changed the course of the law.

Keywords:
Legal Patriarcalism; Sexual Crimes; Gender-Based Violence

1. Breve Comentário do Caso

O direito, desde uma perspectiva jussociológica, pode ser analisado como uma ciência que promove uma forma específica de controle social, vinculada aos valores de uma comunidade. Em sociedades patriarcais, o direito tende a refletir o predomínio de valores masculinos, tanto na elaboração de normas jurídicas, como na produção da doutrina e jurisprudência.

A produção da Teoria Feminista aponta, nestas distintas esferas de produção do direito, a presença de mecanismos de tutela das relações patriarcais. Sabadell (2017SABADELL, A. L. Manual de Sociologia jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017) sustenta que o direito atua como elemento integrador e legitimador das relações de gênero de corte patriarcal, contribuindo para a sua (re)produção. Por tal motivo, existe tanta resistência em aceitar mudanças que impliquem no questionamento destes valores, mesmo quando existem normas jurídicas que tutelam as mulheres. Não é raro que mudanças legislativas, inclusivas de direitos das mulheres, sejam combatidas ou “boicotadas” pela doutrina e/ou pela jurisprudência.

O conceito de “patriarcalismo jurídico” é então desenvolvido pela autora para indicar a existência de profundas contradições dentro do próprio sistema jurídico. O “patriarcalismo jurídico” permite mensurar o grau de comprometimento da atuação do sistema jurídico com uma cultura patriarcal da qual ele emana. Essa dominação, identificada na produção de normas, doutrina e prática jurídica, tem como consequência a violação de direitos fundamentais das mulheres.

O presente texto objetiva abordar como o “patriarcalismo jurídico” se manifesta em um caso concreto: o voto relator em Apelação Criminal que julgou procedente pedido da defesa para absolver o réu do crime de estupro praticado contra menor de idade. O voto, seguido pelos demais julgadores da Câmara Criminal, se fundamenta em estereótipos de gênero ao descredibilizar a palavra da vítima e esperar uma reação heroica que evitasse a violência contra ela praticada. Sentada no banco dos réus, a vítima é a parte efetivamente julgada: suas ações e reações passam pelo escrutínio moral do que poderia ter feito para evitar o ocorrido e do quanto concorreu para a violência contra ela praticada.

A decisão escolhida não é rara. Extensa é a produção de teóricas e criminólogas feministas que apontam para a discriminação de gênero no sistema de justiça criminal (SABADELL, 1999SABADELL, Ana Lucia. A problemática dos delitos sexuais numa perspectiva de direito comparado. Revista brasileira de ciências criminais. v. 7, n. 27, p. 80-102, jul./set., 1999.; 2017; PIMENTEL; SCHRITZMEYER; PANDJIARJIAN, 1998PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore e PANDJIARJIAN, Valeria. Estupro: crime ou “cortesia”? - abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.; CAMPOS; CASTILHO, 2020CAMPOS, Carmen Hein; CASTILHO, Ela Wiecko. Estupro: questões da dogmática penal em uma perspectiva feminista. In: Tecendo fios das Críticas Feministas ao Direito no Brasil II: direitos humanos das mulheres e violências: volume 2, novos olhares, outras questões / Fabiana Cristina Severi; Ela Wiecko Volkmer de Castilho; Myllena Calasans de Matos, organizadoras. - Ribeirão Preto: FDRP/USP, 2020.).

O acesso às peças do processo foi impossibilitado devido a tramitação sob segredo de justiça no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No entanto, consideramos que a falta de acesso aos autos processuais não prejudica a análise e reescrita da decisão, pois a absolvição se fundamenta em argumentos que, como demonstraremos, se abrigam em uma moral machista e discriminatória.

Ao valorar a força da palavra da vítima como elemento de prova e o grau de coação exercido pela ameaça do agressor, os fundamentos machistas da decisão são evidenciados.

O voto em questão foi reescrito, portanto, com objetivo de oferecer uma perspectiva de gênero sobre os mesmos fatos e provas trazidos aos autos. Para a reconstrução dos argumentos, utilizamos precedentes de 2013, ano do julgamento, para demonstrar que mesmo na época era possível se amparar em posicionamentos de tribunais superiores mais respeitadores dos direitos das mulheres.

Compulsando-se os autos obtemos a seguinte notícia sobre os fatos (adotados nomes fictícios):

No dia XX de setembro de 2009, por volta das XXhXXmin, na rua XX, interior, em Cândido Godói - RS, o denunciado, R.A.B.G. constrangeu a menor M., com 14 anos de idade, mediante violência física e grave ameaça, a com ele manter conjunção carnal. Na ocasião, a vítima deslocava-se a pé em direção à sua casa, por uma estrada de chão, quando se deparou com o denunciado, o qual disse que iria acompanhá-la na caminhada. Logo após, o acusado começou a aproximar-se da vítima e, quando passaram perto de um matinho, o denunciado agarrou-a pela cintura e a obrigou entrar no mato, dizendo que “se ela gritasse, iria lhe bater na cabeça”, local em que apertou a ofendida com força e começou a beijá-la, derrubando-a no chão e dizendo que “antes de transarem não iria deixá-la ir”. Ato contínuo, mesmo diante da resistência oferecida pela vítima, o acusado conseguiu puxar a blusa e a calça de M., a qual implorou ao denunciado que, ao menos, usasse preservativo. O denunciado então, com seu corpo, firmou a vítima no chão, impedindo-a que fugisse, colocou o preservativo e praticou o coito vaginal com a ofendida, que todo o tempo implorava e se debatia para evitar a penetração. Após ter mantido relação sexual com a vítima, o denunciado obrigou-a ainda a beijar seu pênis.

Da violência exercida contra a vítima, esta restou com escoriações e hiperemia da mucosa do intróito vaginal; membrana himenal edemaciada e equimosada, apresentando rotura recente sangrante na posição das dezoito horas; escoriação na região lombar esquerda medindo dez centímetros de extensão; pequenas escoriações em ambos os pulsos (auto de Exame de corpo de delito da fl. 10 do Inquérito Policial).

1.1. O procedimento judicial

O Ministério Público ofereceu denúncia contra R. A. B. G., como incurso nas sanções do art. 213 (estupro), §1º (cometido contra vítima maior de 14 e menor de 18 anos), do Código Penal Brasileiro, combinado com o inciso V, do art. 1º da Lei n. 8072/1990 (considerado crime hediondo).

Durante a instrução foram ouvidas a vítima, sete testemunhas de acusação e duas de defesa. Em alegações finais o Ministério Público sustenta as imputações da inicial acusatória, ancorando-se na relevância da palavra da vítima nestes tipos de crimes. A defesa, por sua vez, sustenta a atipicidade da conduta ao questionar a versão apresentada pela vítima, que supostamente teria consentido com a prática do “ato libidinoso” (a denúncia descreve não só o ato libidinoso mas também a prática de conjunção carnal). Segundo informações do acórdão, a defesa técnica também alega a inexistência de constrangimento, já que a ameaça de “bater na sua cabeça” seria incapaz de “causar constrangimento suficiente para caracterizar o delito imputado na peça acusatória” (TJRS, 2013).

A sentença julga procedente a pretensão acusatória em sua íntegra para condenar o réu à pena de oito anos de reclusão em regime inicialmente fechado, por incurso nas sanções do art. 213, §1º, do CP, c/c o art. 1º, inciso V, da Lei n. 8072/90. Na primeira fase da dosimetria da pena o/a magistrado/a valora negativamente a culpabilidade e as consequências do crime.

Em razões de recurso de apelação, a defesa postula a absolvição diante da atipicidade da conduta já que a vítima não foi capaz de provar a ausência de consentimento com a conjunção carnal. Subsidiariamente requer que seja afastada a Lei nº 8.072/90 e a redução da pena-base a partir da reconsideração das circunstâncias judiciais negativamente valoradas (culpabilidade e consequências do crime) além do reconhecimento da contribuição do comportamento da vítima para o cometimento do crime. Por fim, ainda subsidiariamente, requer a redução da pena provisória em face da incidência da atenuante da confissão espontânea.

Há notícia de parecer da Procuradoria recomendando o conhecimento e desprovimento do recurso defensivo (TJRS, 2013:5).

No caso, a autoria e a materialidade do delito não são questionadas. Aduz-se, portanto, dois elementos centrais dos argumentos de acusação e defesa sob os quais o Tribunal deve se debruçar: o consentimento e o constrangimento.

1.2. O voto relator

O apelo defensivo foi conhecido e provido à unanimidade para absolver o acusado. Abaixo, destacamos trechos do voto da relatora com os principais argumentos e interpretações que fundamentam, a seu ver, a decisão de absolvição.

A prática de conjunção carnal entre a vítima e o acusado é fato incontroverso, divergindo, acusação e defesa, quanto à existência ou não de consentimento da ofendida.

Sem receio de incorrer em desprestígio aos fundamentos que conduziram o julgador a quo à prolação do édito condenatório, tenho que o acervo probatório, encartado ao caderno processual, traz apenas indícios, mas não prova segura, de que o réu efetivamente praticou o fato descrito na denúncia.

(...) reconstituindo, minimamente, os acontecimentos, extraio do caderno processual, especialmente da narrativa da vítima, que, no dia do fato, ela teria assistido a uma partida de futebol com a irmã do acusado, num campo local, e, ao seu término, retornaram juntas pela estrada que dá acesso às suas moradias, tendo, esta, ficado pelo caminho, pois, sua residência é próxima ao campo, seguindo, a vítima, sozinha, até encontrar o acusado, que lhe esperava mais à frente.

Fato posterior, o acusado passou a acompanhar a vítima no caminho para casa, ao que se deduz tenham conversado, cingindo-se, a vítima, embora tenha manifestado certa simpatia quando trocaram sorrisos, a dizer que buscou afastá-lo à medida que se aproximava, acabando por ser empurrada até um matagal, na beira da estrada, onde se consumou a conjunção carnal.

A seu respeito, especificamente, a vítima diz ter pedido ao acusado que a deixasse, tendo sido rendida, no entanto, quando este a deitou no chão e ficou de joelhos sobre o seu corpo, segurando suas mãos e tentando convencê-la à prática sexual. Segundo relata, o acusado ameaçou dar um soco em sua cabeça, acaso não consentisse com a cópula, tendo, então, solicitado que ao menos fizesse uso de preservativo, ao que foi atendida, iniciando-se, assim, a conjunção carnal. Após o término da relação, cada um seguiu uma direção na estrada, acabando, a vítima, por encontrar seu pai, que vinha em sua procura.

O acusado nega a presença de ameaça ou violência, dizendo consentido o ato sexual.

Não desconheço, cumpre esclarecer, que, em processos envolvendo crimes sexuais, a jurisprudência gaúcha é tranquila em dizer da preponderância da palavra da vítima sobre a do acusado, observada a ausência de testemunhas presenciais do fato, o qual, no mais das vezes, é perpetrado justamente quando a vítima se encontra sozinha, a fim não apenas de dificultar a prova do crime, mas de viabilizar um cenário que permita menor resistência à satisfação da lascívia do agente.

A prova amealhada aos autos, todavia, consubstanciada nas palavras da vítima e do acusado, já que inexiste testemunha presencial do fato, é frágil, não ensejando, renovada vênia, o decreto condenatório pretendido pela acusação, mormente quando avaliada em cotejo aos exames psicológicos realizados na espécie e demais declarações prestadas por testemunhas não presenciais.

Os pareceres elaborados pelos experts que examinaram a vítima, a par de concluírem pela ocorrência do abuso, para o que, data vênia, não possuem atribuição, uma vez que a conclusão acerca da efetiva existência do crime depende da reunião de elementos outros além do estado psicológico da ofendida, aos quais não têm acesso, trazem, no seu bojo, a informação de que a ofendida, mesmo revelando não haver consentido com a conjunção carnal, anuiu com a possibilidade da ocorrência de beijos e abraços junto ao apelante, por quem, segundo noticia a testemunha Fernanda, nutria sentimento afetivo, embora sem que se possa compreender plenamente a sua extensão.

Autoria e materialidade não são objetos de dúvidas. Tampouco desconhece a julgadora de importante interpretação majoritária realizada pelo Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul a respeito da importância da palavra da vítima nos crimes sexuais. Além da versão da adolescente e do acusado, o voto se refere a exames psicológicos que comprovam “o abuso”. No entanto, ainda segundo o entendimento da magistrada, os “experts” não possuiriam atribuição para determinar a existência do crime.

Se por um lado não há dúvidas de que a conjunção carnal ocorreu e que ela foi danosa à vítima, a existência do crime depende de elementos outros que devem ser apreciados. Então, o consentimento passa a ser valorado:

Por evidente que, esta anuência não exclui a possibilidade de que o consentimento da ofendida se limitasse a carinhos, abraços e beijos, não se estendendo à conjunção carnal que acabou ocorrendo no caso em tela. Entretanto, a anuência preliminar, analisada conjuntamente às demais circunstâncias verificadas na espécie, torna duvidosa a ocorrência do delito de estupro de adolescente, pela fragilização da prova de que a conjunção carnal se houve sem o necessário consentimento e, portanto, mediante violência ou grave ameaça, impedindo, ante a necessária preservação do princípio in dúbio pro reo, a manutenção do édito condenatório.

É possível inferir da argumentação supra que o suposto consentimento a carinhos e abraços ou mesmo um afeto anterior da adolescente pelo acusado viciaria o consentimento ao ato sexual.

Avaliando o cenário que envolveu o ato sexual, é possível perceber que a ameaça dirigida à vítima consistiu no desferimento de socos em sua cabeça, o que, rogada vênia, não constitui ofensa sequer similar àquela decorrente do coito involuntário. Então, observada a informação presente nos laudos periciais de fls., no sentido de que a ofendida, a despeito de uma possível desestabilização emocional ao tempo do fato, não teve suprimida a sua capacidade de discernimento racional, forçoso concluir que poderia tinha reais condições de evitar o resultado de maior prejudicialidade, o que, no entanto, não ocorreu.

Para a relatora, a relação entre o acusado e a vítima é uma relação simétrica de poder. Ambos estão em iguais condições de propor e dispor de atos sexuais. Essa compreensão afeta a percepção do que se constitui ou não como uma violência. Todas as formas culturais e simbólicas que diminuem o consentimento da vítima ou que coagem a mulher a manter uma relação sexual após ter consentido com outras formas de afetos são desconsideradas.

Destaca-se que a única vez em que a palavra “vulnerável” é utilizada no voto se refere ao acusado, quando este coloca o preservativo, momento que poderia ter sido utilizado pela vítima para escapar - seguindo o raciocínio sexista utilizado - se realmente não tivesse consentido com a relação sexual.

Prosseguindo, imperioso mencionar que a violência, em tese, empregada contra a vítima, segundo o seu relato, não observou um grau tal que reduzisse por completo a sua capacidade de oferecer resistência às investidas do acusado, evitando, assim, a consumação do coito. Por outro lado, certo que o acusado, quando passou a colocar, por insistência da vítima, o preservativo, tornou-se vulnerável, permitindo a ela, naquela hora, desvencilhar-se de seu algoz e buscar ajuda na estrada de onde vieram, o que também não fez.

Chama a atenção, ainda, o fato de a ofendida não haver gritado por socorro, após ser carregada pelo acusado para o matagal que margeia a estrada onde se encontraram, mesmo que, segundo seu próprio relato, pessoas ali transitassem, enquanto estava sendo subjugada, omissão que buscou justificar no fato de que ficaria “falada” na comunidade acaso descobrissem ter sido vítima de abuso sexual.

Mas ninguém há de negar que entre a estupidez da boca pequena e o trauma decorrente do desfloramento não consentido, este traz consigo consequências muito mais graves, circunstância que não passaria a lo largo da capacidade de discernimento da ofendida, regularmente mantida naquele momento segundo afirmação de um dos experts que atuaram no feito.

A julgadora espera da vítima um comportamento heroico: que lutasse bravamente contra seu agressor, que gritasse por ajuda ou que aproveitasse cada possibilidade de escapar da empreitada delitiva. Chega até mesmo a sugerir um momento em que a adolescente poderia ter evitado o crime, no instante em que ele coloca o preservativo. Como a heroica reação esperada não ocorre, a negativa do consentimento se torna frágil e a vítima quase que passa a concorrer para a agressão contra ela praticada.

Assumida a hipótese irreal de que a vítima poderia ter escapado se quisesse, a magistrada passa a buscar justificativas para a ausência de fuga. O fato de a adolescente ficar “falada” na cidade é mobilizado como elemento que impede o chamado por socorro. Na sequência há um julgamento moral de qual teria sido a melhor decisão da adolescente diante do conflito entre “a estupidez da boca pequena” e “o trauma decorrente do desfloramento não consentido”. A vítima é então julgada pelo que deveria ter feito para evitar o dano maior que, segundo a julgadora, seria o próprio estupro. “Antes mal falada do que estuprada” é o julgamento moral que baliza a régua moral com a qual a adolescente é julgada e condena, embora, no processo, não seja ela ré.

Neste sentir, o comportamento inerte da vítima, diante da ausência de grave ameaça, da viabilidade de receber auxílio dos transeuntes que passavam pela estrada próximo ao local do fato, e, ainda, da possibilidade concreta de livrar-se da subjugação do ofendido no momento em que este aceitou o uso do método contraceptivo, contribui para tornar nebulosa a prova do (não) consentimento em relação ao ato sexual, afastando-se da certeza necessária para a prolação do juízo condenatório.

De relevo consignar que o testemunho de Fernanda no sentido de que o acusado, em ocasião pretérita, tentou abusá-la em condições e circunstâncias semelhantes àquelas presentes no fato narrado na denúncia, em que pese possam trazer indícios de um comportamento desviado adotado pelo apelante, não pode ser considerado como elemento de integração aos demais indícios presentes nos autos a fim de viabilizar o decreto condenatório, porque a referida conduta não restou provada em sede de sentença condenatório com trânsito em julgado, descabendo, pois, a sua valoração, ainda que modo indireto, para fundamentar o afastamento do princípio da não culpabilidade na espécie.

Em sendo assim, presentes indícios de que possa ter ocorrido a conjunção carnal sem o consentimento da ofendida, e, da mesma forma, de que possa ter havido este consentimento, tenho presente a dúvida sobre a efetiva ocorrência do fato típico narrado na denúncia, impondo-se, por isso, a absolvição do acusado, fundamento no princípio da não culpabilidade e no brocardo in dúbio pro reo.

Diante do exposto, voto no sentido de dar provimento ao apelo defensivo, para julgar improcedente a denúncia, absolvendo R. A. B. G., nascido em 13.09.1991, das imputações que lhe foram feitas, fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

A análise do dolo do agente se limita a uma frase: “O acusado nega a presença de ameaça ou violência, dizendo consentido o ato sexual”. A afirmação dele de que houve consentimento possui credibilidade, tratamento oposto ao dispensado a palavra da vítima. A maior parte do voto é destinada a indagar o comportamento da vítima e sugerir formas de resistência que poderiam ter sido opostas caso esta realmente quisesse evitar a consumação do delito.

Tal voto foi selecionado porque a ideia - manifestada de forma explícita em seu conteúdo - de que a vítima poderia ter gritado por socorro, ou mesmo que, se esta solicitou o uso do preservativo, poderia ter aproveitado a ocasião para ter sido mais veemente em sua reação, trata de culpabilizar a vítima no âmbito do Poder Judiciário. Outras considerações trabalhadas no voto original conduzem ao mesmo raciocínio, como a possibilidade de a vítima ter se relacionado com o autor em momento pretérito ao fato.

Importa aqui evidenciar como funciona a recepção dos crimes contra a dignidade sexual na jurisprudência brasileira, na qual impera uma aplicação discriminatória do Direito. Identificar o conteúdo patriarcal das decisões em matéria de violência sexual contra a mulher é indispensável, não só para dar visibilidade à revitimização que as mulheres ofendidas passam quando buscam o acesso à Justiça, mas também para propor uma nova forma de pensar e aplicar o Direito.

A seguir, uma alternativa de acórdão que se direciona ao respeito e asseguramento dos direitos humanos femininos.

2. A reescrita: julgamento com perspectiva de gênero

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 70052181955 (N° CNJ: 0524794-04.2012.8.21.7000) 2012/CRIME

SEXTA CÂMARA CRIMINAL

Nº 70052181955 (N° CNJ: 0524794-04.2012.8.21.7000) COMARCA DE CAMPINA DAS MISSÕES

APELANTE

R.A.B.G.

APELADO

MP

RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL. APELO DEFENSIVO. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE ADOLESCENTE. Materialidade. Devidamente comprovada. Autoria. Comprovada. Ausência de consentimento. Grave ameaça configurada. Preponderância do testemunho da vítima. Manutenção do decreto condenatório proferido na origem.

Sentença condenatória mantida.

APELO DEFENSIVO DESPROVIDO.

UNÂNIME.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos

Acordam os Desembargadores integrantes da Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, desprover do apelo defensivo, pela manutenção do decreto condenatório em desfavor de R.A.B.G., nascido em 14 de setembro de 1991. Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores DES. X e Y.

Porto Alegre, data.

DES.ª Z Relatora.

RELATÓRIO

DES.ª Z

O Ministério Público ofereceu denúncia contra R.A.B.G. nascido em 14 DE SETEMBRO DE 1991, como incurso nas sanções do art. 213, §1º, do CP, combinado com o inciso V, do art. 1º da Lei n. 8072/1990.

Recebida a denúncia em XX/XX/2009.

Em alegações finais na forma de memoriais, o Ministério Público postula a procedência da pretensão acusatória, ao efeito de condenar o réu, afirmando comprovadas a materialidade e autoria delitiva, destacando a relevância da palavra da vítima e a necessidade de incidência do art. 1º da Lei n. 8072/90. A defesa, por seu turno, sustentou que a vítima consentiu para a prática do ato libidinoso. Entretanto, por temer represálias do pai que havia ido ao seu encontro, em virtude de sua demora para voltar para casa, teria elaborado a versão acusatória. Aduziu que inexistem provas de que o acusado portava qualquer espécie de arma apta a causar o constrangimento da ofendida. Referiu que R.A.B.G. ameaçava “bater na sua cabeça se gritasse”, todavia, essa circunstância, de acordo com a tese defensiva, seria incapaz de causar constrangimento suficiente para caracterizar o delito imputado na peça acusatória. Postulou, por fim, a absolvição do acusado em virtude da atipicidade do fato delituoso, na forma do art. 386, inciso I, do CPP.

Sobreveio sentença julgando procedente a denúncia para condenar o réu à pena de 8 (oito) anos de reclusão (basilar em 08 anos, sem redução pela menoridade em face da aplicação da Súmula 231 do STJ, assim tornada definitiva na ausência de causas modificadoras na terceira etapa do método trifásico), em regime inicialmente fechado, por incurso nas sanções do art. 213, §1º, do CP, c/c o art. 1º, inciso V, da Lei n. 8072/90.

Permitida a interposição do recurso em liberdade.

Sentença publicada em XX/XX/2012 (fl. XX).

Irresignada, a defesa interpôs recurso de apelação à fl. XX, recebido em XX/XX/2012.

Em suas razões (fls. XX/XX), a defesa postulou a absolvição do acusado renovando a tese da atipicidade da conduta, observado o consentimento da ofendida para com a prática sexual, a qual não apresentou versão convincente a respeito do alegado abuso.

Reafirmou a necessidade de observância ao princípio in dubio pro reo, requerendo, ao final, a absolvição do acusado.

Subsidiariamente, postula o afastamento da incidência da Lei n. 8072/90 ao caso em tela, observada a ausência do resultado lesão grave ou morte.

Reclama, ainda, a redução da pena-base pelo afastamento das notas negativas atribuídas à culpabilidade e às consequências do crime, bem assim pela avaliação positiva em relação ao comportamento da vítima, que concorreu para a prática do fato e, ao final, a redução da pena provisória em face da incidência da atenuante da confissão espontânea.

Em contrarrazões de fls., o órgão ministerial aduz haver prova suficiente para o decreto condenatório, requerendo, assim, o improvimento do recurso.

A ilustre Procuradora de Justiça em parecer ministerial de fls., opina pelo conhecimento e improvimento do recurso defensivo.

Vêm os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

O édito condenatório apresenta-se irretocável no que concerne à análise do acervo probatório, uma vez que adequado à dinâmica processual a ser obedecida no caso em análise, qual seja, a centralidade do depoimento da vítima e o cotejo dos demais elementos processuais em respeito à preponderância do relato.

Segundo a vítima, o acusado passou a aproximar-se dela e, quando passaram perto de um matagal e agarrou-a pela cintura, obrigando-a a entrar no mato, dizendo que “se ela gritasse, iria lhe bater na cabeça”. Neste local, apertou a ofendida com força e começou a beijá-la, derrubando-a no chão e dizendo que “antes de transarem não iria deixá-la ir”.

A seu respeito, especificamente, a vítima diz que mesmo opondo resistência, o acusado conseguiu puxar-lhe a blusa e a calça, momento em que então implorou ao acusado que, ao menos, usasse preservativo.

O acusado então, com seu corpo, firmou a vítima no chão, impedindo sua fuga, colocou o preservativo e forçou a prática sexual, apesar do esforço da mesma para evitar a penetração.

O acusado nega a presença de ameaça ou violência, afirmando o consentimento do ato pela ofendida.

Imperioso mencionar que o estupro configura violência contra a mulher no âmbito sexual, como disposto na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ou Convenção de Belém do Pará. A integridade sexual da mulher é um direito humano feminino, que deve ser protegido e afirmado pelo Estado brasileiro, sem discriminações em relação ao comportamento da vítima, com lastro nos tratados internacionais dos quais ele é signatário, tais quais o supramencionado, além da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

A violência não se baseia em desejo sexual, em libido, sendo mesmo impróprio utilizar qualquer expressão que possa situá-la no campo do prazer, como, por exemplo, associá-la à satisfação da lascívia.

É o estupro ato advindo do campo do poder, inscrito em uma realidade de desigualdade de gêneros e relações patriarcais, com o objetivo de exercer dominação sobre a vítima, de apropriar-se e até controlar o corpo da ofendida, não cabendo, portanto, qualquer juízo a respeito do comportamento da vítima.

Isso se reflete no campo processual penal no que se refere à análise probatória. Os crimes praticados com violência de gênero, especialmente sexuais, costumam acontecer no âmbito privado, onde são reforçadas a hierarquização e vulnerabilidade da vítima. No caso em tela, embora não estivessem em âmbito privado, a conduta do réu - empurrá-la ao matagal - demonstra a mesma dinâmica, na qual não se pode esperar testemunhas presentes ao ato.

A prova amealhada aos autos, portanto, consubstanciada nas palavras da vítima e do acusado, já que inexiste testemunha presencial do fato, é suficiente, sendo corroborada pelos exames psicológicos realizados na espécie e demais declarações prestadas por testemunhas não presenciais.

É vasta a jurisprudência do Eg. STJ, no sentido de que a palavra da vítima possui especial relevância em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos.1 1 Esta tese foi firmada na edição 111 do Caderno jurisprudência em teses do STJ: “3) Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos. Julgados: AgRg no AREsp 1275114/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/08/2018, DJe 03/09/2018; AgRg no AREsp 1245796/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 17/08/2018; AgRg nos EDcl no AREsp 1147225/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2018, DJe 15/08/2018; AgRg no AREsp 1263422/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 22/06/2018; AgRg no AREsp 1258176/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 07/06/2018, DJe 15/06/2018; AgRg no AREsp 1265107/MS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 28/05/2018.”

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA. SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ESPECIAL CABÍVEL. IMPOSSIBILIDADE. RESPEITO AO SISTEMA RECURSAL PREVISTO NA CARTA MAGNA. NÃO CONHECIMENTO. (...) ESTUPRO E ROUBO CIRCUNSTANCIADO. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO APROFUNDADO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT. FRAGILIDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO NÃO DEMONSTRADA. 1. A alegada inocência do paciente, a ensejar a pretendida absolvição, é questão que demanda aprofundada análise de provas, o que é vedado na via estreita do remédio constitucional, que possui rito célere e desprovido de dilação probatória. 2. No processo penal brasileiro vigora o princípio do livre convencimento, em que o julgador, desde que de forma fundamentada, pode decidir pela condenação, não cabendo na angusta via do writ o exame aprofundado de prova no intuito de reanalisar as razões e motivos pelos quais as instâncias anteriores formaram convicção pela prolação de decisão repressiva em desfavor do paciente.

3. Nos crimes contra a liberdade sexual, geralmente cometidos à clandestinidade, a palavra da vítima assume preponderante importância, como na hipótese vertente, pois se mostrou coerente, expondo os fatos com riqueza de detalhes. Precedentes. 4. Habeas corpus não conhecido.2 2 Embora em 2024, no ano de reescrita desta decisão, exista um grande número julgados neste sentido mais recentes, optamos por utilizar um precedente da época em que o acórdão foi proferido.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero considera as declarações da vítima como meio de prova, “de inquestionável importância quando se discute violência de gênero, realçada a hipossuficiência processual da ofendida, que se vê silenciada pela impossibilidade de demonstrar que não consentiu com a violência” (CNJ, 2021).

Assim, ainda de acordo com o referido Protocolo, o peso probatório diferenciado é justificado pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual.

Os pareceres, elaborados pelos experts que examinaram a vítima, concluíram pela ocorrência do abuso. Então, observada a informação presente nos laudos periciais de fls. retro, a ausência de consentimento alegada é reforçada pela constatação de abalo psicológico. Ora, não é razoável esperar um trauma de uma relação sexual praticada de forma respeitosa, saudável e consentida.

A ausência de consentimento também é reforçada pelos elementos trazidos pelo laudo que descreve “escoriações” em ambos os pulsos, reveladores de potencial contensão da vítima para realizar o ato.

Quanto à possibilidade de evitar a prática criminosa, é forçoso concluir que a vítima não tinha condições reais de escolher o resultado de menor prejudicialidade.

O estupro é uma violência de gênero que responde a uma estrutura hierarquizada de poder. Ao analisar a dimensão sociológica desta forma dessa forma de violência, Segato afirma que a apropriação do corpo feminino é uma forma de subordinar a mulher e reafirmar a ordem de status de gênero entre homens e mulheres (SEGATO, 2003SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementales de la violencia. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.). Qualquer aproximação desta forma de violência deve, portanto, partir desta perspectiva: há uma assimetria determinada pelo gênero dos envolvidos que influencia na autodeterminação, na vontade e na capacidade de tomar decisões ou responder aos atos praticados contra a vontade.

Dentre as múltiplas formas de tentar reagir a uma violência covarde como o estupro, a “ausência” de reação da vítima não raramente é descrita doutrina associada a diversos fatores: a percepção de há um dever sexual com relação ao homem (em casos de estupro marital, por ex.), o constrangimento social que poderá advir da publicização do ato (a vítima ficará “mal falada”), crença de que sua versão será descredibilizada por autoridades do Estado ou ainda a compreensão de que se trata de uma luta perdida e que qualquer forma de evitar o ato pode resultar no emprego de meios ainda mais violentos por parte do agressor para a consecução do seu ato. (SABADELL, 1999SABADELL, Ana Lucia. A problemática dos delitos sexuais numa perspectiva de direito comparado. Revista brasileira de ciências criminais. v. 7, n. 27, p. 80-102, jul./set., 1999.; MACKINNON, 1989MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989.; BUSTOS; LARRAURI 1993BUSTOS, Juan; LARRAURI, Elena. Victimologia, presente y futuro: hacia um sistema penal de alternativas. Barcelona: PPU, 1993..)

A maior vulnerabilidade de grupos minoritários atingidos por violências estruturais, tais como as de gênero e raça, pode impor mais obstáculos para comunicação do crime. Isso porque a naturalização e aceitação social podem alterar a percepção (1) do próprio indivíduo de que a agressão da qual é vítima é uma violência e (2) das autoridades judiciárias na compreensão da conduta como um fato típico (PAIVA, 2022PAIVA, Lívia. Feminicídio: discriminação de gênero e sistema de justiça criminal. São Paulo: Revista das Tribunais, 2022.).

Por outro lado, em inumeráveis casos em que há um relacionamento social ou afetivo entre agressor e vítima, esta pode não ter a possibilidade (objetiva ou subjetiva) de manifestar uma forte reação frente ao mesmo.

Quando a vítima, ao ser inquirida, relata não ter gritado, com medo de que membros de sua pequena comunidade eventualmente viessem a saber que tinha sido vítima de violência sexual, resta demonstrado outro elemento de coação (desta vez moral), que afeta subjetivamente sua capacidade de pedir ajuda.

Para configuração do constrangimento, presente no tipo penal do estupro, basta, portanto, que a vítima expresse seu dissenso ou que da análise das circunstâncias do delito, fique evidente que o agressor contrariou a vontade da vítima (VIRGILIO, 1997VIRGILIO, Maria. Violenza sessuale e norma: legislazioni penali a confronto. Ancona: Nuova Richerche, Ancona, 1997., p. 66-67).

É perfeitamente possível que a vítima se submeta ao estupro sem reagir, para que não ocorra o risco maior de uma luta perdida na qual haveria mais feridas e humilhação - uma dupla violência. Diante de perigo iminente e risco de vida, a ausência de reações mais contundentes capazes de opor resistência à violência contra ela praticada é compreendida por Mackinnon como um mecanismo de “submeter-se para sobreviver” [submit to survive] (MACKINNON, 1989MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989., p. 177).

Ademais, uma das reações mais comuns ao terror e aos processos ansiosos diante de grave ameaça, é o estado de paralisação do indivíduo, dado por justificativas da própria psique humana.

No entanto, como o tipo penal de estupro estipula como elemento objetivo a violência e a grave ameaça, partindo de uma lógica legislativa - ainda patriarcal - na qual estas atitudes são supostamente necessárias para paralisar a vítima, verifica-se, neste caso em concreto, que a própria ameaça por parte do réu, no sentido de que “se ela gritasse, iria lhe bater na cabeça”, “antes de transarem não iria deixá-la ir”, assim como a violência física de tê-la prendido ao chão, já demonstram elementos de coerção caracterizadores da grave ameaça. Afinal, foram estas atitudes, constantes como elemento objetivo do tipo penal, que permitiram ao réu a realização da agressão sexual.

Portanto, a alegação da defesa de que não se caracterizou a grave ameaça ou a violência, deve ser desprezada.

Afirmar que existe consenso seria negar o caráter violento da agressão sofrida pela ofendida, para descaracterizar o estupro e dar continuidade ao discurso patriarcal, por meio da aplicação patriarcal do direito no âmbito do Poder Judiciário, a partir do presente Tribunal de Justiça.

Sendo assim, diante dos laudos acostados e, considerando o valor probatório do depoimento da vítima, perfeitamente harmonizado com os demais elementos nos autos, julgo suficientemente caracterizadas a ausência de consentimento da ofendida e a grave ameaça. Não há qualquer dúvida razoável que sustente a evocação do brocardo in dubio pro reo.

No que concerne à postulação do apelante pela desconsideração do afastamento do caráter hediondo do delito, porquanto, ao tempo do fato, o seu reconhecimento estava condicionado à existência de lesão grave ou morte, não se verifica. Isso porque, a lei 12.015/2009 entrou em vigor na data de sua publicação, em 10 de agosto de 2009, tendo o crime ocorrido pouco mais de um mês após esta data. Ademais, a vítima contava 14 anos à época dos fatos, o que também justifica a hipótese do § 1º, do art. 213 do mencionado diploma. Precedentes do STJ firmaram a orientação de que são hediondos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que praticados na sua forma simples e antes da edição da Lei n. 12.015/2009. (REsp nº 1177693 / MT. Relator Ministro Og Fernandes. Sexta Turma. Data do julgamento: 11/06/2013. Data da publicação: DJe 21/06/2013).

Diante do exposto, voto no sentido de negar provimento ao apelo defensivo, mantendo a condenação de R.A.B.G. nos termos da sentença.

Referências bibliográficas

  • BUSTOS, Juan; LARRAURI, Elena. Victimologia, presente y futuro: hacia um sistema penal de alternativas. Barcelona: PPU, 1993.
  • CAMPOS, Carmen Hein; CASTILHO, Ela Wiecko. Estupro: questões da dogmática penal em uma perspectiva feminista. In: Tecendo fios das Críticas Feministas ao Direito no Brasil II: direitos humanos das mulheres e violências: volume 2, novos olhares, outras questões / Fabiana Cristina Severi; Ela Wiecko Volkmer de Castilho; Myllena Calasans de Matos, organizadoras. - Ribeirão Preto: FDRP/USP, 2020.
  • CNJ. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: Conselho Nacional de Justiça - CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - Enfam, 2021
  • MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2020
  • MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989.
  • PAIVA, Lívia. Feminicídio: discriminação de gênero e sistema de justiça criminal. São Paulo: Revista das Tribunais, 2022.
  • PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore e PANDJIARJIAN, Valeria. Estupro: crime ou “cortesia”? - abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.
  • SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementales de la violencia. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.
  • SABADELL, Ana Lucia. A problemática dos delitos sexuais numa perspectiva de direito comparado. Revista brasileira de ciências criminais. v. 7, n. 27, p. 80-102, jul./set., 1999.
  • SABADELL, A. L. Manual de Sociologia jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017
  • TJRS (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL). 6ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 0524794-04.2012.8.21.7000, Rel. Des. Bernadete Coutinho Friedrich. Julgado em: 19/09/2013; DJe: 20/01/14.
  • VIRGILIO, Maria. Violenza sessuale e norma: legislazioni penali a confronto. Ancona: Nuova Richerche, Ancona, 1997.
  • 1
    Esta tese foi firmada na edição 111 do Caderno jurisprudência em teses do STJ: “3) Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos. Julgados: AgRg no AREsp 1275114/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/08/2018, DJe 03/09/2018; AgRg no AREsp 1245796/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 17/08/2018; AgRg nos EDcl no AREsp 1147225/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2018, DJe 15/08/2018; AgRg no AREsp 1263422/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 22/06/2018; AgRg no AREsp 1258176/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 07/06/2018, DJe 15/06/2018; AgRg no AREsp 1265107/MS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 28/05/2018.”
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    Embora em 2024, no ano de reescrita desta decisão, exista um grande número julgados neste sentido mais recentes, optamos por utilizar um precedente da época em que o acórdão foi proferido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2024
  • Aceito
    06 Fev 2024
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