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Tensões entre identidade e colonialidade no julgamento da ADI 4275/DF

Tensions between identity and coloniality in the ADI 4275/DF ruling

Resumo

O artigo aborda as tensões existentes no âmbito da construção performativa das identidades das pessoas trans em relação à matriz colonial de poder que hierarquiza vidas na América Latina, particularmente no Brasil. O objetivo é analisar de que forma as reivindicações da população trans pelo reconhecimento de suas identidades, mais especificamente, pelo direito ao nome, são recebidas por respostas institucionais que são constitutivamente atravessadas por discursos que reintroduzem violências de raça, gênero e classe. Baseia-se, metodologicamente, na revisão de literatura e na análise documental do voto da ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI 4275/DF pelo STF, que reconheceu às pessoas trans o direito à alteração do prenome e da classificação de gênero que lhes foi imposta. Conclui-se que a decisão é limitada, porque perpetua o papel normalizador do Estado-nação, ao mantê-lo como detentor do dizer performativo sobre a identidade das pessoas, e reitera o binário homem/mulher, ao reintroduzir a abjeção dos corpos que não se identificam com os seus termos.

Palavras-chave:
Estudos decoloniais; Estudos queer; Gênero; Identidade; Nome social

Abstract

The article addresses the existing tensions in the context of the performative construction of identities of trans people concerning the colonial matrix of power that hierarchizes lives in Latin America, particularly in Brazil. The objective is to analyze how the demands of the trans population for the recognition of their identities, more specifically, for the right to a name, are received by institutional responses that are constitutively crossed by discourses that reintroduce racial, gender, and class violence. Methodologically, it is based on a literature review and documental analysis of the vote of minister Cármen Lúcia on the judgment of ADI 4275/DF by the STF, which recognized trans people the right to change their first name and gender classification imposed on them. It is concluded that the judgment is limited because it determines the normalizing role of the nation-state by keeping it as the holder of the performative saying about people's identity and reiterates the man/woman binary by reintroducing the abjection to the bodies that do not identify with its terms.

Keywords:
Decolonial studies; Queer studies; Gender; Identity; Social name

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo analisar as maneiras pelas quais as reivindicações da população trans pelo reconhecimento de suas identidades, mais especificamente, pelo direito ao nome, são recebidas por respostas institucionais constitutivamente atravessadas por discursos que reintroduzem violências de raça, gênero e classe. Discutem-se, nesta linha, as tensões entre a construção performativa da identidade e a matriz colonial que constitui a base de formação dos Estados-nação da América Latina, particularmente, do Brasil. Para tanto, toma-se como base das discussões o acórdão proferido pelo pleno do Supremo Tribunal Federal - doravante, STF - no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275/DF - doravante, ADI 4275/DF -, pelo qual foi reconhecido que as pessoas trans possuem o direito à alteração do prenome e da classificação de gênero que lhes foi imposta em seu registro de nascimento, quando se mostrarem dissonantes do gênero expressado pela pessoa. Pretende-se, com isso, empreender uma analítica das estratégias coloniais de poder e do dispositivo de gênero e sexualidade que se manifestam no acórdão referido, bem como expor as limitações que circunscrevem a busca por uma solução para a violência transfóbica dentro das instituições estatais que são sempre e desde a sua formação atravessadas por essas estratégias e dispositivos de poder.

A discussão está dividida em duas seções teóricas e uma de análise. Primeiro, discutiremos as implicações entre aquilo que se convencionou chamar modernidade e o processo de invasão colonial da América Latina, para perceber a necessidade de tratá-los como uma unidade analítica que não pode ser separada (ESCOBAR, 2003ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo: el programa de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, n. 1, p. 51-86, 2003.). Além disso, observaremos como o término formal dos governos coloniais conduziu não a um mundo descolonizado, mas à formação de uma colonialidade global (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL; 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24), que mantém e reproduz com os Estados-nação as subalternidades produzidas pela dominação colonial.

Tais subalternidades, como veremos, perpassam um suporte epistêmico que apaga os saberes e formas de vida dos povos originários desses territórios, de modo a produzir uma matriz eurocentrada de conhecimento, que apresenta os saberes produzidos conforme as normas metodológicas e padrões epistêmicos europeus como a única forma de conhecimento válida (CASTRO-GÓMEZ, 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24). Há, ainda, que se considerar a classificação social que a colonialidade engendra, ao produzir categorias identitárias que são atribuídas às pessoas desses locais como meio de hierarquizar as suas existências e, no limite, negar-lhes a ontologia e colocá-las fora dos limites da vida humana (QUIJANO, 2007QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 93-126.; MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 127-168.).

Na seção seguinte, dialogaremos sobre o caráter performativo da identidade (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. (Sujeito e história).) e sobre o papel do Estado na formação de um dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.), composto por uma série de práticas discursivas e não discursivas que se orientam para a formação de uma verdade sobre o sexo como algo inerente a uma suposta natureza humana e que seria mesmo definidora dessa natureza. Com isso, veremos como a categoria gênero se coloca ao lado daquela do sexo para produzir os limites da inteligibilidade do corpo como humano e o papel dos saberes médicos e legais na concretização desse sistema de poder que funda dicotomia na qual as vidas são classificadas em normais ou anormais a partir da sua adequação ou inadequação a este dispositivo. Debateremos de que forma a identidade, embora se apresente como uma substância, desenvolve-se como estilização continuada do corpo, em uma performance que deve adequar-se aos discursos sobre gênero e sexualidade para que seja considerado humano.

Após essas discussões, realizaremos uma análise documental do acórdão do STF na ADI 4275/DF, para que possamos verificar concretamente como os elementos de poder discutidos teoricamente atravessam esta resposta institucional às demandas da população trans pelo reconhecimento de suas identidades. Nessa tarefa, faz-se necessário um recorte metodológico, para adequar as nossas análises aos estreitos limites deste trabalho e tendo em vista a extensão do inteiro teor do acórdão, que possui um total de 173 folhas. Centraremos, pois, os gestos qualitativos de análise sobre excertos do voto proferido pela ministra Cármen Lúcia, então Presidenta da corte, pois seu voto coincide perfeitamente com a tese vencedora por maioria, tanto na decisão final, quanto, sobretudo, nas estratégias discursivas adotadas para definir os sentidos de identidade, subjetividade, transgeneridade e suas relações com o Estado, o direito e a política. Uma análise de todos os votos é, sem dúvidas, uma possibilidade importante, mas cuja realização ultrapassaria os limites deste trabalho. Optamos, portanto, por uma análise aprofundada do voto da ministra referida, que funcionará como paradigma de análise, embora não deixemos de considerar, de maneira geral, as posições dos demais ministros.

A discussão que será desenvolvida nos tópicos seguintes possui, com efeito, caráter indisciplinar, no sentido proposto por Moita-Lopes (2009). Quer isto dizer que reconhecemos a necessidade de não nos limitarmos aos espaços disciplinares fixados pelo modelo epistêmico eurocentrado hegemônico, mas de irmos além desses paradigmas consagrados. Em vez disso, pretendemos construir uma perspectiva organizada a partir dos saberes daquelas pessoas que são invisibilizadas em suas produções e existências. Com base nisso, é que se questiona os limites que uma solução dentro do direito pode ter para as reivindicações por ontologia das pessoas trans. O direito - e, mais de perto, o acórdão referido acima - é tomado aqui não como ciência dentro da qual a nossa investigação se movimentará, mas, antes, como prática linguística e social concreta. Tal prática constrói realidades e possui efeitos de poder que não podem ser desconsiderados, razão pela qual será tomada como objeto de disputas que funciona dentro de uma matriz de poder orientada pela colonialidade, de modo que é preciso observar suas implicações e limitações em relação àquelas pessoas invisibilizadas e a partir dos seus saberes. Realmente,

[...] esse percurso parece essencial, uma vez que tais vozes podem não só apresentar alternativas para entender o mundo contemporâneo como também colaborar na construção de uma agenda anti-hegemônica em um mundo globalizado, ao mesmo tempo em que redescreve a vida social e as formas de conhecê-la. Esse é um propósito de teorias que fazem a crítica da modernidade [...]. (MOITA-LOPES, 2006MOITA-LOPES, Luiz Paulo da. Introdução: uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: MOITA-LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola editorial, 2006. (Lingua[gem]; 19)., p. 27)

Retomamos e alinhamo-nos, pois, com uma compreensão de Linguística Aplicada “que se constitui como prática problematizadora envolvida em contínuo questionamento das premissas que norteiam nosso modo de vida” (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA-LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola editorial, 2006. (Lingua[gem]; 19)., p. 61), a fim de investigar os regimes de verdade que produzem os saberes científicos vigentes e compreendê-los como práticas localizadas socio-historicamente, o que nos leva a não universalizar as nossas conclusões, porque também elas se situam em um horizonte socio-histórico específico. Busca-se, pois, estranhar os sentidos hegemônicos e tidos por essencializados a respeito do direito, de modo a “desaprendê-lo” e estudá-lo a partir de diversos aportes teóricos e deslocar as certezas sobre as quais ele repousa. Trata-se, portanto, de uma teorização transgressiva, que não apenas encara as disciplinas como espaços que devem ser questionados e considerados abertos, fluídos e passíveis de constante mudança, mas, além disso, que desafia as formas tradicionais de pensar para, então, produzir novas formas de pensar (PENNYCOOK, 2006PENNYCOOK, Alastair. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA-LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola editorial, 2006. (Lingua[gem]; 19).).

1 MODERNIDADE, COLONIALIDADE E CLASSIFICAÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA

Discutiremos, aqui, a maneira como compreendemos a modernidade e de que maneira a sua formação não se explica como um fenômeno “intraeuropeu” (ESCOBAR, 2003ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo: el programa de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, n. 1, p. 51-86, 2003.), decorrente apenas de alguns poucos centros europeus, mas, antes, está inseparavelmente ligada às invasões dos territórios que hoje formam a América Latina. Um olhar decolonial sobre esse processo, indica a necessidade de pensá-lo a partir de uma perspectiva externa, daqueles que são colocados fora da modernidade, que têm negado o privilégio da ontologia (MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 127-168.; QUIJANO, 2007QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 93-126.). Trata-se, portanto, de um olhar crítico para a interculturalidade (WALSH, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. 2009. (Conferência apresentada no Seminário “Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz).), que considera as relações de poder que a produziram, informada por um contexto colonizador que se reorganiza como colonialidade global (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL; 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24). Isto ocorre para continuar a subalternizar tanto os países do sul global (SANTOS, 2018SANTOS, Boaventura de Sousa. Introducción a las Epistemologías del Sur. In: MENESES, Maria Paula; BIDASECA, Karina Andrea (Orgs.). Epistemologías del Sur. 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Coimbra: Centro de Estudos Sociais - CES, 2018, p. 25-61.) quanto para, dentro deles, organizar a sua população segundo uma classificação social que produz identidades inferiorizadas e desumanizadas.

Nesse sentido, a visão hegemônica sobre a modernidade apresenta-a como um fenômeno ocorrido por volta do século XVIII, produto do Iluminismo, da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, que a teria consolidado, além de ser considerado o momento da formação de um saber científico racional e universalizável (ESCOBAR, 2003ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo: el programa de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, n. 1, p. 51-86, 2003.). Surge, nesse contexto, a figura do Homem, enquanto sujeito fundador de todo o conhecimento lógico, separado do natural e do divino. O mundo apresenta-se como máquina a ser conhecida, como contendo uma verdade profunda que seria apenas desvendada pelo homem, e, assim, controlada por essa racionalidade que apenas identifica a verdade das leis naturais e imutáveis que o regem (SANTOS, 1995SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995.). Essa explicação vê a modernidade como um fato social inevitável e derivado somente da Europa. Mesmo nas perspectivas críticas, a expansão da modernidade, com a globalização, é sempre vista como desdobramento desse paradigma eurocentrado, não se considera, portanto, que haja uma posição fora da modernidade de formas de se relacionar com o mundo. A crítica decolonial apresenta uma visão de exterioridade sobre esse fenômeno, construída desde os saberes colocados na exterioridade desse processo, que não são considerados pelos pensadores que se movimentam dentro desse paradigma eurocêntrico - ainda que críticos.

Uma mirada decolonial sobre a questão passa pelo deslocamento do ponto inicial da modernidade para as chamadas Grandes Navegações, que conduziram à invasão colonial de territórios na região hoje denominada de América Latina. Ademais, é preciso deslocar o âmbito da análise para perceber que a modernidade se constitui como um fenômeno de escala planetária, não apenas interno à Europa. Sua formação dá-se pela dominação de outros povos e por uma visão eurocentrada do conhecimento que se impõe como universal. Nesse sentido, produz-se uma ordenação epistêmica na qual a Europa figura como ápice, local de produção do verdadeiro conhecimento, enquanto que os territórios colonizados são vistos como primitivos (ESCOBAR, 2003ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo: el programa de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, n. 1, p. 51-86, 2003.). Essa perspectiva chama a atenção para a continuidade das relações de dependência entre centro-periferia engendradas no contexto do colonialismo histórico e a percepção de que a formal extinção das administrações coloniais conduziu a um mundo descolonizado se faz ilusória. Trata-se, porém, de um discurso que possui efeitos concretos de poder sobre a organização das relações entre os países, uma vez que permitiu, sob essa aparente descolonização, que essas relações se reconfigurassem e se mantivessem, agora sob a forma do que se pode chamar colonialidade global.

Nesse contexto, forma-se um sistema-mundo que pode ser chamado de europeu/euro-norte-americano capitalista/patriarcal moderno/colonial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24). A qualificação, embora extensa, expressa a articulação interseccional dos discursos de classe, raça e gênero que atuam para produzir desigualdades entre pessoas e entre países, de modo a definir as suas posições nesse sistema e na própria localização do que se considera, ou não, humano. A análise decolonial, portanto, leva em consideração tanto o âmbito econômico quanto o cultural como constitutivos desse sistema, de modo que não há predomínio de um sobre o outro, mas uma heterarquia de poderes que atuam em rede no contexto da modernidade/colonialidade. Constrói-se como uma visão crítica das relações interculturais, que se concentra na investigação das questões que estruturam esse sistema e que erguem a diferença segundo uma classificação social colonizada, racializada e generificada (WALSH, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. 2009. (Conferência apresentada no Seminário “Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz).). Nesta, os homens brancos são privilegiados e negros e indígenas - sobretudo as mulheres não-brancas - são subordinados, com o objetivo de construir novas formas de se relacionar, de edificar saberes e conhecimentos e de transformar as estruturas que organizam a nossa sociabilidade.

A colonialidade, portanto, produz uma linha abissal (SANTOS, 2018SANTOS, Boaventura de Sousa. Introducción a las Epistemologías del Sur. In: MENESES, Maria Paula; BIDASECA, Karina Andrea (Orgs.). Epistemologías del Sur. 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Coimbra: Centro de Estudos Sociais - CES, 2018, p. 25-61.), que separa o conhecimento da superstição, que coloca o modelo científico eurocentrado como única forma válida de relação entre o homem e o mundo, segundo a metafísica do Homem, sujeito do conhecimento que deve conhecer as leis naturais e imutáveis que regem o mundo para interferir sobre ele (CASTRO-GÓMEZ, 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24). O efeito dessa linha abissal é a produção de um epistemicídio dos saberes de diversos povos, por meio da imposição do modelo eurocentrado e do apagamento desses outros modelos de saberes, dessas outras formas culturais de ser e relacionar-se com o mundo. Nesse sentido, o ego cogito cartesiano pressupõe desde sempre um ego conquiro, o que significa dizer que na afirmação “penso, logo existo”, está contida uma afirmação sobre o Sujeito, de modo que está implícito que “[Eu, Sujeito,] penso, logo existo, o que implica na exclusão do Outro, daquele que não pensa nesses moldes, de modo que a forma completa dessa afirmação poderia ser traduzida como “eu penso, logo existo, outros não pensam, ou pensam inadequadamente, logo não existem” (MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 127-168., p. 142). A consequência que emerge disso é que a afirmação sobre a ciência contém uma afirmação sobre a existência, de modo que ao negar a existência de pensamento em um determinado grupo de pessoas - ou afirmar o caráter inadequado, ou falso de seus pensamentos, saberes - o que se nega é a existência de humanidade nelas, de tal modo que a colonialidade do saber conduz a uma colonialidade do ser, a implicação ontológica desse processo, que produz e reproduz os limites do humano.

Compreende-se, então, que antes do ego cogito está o ego conquiro, por meio do qual se produz um ceticismo antropológico sobre a humanidade dos indivíduos colonizados, o que configura efetivamente um maniqueísmo misantrópico racista/imperial que é, em outras palavras, a própria atitude imperial (MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 127-168.). A colonialidade, desse modo, ao afirmar o Homem como Sujeito, autoriza tanto a interferência sobre a natureza, que estaria à sua disposição e que seria objeto da intervenção científica, como a produção de identidades racializadas a indivíduos não-europeus, o que lhes atribui uma inferioridade natural que autoriza o uso de uma não-ética de guerra. Desse modo, a desqualificação epistêmica conduz a uma negação ontológica desses indivíduos, de tal modo que o ego cogito cartesiano, base do único saber verdadeiro, eleva o ceticismo sobre a humanidade ao patamar de uma certeza racional, decorrente de uma suposta evidência acerca da falta de racionalidade e, por conseguinte, de humanidade dos colonizados. Tem-se, aí, o fundamento científico para o racismo, que está na base da produção da diferença colonial, a qual é compreendida por Maldonado-Torres (2007) a partir do pensamento fanoniano como uma diferença subontológica que posiciona as existências dos colonizados num nível inferior ao do ser e que, por isso, é produzido discursivamente como dispensável. Com efeito, Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008) chama atenção para isto ao observar que o homem negro não é um homem, mas um homem negro, assinalando a metafísica ocidental produz entre o ego conquistador e o ego conquistado, que nega a humanidade deste último, autorizando a sua matabilidade.

Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem.

[...]

O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo. (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 26)

Assim, a raça é uma categoria produzida pela colonialidade, por meio da qual se engendra a negação de ontologia aos não-europeus, ao produzir identidades racializadas supostamente naturais. Essa naturalização é que produz a diferença colonial, que autoriza a suspensão da ética que organiza a relação entre as pessoas, afinal o indivíduo colonizado está excluído da humanidade. Compreende-se, dessa forma, que o negro é uma invenção, enquanto identidade racializada e inferiorizada, por meio da qual o projeto colonial pode concretizar a sua movimentação assassina. Por isso é que a ação dos Estados é inevitavelmente racista que permite a realização de genocídios contra populações inteiras (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção obras de Michel Foucault)). Essa exposição à morte resultado do processo de desumanização diz respeito, portanto, à naturalização de uma não-ética da guerra, na medida em que os corpos dos colonizados são colocados como não-humanos. Nesse processo de destruição ontológica e, consequentemente, física dessas existências, atua também a sexualização desses corpos, numa rede heterárquica de categorias que concretizam esse processo.

La mujer negra, a su vez, es vista como un objeto sexual siempre listo de antemano a la mirada violadora del blanco, y como fundamentalmente promiscua. La mujer negra es vista como un ser altamente erótico, cuya función primaria es satisfacer el deseo sexual y la reproducción. Cualquier extensión del falo en el hombre y la mujer negra representa una amenaza. Pero en su forma más familiar y típica, el hombre negro representa el acto de violación -“violar”-, mientras la mujer negra es vista como la víctima más representativa del acto de violación -“ser violada”. La mujer de color merece ser violada y sufrir las consecuencias -en términos de falta de protección por parte del sistema legal, abuso sexual continuo y falta de asistencia financiera para sostenerse a sí misma y a su familia-, tanto como el hombre de color merece ser penalizado por violar, aun sin haber cometido el delito. (MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 127-168., p. 148)1 1 Em tradução livre: “A mulher negra, por sua vez, é vista como um objeto sexual sempre pronto de antemão para o olhar violador do branco, e como fundamentalmente promíscua. A mulher negra é vista como um ser altamente erótico, cuja função principal é satisfazer o desejo e a reprodução sexual. Qualquer extensão do falo no homem e na mulher negra representa uma ameaça. Mas, em sua forma mais familiar e típica, o homem negro representa o ato da violação - ‘violar’ - enquanto a mulher negra é vista como a vítima mais representativa do ato da violação - ‘ser violada’. A mulher de cor merece ser estuprada e sofrer as consequências - em termos de falta de proteção do sistema legal, abuso sexual contínuo e falta de assistência financeira para sustentar a si mesma e sua família - tanto quanto o homem de cor merece ser penalizado por violar, mesmo sem ter cometido o delito.”

Desse modo, a colonialidade, ao negar a ontologia a determinados corpos, produz uma classificação social heterogênea, porque atravessada por diversos fatores que interagem para produzir a desumanização dos indivíduos. Com isso, hierarquizam-se as existências a partir do dizer colonial que define as posições sociais e, no limite, quem é ou não humano. Essa classificação é necessária à reprodução dessa matriz colonial de poder e, uma vez naturalizadas as identidades racializadas e sexualizadas que são atribuídas aos corpos, esses passam a tomar a suposta inferioridade como uma verdade natural, ignorando os efeitos de poder que daí decorrem (QUIJANO, 2007QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 93-126.). Desse modo, existe uma colonialidade do poder que estrutura a organização social segundo a intersecção das categorias sexo, raça e classe social. Assim, são produzidas identidades socialmente classificadas a partir da régua do homem branco, cis, heterossexual, que constitui o Sujeito, o verdadeiro humano. O poder organiza-se por meio de uma regulamentação da vida, de modo a controlar a distribuição dos recursos necessários à sobrevivência social e a reprodução biológica da espécie - conforme uma política eugenista que promova o apagamento das existências negras e indígenas, como efetivamente promovido no Brasil (NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.).

Há, portanto, uma disputa pelo estabelecimento de uma classificação social, que se estabelece num processo de longa duração em que as categorias que a operam são naturalizadas e, com o auxílio do ego conquiro, tomadas como evidências científicas. Classe, raça e sexo produzem essa classificação que, no limite, define os limites do humano. Percebe-se que a modernidade, a colonialidade, a América Latina e o modo de exploração capitalista não se dissociam da formação e movimentação dos Estados-nação no que concerne aos processos de subjetivação que organizam as relações de poder no mundo ocidentalizado. Em seguida, vejamos o papel do dispositivo de gênero e sexualidade na caracterização desses corpos como humanos ou abjetos.

2 O GÊNERO COMO PORTA DE ENTRADA NO HUMANO: UM OLHAR SOBRE A ABJEÇÃO

Compreendido o papel da colonialidade na produção do epistemicídio e da desumanização que hierarquizam existências e autorizam a morte de populações inteiras, vejamos, brevemente, as implicações que as categorias de sexo e gênero possuem na construção uma identidade inteligível como humana. Assim, será possível compreender o caráter performativo dessa construção identitária e as interdições que a circunscrevem, particularmente a partir dos saberes médicos e legais, de modo a localizar esse corpo dentro do humano ou fora dele, marcando-o como abjeto.

Para essa discussão, é necessário que repensemos a maneira como compreendemos o papel que o poder desempenha nas relações sociais e a sua ligação com o espaço político. Isso porque, se pressupomos um Sujeito como fundamento da política (como a epistemê colonial pressupõe o Homem), ficamos impedidos de questionar essa pressuposição dentro da própria política, que se constitui a partir dela, o que torna necessário questionar o próprio espaço do político enquanto tal (BUTLER, 1998BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo. Cadernos pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.). Não significa isto que se deva negar a existência de um Sujeito político, mas que é necessário investigar a maneira pela qual ele é formado, qual a vontade de verdade que atua nesse processo discursivo de apresentar determinado grupo de indivíduos como tal e que, por oposição, constitui outros indivíduos como não sujeitos, de modo a perceber que tal processo atua silenciosa, mas constantemente, e que tenta apresentar a verdade que produz como natural (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014. (Leituras filosóficas).). Nesse sentido o poder não funciona simplesmente como uma permuta entre um Sujeito e um Outro, mas, antes, como matriz de produção dessas posições, bem como daquilo que fica excluído dessa dialética das relações e, por conseguinte, da humanidade (BUTLER, 2018)

O sexo desempenha um papel importante nessa articulação do poder para produzir o Sujeito. Com efeito, o Ocidente moderno - e colonial - proclama uma necessidade de que os indivíduos falem incessantemente sobre o sexo, que se diga a verdade sobre ele, uma verdade profunda e natural que ele conteria, que se tornava necessário dizer, confessar, porque nesta verdade sobre o sexo estaria a verdade sobre si (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.). O poder atua, portanto, não para reprimir o sexo, mas para incitá-lo, para construir saberes científicos sobre ele, a fim de geri-lo e maximizar sua utilidade. O interesse dessa incitação não recai sobre o sexo heterossexual conjugal, que é colocado nas sombras para atuar sutil e coercitivamente como norma a partir da qual outras formas de sexualidade são definidas como desviantes, periféricas, anormais. A demanda é pela formulação dessas sexualidades, que precisam ser confessadas e relatadas de modo a serem catalogadas e produzidas como objeto de um saber médico e legal que as classifica como anormais e que deve corrigi-las. Assim, adequa-se o sexo à norma heterossexual para que ele atinja a sua máxima utilidade com a produção de novos corpos que gerem novas forças produtivas.

As relações de poder se configuram, então, não pela interdição, mas pela incitação à produção de discursos sobre o sexo, por meio dos quais se estabelece uma verdade sobre ele e, consequentemente, sobre o indivíduo, que passa a ter no sexo o princípio do seu ser, algo como uma característica natural que o define (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.). A confissão, nesse contexto, deixa de ter seu funcionamento circunscrito ao discurso religioso e é chamada a sustentar um discurso científico sobre o corpo e a vida, de modo que se forma um dispositivo de confissão que obriga, por uma série de técnicas e discursos, os indivíduos a dizerem a verdade sobre si mesmos. Essa verdade estaria presente no sexo e é por meio dela que nós nos constituiríamos enquanto sujeitos. Entretanto, aquele que enuncia a confissão sobre a sua sexualidade não contém em si a própria verdade, porque esta se forma pela interpretação que é feita por aquele que ouve a confissão. Este, por sua vez, não funciona apenas como aquele que irá perdoar ou julgar, mas como aquele que produzirá um discurso de verdade a partir daquilo que o sujeito lhe enuncia. É ele, pois, o dono da verdade profunda sobre o ser que estaria escondida no sexo.

As sexualidades periféricas são, nesse sentido, produto desse sistema, que não visa reprimi-las, mas incitá-las e apresentá-las como parte da realidade, incorporá-las ao indivíduo como revelação de uma identidade pervertida (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.), que seria o princípio de todo o ser do indivíduo. A homossexualidade, nesse sentido, é uma invenção da modernidade, que a define como perversão à norma heterossexual que revela uma patologia intrínseca ao indivíduo e, com isso, atribui-lhe uma identidade indesejável, oposta à identidade heterossexual normativa (MISKOLCI, 2009MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias. Porto Alegre, ano 11, nº 21, p. 150-182, jan./jun. 2009.). A sexualidade apresenta-se, assim, como dispositivo histórico que exibe o sexo como um aparente elemento natural, pré-discursivo, de difícil apreensão, ocultando as estratégias de saber-poder que se articulam para produzi-lo como um efeito delas. Compreende-se, então, que o poder não reprime, mas incita os discursos sobre a sexualidade e forma a ideia de sexo como princípio causal do indivíduo, de onde ele retira a sua inteligibilidade.

[...] É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade de seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada desse corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história) [...]. (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017., p. 169)

Esse dispositivo funda, por conseguinte, uma ordem social heteronormativa, em que os corpos têm suas identidades “naturais” decididas a partir dessa ideia de um “sexo” que seria a causa oculta do ser do indivíduo, ao qual corresponderia um gênero e que determinaria o desejo pelo sexo oposto (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. (Sujeito e história).). Somente quando as categorias de sexo, gênero e sexualidade estão coerentes com os discursos que regulam a produção de identidades é que o corpo pode ser considerado como “inteligível”, dentro dos limites do humano. Contudo, dado que o sexo não é algo natural, pré-discursivo, percebe-se que o gênero não é uma mera interpretação dele, mas é parte do dispositivo que produz o próprio sexo e sua aparente pré-discursividade. Não há, portanto, uma real diferença entre sexo e gênero, porque ambos são efeitos de poder que circulam nos discursos e nas práticas discursivas que compõem esse dispositivo, porque somente dentro dele é que essa estrutura binária dos sexos - masculino e feminino - se sustenta.

Diferentemente, o gênero se caracteriza como uma construção performativa, por meio da repetição continuada de atos performativos que produzem o corpo dentro das categorias de gênero culturalmente construídas. Há, pois, uma matriz de normas de gênero, culturalmente construída, que define quais as identidades de gênero possíveis, inteligíveis dentro do campo do humano, enquanto, por outro lado, exclui aqueles corpos cujas performances contestam essas normas por não seguirem a coerência entre as categorias sexo, gênero e desejo que elas fazem circular como norma. Esses corpos são colocados fora dos limites do humano porque não são ininteligíveis do ponto de vista das normas culturais que definem tais limites. Por meio delas é que o corpo “vem a ser”. Constitui-se, assim, uma identidade ao desenvolver uma performance de acordo com elas, ou uma anti-identidade, uma identidade abjeta, quando as subverte. Nesse quadro, percebe-se que essa matriz produz a hierarquização de gênero, ao determinar as categorias homem e mulher, como o Sujeito e o Outro da dialética do humano. As existências, porém, que rompem com essa matriz, como as pessoas trans, são construídas como abjetas, não-humanas e, por isso, matáveis (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. (Sujeito e história).).

Não significa isso que se deva abandonar a noção de identidade, mas que se deve perceber as relações de poder da qual ela resulta, para tomá-la de maneira não essencializada, não fixa (HALL, 2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), em que, aliás, as aparências de naturalidade e fixidez decorrem de normas culturais que definem o limite das identidades possíveis. Por isso, é preciso compreender que os fundamentos das identidades são produzidos por um movimento epistêmico que se constitui por meio de exclusões que autorizam algumas existências e colocam outras na abjeção, que é o espaço do não questionado, daquilo que não “vem a ser” (PRINS; MEIJER; 2002PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista estudos feministas, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002.). Essa matriz que produz identidades essencializadas, aparentemente naturais, não se restringe ao dispositivo de gênero e sexualidade, porque também o racismo constitui o espaço da abjeção e define vidas situadas fora do humano, cujas materialidades não importam. Nesse sentido, Quijano (2007QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. p. 93-126.) observa o caráter heterogêneo da classificação social, em que as categorias de gênero, raça e classe social se articulam para hierarquizar existências e negar humanidade a algumas delas.

Nessa perspectiva, o sistema jurídico não se constitui apenas um meio de representação, mas produz os sujeitos que afirma representar. De fato, o saber legal, juntamente com o saber médico, integra o dispositivo de sexualidade que produz a “ideia de sexo” e ambos definem as figuras de gênero possíveis. Isto ocorre pela imposição de uma coerência entre sexo, gênero e desejo - por meio, por exemplo, da definição oficial da classificação de gênero do corpo humano. Portanto, a política representacional deve ser pensada para além dos sistemas estatais de representação, de modo a investigar os efeitos de poder que são produzidos por eles e de que maneira eles produzem e fazem circular uma norma sobre o humano e, por oposição, abandonam corpos com identidades dissidentes à abjeção (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. (Sujeito e história).).

3 A ADI 4275 E AS TENSÕES DE UMA RESPOSTA JUDICIAL ÀS DEMANDAS DAS PESSOAS TRANS

A ADI 4275 foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR), com o objetivo de conferir interpretação conforme à Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica2 2 Trata-se de ação que tinha por objetivo controlar, portanto, tanto a constitucionalidade, quanto a convencionalidade do artigo, ao buscar adequar a sua interpretação ao texto não apenas à Constituição, mas à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) ao art. 58 da Lei 6.015/73, segundo o qual “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios” (BRASIL, 1973), a fim de reconhecer a possibilidade de alteração do prenome e da classificação de gênero no registro de nascimento de pessoas trans, de modo a adequá-lo ao nome socialmente utilizado e à expressão de gênero da pessoa.

A ação foi julgada procedente, no sentido de reconhecer a possibilidade de alteração do registro, independentemente de autorização judicial. Minoritariamente, divergiram o ministro Marco Aurélio, que votou pela necessidade de procedimento de jurisdição voluntária - em que não há lide - para realizar a alteração, e os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes, que entendiam necessária autorização judicial para alterar os registros. Faremos, em seguida, alguns breves gestos qualitativos de análise sobre o voto da ministra Cármen Lúcia, que votou pela alterabilidade independente de autorização judicial, de modo que seu voto coincide com o posicionamento vencedor na votação. Com isso, observaremos como a solução adotada pelo tribunal reintroduz a colonialidade e o dispositivo de gênero e sexualidade, de modo a perceber quais os sentidos dessa decisão desde os aportes teóricos trabalhados.

A ministra Cármen Lúcia afirma que baseou seu voto

nos princípios constitucionais da igualdade material - como aqui já foi dito e, por isso, não vou repetir; no direito à dignidade na nossa essência humana e no direito de ser diferente, porque cada ser humano é único, mas os padrões realmente se impõem. E o Estado há que registrar o que a pessoa é e não o que o Estado acha que cada um de nós deveria ser, segundo a sua conveniência. (BRASIL, 2019, p. 146)

Argumenta, também, que

a identificação da “pessoa natural” segundo sua genitalidade, conquanto traduza, no atual estágio civilizatório, elemento naturalístico preponderante, cultural e consensual entre os povos, não esgota, contém, ou minimamente espelha a complexidade da “pessoa humana”, que deve ser reconhecida segundo sua dignidade.

(BRASIL, 2019, p.158)

Esses excertos remetem ao papel do Estado na classificação social. Afirma-se aí que “padrões realmente se impõem”, o que implica que cabe à ação estatal administrar tais padrões, ao “registrar o que a pessoa é”. Além disso, afirma-se a existência de uma essência humana, que seria reconhecida pelo Estado, uma “pessoa natural”, ou seja, que existiria como masculina ou feminina “naturalmente”, anterior e independentemente da ação dos discursos médicos e jurídicos. Desse modo, ao sistema jurídico caberia somente reconhecer essa essência, identifica-la, já que ela seria anterior, e registrar aquilo que a pessoa é. Observa-se, aqui, a convergência entre gênero/sexualidade e a verdade, em que estaria contida neles o princípio de todo o ser do sujeito, a sua essência natural.

Como vimos, porém, o sexo é um efeito de poder, produzido no contexto de um dispositivo que busca incitar discursos sobre ele para, com isso, formar uma verdade sobre o sexo e sobre o indivíduo, de modo a criar identidades patologizadas. O “reconhecimento” é, de fato, um ato performativo, que situa o corpo da pessoa numa determinada posição da matriz de gênero e sexualidade. Percebe-se isso na afirmação de que o que o Estado registra é aquilo que a pessoa realmente é, de tal modo que a lavratura do registro produz uma verdade sobre aquele corpo dentro da hierarquia social generificada e racializada. Igualmente, a afirmação do médico de que o bebê é um menino ou uma menina não é uma simples declaração, mas um dizer performativo que constitui aquele corpo como sujeito a partir da coerência entre sexo e gênero (BENTO, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.).

Acho que o princípio da igualdade material há de realizar exatamente isso. E o que o Estado faz é oferecer um registro para nossa identificação sócio-jurídica, como aqui já foi muitas vezes dito. Não se respeita a honra de alguém se não se respeita a imagem do que ele é e se não há coerência entre a essência e a aparência. E ter de viver segundo a aparência que o outro impõe é uma forma permanente de sofrimento. (BRASIL, 2019, p. 147)

Na espécie, é o que se concretiza pela garantia do registro civil de prenome e sexo condignos à sua identidade de gênero, científica e judicialmente reconhecida. A identidade que lhe integra os direitos inalienáveis da personalidade, a partir de de (sic) seu íntimo, projetam-se à sua comunidade, a seus afetos, desde a família de origem até a família que origina. (BRASIL, 2019, p. 161)

No primeiro destes dois trechos, reafirma-se que a decisão se baseia na necessidade de fazer com que a pessoa seja identificada com a sua essência verdadeira, encontrada na ideia de “sexo”. Além disso, afirma ser um sofrimento viver em uma aparência - contraposição à essência -, que o outro lhe impõe. Apesar disso, o sentido do julgamento, ao permitir a alteração do registro, é precisamente o de que a identidade performatizada pelos indivíduos, para ser “verdadeira”, precisa ser reconhecida como tal pelo Estado, o que aparece expressamente no segundo excerto, no qual reitera-se a posição estatal como o ente capaz de reconhecer como verdadeira a identidade da pessoa e, com isso, fazer dela uma cidadã.

Nisso, percebe-se empiricamente que o sistema jurídico mais que representa os sujeitos, constitui-os enquanto tais. Essa posição indica o papel do Estado na concretização e funcionamento da classificação social, bem como na circulação dos discursos e práticas que compõem o dispositivo de gênero e sexualidade. De fato, mantêm-se a matriz heteronormativa em que os limites do humano são formados, que pressupõe o binarismo de sexo e gênero. A decisão apenas permite que o Estado reclassifique o corpo dentro dessa matriz, mas não propõe rompimentos, porque realmente não poderia, dado o papel fundante que desempenha no seu funcionamento.

O “reconhecimento” que a decisão propõe situa-se em uma perspectiva neoliberal de interculturalidade (WALSH, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. 2009. (Conferência apresentada no Seminário “Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz).), ao admitir a inclusão daquele corpo abjeto, por meio da alteração do registro, mas sem questionar os discursos que o produzem como abjeto. Com isso, mantém-se operante a negação de ontologia que está na base de formação dos Estados-nação, notadamente na América Latina, com a transição do colonialismo histórico para a colonialidade global (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo: giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del hombre, 2007. P. 9-24), porque essa vida será incluída, mas como diferente, dentro da heteronormatividade que essa ação estatal preserva. Essa ação, por sinal, ao manter intactas as matrizes essencializantes que operam a classificação heterogênea das existências, preserva e, na verdade, aperfeiçoa o papel de gestão da vida que o Estado exerce, ao conferir esse caráter aparentemente includente a esse processo. Essa inclusão, porém, é simultaneamente excludente, pois, como vimos, caminha acompanhada da etiqueta de estranho, anormal. É uma “solução” que se movimenta dentro de uma concepção de espaço que pressupõe o Sujeito como seu fundamento, o que lhe impede de percebê-lo como efeito das relações de poder, em vez de pressuposto metafísico delas.

Além de manter o Estado como detentor da verdade sobre a posição daquela vida, uma solução judicial, como a que está posta em questão, revela-se excludente também por manter na abjeção aqueles corpos que desenvolvem performances de gênero que não se enquadram em nenhuma das figuras do binário heteronormativo que estrutura os limites do humano. A alteração de registro requer que aquela vida se amolde a uma das figuras desse binário, o que exclui aqueles que as subvertem. Neste sentido, atua como uma inclusão normalizadora, porque se realiza somente na medida em que se trate de uma performance localizável nos limites da heteronormatividade. Também nisso a ação estatal mostra-se como uma inclusão-excludente voltada para a conservação dos discursos que produzem identidades desumanizadas, marcadas como abjetas, que apenas admite que se inclua desde que em acordo com a matriz essencializada.

O gênero, diferentemente da morfologia sexual, é, antes de tudo, um elemento de identificação cultural. E cultura é expressão da vivência humana comunitária, que a Constituição quer agregante, não excludente. (BRASIL, 2019, p. 150)

Sofrimento fomentado essencialmente pela discriminação histórica, ancorada no atraso do não reconhecimento da identidade de gênero em desacordo com o sexo anatômico.

(BRASIL, 2019, p. 155)

A ministra retoma, neste ponto, uma definição do que seriam “transgêneros”, retirada, vale notar, não de um texto produzido por uma militante trans, queer, enfim, de um escrito produzido desde o limiar ontológico produzido pela matriz sexo/gênero. Ao contrário, a definição é retirada de uma obra jurídica. Lê-se:

Em suma, são indivíduos nos quais a identidade de gênero não apresenta congruência com seu sexo biológico, observada na maioria dos indivíduos. (DIAS, 2015, p. 331-332, apud, BRASIL, 2019, p. 152)

Na sequência desta definição, o autor citado pela ministra utiliza o termo “transexualismo”, com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), para defini-lo como “um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto”, que viria acompanhado de um desconforto com o sexo anatómico, isto é, natural, e um desejo de submeter-se a intervenções cirúrgicas para conformar-se ao sexo anatômico oposto. Esses trechos indicam com precisão o modo como a aparente inclusão funciona como reforço da heteronormatividade e das identidades supostamente naturais que produz. Afirma-se aí o gênero enquanto identificação cultural, em oposição a uma morfologia sexual, um suposto “sexo anatômico” que seria naturalmente masculino ou feminino. O enunciado cristaliza e recoloca em circulação a ideia de que as pessoas trans seriam aquelas com uma “[...] identidade de gênero em desacordo com o sexo anatômico” (BRASIL, 2019, p. 155). Esta recolocação atravessa todo o enunciado, ainda que de forma sutil, mas sempre constante, a exemplo da afirmação de que “[...] a masculinidade não se consubstancia ou reduz ao sexo anatômico [...].” Deste trecho, vê-se que a identidade de gênero continua a ser referida a um suposto sexo anatômico que seria anterior e natural.

Contudo, como vimos, a ideia de um “sexo masculino” e de um “sexo feminino”, anteriores aos saberes sobre a sexualidade, não se sustenta, porque essa oposição somente faz sentido dentro da heteronormatividade, que produz a oposição entre homem e mulher como as únicas identidades de gênero possíveis, de modo que sexo e gênero são partes do mesmo dispositivo que regula a inteligibilidade - e, por conseguinte, a humanidade - dos indivíduos. Ao tratar como natural o sexo, o acórdão circula o discurso que faz dele o princípio da identidade do sujeito e restringe as existências possíveis ao homem e a mulher, ao passo que mantém a produção da abjeção dos corpos que subvertem essas categorias e que fazem gênero de formas que não se amoldam a esses limites. Permanece-se, assim, a impedir que certos indivíduos sejam considerados Sujeitos, que os impede de ser sequer o Outro, porque os situa fora desta dialética da humanidade, no espaço da abjeção.

CONCLUSÃO

As discussões desenvolvidas ao longo desse trabalho nos permitem inferir que o processo de colonização está na base da nossa subjetivação, por articular uma heterarquia de categorias que produzem identidades hierarquizadas, tendo como norma o homem cis, heterossexual, branco, europeu. Com base nessa norma, as identidades dissidentes são hierarquizadas, patologizadas e desumanizadas. Conjuntamente, atua um dispositivo de gênero e sexualidade que delimita as performances de gênero inteligíveis como humano e define como abjetas aquelas que subvertem a coerência entre as categorias sexo, gênero e desejo. A esse processo de produção da abjeção entrelaça-se a matriz colonial de poder, que inventa a categoria raça como meio de produzir o genocídio nos territórios invadidos pelos colonizadores. Vimos que o direito integra esses dispositivos e que antes de representar, ele atua na produção dos Sujeitos que podem aparecer como titulares de direito, como vidas normais.

Compreendemos que o Estado-nação possui papel central na gestão dessa matriz colonial de poder, assim como na incitação dos discursos sobre a sexualidade e na circulação da norma que divide as existências entre o espaço do humano e da abjeção. Sua atuação passa pelo dizer performativo sobre o corpo do indivíduo, desde o seu nascimento, quando, por meio dos saberes médicos e jurídicos, impõe a coerência entre sexo, gênero e desejo como condição para que o corpo seja situado dentro dos limites do humano. Visto isso, analisamos de que maneira a ADI 4275/DF se insere nesse contexto e como a possibilidade de alteração do registro civil por ela consignada não apenas não rompe com essa heterarquia colonial de poderes, como reforça-a, na medida em que mantém o Estado no papel de produtor do sujeito, como aquele que detém a verdade sobre o indivíduo, que diz quem ele é ‘realmente’.

A decisão reforça a ideia de uma essência pré-discursiva do sujeito, que residiria na ideia de sua sexualidade e de seu gênero, que caberia ao Estado determinar para pôr aquele corpo em acordo com ela. Ademais, a demanda das pessoas trans pelo respeito ao seu nome social recebe uma resposta judicial que, ao mesmo tempo em que confere caminhos para a alteração do registro civil, reafirma e naturaliza a matriz binária de gênero/sexualidade que atua como norma das existências possíveis, uma vez que essa suposta essência corresponde necessariamente às figuras da mulher ou do homem, em uma das quais o corpo será posicionado após a retificação. Isso mantém na abjeção as existências que fazem gênero em dissonância com essa matriz, que continuam a ser ininteligíveis e, portanto, vidas que não importam.

Com isso em mente, compreende-se os limites que circunscrevem uma política identitária que tem por objetivo simplesmente fazer-se representar pelo sistema jurídico, elemento central da matriz de poder que uma política de gênero queer e decolonial busca superar. Uma ação política que não considere e critique as violências que sustentam e que são perpetuadas pelo sistema jurídico acaba por reforçá-las, de modo que somente permite a inclusão sob o rótulo de diferente, anormal, e desde que aquela vida se conforme às categorias da matriz binária de gênero, o que mantém excluídas aquelas vidas que subvertem essas figuras. Isso não implica que se deva abandonar a política representacional, ou que a possibilidade de alteração do registro não seja importante, mas é essencial compreender os regimes de verdade que produzem essa decisão e que são reproduzidos e atualizados por ela, para possibilitar outras formas de pensar identidade. Tais novas formas devem questionar os fundamentos do espaço político e da identidade, para vê-la de maneira não essencializada, como efeito de disputas de poder. Emerge daí a necessidade de uma concepção deslocante da identidade, que não a tome como algo fixo, mas sempre posto em questão frente às diversas performatividades de gênero.

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  • 1
    Em tradução livre: “A mulher negra, por sua vez, é vista como um objeto sexual sempre pronto de antemão para o olhar violador do branco, e como fundamentalmente promíscua. A mulher negra é vista como um ser altamente erótico, cuja função principal é satisfazer o desejo e a reprodução sexual. Qualquer extensão do falo no homem e na mulher negra representa uma ameaça. Mas, em sua forma mais familiar e típica, o homem negro representa o ato da violação - ‘violar’ - enquanto a mulher negra é vista como a vítima mais representativa do ato da violação - ‘ser violada’. A mulher de cor merece ser estuprada e sofrer as consequências - em termos de falta de proteção do sistema legal, abuso sexual contínuo e falta de assistência financeira para sustentar a si mesma e sua família - tanto quanto o homem de cor merece ser penalizado por violar, mesmo sem ter cometido o delito.”
  • 2
    Trata-se de ação que tinha por objetivo controlar, portanto, tanto a constitucionalidade, quanto a convencionalidade do artigo, ao buscar adequar a sua interpretação ao texto não apenas à Constituição, mas à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    25 Ago 2022
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