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O dilema da periferia e a dupla dialética do esclarecimento

Periphery at the crossroads and the double dialectics of enlightenment

Resumo

Este artigo propõe um diagnóstico da condição periférica alinhado à teoria crítica, sustentando que a característica distintiva da América Latina pode ser descrita como uma dupla dialética do Esclarecimento: o Esclarecimento é, de saída, mito, mas ele é, aqui, também a modernização do arcaico. Após a independência, as ex-colônias ofereceram resistência ao capitalismo, apesar de aderirem formalmente à simbologia do liberalismo. Essa dupla negação explica por que a América Latina ainda não se compreende como um projeto político autêntico.

Palavras-chave:
Periferia; Dialética; Esclarecimento

Abstract

This paper proposes a critical diagnosis of the peripherical condition, arguing that the distinctive feature of Latin America can be described as a double dialectic of Enlightenment: Enlightenment is a myth from the beginning, but here it is also the modernization of the archaic. After independence, former colonies resisted capitalism, though formally incorporating the symbols of liberalism. This double denial explains why Latin America has not yet built an authentic political project.

Keywords:
Periphery; Dialectics; Enlightenment

Introdução: a dulpla dialética do esclarecimento1 1 O autor agradece a atenta leitura da(o)s pareceristas ad hoc e as críticas formuladas à versão original deste artigo: elas certamente aprimoraram o texto e o tornaram mais consistente. A responsabilidade pelas insuficiências remanescentes é imputável exclusivamente ao autor.

Este artigo pretende oferecer uma contribuição à autocompreensão teórica da América Latina a partir de uma perspectiva dialética filiada à tradição frankfurtiana. A hipótese a ser demonstrada é a de que, ao invés de constituir uma espécie de “civilização incompleta” ou “semi-desenvolvida” – “em desenvolvimento” rumo ao centro capitalista desenvolvido – a periferia é o avesso do Esclarecimento2 2 Emprega-se o termo “Esclarecimento” como sinônimo de “Iluminismo”, designando-se com isso o movimento intelectual racionalista e radicalmente humanista desenvolvido na Europa de meados do século XVII até o final do século XVIII, culminanto politicamente na Revolução Francesa (1789-1799) e na destruição da ordem feudal do Antigo Regime. Do ponto de vista da história das ideias, compreende desde o Discurso sobre o método de Descartes até as críticas de Kant, passando pelos enciclopedistas, pela filosofia moral escocesa, pela filosofia da história e pelos contratualistas. e a ele impenetrável. A periferia não caminha para o centro, mas é seu negativo. Essa é sua característica essencial.

Contra, de um lado, modelos explicativos que simplesmente vêem a América Latina como projeção inacabada do capitalismo central; e, de outro lado, contra modelos que representam o mundo ocidental em uma dualidade insuperável, dispondo de um lado o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como realidades próprias e alocando a América Latina neste último pólo (mesmo admitindo que o subdesenvolvimento possa ser caracterizado por reproduzir em si mesmo essa dualidade original no convívio do arcaico e do moderno), pretende-se argumentar que nossa realidade é um momento da totalidade social; tem um lugar próprio no desenvolvimento do capitalismo: a periferia funciona como o negativo do capitalismo democrático ocidental e justamente nisso está o ponto fundamental para resolver seu histórico dilema de autocompreensão.

O específico da América Latina é viver uma dupla dialética (Arantes 1992ARANTES, Paulo Eduardo, 1992. Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira: Dialética e Dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra.): se a Dialética do Esclarerecimento (Adorno & Horkheimer 1947/1985ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max, Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos, trad. Guido A. Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [1947] 1985.) implica reconhecer que o Esclarecimento é simultaneamente mito (isto é, luz e sombra, emancipação e dominação, racionalização do mundo e mitificação da razão, desencantamento e re-encantanmento do mundo), a colônia independente faz com que o Esclarecimento seja não apenas o mito da emancipação mas, sobretudo, a modernização do arcaico. A implosão das bases sociais do feudalismo europeu não produziu o mesmo efeito na América Latina, vez que os movimentos de independência preservaram integralmente a dominação oligárquica rural. O argumento acompanha, portanto, até certo ponto, o diagnóstico clássico de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Diferentemente das abordagens póscoloniais ou decoloniais atualmente em voga, especialmente as tributárias do desconstrucionismo (notadamente Spivak 1993SPIVAK, Gayatri Chakravorty, “Can the Subaltern Speak?” in Patrick WILLIAMS & Laura CHRISMAN (orgs.). New York: Columbia University Press, 1993, ps. 66-111., adotaremos um ponto de vista que procura explicar o dilema de autocompreensão latino-americano por uma dialética específica do capitalismo periférico: há, aqui, uma inversão interna do modo de produção, na medida em que as relações de produção estabelecidas na ordem colonial restringiram o desenvolvimento de forças produtivas plenamente capitalistas; ao mesmo tempo, contudo, em que a ideologia assim produzida sugeria – e ainda sugere – a aderência ao projeto civilizatório liberal-democrático do centro (Schwarz 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades.).

Para demonstrar esse ponto, partiremos de um breve esboço do dilema da autocompreensão latino-americana (seção I), para daí apresentarmos os limites de explicações economicistas (seção II) em função da resistência política que a colônia ofereceu (e ainda oferece) ao capitalismo (seção III). Veremos que essa resistência é a marca distintiva da periferia e impõe consequências profundas para a representação simbólica que a periferia faz de si mesma (seção IV). Ao fim e ao cabo, a periferia não é um estágio rumo ao centro, mas sua imagem invertida.

I. Civilização ou barbárie? O dilema da autocompreensão colonial

O que se poderia chamar de dilema da autocompreensão latino-americana pode ser assim formulado: até hoje, a América Latina não chegou a se constituir em um projeto político positivo nos termos propugnados pelo Esclarecimento europeu de onde irradia o capitalismo e essa impossibilidade é na verdade historicamente constitutiva da organização social latino-americana.

Esse dilema pode ser ilustrado pelo famoso Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, publicado em 1845. O título do livro de Sarmiento remete a Facundo Quiroga (1788-1835), conhecido por seu envolvimento no movimento da independência argentina, caracterizado como provinciano, bárbaro, valente, audaz, assassinado tragicamente e substituído por Rosas, falsamente culto, tirano do povo argentino (Sarmiento 1993SARMIENTO, Domingos Faustino, 1993. Buenos Aires: Compañia Espasa Calpe., ps. 35-37). Nesses termos, Sarmiento formulou o dilema teórico frente ao qual a auto-compreensão histórica da América Latina tinha necessariamente de se posicionar daí em diante – a fórmula “civilização ou barbárie?” exigia do Novo Continente independente uma escolha que variasse entre o modelo de desenvolvimento encarnado na metrópole civilizada e a brutalidade do passado colonial: “¿No habéis oído la palabra selvaje que anda revolteando sobre nuestras cabezas? De eso se trata: de ser o no ser selvaje” (Sarmiento 1993SARMIENTO, Domingos Faustino, 1993. Buenos Aires: Compañia Espasa Calpe., p. 42 – grifos no original).

Na formulação de Sarmiento, a civilização designava o urbano, o europeu, a cultura ilustrada; a barbárie era o resto: a colônia, o rural, o provinciano. Diante do dilema posto para a auto-compreensão latino-americana, para “não ser selvagem” era preciso, portanto, civilizar-se (Quijada S/D, p. 310QUIJADA, Mónica, S/D. “¿Qué Nación? Dinámicas y Dicotomías de la Nación en el Imaginário Hispanoamericano” in ANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (orgs.), Inventando la Nación: Iberoamérica siglo XIX. México/DF: Fondo de Cultura Económica.). Não parece exagero vislumbrar nesse esforço de auto-civilização o ponto crítico do dilema latino-americano: tomando como modelo a Europa, civilizar-se significa amoldar-se ao modelo – “europeizar-se”, portanto. Vale considerar que a tarefa foi proposta como projeto político, por exemplo, por Alberdi (Alberdi, 1943ALBERDI, Juan Bautista, 1943. Bases y Puntos de Partida para la Organización Política de la República Agentina, 2ª ed. Buenos Aires: Estrada.)3 3 Juan Bautista Alberdi (1810-1884) foi um dos principais pensadores liberais argentinos do século XIX, tendo influenciado decisivamente a Constituição argentina de 1853, redigida à imagem e semelhança da Constituição norte-americana. . Com isso, a propensão para a adoção de modelos intelectuais e institucionais oriundos da Europa civilizada fica mais ou menos explicada, pois era necessário superar a barbárie colonial pela importação e implantação exógena de elementos europeus civilizados: o constitutivo da América Latina é a circunstância de que sua auto-compreensão é ocidentalmente referenciada:

“Si un destello de literatura nacional puede brillar momentáneamente en las nuevas sociedades americanas, es el que resultará de la descripción de las grandiosas escenas naturales, y, sobre todo, de la lucha entre la civilización europea y la barbarie indígena, entre la inteligência y la materia” (Sarmiento 1993SARMIENTO, Domingos Faustino, 1993. Buenos Aires: Compañia Espasa Calpe., p. 77).

Essa fragmentação constitutiva dificultou sobremaneira as iniciativas de interpretação nacional no momento pós-independência, até porque a independência não engendrou nacionalidades radicalmente novas. Ademais, durante um período bastante significativo, a questão “barbárie ou civilização” foi compreendida em termos raciais. São fartas, nesse sentido, as referências à “patologia” da sociedade pós-colonial mestiça, como por exemplo, o Manual de Patología Política, de Agustín Alvarez, de 1899; El Continente Enfermo, de César Zumeta, também de 1899; Nuestra América, de Carlos Octavio Bunge, de 1903; Enfermedades sociales, de Manuel Ugarte, de 1905; e o conhecido Pueblo Enfermo, de Alcides Arguedas, de 1909; profundamente influenciados pela sociologia positivista européia do final do século XIX e, especialmente, pela psicologia social expressa nas Lois Psychologiques de l’Evolution des Peuples, de 1894, de Gustave Le Bon. Nesse sentido, a “alma nacional” passa a ser o conceito central para a compreensão da América Latina, atestando-se com isso a enfermidade social do Novo Continente por conta da mescla racial de sua população, sendo impossível alcançar uma consciência nacional em meio à composição mestiça da população latino-americana. Essas interpretações raciais são a expressão mais imediata da América Latina confrontada por seu dilema de auto-compreensão: diante da barbárie encarnada na colônia e da civilização encarnada na Europa, a América Latina, ora colônia independente, precisava encontrar seu posto e a explicação racial fazia a mediação4 4 Cf., para a literatura desse período, Stabb 1969. Para uma visão geral do ideário latino-americano na passagem do século XIX para o século XX, cf. Hale 1996. .

Com efeito, a fórmula “civilização ou barbárie” polariza as alternativas de tal maneira que obscurece a real situação latino-americana: os ensaios interpretativos tendem a buscar algum ponto médio entre os extremos. Contudo, o dilema de auto-compreensão da América Latina está além desse esquematismo binário. O hiato oculto na pergunta de Sarmiento não tem como ser preenchido: a independência hispano-americana, em certa medida eco do Esclarecimento racionalista europeu, não enraizou o Iluminismo no Novo Mundo ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, consolidou a independência no continente tal como ele se encontrava – i.e., politicamente conduzida pela oligarquia rural.

Alain Rouquié oferece uma formulação bastante sugestiva ao caracterizar a América Latina como “extremo Ocidente”: pretende demonstrar que, não obstante a organização econômica da América Latina esteja profundamente condicionada pelas relações entre o centro e a periferia do capitalismo, o Novo Continente liga-se culturalmente ao Ocidente, principalmente em função do catolicismo (Rouquié, 1991ROUQUIÉ, Alain, 1991. O Extremo-Ocidente: Introdução à América Latina, trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: EDUSP.). Com isso, é possível extrapolar um pouco o escopo de Rouquié e extrair considerações mais gerais do ponto de vista teórico: a realidade histórico-social da América Latina pode ser sintetizada em uma singularidade essencialmente fragmentada, já que seu sentido cultural é diretamente ocidental enquanto seu sentido econômico é apenas indiretamente ocidental – mas em ambos os casos, tal relacionamento fora determinado pelo velho Ocidente, o que é demonstrado pelo passado colonial-católico ibero-americano. Se, do ponto de vista econômico, a América Latina é apenas indiretamente ocidental, há que se considerar que, ainda desse ponto de vista, ela não chegou a constituir-se como um alter ao Ocidente capitalista. Por “extremo Ocidente”, assim, pode-se designar uma negação do Ocidente que, não obstante tal circunstância, não se cristalizou em uma positividade alternativa.

Essa perspectiva de análise está em sintonia com a peculiar visão de Richard Morse quanto à realidade histórica da sociedade latino-americana: a América Latina não se caracteriza por um “ser pela metade”, mas sim e muito profundamente por “ser um não ser” (Morse, 1988MORSE, Richard M., 1988. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, trad. Paulo Neves.São Paulo: Companhia das Letras.). Não se trata de uma ordem social inspirada pelo centro do capitalismo e que estaria, “ainda” ou “por enquanto”, a meio caminho de seu ideal, mas sim de uma ordem social constituída como negação do centro do capitalismo. Morse, ao abrir o Prefácio de seu O Espelho de Próspero, explica o sentido o título: “Próspero”, personagem extraído de A Tempestade de Shakespeare por José Enrique Rodo em El Mirador de Próspero, de 1909, converte-se nos “prósperos” Estados Unidos da América do Norte, frente ao qual a América Latina representa uma imagem invertida – que reflete, contudo, para os prósperos, sua própria imagem. Com isso, Morse não pretende retratar a América Latina como “vítima, paciente ou ‘problema’, um caso de desenvolvimento frustrado”, mas como a vivência de uma opção cultural que ressalta a identidade histórica da sociedade ibero-americana, sem recair na aplicação ou na rejeição fáceis de modelos prontos, ou ainda no puro determinismo (Morse, 1988MORSE, Richard M., 1988. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, trad. Paulo Neves.São Paulo: Companhia das Letras., ps. 13/14)5 5 A “opção cultural” de que fala Morse expressa não uma vontade subjetiva, mas a contingência de escolhas políticas – nem determinismo, nem fatalismo. . Morse percorre a história da “Ibero-América” a partir da pré-história da civilização européia ocidental, reportando-as a uma remota matriz moral e intelectual comum, até chegar à penetração do Iluminismo no Novo Mundo. Sem prejuízo desses desenvolvimentos extremamente interessantes, é de particular relevo para o presente trabalho a hipótese de inspiração frankfurtiana formulada nos seguintes termos:

“Nossa pergunta não é se a Ibero-América pode suportar, ou de alguma maneira enobrecer, a penetração do Grande Desígnio Ocidental, mas se ela é, por constituição histórica (e não importa se para o bem ou para o mal), de certo modo impenetrável a esse Desígnio. E se a transição for irrealizável ao invés de irrealizada? (...) O nó da questão é que a Ibero-América sempre foi vista, mesmo por seus pensadores clássicos, não como autóctone, mas simplesmente como obsoleta” (Morse, 1988MORSE, Richard M., 1988. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, trad. Paulo Neves.São Paulo: Companhia das Letras., p. 127 – grifos acrescidos).

Nesse sentido, a América Latina é o espelho dos prósperos países do Norte, pois lhes reflete a imagem invertida – não se trata de um esclarecimento interrompido a meio caminho, mas do avesso do Esclarecimento, cuja penetração por aqui foi irregular, intermitente e, vale acrescentar, extremamente intranqüila. A solução do dilema de auto-compreensão da América Latina, portanto, tem de ser buscada em seu próprio movimento de constituição histórica, não obstante tal movimento deixe se definir pelo avesso do Esclarecimento e não se resuma à aspiração de seguir o destino ocidental. O Ocidente central é inacessível à América Latina e tal circunstância lhe é historicamente constitutiva. Esse é o ponto de partida fundamental para evitar equívocos na interpretação da história da América Latina, condicionando todas as suas manifestações vitais, sejam elas as experiências individuais, sejam elas as instituições sociais.

Fechando as considerações até aqui aduzidas, vale a transcrição de passagem primorosa de Paulo Arantes, ainda que um pouco extensa:

“Com isso o efeito era duplamente crítico pois entrava em cena uma curiosa dialética da Aufklärung. Originalmente esta última expressão se refere a uma filosofia da história (empiricamente verificável e de intenção crítica) que recua as fronteiras do capitalismo até às formas mais primitivas de racionalização e da troca mercantil, no propósito de expor a marcha de uma interversão: onde seria legítimo esperar progresso e emancipação, encontramos retrocesso e sujeição. Não que a Aufklärung seja engodo permanente e deságüe inexoravelmente no seu contrário. Simplesmente é próprio do Esclarecimento não cumprir o que promete, sem que a promessa de reconciliação seja nada, pelo contrário, ela só se torna ideologia quando se apresenta como promessa historicamente cumprida. (...) Ora, objetivamente, nossa dualidade colonial-burguesa sendo ela mesma um desenvolvimento moderno do atraso (...), não estávamos para o progresso como a aberração para a norma, o desvio para o avanço uniforme, pelo contrário, como a atualidade mundial expunha seus segredos na periferia do capital, que não era resíduo mas parte integrante de uma evolução de conjunto, por assim dizer constituíamos uma figura viva daquela mesma Dialética da Ilustração. (...) Numa palavra, tudo se passa como se no Brasil [e na América Latina] a Ilustração trocasse de sinal (...). (...) sem o processo do qual ela é o resultado, a Aufklärung suspensa no ar transforma-se no seu contrário e passa a funcionar como peça chave da apologética oligárquica” (Arantes, 1992ARANTES, Paulo Eduardo, 1992. Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira: Dialética e Dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra., ps. 96-98).

Tomando essa dupla dialética do Esclarecimento como ponto de partida, vale investigar como o desenvolvimento do capitalismo incluiu em seu curso a América Latina, e como isso condiciona ainda hoje a solução do dilema de auto-compreensão histórica latino-americano.

II. Capitalismo oligárquico-rural: submissão das forças produtivas às relações de produção

A independência e a consolidação do capitalismo na América Latina foram condicionadas por três fatores que ainda hoje influenciam seu destino: (i) a concentração da propriedade agrária; (ii) a industrialização tardia; e (iii) a presença de graves contrastes regionais em função tanto de uma urbanização assimétrica quanto da ausência de perspectivas campesinas fundadas na pequena propriedade autônoma (Rouquié, 1991ROUQUIÉ, Alain, 1991. O Extremo-Ocidente: Introdução à América Latina, trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: EDUSP., ps. 28/29). A esses três fatores seria possível acrescentar um quarto: (iv) a formação de um (paradoxal) Estado de direito oligárquico. Esses fatores estão entrecruzados na medida em que a concentração fundiária, princípio motor da colonização, engendrou uma sociedade moderna de caráter pré-moderno que, a despeito das expectativas mais otimistas, não se dissolveu quando confrontada pela industrialização, redundando em contrastes regionais agudos e profunda desigualdade social. Paira sobre essa formação econômica e social um Estado incapaz de distribuir renda e aplicar a rule of law de forma igualitária e universal.

Mas não se pretende, com essa descrição, advogar o argumento do dualismo estrutural, conforme o qual as nações menos desenvolvidas seriam explicadas pela convivência de elementos modernos e elementos arcaicos. Trata-se justamente do contrário: a colônia livre constitui uma ordem econômica, social e política autônoma, por direito próprio. A ex-colônia não é um arremedo da metrópole – é, apenas, colônia livre. Na esteira de Richard Morse, adota-se aqui o ponto de vista da América Latina em sua autonomia histórica: o processo histórico pode ser perfeitamente descrito do ponto de vista da (ex-)colônia, originariamente (e não derivada da perspectiva européia). Do ponto de vista da metrópole, ao contrário, a colonização seria um processo de civilização e o destino da colônia seria definido pelo sucesso ou fracaso em se enquadrar ao projeto ocidental6 6 E aquestão é: rejeitar a perspectiva do dualismo estrutural e rejeitar igualmente descrições eurocêntricas não implica, necessariamente, adotar uma perspectiva póscolonial. A autenticidade da formação latino-americana pode ser plenamente descrita do ponto de vista da teoria do capitalismo. .

Mas as coisas por aqui se passaram (e se passam) de outra maneira. A sociedade colonial, uma vez constituída, não pode ser simplesmente desfeita (pela independência ou pelo capitalismo); ela se torna uma singularidade histórica irredutível. Essa singularidade pode ficar obscurecida pelo hábito contumaz de interpretar a colônia à luz da metrópole. O ponto decisivo é o seguinte: do ponto de vista do colonizado, a chegada do capitalismo não é um processo de civilização e erradicação da barbárie, mas um processo profundamente traumático frente ao qual a sociedade colonial não adere pura e simplesmente; antes, trata-se de um processo frente ao qual a sociedade colonial oferece resistência frontal, pois o capitalismo significa a negação do elemento constitutivo dessa sociedade – a oligarquia rural (escravocrata, no Brasil). Por outro lado, essa negação não é suficientemente forte para se impor como um projeto de sociedade alternativo ao capitalismo ocidental. O capitalismo metropolitano não tem o condão de automaticamente tornar capitalista as sociedades colonizadas; as colônias latino-americanas resistiram a ele tanto quanto puderam e só o admitiram na medida em que foram capazes de impor a sua lógica política (colonial ou ex-colonial) ao capitalismo – e não o contrário.

Há uma diferença entre o processo de “chegada do capitalismo à colônia” e o processo de acumulação primitiva europeu. Este último, longe de ter sido um processo linear e progressivo, também foi fortemente resistido pela sociedade feudal decadente (cf. Polanyi 1944/2001POLANYI, Karl, The Great Transformation: the Political and Economic Origins of Our Time [1944]. Boston: Beacon Press, 2001., para a melhor descrição histórica dos avanços e recuos da acumulação primitiva no surgimento do capitalismo europeu). A diferença, contudo, é que as oligarquias rurais locais, notadamente no caso brasileiro, apropriaram-se da retórica do liberalismo iluminista para conservar a estrutura produtiva ancorada no latifúndio monocultor escravocrata. No centro, bem ou mal, a acumulação primitiva redundou em trabalho livre (formalmente livre, com expropriação de mais-valia por dentro do contrato de trabalho etc.); mas entre nós, a vinda do capitalismo consolidou o trabalho escravo, imobilizando a estrutura social em torno da família patriarcal de base rural – não é por outra razão que Sérgio Buarque localiza, na abolição, a primeira transformação estrutural da sociedade colonial (Buarque de Holanda 1947BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio, 1947. Raízes do Brasil, 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras.).

Na periferia, tudo se passa como se as relações de produção oligárquicas e escravocratas condicionassem o desenvolvimento das forças de produção. Marx foi preciso em localizar nessa circunstância o caráter “anômalo” da situação colonial no mundo capitalista:

A produção de capitalistas e trabalhadores assalariados é, portanto, um produto fundamental do processo pelo qual o capital se transforma em valores. A economia política usual, que se concentra apenas nas coisas produzidas, esquece isto inteiramente. Uma vez que este processo estabelece o trabalho reificado como o que é, simultaneamente, a não-reificação do trabalhador, como de uma subjetividade contraposta ao trabalhador, como a propriedade de uma vontade alheia, o capital, necessariamente, é ao mesmo tempo o capitalista. A idéia de alguns socialistas, de que precisamos de capital mas não de capitalistas, é completamente falsa. O conceito de capital implica que as condições objetivas do trabalho – que são o próprio produto do capital – adquirem uma personalidade contra o trabalho, ou, o que vem a ser o mesmo, que passem a constituir propriedade alheia, não do trabalhador. O conceito de capital contém o capitalista. Entretanto, este erro não é maior, certamente, do que, por exemplo, o de todos os filólogos que falam da existência de capital na antiguidade clássica e de capitalistas romanos e gregos. Isso é, apenas, outro modo de dizer que em Roma e na Grécia o trabalho era livre, afirmação que estes cavalheiros dificilmente fariam. Se falarmos, agora, dos proprietários de ‘plantations’ na América como capitalistas, e que sejam capitalistas, isto se baseará no fato deles existirem como anomalias em um mercado mundial baseado no trabalho livre” (Marx, 1977MARX, Karl, 1977. Formações Econômicas Pré-Capitalistas, 2ª ed., trad. João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 110 – grifos originais).

A análise de Marx foca precisamente a inexistência, nas colônias, do elemento fundamental sobre o qual se apóia a autodeterminação do capital. Daí a compreender o trabalho escravo apenas como uma peça na engrenagem do modo de produção seria um salto sem a devida mediação. Mas: a inexistência de trabalho livre nas colônias é antes uma determinação política que uma determinação econômica. Ela está relacionada à modelagem da sociedade colonial à imagem e semelhança da estrutura econômica do latifúndio escravocrata e dos valores culturais da família patriarcal rural.

A primazia da dominação política sobre os fatores da produção foi o princípio fundamental da organização das ex-colônias: a independência não apenas afirmou a separação face às metrópoles, como revelou em seus primeiros passos que elas já possuíam um conteúdo político e social definido e próprio (Romero, 1985ROMERO, José Luis, 1985. “Prólogo” in El Pensamiento Político de la Emancipación. Caracas: Biblioteca Ayacucho., p. XXIV). A sociedade pós-colonial não se entrega ao capitalismo: ela luta para se manter assentada sobre seus pressupostos fundamentais. E, nessa luta, a vitória é ao mesmo tempo uma derrota: “Esse é o segredo tanto do florescimento das colônias quanto de seu câncer – sua resistência à radicação do capital” (Marx, 1988MARX, Karl, 1988. O Capital, 3ª ed., 5vs., trad. Regis Barbosa & Flávio Kothe. São Paulo: Nova Cultural (coleção “Os Economistas”)., v. 2, p. 287).

Nesse sentido, a breve discussão de uma polêmica nacional pode ajudar – com algum ajuste – a compreender a América Latina em sua relação paradoxal com o capitalismo. Seria possível identificar três eixos explicativos para a interpretação da realidade brasileira em função do desenvolvimento do capitalismo: (i) de um lado, a vertente do “sentido da colonização”, inaugurada por Caio Prado e integrada por Celso Furtado e Fernando Novais; (ii) de outro lado, a vertente do “modo de produção escravista colonial” de Ciro Cardoso e Jacob Gorender; e por fim (iii) as vertentes da teoria da dependência, cuja exposição mais conhecida é de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Fragoso & Florentino 2001FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo, 2001. O Arcaísmo como Projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil em uma Economia Colonial Tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 - c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., ps. 25-36).

O enfoque do sentido da colonização assume que a estruturação da sociedade e da economia coloniais são capítulos da história comercial européia, resultando na incapacidade de que a colônia gerasse um processo interno de acumulação de capital. A colônia é o prolongamento da metrópole. Contra essa linha de interpretação, a vertente do “modo de produção escravista colonial” procurava conjugar fatores explicativos que combinavam o fato colonial a vicissitudes locais próprias, avançando para a hipótese de um modo de produção escravista colonial. Como é possível perceber, tais alternativas interpretativas aplicam o conceito de modo de produção capitalista ao contexto colonial brasileiro que continha, em sua gênese, a economia escravocrata como elemento anti-capitalista fundamental. A diferença está em compreender, de um lado, a América Latina como um modo de produção autônomo, não obstante suas distorções e ainda que derivado do capitalismo central, ou, de outro lado, compreendê-la como uma seqüência do modo de produção industrial europeu.

Por outro lado, a teoria da dependência de extração cepalina tinha como premissa o desenvolvimento desigual da economia mundial: a propagação universal mas desigual do progresso técnico, engendrando uma divisão internacional do trabalho calcada na oposição entre o centro e a periferia do capitalismo. Diante desse pressuposto teórico, a CEPAL procurava compreender o surto de industrialização verificado na América Latina entre 1914 e 1945, associando rigidamente o processo de industrialização ao processo de constituição nacional. O limite desse diagnóstico ficou claro nos anos 1960, quando a industrialização latino-americana não superou o caráter dependente das economias periféricas (Cardoso de Mello 1984CARDOSO DE MELLO, João Manuel, 1984. O Capitalismo Tardio, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense., ps. 20/21).

Acreditava-se que a industrialização pudesse superar a desigualdade constitutiva das sociedades periféricas, herdada do passado colonial. A frustração do processo de industrialização tardia colocou em cheque as aspirações e expectativas de desenvolvimento, obrigando à revisão da premissa cepalina central – que associava industrialização e nação – para entender por que tal nexo não era automático: deveria haver algo de específico no extremo Ocidente latino-americano que explicasse sua renitência em se modernizar – o argumento racial agora já não faria qualquer sentido. A questão foi tratada pelas teorias da dependência que procuravam demonstrar que fatores puramente econômicos não seriam suficientes para explicar a realidade latino-americana (Cardoso & Faletto 1973CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo, 1973. Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica, 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar., p. 13).

Não obstante, a contradição interna da teoria da dependência está propugnar uma explicação sociológica abrangente e não exclusivamente econômica, mas assentar a compreensão teórica no conceito de dependência econômica, retornando ao ponto de partida economicista, pois parte-se da “crítica dos conceitos de subdesenvolvimento e periferia econômica (...) à valorização do conceito de dependência, como instrumento teórico para acentuar tanto os aspectos econômicos do subdesenvolvimento quanto os processos políticos de dominação de uns países por outros, de umas classes por outras, num contexto de dependência nacional. Conseqüentemente, ressaltamos a especificidade da instauração de um modo capitalista de produção em formações sociais que encontram na dependência seu traço histórico peculiar” (Cardoso & Faletto, 1973CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo, 1973. Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica, 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar., p. 139 – grifos acrescidos). Por isso o raciocínio termina com um modo de produção dependente, por assim dizer. A explicação centrada em elementos extra-econômicos, conforme pretendida por Cardoso e Faletto, redunda em uma explicação economicista7 7 O que foi reconhecido por Cardoso no “Prefácio” à nova edição [Cardoso & Faletto, 2004. 8ª ed. revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 8]. .

A questão, enfim, está em posicionar a América Latina no capitalismo mundial sem dissolver sua especificidade histórica em determinismo econômico. A dificuldade está precisamente nisso: as alternativas “capitalismo/não-capitalismo”, “centro/periferia” ou “desenvolvimento/subdesenvolvimento” são insuficientes para dar conta da dupla dialética do Esclarecimento e do papel que as forças políticas oligárquicas ofereceram (e, em certa medida, ainda oferecem) ao desenvolvimento do capitalismo periférico. O Esclarecimento é mito e modernização do arcaico porque a política oligárquica forjou a industrialização. As relações de produção subjugaram as forças produtivas: a economia agrário-exportadora da colônia não engendrou uma circulação ampliada que assegurasse uma reprodução endógena do capital (Cardoso de Mello 1984CARDOSO DE MELLO, João Manuel, 1984. O Capitalismo Tardio, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense.). Corroborando esse argumento, vale destacar uma elucidativa passagem de Sérgio Silva, em Le café et l’industrie au Brésil (1880/1930):

“Em outras palavras, é preciso considerar que o desenvolvimento das forças produtivas assume as formas adaptadas à reprodução das relações de produção dominantes. O desenvolvimento das forças produtivas sob a dominação do capital não é somente desenvolvimento das forças produtivas: é, também, desenvolvimento das relações sociais capitalistas. Em outras palavras, reforço da dominação do capital sobre o trabalho” (Sérgio Silva, Le café et l’industrie au Brésil (1880/1930), Paris, 1973, ps. 4/5, mimeógrafo, apudCardoso de Mello, 1984CARDOSO DE MELLO, João Manuel, 1984. O Capitalismo Tardio, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense., p. 96 – grifos acrescidos).

A verdadeira característica do capitalismo latino-americano está no fato de que a dominação econômica é perpetrada como política, pelo processo político de dominação (lembre-se que o específico do capitalismo moderno europeu é liberar a acumulação das formais tradicionais de dominação política, internalizando-a na troca formalmente livre). Aqui, ao contrário, a dominação política impõe à sociedade apenas as formas econômicas compatíveis com seus interesses. As forças produtivas não tensionam as relações de produção – ao contrário, as relações de produção se apoderam das forças produtivas, subordinando-as aos interesses políticos de classe. Para tanto, contudo, a dominação política se vale, formal e retoricamente, do ideário oriundo do centro.

III. Ideias fora do lugar

Seguindo o raciocínio desenvolvido até aqui, a expansão do capitalismo é um processo intranqüilo e tormentoso, frente ao qual as forças políticas estabelecidas na colônia prontamente reagiram. Mas a reação não é completa o suficiente para engendrar uma ordem social alternativa. Na periferia, portanto, o capitalismo se forma com recurso a uma negação de si mesmo. A segunda dialética tem lugar quando a negação do capitalismo é negada pela adesão (formal) ao ideário propugnado e difundido a partir do capitalismo central ocidental. O liberalismo no continente latino-americano logo após os movimentos de independência é a prova disso, expressa com brilhantismo na formulação da tese das “idéias fora do lugar” (Schwarz 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades.).

Algumas críticas foram feitas a esse modelo interpretativo, tomando-o como uma reprodução sofisticada do dualismo estrutural: colônia e metrópole não recobririam modos de produção essencialmente diferentes, mas apenas situações particulares determinadas no processo interno de diferenciação do sistema capitalista mundial (Carvalho Franco, 1976CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de, 1976. “As Idéias Estão no Lugar” in Cadernos de Debate nº 1, São Paulo.). Paulo Arantes saiu em defesa de Roberto Schwarz de forma a demonstrar que, se havia algum dualismo no modelo das idéias fora do lugar, tratava-se claramente de um dualismo em sentido dialético – expresso na fórmula “dual mas combinado” – i.e., o dualismo subsumido à totalidade histórica concreta mas dela sempre e inevitavelmente discrepante (Arantes, 1992ARANTES, Paulo Eduardo, 1992. Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira: Dialética e Dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra., ps. 46 e seguintes).

Outrossim, não se deve, a partir do debate das “idéias fora do lugar”, sustentar a tese de que as representações intelectuais teriam uma “nacionalidade intrínseca”, por assim dizer, e seriam “aplicáveis” ou “inaplicáveis”, conforme o caso, a contextos nacionais específicos e respectivos. Com efeito, não é isso que se deve apreender da questão. As “idéias fora do lugar” indicam não que as teorias desenvolvidas alhures são “inaplicáveis” para a explicação da realidade brasileira e latino-americana, mas sim que os movimentos intelectuais oriundos do centro do capitalismo não têm uma relação orgânica com a realidade da periferia do capitalismo. As idéias fora do lugar expressam apropriação retórica ou formal das representações simbólicas e discursivas originadas no centro pela dominação política oligárquica, para seus fins específicos.

Com as idéias fora do lugar, Roberto Schwarz pretende esclarecer a “impropriedade do nosso pensamento”, seguindo a trilha de Sérgio Buarque de Holanda, na conhecida afirmação de que “somos desterrados em nossa terra” (Schwarz 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades., p. 13). A tarefa de Schwarz é perscrutar quais os mecanismos sociais pelos quais o ideário europeu é internalizado sempre impropriamente.

Vale a pena analisar em maior detalhe como essa inversão ocorreu no convívio entre o ideário liberal e a economia escravocrata (cf. Bosi 1992BOSI, Alfredo, 1992. Dialética da Colonização, 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.). A análise de Schwarz demonstra como a mera presença da escravidão denunciava a impropriedade das idéias liberais, de forma que a vida ideológica estava radicada fora da esfera da produção. Com efeito, a sociedade pós-colonial dividia-se em três estratos: o latifundiário, o escravo e o homem livre. Este, por mais que livre, dependia do latifundiário e vivia pela graça do favor, figura muito bem retratada por Machado de Assis. Nesse sentido, apropriando-se de uma das premissas mais centrais da obra de Marx e adaptando-a de forma a explicar a realidade periférica, o ser da ordem social não determinava a consciência intelectual, o favor – e não a escravatura – é a chave para compreender a esfera da vida ideológica: nesse sentido, o liberalismo na ordem escravocrata era absolutamente desprovido de significado social, um caso muito peculiar em que, de maneira ainda mais radical do que aquela expressa na “câmara escura” da Ideologia Alemã, “a ideologia sequer descreve falsamente a realidade” (Schwarz, 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades., p. 18).

Mas o fato curioso dessa “ideologia dupla”, por assim dizer, é a efetiva estabilização da discrepância entre a vida ideológica e a realidade social. Ao contrário do que se poderia esperar, o desencontro foi fonte não de instabilidade, mas de estabilidade política e cultural – por essa razão, o confronto estabelecido entre as tendências inerentemente colonizadoras do capitalismo (europeu central) e a resistência da periferia implica definir cada vitória desta última como uma derrota: a estabilização de uma ordem escravocrata que dispunha de uma ideologia liberal pode ser vista como a vitória da ex-colônia frente às pretensões intelectuais estrangeiras – mas a permanência da sociedade escravista é inegavelmente uma derrota da sociedade colonial, pois a condição arcaica daí decorrente é o preço a ser pago para que a ex-colônia livre participe na ordem do capitalismo mundial.

O liberalismo, em contato com a ordem política colonial, não foi capaz de substituí-la in totum, como fizera com o Antigo Regime feudal europeu. A América Latina não foi capaz de, pela expansão dos direitos de cidadania, engendrar uma burguesia nacional: como atestam por exemplo Octavio Paz e Mariátegui, em consonância com a análise de Roberto Schwarz, os movimentos liberais atacaram a ordem agrária colonial sob a bandeira conceitual dos direitos individuais sem lograr substituí-la: o fim das terras detidas pela igreja foi combinado com a destruição da propriedade comunal indígena, o que só fez consolidar uma casta latifundiária profundamente cristalizada nas sociedades mexicana e peruana (Mariátegui, 1988MARIÁTEGUI, José Carlos, 1988. Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. México/DF: Serie Popular Era., e Paz, 1993PAZ, Octavio, 1993. “El Laberinto de la Sociedad” in El Laberinto de la Sociedad - Postdata - Vuelta a el Laberinto de la Sociedad, 2ª ed. México/DF: Fondo de Cultura Económica.).

Recuando um pouco a análise, não é exagero afirmar que a independência da América Latina aconteceu por inércia: a desagregação dos laços políticos estabelecidos entre colônia e metrópole iniciada no século XVII não foi interrompida, o que foi suficiente para que, no século XIX, as colônias se tornassem “nações livres”. O movimento de independência, assim, é melhor definido pela estática da dominação territorial local: a oligarquia latifundiária nativa, instituída e formada pela colonização, tinha como objetivo se liberar da burocracia peninsular sem alterar a ordem social local8 8 Por óbvio, não se trata, aqui também, de uma dominação tranquila e pacífica da oligarquia rural: muito pelo contrário, essa dominação se deu ao custo de forte repressão de movimentos pela libertação de índios, negros e quilombolas. Essas revoltas foram sufocadas pela dominação oligárquica – que, paradoxalmente, era justamente a portadora do ideário liberal-iluminista de origem europeia. . Diferentemente dos EUA, não se tratava de construir uma nação nova. Por essa razão, as “novas nações” latino-americanas têm uma realidade histórica paradoxal: são fragmentos sobreviventes de um antigo todo histórico-social ora desfeito, e que tornaram, por direito próprio, a imobilidade forçada da decadente sociedade feudal em seu princípio social fundamental (Paz, 1993PAZ, Octavio, 1993. “El Laberinto de la Sociedad” in El Laberinto de la Sociedad - Postdata - Vuelta a el Laberinto de la Sociedad, 2ª ed. México/DF: Fondo de Cultura Económica., cap. 7). Essa circunstância fora agravada pelo contato imediato com o capitalismo proporcionado pelo fim do momento colonial: o secularismo, o nacionalismo e a invasão capitalista precipitaram aberturas para o liberalismo e para a democracia na América Latina livre: “Na Ibero-América o liberalismo e a democracia não interagiram diretamente, sendo assimilados de forma independente, e em verdade, intermitente, a uma cultura política que ambos podiam afetar, mas nenhum podia suplantar” (Morse, 1988MORSE, Richard M., 1988. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, trad. Paulo Neves.São Paulo: Companhia das Letras., p. 89).

A descrição do liberalismo peruano por Mariátegui é prova contundente do conflito entre as fórmulas intelectuais e institucionais do capitalismo europeu central e a resistência do capitalismo agrário periférico, da “resistência à radicação do capital” de que fala Marx. Com efeito, a reforma legislativa fundada na propriedade individual produziu exatamente o sentido oposto ao pretendido – ao invés de liquidar o latifúndio e acertar as contas com a tradição indígena, a repartição da terra conforme a lógica do pequeno proprietário individual só fez fortalecer o latifúndio e enfraquecer ainda mais a cultura indígena, assentada tradicionalmente sobre a propriedade comunal (Mariátegui, 1988MARIÁTEGUI, José Carlos, 1988. Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. México/DF: Serie Popular Era., ps. 72/73). Não por outra razão o movimento liderado por Emiliano Zapata no México era a um só tempo emancipatório e tradicional no sentido de retornar à tradição da propriedade comunal indígena, liquidar a estrutura latifundiária mexicana e recuperar as terras indígenas.

Uma retomada das circunstâncias coloniais ajuda a compreender nosso argumento nesta seção. A Península Ibérica era formada por nações feudais que resistiram às revoluções científica e religiosa da Europa moderna, não obstante tais condições feudais tenham sido absolutamente indispensáveis para fomentar o capitalismo moderno europeu. O descobrimento do Novo Mundo, a missão modernizadora da Europa, fora levada a termo justamente por seus porta-vozes menos legítimos, i.e., pelos países em que a ordem feudal ainda se mantinha íntegra e, vale dizer, suficientemente sólida. A condição para que esse paradoxo se pudesse colocar em operação foi a constituição precoce do Estado moderno em uma ordem social feudal. O Estado espanhol era uma criação artificial imposta à diversidade social feudal. Esse aparato burocrático e militar fora simplesmente reproduzido nas colônias como uma vontade unitária, tendo como centro de gravidade o catolicismo. O liberalismo latino-americano justificou a investidura de novas elites e a tentativa de inserção das ex-colônias no capitalismo mundial, tendo sido apropriado tanto por partidos “liberais” quanto por partidos “conservadores”, sem, contudo, manter as suas autênticas conotações liberais adquiridas desde John Locke. Essa é a circunstância típica da América Latina: revelar-se como a imagem invertida do Esclarecimento.

O conteúdo político e econômico da ordem social periférica não admite a imposição fácil da forma intelectual estrangeira, a não ser que tal imposição seja perpetrada de maneira desconectada com a realidade vigente. Por essa razão, o capital “não chegou a tomar forma clássica no Brasil” (Schwarz, 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades., p. 20). “Fundada na violência e na disciplina militar, a produção escravista dependia da autoridade, mais que da eficácia. O estudo racional do processo produtivo, assim como sua modernização continuada, com todo o prestígio que lhes advinha da revolução que ocasionavam na Europa, eram sem propósito no Brasil” (Schwarz, 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades., p. 14). Nesse sentido, a chave interpretativa das idéias fora do lugar é indispensável para elucidar o dilema da auto-compreensão latino-americano: o capitalismo oligárquico latino-americano se define pelo resistência política ao capitalismo europeu central. Este último despeja aqui suas representações intelectuais com um ímpeto colonizador no sentido mais próprio do termo. Frente a essa violência, a ex-colônia livre reage, resistindo com base em sua realidade social provinciana, o que faz com que a acoplagem do ideário oriundo do capitalismo central na periferia do capital force a distorção desse ideário, a fim de preservar tanto quanto possível sua realidade local.

Seria possível estender essa chave interpretativa a inúmeras outras idéias fora do lugar, tais como “democracia”, “social-democracia”, “Estado de direito” e até mesmo “neoliberalismo” (que obteve justamente na América Latina, e não nos EUA ou na Inglaterra, sua aplicação mais crua); mas a tarefa extrapola as pretensões deste artigo. Apenas a título ilustrativo, em função da conexão com os movimentos de independência latino-americanos, vale mencionar muito rapidamente a questão da nacionalidade.

Octavio Paz, em O Labirinto da Solidão, oferece uma alternativa similar ao que se passou com o liberalismo no momento pós-independência para explicar a nacionalidade latino-americana. A descrição (no caso, do mexicano), a partir de uma simples “moral de servo”, imputada em última instância ao passado colonial é absolutamente frágil. A questão da nacionalidade é bem ilustrada, por exemplo, pela situação do “pachuco”. Independentemente dos problemas envolvidos na interpretação psicológica da história mexicana, vale destacar que Octavio Paz explica a solidão constitutiva do mexicano justamente por uma forma de negação, um estranhamento de si mesmo (o que é condizente com o argumento até aqui apresentado sobre as ideias fora do lugar).

O pachuco é o norte-americano de Los Angeles de origem mexicana, descrito como um ser furtivo e inquieto, tímido e desafiador, rebelde e resignado, exibicionista e recluso, enfim, uma justaposição contraditória de características antagônicas, sintetizada na expressiva fórmula de um “estado de ausência de espírito” (Paz, 1993PAZ, Octavio, 1993. “El Laberinto de la Sociedad” in El Laberinto de la Sociedad - Postdata - Vuelta a el Laberinto de la Sociedad, 2ª ed. México/DF: Fondo de Cultura Económica., p. 31). Esse estado de ausência de espírito é o resultado de uma fanática vontade de ser, que não se afirma em nada positivo ou concreto, é uma negatividade irredutível: o pachuco não reivindica uma raça ou uma nacionalidade, ao mesmo tempo em que não se integra à sociedade norte-americana: flutua, entre uma e outra, sem afirmar-se em qualquer uma delas. Esse impulso auto-negado é atestado pelo exagero na vestimenta, seguindo mais ou menos os padrões da moda norte-americana, mas hipostasiado ao ridículo, de forma a tornar o pachuco um “palhaço que não faz rir”, para usar a formulação de Octavio Paz.

No caso brasileiro, a questão da nacionalidade é ainda mais específica, pois sequer havia uma cultura indígena suficientemente unitária e consolidada como o Império Asteca – donde a formulação expressa pelo “nacional por subtração”, como sendo o limite extremo em que a dominação absoluta faz com que a cultura não expresse nada das condições sociais que supostamente lhe dão sentido, o que confere à cultura uma posição insustentável em função da estrutura social do país (Schwarz, 1987SCHWARZ, Roberto, 1987. “Nacional por Subtração” in Que Horas São?. São Paulo: Companhia das Letras., especialmente p. 46).

O interessante é notar, portanto, que a nacionalidade latino-americana é negativa em um sentido muito específico: não permite a formação de identidades nacionais diante da inexistência de um anteparo concreto mediante o qual as subjetividades individuais se possam projetar, confrontar e encontrar reconhecimento: o nacional latino-americano, principalmente no momento pós-independência, confronta-se com o espanhol, com o português, com o negro, com o índio sem encontrar em qualquer deles um respaldo que permita a constituição de uma solidariedade histórica concreta.

Paralelamente à questão da nacionalidade, a história da incorporação da democracia pela América Latina é ainda mais complexa, oscilando entre desfechos autoritários e governos “populistas” e, mais recentemente, conchavos e “golpes” judiciais e parlamentares. Mas não é o caso de tratar disso aqui, o sentido geral do argumento das idéias fora do lugar parece ter sido suficientemente apreendido. Em conclusão: “Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio” (Schwarz, 2000SCHWARZ, Roberto, 2000. “As Idéias fora do Lugar” in Ao Vencedor as Batatas, 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades., p. 29).

Com isso, Schwarz permite finalizar a elucidação do dilema de auto-compreensão da América Latina: as idéias fora do lugar são a expressão do conflito entre o capitalismo central e o capitalismo periférico, o mecanismo de defesa da ordem social ex-colonial diante das pressões a que se vê constantemente submetida, o mecanismo social interno e ativo da reprodução da cultura periférica, a expressão máxima da “resistência à radicação do capital” de que fala Marx. O recurso diante da irresistível dominação externa é repercutir e reforçar reiteradamente a dominação interna.

IV. O dilema da auto-compreensão latino-americana: inclusão por exclusão

Raúl Prebish certa vez descreveu a América Latina como “capitalismo de imitação” (citado por Rouquié, 1991ROUQUIÉ, Alain, 1991. O Extremo-Ocidente: Introdução à América Latina, trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: EDUSP., ps. 342-343). Trata-se de mais uma expressão que sintetiza as tentativas de desvendar o dilema da auto-compreensão latino-americana formulado nos termos da oposição “civilização ou barbárie”.

O que se pretendeu com este artigo foi desenvolver um ponto de vista radicado na realidade histórico-social da América Latina e que procurasse resolver seu dilema de auto-compreensão a partir de dentro, e não referenciado por modelos exteriores. De uma forma ou de outra, análises clássicas dos anos 1960 sobre a América Latina focam a explicação da barbárie em fatores puramente econômicos. Mas o distintivo da situação latino-americana é a primazia das determinações políticas, notadamente das determinações políticas herdadas do passado colonial escravocata. Afinal de contas, a colônia surgiu primeiro como uma província de dominação política e somente depois lhe foi possível assumir uma roupagem econômica adequada à metrópole. O uso econômico da colônia foi sempre determinado pela posição política e por sua relação com a metrópole. O que significa dizer que foi razoavelmente indiferente o uso econômico que se pôde fazer da colônia; o fundamental foi mantê-la sob uma dominação claramente política – com óbvios resultados econômicos. Mas o sentido político da colonização não era produção e sim a dominação, por mais relevantes que tenham sido as decorrências econômicas. E é precisamente isto que se pretendeu com este trabalho: as decorrências econômicas foram centrais – para a metrópole. Adotando-se o ponto de vista específico da colônia, a produção era se não indiferente, pelo menos secundária, pois seu sentido histórico advinha em primeira instância da dominação política. Se, na europa central, o Estado racional se ergue como monopólio da violência legítima a partir da constituição das cidades, no clássico diagnóstico de Max Weber, nas ex-colônias independentes a organização do Estado assume feições oligárquicas para preservar a sociedade herdada do período colonial, restringindo assim o potencial daquilo que os marxistas chamam de “forças produtivas”.

O constitutivo da sociedade (ex-)colonial é a dominação política, em primeira linha, condicionando a instalação local do modo de produção capitalista: para manter o vigor da dominação política, as sociedades periféricas instrumentalizaram elementos capitalistas conforme sua lógica oligárquica arcaica. O específico da realidade periférica é isto: não basta pensá-la a partir da independência; a sociedade colonial é forjada pela subjugação política. A sociedade colonial constitui um cosmos social próprio, que resiste ao capitalismo e que se apropria dele segundo a sua lógica própria. O dilema da auto-compreensão latino-americana se resolve pelo reconhecimento do primado da dominação política sobre a exploração econômica. O que não equivale a uma inversão fácil do esquema “base/superestrutura”. Não se pretende deduzir a dominação econômica da política, da mesma forma como o dogma esquemático “base/superestrutura” (mais presente nos marxistas da Segunda Internacional Comunista do que no próprio Marx, diga-se de passagem) também não explica o capitalismo ocidental central. Isso porque o capitalismo, como ordem social organizada a partir do capital – quer dizer, dos processos sociais de valorização do valor de troca, que, por isso, constituem uma relação social – não se resume de maneira simplista ao modo de produção.

Com efeito, o modo de produção é, por definição, produção de mercadorias; prepondera o elemento da produção econômica como organização da economia e, a partir dela, da sociedade como um todo. A dominação (econômica, política, jurídica e etc.) decorre da organização social da produção, porque tal organização é feita pela exploração do homem pelo homem, a despeito da regra do trabalho livre. Mas é o trabalho (formalmente) livre que revoluciona o mundo feudal. Ao destruir a servidão feudal e forjar o trabalhador assalariado, o capitalismo o fez para o bem e para o mal, para a sociedade considerada como um todo.

Na América Latina a questão é, talvez, mais séria. O projeto iluminista pautado pelo progresso técnico tinha como meta a dominação da natureza, mas, para tanto, instrumentalizou o homem – é o que se pode aprender com a teoria crítica da sociedade. Sem prejuízo da validade desse diagnóstico, a América Latina se deixa definir por um agravamento dessa determinação: na ausência do Esclarecimento como projeto, a colônia tinha como meta a dominação do homem e da natureza consideradas em si mesmas. Essa dominação revestiu-se de um caráter fundamentalmente político, condicionando as possibilidades econômicas e sociais daí em diante. Não é à toa que Sérgio Buarque de Holanda tece páginas e páginas acerca do atraso agrícola do Brasil colonial: as terras eram cultivadas com técnicas medievais há muito abandonadas pela Europa, o que só se justificava pela abundância de mão de obra escrava (Buarque de Holanda 1947BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio, 1947. Raízes do Brasil, 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras.). Por óbvio, os resultados econômicos externos e internos da colonização só fizeram reforçar essa dominação política, confirmando-a ao invés de permitir contestá-la.

Essa condição histórica bloqueou a constituição de um modo de produção que se pudesse chamar propriamente capitalista por razões originalmente políticas, remotamente fundadas na dominação da colônia pela metrópole, mas reproduzidas pelo padrão oligárquico-rural da política latino-americana9 9 O conceito sugere, portanto, que a diferença entre a independência das colônias britânicas e das colônias espanholas não está tanto na estrutura econômica do tipo de colonização (o sul dos EUA seguia o sistema de “plantation”), mas na relação política estabelecida entre a colônia e a metrópole – de forma que, no primeiro caso, viabilizou-se a instalação de um modo de produção, enquanto tal não se deu no segundo caso. Mas esse ponto demandaria investigações para além deste artigo. . Pretende-se com isso indicar que a dominação da América Latina não é o custo a ser pago pelo capitalismo, não se resume a exploração ou dependência – a dominação não segue a dialética do senhor e do escravo de Hegel, é uma alienação de si mesmo tão radicalmente constitutiva que sequer permite a síntese positiva garantida pela diferença entre o senhor e o escravo. Formas econômicas e políticas ocidentais de aspiração universalista são aqui combinadas com a dominação constitutiva da ordem social pós-colonial, radicalmente local: o constitutivo, historicamente singular, da América Latina, é tratar-se de uma sociedade estranhada de si mesma. Essa circunstância é denunciada pelo modelo analítico das idéias fora do lugar. Há uma dialética específica na questão das idéias fora do lugar: idéias e fórmulas jurídico-institucionais que não expressam a realidade latino-americana flutuam sobre a sociedade e acabam por sufocá-la de maneira brutal, convertendo impulsos originalmente emancipatórios em pressupostos para a manutenção da dominação.

Essa dialética é resultado de duas lógicas pendulares distintas, fundamentais para a compreensão da América Latina: de um lado, a oscilação entre o cosmopolita e o local e, de outro, a oscilação entre a forma e o conteúdo (Romero, 1985ROMERO, José Luis, 1985. “Prólogo” in El Pensamiento Político de la Emancipación. Caracas: Biblioteca Ayacucho., ps. IX/X). A forma cosmopolita da colônia – posto que a colonização se define pela descoberta do Novo Continente – obscurece o conteúdo efetivo presente na realidade local da sociedade colonial. A fórmula das idéias fora do lugar expressa precisamente essa dialética, a defasagem social presente na situação específica da sociedade colonial – que, nesse sentido específico, é moderna e pré-moderna, simultaneamente. Enquanto avesso do Esclarecimento, a inclusão da América Latina no projeto iluminista se dá necessariamente por exclusão.

A sociedade colonial, em sua perenidade inercial, resistiu o quanto pôde ao capitalismo, e essa resistência é sua marca histórica constitutiva. A independência não apagou essa resistência. Por essa razão, o dilema da auto-compreensão latino-americana expresso na fórmula “civilização ou barbárie” se resolve na forma de uma inclusão por exclusão: a América Latina é tão capitalista quanto preserve seu caráter oligárquico-rural (e, nessa medida, arcaico) em um sistema capitalista cosmopolita – “globalizado”, como se tornou obrigatório dizer nos dias atuais, pelo menos nos discursos dominantes estabelecidos10 10 Apontar a característica simultaneamente cosmopolita e arcaica da América Latina não significa uma adesão à tese do “arcaísmo como projeto”, que sobrevaloriza o papel da racionalidade da elite local (Fragoso & Florentino, 2001). .

O espectro da colonização ronda, ainda, vigilante, a América Latina, contra o prognóstico – talvez “otimista”, seria possível dizer – expresso em uma passagem muito conhecida do Manifesto Comunista, que projeta a história da riqueza e da pobreza das nações como uma seqüência de estágios de desenvolvimento, conforme os quais as nações menos desenvolvidas deveriam apenas olhar para as nações ricas para vislumbrarem como elas se configurariam no futuro:

“Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis ao estrangeiro. Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas” (Marx & Engels, 1998MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, 1998. Manifesto Comunista, trad. Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo., p. 44).

Sem prejuízo do caráter circunstancial do Manifesto, há que se considerar que, também com Marx, “As coisas são bem outras nas colônias” (Marx, 1988MARX, Karl, 1988. O Capital, 3ª ed., 5vs., trad. Regis Barbosa & Flávio Kothe. São Paulo: Nova Cultural (coleção “Os Economistas”)., v. 2, p. 285). Não é o caso aqui de se deixar levar pela espinhosa questão da teoria da história de Marx, ou da compatibilidade entre as duas passagens transcritas, mas sim destacar que a colônia nunca se tornará burguesa no sentido expresso pelo Manifesto. Não há “choque de gestão” ou “choque de capitalismo” que dê conta dessa tarefa. O neodesenvolvimentos frustrado da política das empresas “campeãs nacionais” também não engendrou a burguesia iluminista que se pretendia criar. Mas isso não nos impõe um fatalismo determinista: a história, por mais que indeterminada, não está completamente em aberto.

Segundo Octavio Paz, o século XIX foi uma tentativa de religar a América Latina ao racionalismo europeu do Esclarecimento, algo como uma jornada latino-americana de ilustração. Poderíamos citar outras tentativas que se apresentaram ao longo do século XX com esse mesmo ímpeto. Não obstante, a dominação política local confirmou os efeitos historicamente mais prováveis, contra os prognósticos mais otimistas. A história da América Latina não está selada, obviamente – da mesma forma como não está completamente em aberto, vale repetir. Da mesma forma, e por essa razão, tudo indica que o Ocidente não se repetirá por aqui. A primeira tentativa de reproduzi-lo no Novo Mundo, a colonização, resultou trágica; a segunda, a construção de Estados-nação pela via industrialização tardia capitaneada por ditaduras, resultou farsesca.

A singularidade histórica da América Latina tem de ser tomada a sério e levada teórica e praticamente ao limite, de forma a permitir uma solução efetiva para seu constitutivo dilema de auto-compreensão: trata-se de tirar do lombo a renitência latino-americana em não se realizar como um projeto político autêntico, reproduzindo-se sempre como continuação, cópia, imitação ou repetição mal-acabada do projeto de Esclarecimento ocidental. Do contrário, a formulação de alternativas políticas para a desconstituição da desigualdade social historicamente constitutiva das ex-colônias livres, como condição de possibilidade para que a América Latina se arranque de sua condição a um só tempo moderna e pré-moderna, remanescerá como uma miragem no horizonte, afastando-se a cada passo que dermos em sua direção.

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    O autor agradece a atenta leitura da(o)s pareceristas ad hoc e as críticas formuladas à versão original deste artigo: elas certamente aprimoraram o texto e o tornaram mais consistente. A responsabilidade pelas insuficiências remanescentes é imputável exclusivamente ao autor.
  • 2
    Emprega-se o termo “Esclarecimento” como sinônimo de “Iluminismo”, designando-se com isso o movimento intelectual racionalista e radicalmente humanista desenvolvido na Europa de meados do século XVII até o final do século XVIII, culminanto politicamente na Revolução Francesa (1789-1799) e na destruição da ordem feudal do Antigo Regime. Do ponto de vista da história das ideias, compreende desde o Discurso sobre o método de Descartes até as críticas de Kant, passando pelos enciclopedistas, pela filosofia moral escocesa, pela filosofia da história e pelos contratualistas.
  • 3
    Juan Bautista Alberdi (1810-1884) foi um dos principais pensadores liberais argentinos do século XIX, tendo influenciado decisivamente a Constituição argentina de 1853, redigida à imagem e semelhança da Constituição norte-americana.
  • 4
    Cf., para a literatura desse período, Stabb 1969STABB, Martin S., 1969. América Latina en Busca de una Identidad: Modelos del Ensayo Ideológico Hispanoamericano, 1890-1960. S/L: Monte Ávila.. Para uma visão geral do ideário latino-americano na passagem do século XIX para o século XX, cf. Hale 1996HALE, Charles, 1996. “Political Ideas and Ideologies in Latin América, 1870-1930” in BETHEL, Leslie (org.), Ideas and Ideologies in 20th Century Latin América. Cambridge: Cambridge University Press..
  • 5
    A “opção cultural” de que fala Morse expressa não uma vontade subjetiva, mas a contingência de escolhas políticas – nem determinismo, nem fatalismo.
  • 6
    E aquestão é: rejeitar a perspectiva do dualismo estrutural e rejeitar igualmente descrições eurocêntricas não implica, necessariamente, adotar uma perspectiva póscolonial. A autenticidade da formação latino-americana pode ser plenamente descrita do ponto de vista da teoria do capitalismo.
  • 7
    O que foi reconhecido por Cardoso no “Prefácio” à nova edição [Cardoso & Faletto, 2004. 8ª ed. revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 8].
  • 8
    Por óbvio, não se trata, aqui também, de uma dominação tranquila e pacífica da oligarquia rural: muito pelo contrário, essa dominação se deu ao custo de forte repressão de movimentos pela libertação de índios, negros e quilombolas. Essas revoltas foram sufocadas pela dominação oligárquica – que, paradoxalmente, era justamente a portadora do ideário liberal-iluminista de origem europeia.
  • 9
    O conceito sugere, portanto, que a diferença entre a independência das colônias britânicas e das colônias espanholas não está tanto na estrutura econômica do tipo de colonização (o sul dos EUA seguia o sistema de “plantation”), mas na relação política estabelecida entre a colônia e a metrópole – de forma que, no primeiro caso, viabilizou-se a instalação de um modo de produção, enquanto tal não se deu no segundo caso. Mas esse ponto demandaria investigações para além deste artigo.
  • 10
    Apontar a característica simultaneamente cosmopolita e arcaica da América Latina não significa uma adesão à tese do “arcaísmo como projeto”, que sobrevaloriza o papel da racionalidade da elite local (Fragoso & Florentino, 2001FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo, 2001. O Arcaísmo como Projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil em uma Economia Colonial Tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 - c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2018
  • Aceito
    29 Mar 2019
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