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Metodologia feminista e o Dano Moral Coletivo na ACP de Pinheirinho

Feminist Methodology and the Collective Moral Damage in the Public Civil Action of Pinheirinho

Resumo

Trata-se da revisão da sentença que extinguiu, sem resolução de mérito, a ação civil pública proposta pela Defensoria Pública por danos morais coletivos pela ação violenta perpetrada no desalijo da comunidade Pinheirinho. As autoras concentraram esforços na análise do dano moral coletivo para aplicar uma metodologia feminista a um caso em que os titulares de direito não são apenas mulheres. Os estudos de gênero como uma categoria de análise dos processos sociais auxiliam a compreensão das tramas mais submersas das relações que estruturam o direito, o poder e o Estado. Por isso, mesmo em um caso em que a questão de gênero não aparece na superfície do fenômeno jurídico, o uso analítico dessa categoria nos revela sérias consequências que refletem nas estratégias institucionais para a proteção de direitos contra a discriminação e a desigualdade.

Palavras-chaves:
Reprodução social; Direito à moradia; Direitos coletivos

Abstract

This is a revision of the sentence that extinguished, without merit resolution, the public civil action proposed by the Public Defender's Office for collective moral damage for the violent action perpetrated in the eviction of the community called “Pinheirinho”. The authors concentrated their efforts on the analysis of the collective moral damage to apply a feminist methodology to a case in which the right holders are not only women. Gender studies as a category of analysis of social processes help to understand the most submerged plots of the relations that structure law, power and the State. For this reason, even in a case in which the gender issue does not appear on the surface of the legal phenomenon, the analytical use of this category reveals serious consequences that reflect on institutional strategies to protect rights against discrimination and inequality.

Keywords:
Social reproduction; Right to housing; Collective rights

1. Comentários do Caso

Após oito anos de ocupação pacífica, cerca de 1.700 (mil e setecentas) famílias do bairro do Pinheirinho, na divisa dos municípios de São José dos Campos e Jacareí, em São Paulo, foram violentamente removidas por uma liminar incidental ao processo principal de reintegração de posse, movido pela Massa Falida de Selecta Comércio e Indústria S/A, proprietária inicial do terreno. A desocupação deu-se sem o menor respeito à vida comunitária ali constituída, ocasionando danos físicos e psicológicos aos habitantes do bairro. Contudo, estes danos não foram reconhecidos nem mesmo em ações posteriores, por uma firme recusa do judiciário em reconhecer o direito à moradia como um direito a ser tutelado nos processos ali apresentados.

Os moradores haviam ocupado o terreno abandonado em agosto de 2004 e, desde então, haviam promovido a limpeza da área, realizado loteamento de acordo com as normas urbanísticas da região e estabelecido o traçado de ruas, avenidas e praças. Não obstante a reiterada recusa da administração municipal em reconhecê-lo na organização urbana de São José dos Campos, ao contrário, buscando justificativas para manter seus cidadãos à margem dos direitos básicos garantidos pela municipalidade, desde 2009 as lideranças do bairro buscavam sua regularização fundiária. Embora avançassem as tratativas administrativas neste sentido, um processo de reintegração de posse da ainda proprietária legal do terreno (Massa Falida de Selecta Comércio e Indústria S/A) recolocou a titularidade do bairro em discussão a partir de 2010. Conquanto o processo ainda estivesse em fase instrutória e em aparente acordo entre as partes para manutenção dos moradores no bairro, uma liminar de janeiro de 2012 levou à remoção violenta das cerca de cinco mil pessoas, em ação truculenta realizada pela polícia civil e militar, sem aviso ou planejamento para as famílias, que se viram destituídas de sua moradia, seus pertences e toda sua comunidade.

O Caso Pinheirinho tornou-se um marco jurídico e social quanto às reintegrações violentas em direta afronta ao direito à moradia. A violência imposta aos moradores foi também argumento para impedir que o modelo de reintegração se replicasse, sendo muito citado, por exemplo, nas petições referentes às ameaças à Vila Soma, bairro de Sumaré nascido também na ocupação de um terreno industrial abandonado. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo ingressou com Ação Cautelar no Supremo Tribunal Federal (AC 4085) e, paralelamente, acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que solicitou ao Estado Brasileiro informações acerca do risco de desrespeito aos direitos humanos dos envolvidos. O pedido da Defensoria cita longamente as violações perpetradas em Pinheirinho e a continuidade desta violação ao não serem garantidas indenizações às famílias, tendo contribuído para a decisão da corte superior nacional de cessar a imediata ameaça de remoção de outras comunidades.

Não obstante o reconhecimento social e, em alguma medida, jurídico, das violações perpetradas pela remoção, o imbróglio jurídico de Pinheirinho não obteve respostas judiciais efetivas. De fato, mesmo a ordem de execução da reintegração de posse foi dada em meio ao embate processual sem decisões terminativas que a pudessem sustentar. Ou, ainda, ao contrário, como já dito, havia um indicativo de regularização do bairro por tratativas do governo estadual e federal interrompido pela reintegração liminar.

Após o apressado e desastroso cumprimento da liminar, o processo principal sobre a área tornou-se ainda mais moroso, sem a pressão econômica da empresa e do município. Tramita, de fato, até a presente data (junho de 2020) nos graus recursais. Por outro lado, as famílias removidas, que perderam basicamente todos os bens, além da moradia e da comunidade, foram alocadas em abrigos emergenciais sem condições mínimas para uma subsistência digna. Todo o bairro Pinheirinho foi destruído em rápida ação municipal, sem dar tempo aos moradores de resgatarem documentos, objetos de valor pessoal e material de qualquer ordem.

Desta forma, paralelamente ao imbróglio judicial principal, a Defensoria Pública e o Ministério Público buscaram formas jurídicas de responsabilizar o poder público e a empresa envolvida pelos danos causados às famílias. Entre estas ações está a aqui considerada, uma Ação Civil Pública da Defensoria do Estado de São Paulo requerendo danos morais coletivos a serem pagos às famílias, diversas ações do governo estadual e municipal para treinamento da sua força policial para situações similares, programas de habitação popular e algumas ações simbólicas de reconhecimento das violências praticadas. Esta ação não foi sequer conhecida pelo judiciário estadual, tendo a defensoria sido considerada fora do rol de legitimados para propositura de Ação Civil Pública nos termos do pedido.

Aqui é necessário já adiantar uma explicação e uma escolha metodológica do trabalho. Como exposto, o processo principal não chegou, ainda, a um termo. As ações que buscaram uma responsabilização dos entes públicos e privados envolvidos na violenta reintegração foram julgadas sem decisão de mérito, desconsiderando questões de fundo com uma argumentação aparentemente técnica. Assim, nossa opção por esta sentença, terminativa do processo dada a impossibilidade mesma do pleito, vem justamente desta busca de, aplicando uma metodologia feminista, discutir tanto os direitos demandados quanto quem pode pleiteá-los.

Contudo, pela especificidade da questão, não julgaremos todos os pedidos apresentados pela Defensoria Pública na sua Ação Civil Pública, posto que ensejariam uma discussão que ultrapassa tanto o conjunto de fatos elencado nos autos quanto nossa perspectiva teórico-metodológica. Focaremos, assim, na própria legitimidade da Defensoria Pública para propositura da ação e no reconhecimento ou não dos danos à coletividade. A não decisão frente a alguns dos pedidos vem também expor como, fosse aplicada uma metodologia que reconhecesse o pleito, seu debate jurídico poderia, de fato, existir, não sendo cerceado tão prematuramente. A decisão sem resolução de mérito, ao contrário, silencia a própria discussão jurídica sobre a garantia e aplicação dos direitos em tela, e este é um dos principais pontos que este trabalho se propõe a reverter.

A legitimidade da Defensoria, de fato, seria confirmada por decisões posteriores, inclusive em ação sobre o tema no Superior Tribunal Federal (ADI 3.943 - DF) decidida em maio de 2015. Não obstante, atendo-nos aos elementos factuais presentes ao momento da propositura da ACP, a principal disputa conceitual travada neste sentido é justamente pela concepção de titularidade dos direitos difusos, e, assim, tanto da alçada da Defensoria Pública quanto configurando um dano moral coletivo passível de indenização pelo poder público e demais figuras do polo passivo pela sua violação direta durante o processo de reintegração de posse. A dizer, o reconhecimento do direito à cidade como direito difuso e do direito à moradia como direito coletivo implicam em toda uma outra visão sobre a dinâmica processual desta decisão.

Ao que chegamos ao principal ponto deste comentário: o que uma metodologia jurídica feminista implicaria de modificação em uma sentença que, em uma primeira leitura, não está diretamente atrelada a nenhum questionamento de gênero? As discussões em torno dos percursos processuais do Caso Pinheirinho nos instigaram quanto à própria definição do direito usada para caracterizar a ilegitimidade da Defensoria e a ausência do dano moral coletivo, restringindo a missão institucional do órgão pela conceituação da defesa da moradia. E a perspectiva sobre tal direito, a nosso ver, é profundamente impactada por uma metodologia feminista de compreensão jurídica.

Entendendo a fundação patriarcal da nossa estrutura jurídica, não podemos pensar em um direito neutro. Esta conclusão atinge não só suas decisões explicitamente marcadas por códigos generificados, mas também, e talvez principalmente, aquelas que se apresentam como meramente burocráticas. Neste sentido, nos propomos aqui a ir além da pergunta pela mulher no processo e levar esta pergunta para a própria formulação na sentença do conteúdo jurídico do direito tutelado1 1 Como “pergunta pela mulher” fazemos aqui referência à metodologia proposta por Katherine Bartlett. Bartlett, buscando formular métodos de pensamento feminista para o direito propõe três técnicas críticas a partir de teorias do conhecimento aplicadas, sendo uma delas a “pergunta pela mulher”. A “pergunta pela mulher” consiste, de maneira simplificada, na formulação reiterada das implicações para mulheres de legislações ou decisões jurídicas, de modo a evidenciar os padrões não neutros das mesmas, a forma como operam e como poderiam ser corrigidos (Katherine BARTLETT, 2011). . O que seria, assim, pensar o direito à moradia a partir de uma teoria feminista?

Explorando a interseção destas opressões, tampouco é possível pensar em uma metodologia feminista que não considere igualmente o padrão racista da ordem jurídica. O fato de tais questões não serem sequer consideradas na decisão inicial é, em si, revelador. Neste ponto, traremos durante a decisão dados sobre o contingente racial da população do bairro a partir de dados existentes à época (Censo IBGE 2010) para igualmente situar a discussão no ponto de vista da repartição racial urbana. Não é demais reiterar que a questão de moradia, sobretudo nas grandes cidades, tem um componente racial determinante, de modo que a propositura de uma metodologia feminista que não racializasse a questão correria o risco de ser, na melhor das hipóteses, limitada, e na pior, reiterar os padrões excludentes que critica. Desta forma, partindo de uma perspectiva intersecional, a dizer, deste lugar específico criado pelo entrecruzamento de opressões estruturais, é que se propõe a releitura da presente sentença (Kimberlé CRENSHAW, 1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, v. 14, p. 538-554, 1989.).

2. Julgado Feminista

Processo nº 0009769-96.2013.8.26.0577

Classe - Assunto: Ação Civil Pública - Responsabilidade da Administração

Requerente: A Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Requerido: Fazenda do Estado de São Paulo e outros

A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO ajuizou a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face do ESTADO DE SÃO PAULO, MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E MASSA FALIDA DE SELECTA COMÉRCIO E INDÚSTRIA S/A por força de reintegração de posse exarada pelo M.M Juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos executada sobre a área residencial denominada Pinheirinho.

Em apertada síntese, trata-se de pedido de retratação e reparação de danos frente a reintegração do terreno pertencente à massa falida da empresa Selecta Comércio e Indústria S/A no qual habitavam, à época do ocorrido, cerca de 5.000 (cinco mil) pessoas.

Após oito anos de posse da área, organizando-se como um bairro da cidade de São José dos Campos, foram iniciadas tratativas para regularização fundiária e urbanização do bairro Pinheirinho. No curso delas, contudo, a titular registral da área propôs ação de reintegração de posse. Mesmo não havendo decisão sobre este processo, em meio a disputas judiciais e administrativas, foi autorizada em liminar a reintegração, que se deu entre os dias 22 e 26 de janeiro de 2012.

A reintegração foi feita sob o uso de grande violência, impondo aos moradores danos patrimoniais e morais de significativa monta. É sobre esta justificativa que a dita instituição apresenta a Ação Civil Pública em julgamento pleiteando reparação material, ambiental e simbólica dos danos causados pelas forças públicas e pela massa falida da empresa requerente do terreno à população2 2 Nota das autoras: como explicado na introdução, embora a petição inicial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo contasse com outros pedidos, estes não serão objetos da presente decisão por uma opção metodológica e prática, visto que, além das questões enunciadas na introdução, a sentença revista foi extinta sem resolução de mérito e, por isso, não houve possibilidade de contestação das partes rés. .

Não há decisão de mérito no processo movido pela massa falida da empresa Selecta Comércio e Indústria S/A.

É o relatório.

Decido.

Da Legitimidade da Defensoria Pública para Defesa dos Direitos Difusos

A Defensoria Pública consta, desde 2007, no rol dos entes públicos legitimados para propositura de ações civis públicas. Não se ignora que a presente legitimidade se encontra em discussão nos tribunais superiores, dada Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Membros no Ministério Público - Conamp, em 16.8.2007, questionando a validade constitucional do Art. 5º, inc. II, da Lei n. 7.347/85, alterada pela Lei n. 11.448/07 (ADI 3.943 - DF) justamente no tocante à legitimidade para o pleito referente aos direitos difusos por parte da Defensoria Pública.

Contudo, não havendo decisão superior em sentido contrário, é legítima a presunção de constitucionalidade da referida norma, com o que concorda a presente sentença pelos motivos que se passa a exarar3 3 Nota das autoras: embora ainda não julgada à época da sentença original, interessante destacar que, de fato, a decisão do Supremo Tribunal Federal em 07 de maio de 2015 foi, justamente, pela legitimidade da Defensoria Pública para propositura de Ações Civis Públicas na garantia de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. .

O direito brasileiro possui um importante sistema interno de processos coletivos, a dizer, processos em que coletividades podem pleitear conjuntamente a reparação de danos não individuais. Sistema este que recebeu sua fase atual com o Código Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), prevendo o ajuizamento de ações coletivas referentes a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, sendo legitimados concorrentes entidades e órgãos da Administração Pública.

A questão a ser enfrentada para reconhecimento da legitimidade da Defensoria para apresentação deste pleito diz respeito, assim, à caracterização desta coletividade como tal, pois ligada por uma circunstância de fato. Em outras palavras, para além do mero reconhecimento das normas técnicas que referendam a propositura de Ação Civil Pública pela Defensoria do Estado de São Paulo, estão em pauta o próprio reconhecimento do bairro Pinheirinho como uma comunidade com direitos difusos e sociais coletivos.

Não há como colocar tal questão sem efetivamente materializar a comunidade da qual se fala, sob o risco de, com qualquer decisão aqueles que não a considerem dentro dos seus parâmetros reais e corporais de existência venham a manejar as regras supostamente neutras para a exclusão de um grupo social.

A população do bairro Pinheirinho era de cerca de cinco mil pessoas, como indica a documentação juntada pela Defensoria Pública, estas cinco mil pessoas configurando-se em aproximadamente mil e setecentos núcleos familiares. Nos anos de ocupação da área disputada construíram conjuntamente espaços de convivência, caracterizando uma coletividade que trabalhava de maneira organizada para sua manutenção.

Ao configurarem-se como tal, criou-se justamente uma coletividade vinculada por uma situação fática inegável titularizando conjuntamente direitos pleiteáveis, de tal modo que não há como não reconhecer a legitimidade da Defensoria Pública para o pleito ora julgado.

Tampouco poderia ser oposto a não caracterização da coletividade dentro dos parâmetros socioeconômicos que constituem a missão institucional da Defensoria, posto tratar-se de população hipossuficiente, assim caracterizada inclusive pelos órgãos municipais.

Complementa-se nesta caracterização com dados do censo do IBGE de 2010, nos quais se pode observar que o bairro Pinheirinho possuía um perfil sociorracial predominantemente pardo e negro, circundado por bairros de população predominantemente branca4 4 A razão exata de população branca e não branca de Pinheirinho em comparação a São José dos Campos não é possível de ser aferida pela separação por setores apresentada pelo site do IBGE. No entanto, organizando os dados entre população autodeclarada branca e não branca (aqui colocados em conjunto população autodeclarada negra, parda e amarela) fica perceptível uma porcentagem menor de população branca em Pinheirinho do que no conjunto da cidade de São José dos Campos. No município de São José dos Campos a população branca soma um total de 74% enquanto que no bairro como um todo (setor socioeconômico 12) este número cai para 53,4%. Quando se separa o setor em subsetores, torna-se visível que somente um subsetor apresenta franca maioria branca, reiterando a maioria não branca do conjunto em contraste com a cidade. Aqui optamos pela separação entre branco e não branco como categorias pela dificuldade de separação dos dados do IBGE e também o apontamento de várias críticas aos dados do censo de 2010 a partir do uso da categoria pardo como inserida em um projeto de branqueamento histórico da população e apagamento da identificação negra (IBGE, 2010). . Esta configuração permite ainda duas considerações dentro dos tópicos levantados. Por um lado, em se levando em conta a divisão social e racial dos centros urbanos brasileiros, não é apressado compreender parte das pressões para garantia da reintegração de posse pelo entorno como envolta em preconceitos raciais referentes à organização da cidade. Para além, de maneira ainda mais definitiva a partir da consideração material direta da comunidade em questão, reforça o sentido de uma coletividade titular conjunta de direitos.

Por tudo exposto, reconhece-se a legitimidade da Defensoria Pública para o pleito apresentado, ao que se passa agora a uma análise mais detida.

Passa-se, assim, à análise dos pedidos.

Do Dano Moral Coletivo Stricto Sensu

O dano moral coletivo foi requerido com o intuito de reparar a coletividade Pinheirinho pela destruição dos valores constituídos dentro do laço comunitário, formado durante os oito anos de ocupação. O dano moral deriva dos direitos da personalidade, que está no rol dos direitos fundamentais, elencado no artigo 5º, X, da Constituição Federal, no qual se reconhece a inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, e o direito à indenização quando estes são violados. No entanto, quando se trata de dano moral coletivo, Leonardo Roscoe Bessa defende que melhor seria denominá-lo “dano extrapatrimonial coletivo” (Leonardo BESSA, 2007BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 40, p.247-283, 2007. Disponível em https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista40/Revista40_247.pdf. Acesso em: 12 jun 2023.
https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaeme...
, p. 282). Muito embora a doutrina já não exija a dor psíquica como elemento caracterizador do dano moral individual, quando se trata do dano coletivo é evidente que a pretensão indenizatória não é eminentemente reparatória, mas cumpre, sobretudo, função punitiva de proteção aos bens jurídicos de determinada sociedade.

O dever indenizatório pela violação a direito coletivo lato sensu foi consolidado no direito brasileiro na Lei 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, no artigo seu primeiro:

Art. 1º Regem-se, pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente; II - ao consumidor; III - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo: V - por infração da ordem econômica; VI - à ordem urbanística [...] (BRASIL, 1985).

Os direitos coletivos estão definidos na lei n. 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 81 prevê três espécies: os direitos difusos; coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos. Na ação proposta pela Defensoria Pública, demanda-se a condenação dos réus pela violação pelos dois primeiros tipos de direitos coletivos, assim definidos:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base […] (BRASIL, 1990).

O primeiro pleito, aqui analisado, trata da violação do direito coletivo stricto sensu. Como se depreende da lei, interesse ou direito coletivo stricto sensu decorre de circunstâncias de fato que atingem um número indeterminável de pessoas e não podem ser individualizados. Ou seja, não seria possível determinar o que cabe a cada indivíduo dessa relação. Apesar disso, diferente dos direitos difusos, a coletividade atingida é determinável, pois se trata de um grupo, uma categoria ou uma classe ligada por uma relação jurídica-base. No caso em tela, busca-se proteger o interesse da coletividade de Pinheirinho pela execução de uma ordem de reintegração sem qualquer apreço pelo seu histórico de construção comunitária e organizativa em defesa do direito social à moradia. Portanto, pleiteia-se a indenização pelo desprezo da identidade coletiva, que foi o resultado dos oito anos de ocupação.

A descrição da inicial da Defensoria Pública, que inaugura a presente ação, narra o uso indiscriminado de bombas de efeito moral e bala de borracha; agressões físicas e verbais; ausência de prazo razoável para a desocupação, impossibilitando o cuidado com animais domésticos, móveis e pertences, dentre outras violações.

A descrição das condições do abrigo para o qual os moradores foram enviados demonstra que o tratamento de desprezo se perpetuou após a desocupação - ausência de conforto mínimo; falta de infraestrutura para uma convivência sanitária básica; alimentação de baixa qualidade; nenhuma assistência médica às pessoas com doenças graves, etc.

De fato, a inicial é consistente em apresentar uma sucessão de violações de direito e expressões de humilhação e desrespeito à coletividade. O agrupamento que se consolidou na comunidade “Pinheirinho” foi punido de maneira que nada se assemelha à manutenção da ordem, que é dever do Estado de proteger, ou seja, não há nenhum argumento que justifique as ações truculentas levadas a cabo pelo poder público na execução da ordem de reintegração. O desalijo foi realizado sem a observância da normativa internacional e interna sobre o tema, como veremos mais a frente, e ainda foi realizada de maneira violenta como se estivessem lidando com inimigos do Estado, o que pode justificar a tese de que ocorreu uma criminalização da pobreza. Se observarmos a história de Pinheirinho, muito se aproxima da realidade de milhares de brasileiros que não conseguem acessar a moradia através do mercado imobiliário formal, pelos recortes de classe e raciais que isso imprime e, por isso, ocupam espaços que estão subutilizados ou não-utilizados nas áreas urbanas para destiná-los a uma função social.

Os dados sobre Pinheirinho demonstram que não se tratava de um dormitório improvisado, mas um local de moradia em vias de consolidação, onde a maior parte das casas era de alvenaria, com áreas delimitadas, arruamento, praças, equipamentos públicos e respeito aos limites das áreas de preservação ambiental. Com efeito, os moradores agiram de boa fé ao se apropriarem do espaço para a realização de um direito social fundamental à moradia, o que afasta a intenção de enriquecimento sem justa causa.

O direito à moradia foi incluído no rol dos direitos fundamentais em 2000 através de uma emenda constitucional. Antes mesmo de sua explicitação no artigo 6o da Constituição Federal, através de uma emenda popular impulsionada pelo movimento da reforma urbana, com mais de cem mil assinaturas, houve a inclusão do capítulo da política urbana no processo constituinte. Principalmente no artigo 183, já estava nítida a intenção de proteger o direito à habitação ao prever a regularização fundiária urbana, criando uma modalidade de usucapião especial ao reduzir para cinco anos ininterruptos o direito à titulação quando o imóvel é destinado à moradia, desde que este não ultrapasse os limites de 250 m2 e que não houvesse outro registro em nome do beneficiado.

Além disso, a subordinação da propriedade urbana às funções sociais das cidades (art. 182 da Constituição Federal), orientadas pelas exigências dos planos diretores vieram a reforçar que a propriedade não é um valor absoluto numa sociedade socialmente democrática. As funções sociais da cidade foram explicitadas no Estatuto da Cidade, onde se determina que o direito a cidades sustentáveis deve ser “entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para presentes e futuras gerações” (art. 2º, II) (BRASIL, 2001). Assim, Edésio Fernandes nos elucida:

O Estatuto da Cidade rompeu com a longa tradição de civilismo jurídico e estabeleceu as bases de um novo paradigma jurídico-político para o controle do uso do solo e do desenvolvimento urbano pelo poder público e pela sociedade organizada. Isso foi feito especialmente por meio do fortalecimento do dispositivo constitucional que reconheceu o poder e a obrigação dos municípios de controlar o processo de desenvolvimento urbano por intermédio da formulação de políticas territoriais e de uso do solo, nas quais os interesses individuais de proprietários de terras e propriedades têm necessariamente de co-existir com outros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos socioeconômicos e da cidade como um todo. O Estatuto da Cidade desenvolveu o princípio constitucional das “funções sociais da propriedade e da cidade”, assim substituindo o paradigma individualista do Código Civil de 1916 (grifo nosso) (FERNANDES, 2008FERNANDES, Edésio. Política Urbana na Constituição Federal de 1988 e Além: Implementando a Agenda da Reforma Urbana no Brasil. In B. Dantas, E. Cruxên, F. Santos, & G. Mago (Eds.), Constituição de 1988: O Brasil 20 anos depois. Estado e Economia em Vinte Anos de Mudanças (vol iv). Brasília: Ed. Senado Federal, 2008. Disponível em https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-iv-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-estado-e-economia-em-vinte-anos-de-mudancas/politica-urbana-agricola-e-fundiaria-politica-urbana-na-constituicao-federal-de-1988-e-alem-implementando-a-agenda-da-reforma-urbana-no-brasil. Acesso em: 13 jun 2023.
https://www12.senado.leg.br/publicacoes/...
, p. 8).

Deste modo, pode-se afirmar que o paradigma da nova Constituição e do Estatuto da Cidade prioriza o espaço pelo seu valor de uso, isto é, como um meio para a realização das necessidades humanas e dos direitos fundamentais, que são produtos de lutas históricas, cristalizadas na norma maior. Assim, rompe-se com a concepção liberal-civilista da propriedade privada de livre dispor do indivíduo, pois os valores de uso devem estar acima da acumulação de bens e da especulação imobiliária. Um desses valores de uso fundamentais é certamente a moradia, que não se trata apenas de um abrigo, mas uma forma de garantir a saúde, a segurança e integridade físico-psíquica dos sujeitos; é também um meio de acessar outros direitos relacionados à cidade, pois a sua localização deve estar ligada a uma rede de saneamento básico, serviços e infraestrutura urbana, que garantem o acesso à educação, ao transporte, ao lazer, etc. Portanto, o acesso à moradia deve acompanhar a democratização da distribuição espacial e dos investimentos em bens e serviços de interesse social. Tal conteúdo se depreende do Comentário Geral n. 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (UNITED NATIONS, 1991), sobre o conceito de moradia adequada, que interpreta o artigo 11.1 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O comentário estabelece parâmetros para a moradia adequada, que se resumem em: segurança jurídica da posse; disponibilidade de serviços e infraestrutura; custo acessível; habitabilidade; acessibilidade; localização e adequação cultural.

É dever primordial do Estado, através do poder público municipal, o controle do uso do solo urbano através da fiscalização e aplicação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade que obrigam a destinação das propriedades subutilizadas ao cumprimento da função social. Também é competência comum entre os entes federativos, a promoção de “programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (art. 23) (BRASIL, 1988). No entanto, a população pode e deve se organizar para participar da implementação das políticas urbanas e de habitação no país, em considerando a adoção da gestão urbana participativa no Estatuto.

A lei federal que rege a política urbana (Lei 10.257/01) estabelece como diretriz “a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (art. 2º, II) (grifos nossos) (BRASIL, 2001). Além disso, também fixa a diretriz de “cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social” (grifos nossos) (artigo 2º, III).

A questão da moradia é um problema histórico, principalmente, nos grandes centros urbanos. A organização e cooperação social marcam, de maneira profunda, o acesso à moradia de uma parcela muito significativa da população brasileira. Não só a ocupação de terras mas a implementação de serviços básicos, como saneamento e água, dependeu do trabalho cooperativo entre os próprios moradores das comunidades, em grande maioria mulheres.

De fato, em razão do papel social socialmente atribuído às mulheres, são elas que articulam as redes de parentesco, amizade e vizinhança em suas comunidades para organizar estratégias de sobrevivência familiar. A falta de infraestrutura, saneamento e serviços adequados em seus locais de moradia pesam de maneira desproporcional na vida cotidiana das mulheres pobres, da classe trabalhadora e periféricas, pois enquanto “mães” e “esposas”, a sociedade e o Estado cobram delas a responsabilidade pelo bem-estar dos seus dependentes. Assim:

Se um bairro não tem água corrida, é esperado que as mulheres a bombeiem dos poços comunitários ou torneiras para lavar as roupas ou louças da família. Se um bairro não possui esgoto adequado, são as mulheres que devem cuidar dos familiares vítimas de doenças infecciosas contraídas por esgotos a céu aberto. Se uma comunidade não possui serviços públicos de saúde, geralmente são as mulheres que precisam viajar longas distâncias para procurar atendimento médico para seus filhos. Minha pesquisa entre moradoras da periferia urbana de São Paulo sugere que é por meio desse “mundo da reprodução” que as mulheres pobres e da classe trabalhadora compreendem as condições históricas objetivas do seu gênero, assim como de sua classe. São as mulheres que são responsabilizadas principalmente pelo planejamento diário da subsistência de suas famílias, mesmo que os homens sejam socialmente responsáveis por sua “provisão” (grifos nossos) (tradução nossa) (ALVAREZ, 1990ALVAREZ, Sonia E. Engendering Democracy in Brazil: women's movement in transition politics. New Jersey: Princeton University Press, 1990., p. 46).

Vale registrar que tal matéria já foi aventada pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região diante do pleito do Ministério Público Federal e da União Federal de obrigar a demolição de um imóvel habitado há 16 anos por uma família chefiada exclusivamente por uma mulher pobre, com dois filhos menores de idade. A Terceira Turma reconheceu que o desalijo sem uma alternativa habitacional teria um efeito desproporcional, pois destituiria essa mulher do único meio de manutenção das atividades reprodutivas que sustentam sua família. E por pertencer a um grupo que é histórico e socialmente discriminado, o acesso a meios que permitem a reprodução é ainda mais dificultado, o que gera uma situação de vulnerabilidade. Em uma sociedade ainda marcada pela desigualdade de gênero, às mulheres são atribuídas expectativas sociais que deslocam sobre elas maior responsabilidade pelo bem-estar. Por isso, o relator considerou que o feito provocaria uma discriminação indireta por parte da Administração Pública, isto é, uma discriminação negativa desprovida de intenção:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO AMBIENTAL. DIREITO À MORADIA. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. DESOCUPAÇÃO FORÇADA E DEMOLIÇÃO DE MORADIA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. POSSE ANTIGA E INDISPUTADA. AQUIESCÊNCIA DO PODER PÚBLICO. DISPONIBILIDADE DE ALTERNATIVA PARA MORADIA. TERRENO DE MARINHA. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA JUDICIAL. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA, DESPEJO E DEMOLIÇÃO FORÇADAS PARA PROTEÇÃO AMBIENTAL. PREVENÇÃO DE EFEITO DISCRIMINATÓRIO INDIRETO. [...] 9. Concretização que busca prevenir efeitos discriminatórios indiretos, ainda que desprovidos de intenção, em face de pretensão de despejo e demolição atinge mulher chefe de família, vivendo em sua residência com dois filhos, exercendo, de modo regular, a atividade pesqueira. A proibição da discriminação indireta atenta para as consequências da vulnerabilidade experimentada por mulheres pobres, sobre quem recaem de modo desproporcional os ônus da dinâmica gerados das diversas demandas e iniciativas estatais e sociais (grifos nossos) (BRASIL, 2009).

A reprodução social5 5 Segundo Isabella Bakker (2003, p. 6), a reprodução social equivale aos “processos sociais e as relações humanas associadas com a criação e manutenção das comunidades sobre as quais toda a produção e troca se apoiam”. é um termo que conjuga diversas relações sociais e de trabalho, atividades, instituições, recursos materiais e emocionais que envolvem a formação dos seres humanos. Essa formação perpassa por várias etapas da vida: gestação, educação, regeneração diária dos trabalhadores, cuidado com idosos, dentre outras múltiplas necessidades que dão sustento físico e psíquico às pessoas. Por serem relações, na maioria, não-lucrativas, são invisibilizadas em nossa sociedade, muitas vezes consideradas um não-trabalho e, portanto, também não-monetizadas. Porém, são essenciais e na sua falta a própria sociedade se desmoronaria.

As desigualdades na distribuição espacial de bens e serviços urbanos geram uma carga mais pesada de trabalho para as mulheres pobres, que acabam por ocupar-se mais tempo e percorrer maiores distâncias para sustentar as tarefas de reprodução de suas famílias e vizinhança imediata. Essas dificuldades, frequentemente, fazem com que as mulheres busquem formar redes de cooperação e a organização coletiva para encontrarem estratégias comuns de sobrevivência. Assim, almejando desempenhar atividades que garantem o bem-estar de suas famílias, elas acabam por assumir também o papel de cidadãs, articulando redes de solidariedade e levando demandas às instituições públicas responsáveis ou, em alguns casos, construindo elas mesmas fossas, poços, bicos d´água, asfaltamento, coleta de lixo, creches, etc. Por isso, Alvarez (1990ALVAREZ, Sonia E. Engendering Democracy in Brazil: women's movement in transition politics. New Jersey: Princeton University Press, 1990., p. 49) afirma:

[…] elas não só administraram a sobrevivência da família, elas também articulam a relação da família com sua vizinhança ou comunidade imediata. As mulheres organizam muito da interação social nos bairros, e as redes de parentesco e amizade que elas mantêm constituem uma das principais formas de comunicação e informação entre os moradores da periferia urbana. Ameaças percebidas à sobrevivência familiar podem levar as mulheres a mobilizarem essas mesmas redes, redes que estudos demonstraram estar no centro das mobilizações urbanas de vários tipos (tradução nossa).

Portanto, um processo de desalijo arbitrário, que não observa as normas internas e internacionais sobre o tema, desarticula não só uma comunidade e as estratégias de sobrevivência cotidiana dos seus moradores, mas sobretudo as redes formadas por mulheres, o trabalho material e emocional com os quais garantem a reprodução social das famílias privadas de uma distribuição mais justa dos bens e serviços urbanos. O desprezo pela coletividade Pinheirinho, sua história e o conjunto de valores tecido no cotidiano da comunidade, também é um desvalor da subjetividade coletiva das mulheres pobres que são responsáveis pela construção dessas redes de cooperação. Um desalijo desintegra a estrutura que elas constroem no dia-a-dia para dar suporte às suas famílias e as obrigam a ter que “começar de novo”, ou seja, ter que buscar novas soluções para as estratégias de sobrevivência, o que aumenta a sua carga de trabalho não-pago, reforça o seu lugar subalterno e acentua a desigualdade nas relações de gênero.

Tendo isso em vista, o dano moral coletivo merece ser reconhecido em razão da destruição do círculo de valores coletivos em desrespeito às legislações internas e internacionais que protegem a moradia. A responsabilidade, nesse caso, é objetiva, o que significa ser dispensada a prova de culpa ou dolo. A ação antijurídica e o dano restaram evidentes e, como mencionado anteriormente, o dano moral coletivo deve ser aplicado de maneira punitiva para que tamanho ato em desapreço ao patrimônio valorativo de uma coletividade não venha a se repetir. Portanto, a indenização em caráter não apenas reparativo, mas sobretudo punitivo tem como finalidade a não repetição e a tentativa de obrigar o Estado a reconhecer o trabalho invisibilizado e menosprezado da articulação comunitária, realizada em sua maioria por mulheres, com vista à garantia da estabilização da reprodução social de uma parcela muito significativa da população.

Da Violação a Direito Difuso

Passa-se agora para a análise do pedido de indenização por danos morais por violação de direito difuso. A natureza desse direito se difere do anterior porque não é possível circunscrever os sujeitos afetados, como um grupo, uma classe ou categoria, ou seja, o fato interliga um número indeterminável de pessoas a uma relação jurídica. No caso em tela, pleiteia-se a condenação pelo rompimento com a ordem urbanística presente na execução da reintegração de posse de Pinheirinho, possibilidade prevista no artigo 1º, IV, da Lei 7.347/1995. De fato, o descumprimento da ordem urbanística representa uma ruptura com um pacto social importante, protegido tanto no direito interno como no direito internacional, que deveria oferecer segurança aos cidadãos para que pudessem organizar e planejar suas ações a partir dele. No entanto, apesar dos diversos compromissos de proteção do direito à moradia pelo Estado brasileiro, histórias como a de Pinheirinho se repetem, com frequência, em diversas partes de seu território, por isso a responsabilização com o intuito pedagógico merece prosperar para evitar a perpetuação dessas violações.

O Brasil assinou e ratificou diversos tratados que protegem o direito à moradia. Em primeiro lugar, vale lembrar que a Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU, 1948), no seu artigo 25, parágrafo 1º, incluiu a habitação como um dos elementos necessários a um padrão de vida adequado a que todos os seres humanos têm direito. Os pactos posteriores, que revigoraram a força normativa dos compromissos da declaração, mantiveram o mesmo empenho, tanto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), artigo 17, parágrafo 1º, como no citado artigo 11.1 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1966). Neste pacto, os Estados-partes se comprometem a adotar medidas apropriadas para garantir o direito à alimentação, vestimenta e moradia, de modo a proporcionar um nível de vida adequado a todas as pessoas. Além do Comentário Geral n. 4 (UNITED NATIONS, 1991) já mencionado, que confere conteúdo ao conceito de moradia adequada, outra interpretação fruto desse tratado é o Comentário Geral n. 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (UNITED NATIONS, 1997), que aborda a questão dos despejos e remoções forçados.

O comentário informa que “a prática de despejos forçados constitui uma violação grave dos direitos humanos” (UNITED NATIONS, 1997). Esse termo é empregado a situações em que pessoas, famílias e comunidades são obrigadas a se retirar, de maneira temporária ou permanente, dos seus locais de moradia sem o suporte ou meios de acessar uma proteção legal. Tendo isso em vista, é preciso destacar que se trata de uma medida radical que só deve ter lugar em situações incontornáveis, por isso deve ser estritamente necessária e devidamente justificada. Além disso, às pessoas afetadas, deve-se garantir que: a) elas tenham a oportunidade de serem consultadas; b) sejam notificadas da data do desalijo para que tenham um prazo razoável para a retirada de seus pertences e realizar a sua mudança de maneira adequada; c) todas as informações relativas ao desalijo sejam transparentes e públicas; d) que haja a presença de funcionários e representantes do governo no momento de execução da ordem; e) a identificação de todos os funcionários envolvidos no cumprimento do desalijo; f) não seja realizado quando há mau tempo ou em período noturno; g) acesso a todos os meios jurídicos e recursos efetivos para defesa; h) assistência jurídica e social quando for necessário.

Além disso, o comentário geral destaca que “os desalojos não devem dar lugar a que haja pessoas que fiquem sem moradia ou expostas a violações de outros direitos humanos” (UNITED NATIONS, 1997). O Estado deve adotar as medidas necessárias para que as pessoas tenham acesso ao reassentamento ou outra alternativa habitacional, devendo oferecer informação sobre isso antes de executar a ordem. Quanto à exposição a outras violações, é preciso sublinhar que as pessoas têm o direito a um tratamento digno, sem que haja insulto, humilhação, intimidação ou qualquer prática de violência antes, durante e depois do processo de desalijo. O documento também destaca a maior vulnerabilidade de mulheres, crianças, jovens, idosos e minorias étnicas nas ações de despejos forçados, destacando que “as disposições contra a discriminação do §2º do artigo 2º e do artigo 3º do Pacto [Internacional de Direitos Civis e Políticos] impõe aos governos a obrigação adicional de velar, para que, quando se produza um despejo, se adotem medidas apropriadas para impedir toda forma de discriminação” (UNITED NATIONS, 1997). Tal proteção encontra fundamento em outros tratados como o artigo 14.2 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres; o artigo 16 da Convenção sobre os Direitos das Crianças; o artigo 5º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, dentre outros.

A esse respeito, é preciso admitir que o desalijo de Pinheirinho foi realizado de maneira indistinta em relação aos idosos, enfermos, pessoas com doenças crônicas, mulheres e crianças, agravando situações de vulnerabilidade, principalmente no quadro de uma expulsão com emprego de diversos tipos de violência. Deve-se destacar que enquanto um dos entes responsáveis pela proteção integral das crianças e dos adolescentes, incumbido de assegurar o direito à educação, como prega o artigo 4º da lei 8069 de 1990, o poder público municipal jamais poderia permitir a remoção dos moradores sem assegurar a continuidade do ano letivo através de um plano de realocação escolar. Ainda mais em se tratando de uma comunidade em que quase a metade dos residentes têm idade entre 0-18 anos (2.615 de um total de 5.488 pessoas). A interrupção do ano escolar não é apenas um prejuízo inaceitável à aprendizagem de crianças e adolescentes, mas também aos responsáveis que, sem a garantia da supervisão dos seus dependentes durante o período em que estão sob os cuidados da escola ou creche, comprometem, ou até perdem, seus vínculos de trabalho e emprego.

Evidentemente, em sociedades como a nossa em que, pelas marcas profundas da desigualdade de gênero na estrutura social, as atividades de cuidado recaem, majoritariamente, sobre as mulheres, são elas as primeiras a abrir mão da atividade remunerada externa ao lar. Como vimos, como parte de alguns arranjos informais comunitários para compensar a deficiência de serviços públicos que deem suporte às atividades da reprodução social, trata-se de uma prática comum, na ausência de creche, as mulheres organizarem entre si a supervisão das crianças para poderem assumir um trabalho remunerado. Por isso, o rompimento desses laços comunitários obriga as mulheres a reorganizarem as suas vidas para garantir o mesmo padrão de vida. Assim, mesmo que de maneira indireta, um desalijo desnecessário e mal coordenado pelo poder público, produz resultados negativos que vão de encontro com o objetivo de erradicar a desigualdade de gênero, previsto no artigo 3, IV, da Constituição Federal. Tais resultados negativos equivalem à perda da autonomia financeira da mulher, o aumento do trabalho doméstico não remunerado e da dependência em relação à estrutura familiar.

A teoria da reprodução social demonstra que a esfera da vida que proporciona as condições materiais e emocionais para os seres humanos nascerem, crescerem, se desenvolverem e envelhecerem, marca a socialização das mulheres, desde que fora separada da produção como um domínio autônomo e distinto, dotado de uma racionalidade própria. Essa separação não só designou a esfera da produção ao espaço público, e confinou a reprodução ao privado, como também provocou uma hierarquia, na qual a última é subordinada às demandas da primeira. Essa subordinação também gerou a desvalorização dos trabalhos ligados à reprodução como uma espécie de vocação natural das mulheres, não precisando, assim, de investimentos ou qualificações particulares para a sua realização. Resultou disso a exclusão das mulheres à capacidade civil plena, o acesso à educação formal, à qualificação profissional e ao trabalho.

Esse quadro só muda de maneira significativa com a chamada “segunda onda do feminismo”, quando as mulheres conquistam o direito ao reconhecimento do tratamento igualitário dos seus direitos. Apesar desse reconhecimento formal, a desigualdade de gênero persiste nas relações sociais, e é agravada por marcadores de raça e classe. Mesmo sendo verdade que o espaço público esteja cada vez mais ocupado por mulheres, os benefícios do avanço das políticas de gênero são distribuídos de forma desigual entre elas. Segundo o IPEA (2011), em 2009, enquanto a desocupação de homens brancos correspondia a uma taxa de 5%, para mulheres brancas essa taxa equivalia a 9% e para as mulheres negras 12%. Ainda, enquanto as mulheres brancas correspondiam a 55% da renda média do homem branco, as mulheres negras chegavam somente a 30,5%.

Até mesmo as ocupações externas ao lar são marcadas pelos serviços de cuidado e manutenção, sendo mais comum encontrar mulheres negras em vínculos precários ou terceirizados de baixa remuneração. De acordo com a pesquisa do IPEA (2011, p. 27):

As mulheres, especialmente as negras, estão mais concentradas no setor de serviços sociais (cerca de 34% da mão de obra feminina), grupo que abarca os serviços de cuidado em sentido amplo (educação, saúde, serviços sociais e domésticos). Ademais, a trajetória feminina rumo ao mercado de trabalho não significou a redivisão dos cuidados entre homens e mulheres, mesmo quando se trata de atividades remuneradas, o que pode ser percebido pela concentração de mulheres, especialmente negras, nos serviços sociais e domésticos.

Por outro lado, essas mulheres quando se ausentam de seus lares, em geral, não conseguem contratar outra pessoa para substituí-las nas atividades necessárias à reprodução, por isso precisam trabalhar em dupla ou tripla jornada para dar suporte ao bem-estar de suas famílias. Essas são algumas consequências da distribuição desigual do ônus de um modelo privatizador da reprodução social, que a escamoteia para a administração da vida privada, aumentando o grau de informalização e exploração do trabalho feminino não remunerado (BAKKER, 2003BAKKER, Isabella. Neo-liberal governance and the Reprivatization of Social Reproduction: Social Provisioning and Shifting Gender Orders. In: BAKKER, Isabella; GILL, Stephen (Orgs.). Power, Production and Social Reproduction. New York: Palgrave Macmillan, 2003.).

A invisibilização das relações sociais que possibilitam a reprodução social, sem a qual não haveria trabalhadores e todo o sistema desmoronaria, só não se completa porque as lutas sociais das mulheres as expõem no espaço público. De fato, o rompimento com a ordem urbana consagrada na Constituição, na qual se estabelece o objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182, caput) (BRASIL, 1988), provoca consequências graves, sobretudo a mulheres negras, sobre as quais recaem a responsabilidade de estabilizar a reprodução social. É sobre elas, principalmente, que recaem os ônus do descumprimento do pacto sobre a garantia do desenvolvimento das funções sociais da cidade, pois a ausência de políticas adequadas impacta a quantidade de tempo e trabalho que precisam reservar, no seu dia a dia, aos trabalhos reprodutivos. Por isso também é que são elas as que participam mais ativamente de ações que objetivam o monitoramento das políticas urbanas através das organizações comunitárias e de bairro, apesar de não serem incluídas, significativamente, nos mecanismos formais de participação. Assim, a Carta das Mulheres pelo Direito à Cidade (CHARTER FOR WOMEN´S RIGHT TO THE CITY, 2004, p. 4) afirma:

As mulheres permanecem ausentes de decisões ligadas ao planejamento territorial e urbano de nossas cidades, ou seja, decisões sobre o contexto e o ambiente físico em que vivem, trabalham e sonham. Eles constituem mais de 50% da população das cidades, e sua participação na construção, melhoria e manutenção de assentamentos humanos é um fato reconhecido, dado o papel de liderança que elas historicamente assumem nos movimentos sociais urbanos em defesa da terra, habitação e serviços (tradução nossa).6 6 Aproveitamos para lembrar declarações anteriores que já expressavam a importância de promover a participação das mulheres nas políticas urbanas e de moradia, destacadamente: a Carta Europeia das Mulheres na Cidade (EUROCULTURES et al., 1995) e a Declaração Mundial das Mulheres nos Governos Locais (IULA, 1998).

Essa percepção está também presente na Agenda Habitat II, de 1996, documento consensual produzido entre os países-membros na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat), onde se reúnem, de 20 em 20 anos, para estabelecer objetivos comuns para o desenvolvimento das cidades e assentamentos humanos sustentáveis. No preâmbulo da Agenda, afirma-se:

15. As mulheres têm um papel importante a desempenhar na concretização de assentamentos humanos sustentáveis. No entanto, como resultado de vários fatores, incluindo o peso persistente e crescente da pobreza sobre as mulheres e a discriminação contra as mulheres, as mulheres enfrentam restrições particulares na obtenção de abrigo adequado e na participação plena na tomada de decisões relacionadas a assentamentos humanos sustentáveis. O empoderamento das mulheres e sua plena e igual participação na vida política, social e econômica, a melhoria da saúde e a erradicação da pobreza são essenciais para alcançar assentamentos humanos sustentáveis. (tradução nossa) (UN-Habitat, 1996, p. 15).

A preocupação, ainda que timidamente, aparece também no direito brasileiro. A primeira legislação a conferir uma proteção especial às mulheres nos programas voltados aos assentamentos urbanos é do município de São Paulo. Além da prioridade de atendimento como beneficiária dos programas de habitação de interesse social, a lei 13.770/2004, no seu artigo 1º, prevê “a criação e capacitação de mão de obra feminina, que permitam a inserção da mulher em processos de autogestão e de organização comunitária assim como nos processos produtivos das unidades habitacionais, em especial nos sistemas de autoconstrução e mutirão” (artigo 1º) (SÃO PAULO, 2004). Além disso, no artigo 2º, também estabelece atividades voltadas a elas na execução de equipamentos comunitários públicos de educação, saúde e lazer nos empreendimentos habitacionais.

A lei federal nº 11.124/05, que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, no seu artigo 4º, também confere prioridade de atendimento a mulheres responsáveis pela unidade familiar como beneficiárias de programas de habitação. A lei, no artigo 23, dá preferência às mulheres no momento de registro do imóvel. Essas diretrizes se repetem na lei federal 11.077/2009, que trata do programa “Minha Casa, Minha Vida” e da regularização de assentamentos localizados em áreas urbanas. Portanto, resta evidente que o legislador brasileiro reconhece a vulnerabilidade específica da mulher em relação à moradia e vêm buscando protegê-la. Portanto, o rompimento com a ordem urbana tem resultados negativos para a organização da reprodução social, especialmente para as famílias pobres, e acentua ainda mais as desigualdades de gênero que persistem na sociedade brasileira.

Ao que, retomando a análise do caso, a remoção da comunidade de Pinheirinho em si, e, sobretudo, nos termos em que se deu, implicou na dissolução violenta de laços comunitários e cerceamento de espaços de vivência urbana, relegando diversas famílias a novo limbo social quanto à manutenção de sua sobrevivência mais cotidiana. O rompimento brusco com a ordem urbanística age diretamente na negação da manutenção das atividades reprodutivas e fere frontalmente as legislações protetivas das mulheres. O tratamento reservado à comunidade Pinheirinho antes, durante e depois do processo de desalijo demonstra o desprezo pela cooperação social construída nos 8 anos de vida comunitária que possibilitaram as atividades reprodutivas cotidianas de 1700 famílias. A demora na implementação de programas assistenciais para compensar as perdas provocadas pelo desalijo demonstra a persistência da negligência do poder público.

Embora a reparação econômica não tenha o poder de reestruturar os laços rompidos e os danos perpetrados contra a comunidade, a possibilidade de alocação de verbas para garantia de moradia digna e espaços comunitários é essencial neste sentido. Em consonância com ações do poder público na prestação dos serviços de saneamento, transporte, educação e lazer, tem uma implicação direta não só na estruturação de uma ordem urbanística não excludente, mas, de maneira intimamente conectada, na garantia de direitos básicos das mulheres, por tudo já demonstrado.

Evidenciado o desrespeito aos compromissos assumidos quanto à proteção do direito à moradia e à ordem urbanística, no ordenamento jurídico interno e internacional, resta julgar procedente a condenação por violação a direitos coletivos difusos. O dano transcende a coletividade de Pinheirinho e atinge inúmeros cidadãos que se asseguram nos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro para planejar uma vida com menos desigualdade para si e para as futuras gerações.

Dispositivo

Ante o exposto, JULGA-SE PROCEDENTE o pedido para condenar os réus ao pagamento de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), por danos morais coletivos stricto sensu e difusos pela violação de direitos extrapatrimoniais da coletividade acima descritos.

Referências bibliográficas

  • 1
    Como “pergunta pela mulher” fazemos aqui referência à metodologia proposta por Katherine Bartlett. Bartlett, buscando formular métodos de pensamento feminista para o direito propõe três técnicas críticas a partir de teorias do conhecimento aplicadas, sendo uma delas a “pergunta pela mulher”. A “pergunta pela mulher” consiste, de maneira simplificada, na formulação reiterada das implicações para mulheres de legislações ou decisões jurídicas, de modo a evidenciar os padrões não neutros das mesmas, a forma como operam e como poderiam ser corrigidos (Katherine BARTLETT, 2011BARTLETT, Katherine T. Métodos Jurídicos Feministas. In: FERNÁNDEZ, Marisol; MORALES, Félix (Orgs.). Métodos Feministas en el Derecho. Lima: Palestra, 2011. p. 19- 116.).
  • 2
    Nota das autoras: como explicado na introdução, embora a petição inicial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo contasse com outros pedidos, estes não serão objetos da presente decisão por uma opção metodológica e prática, visto que, além das questões enunciadas na introdução, a sentença revista foi extinta sem resolução de mérito e, por isso, não houve possibilidade de contestação das partes rés.
  • 3
    Nota das autoras: embora ainda não julgada à época da sentença original, interessante destacar que, de fato, a decisão do Supremo Tribunal Federal em 07 de maio de 2015 foi, justamente, pela legitimidade da Defensoria Pública para propositura de Ações Civis Públicas na garantia de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
  • 4
    A razão exata de população branca e não branca de Pinheirinho em comparação a São José dos Campos não é possível de ser aferida pela separação por setores apresentada pelo site do IBGE. No entanto, organizando os dados entre população autodeclarada branca e não branca (aqui colocados em conjunto população autodeclarada negra, parda e amarela) fica perceptível uma porcentagem menor de população branca em Pinheirinho do que no conjunto da cidade de São José dos Campos. No município de São José dos Campos a população branca soma um total de 74% enquanto que no bairro como um todo (setor socioeconômico 12) este número cai para 53,4%. Quando se separa o setor em subsetores, torna-se visível que somente um subsetor apresenta franca maioria branca, reiterando a maioria não branca do conjunto em contraste com a cidade. Aqui optamos pela separação entre branco e não branco como categorias pela dificuldade de separação dos dados do IBGE e também o apontamento de várias críticas aos dados do censo de 2010 a partir do uso da categoria pardo como inserida em um projeto de branqueamento histórico da população e apagamento da identificação negra (IBGE, 2010).
  • 5
    Segundo Isabella Bakker (2003BAKKER, Isabella. Neo-liberal governance and the Reprivatization of Social Reproduction: Social Provisioning and Shifting Gender Orders. In: BAKKER, Isabella; GILL, Stephen (Orgs.). Power, Production and Social Reproduction. New York: Palgrave Macmillan, 2003., p. 6), a reprodução social equivale aos “processos sociais e as relações humanas associadas com a criação e manutenção das comunidades sobre as quais toda a produção e troca se apoiam”.
  • 6
    Aproveitamos para lembrar declarações anteriores que já expressavam a importância de promover a participação das mulheres nas políticas urbanas e de moradia, destacadamente: a Carta Europeia das Mulheres na Cidade (EUROCULTURES et al., 1995) e a Declaração Mundial das Mulheres nos Governos Locais (IULA, 1998).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2023
  • Aceito
    26 Jun 2023
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