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Interfaces entre saúde global e desigualdade social em tempos de pandemia: A (des)proteção das favelas brasileiras no enfrentamento ao Covid-19

Interfaces between global health and social inequality in pandemic times: The (de)protection of Brazilian slumps in the facing Covid-19

Resumo

O presente artigo tem como objetivo abordar a problemática da pandemia do Covid-19 no Brasil a partir das reflexões sobre saúde global e desigualdade social, tendo como estudo de caso as favelas brasileiras e a (des)proteção dessas comunidades. Desta forma, o questionamento pertinente à pesquisa é o seguinte: como têm se dado o enfrentamento à pandemia nas favelas brasileiras e as políticas públicas por parte do governo federal, em um cenário de intensa desigualdade social? Para tanto, o método utilizado foi o dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica, documental e de estudo de caso, com a coleta e análise de dados, utilizando como objeto do estudo de caso as favelas brasileiras, de modo a demonstrar as interfaces entre saúde global e desigualdade social e seus reflexos em tempos de pandemia. A partir do estudo pode-se concluir que mesmo em um cenário de pandemia, não há uma proteção efetiva às favelas brasileiras por parte do Estado, de modo que milhões de brasileiros encontram-se em situação de vulnerabilidade - agravada pela pandemia - sem respostas efetivas no enfrentamento ao covid-19, tendo que se organizar por conta própria e deixados à mercê da própria sorte - o “Direito de Pasárgada” se reproduz, hoje, em um contexto em que os ares do autoritarismo e do negacionismo insistem em retornar.

Palavras-chave:
Covid-19; Favelas brasileiras; Saúde global

Abstract

This article aims to address the problem of the Covid-19 pandemic in Brazil from reflections on global health and social inequality, taking as a case study the Brazilian slums and the (de) protection of these communities. Thus, the question pertinent to the research is the following: How has the pandemic been tackled in Brazilian favelas in a scenario of intense social inequality? For this purpose, the deductive method was used, based on bibliographic, documentary and case study research, with the collection and analysis of data, using the Brazilian favelas as a case study object, in order to demonstrate the interfaces between health global and social inequality and its effects in times of pandemic. From the study it can be concluded that even in a pandemic scenario, there is no effective protection for the Brazilian slums by the State, so that millions of Brazilians are in a situation of vulnerability, aggravated by the pandemic, without effective responses in confronting the covid-19, having to organize on its own - the Law of Pasárgada is repeated, today, in a context in which the airs of authoritarianism and negationism insist on returning.

Keywords:
Covid-19; Brazilian slums; Global health

Introdução1 1 Pesquisa apoiada pela CAPES.

Busca-se, com o presente artigo, abordar a questão da pandemia do Covid-19 no Brasil, sobretudo no que tange ao enfrentamento à pandemia nas favelas brasileiras, a partir das reflexões sobre desigualdade social e saúde global. Isso porque com a globalização ocorreram transformações na sociedade que impactaram também no campo da saúde, momento em que diversos sistemas de saúde foram precarizados e essa enquanto direito humano passou a ser uma realidade distante, em um ambiente de privatização e desfinanciamento dos sistemas públicos em muitos lugares.

As crises econômicas e sanitárias, somadas à intensa desigualdade social, levam a refletir sobre as respostas que os países têm dado à população no que tange à saúde, principalmente das comunidades mais vulneráveis. Assim, a reflexão sobre essa problemática se coloca fundamental, a fim de identificar as interfaces entre saúde, desigualdade social e as políticas adotadas nesse campo. Para tanto, o método utilizado na presente pesquisa foi o dedutivo, com pesquisa bibliográfica, documental e de análise de dados, utilizando como estudo de caso as favelas brasileiras.

Nesse ambiente de precarização da saúde, os mais afetados são aqueles indivíduos que já vivem em condições mais vulneráveis e não tem um acesso à saúde de forma efetiva. Entretanto, ressalta-se que quando se fala na saúde da população, a problemática não se limita ao acesso à saúde, mas, aos múltiplos fatores que se refletem nesse campo.

Deste modo, condições sociais-econômicas-culturais-ambientais-habitacionais, entre outras, impactam na saúde dos indivíduos para além da simples questão do acesso ao atendimento em saúde. Com isso, pode-se observar que no Brasil, país de intensa desigualdade social, há um ambiente de vulnerabilidade aos milhões de moradores das favelas que não tem o mesmo acesso aos bens necessários à uma vida digna como os moradores do asfalto.

Nesse sentido, a pandemia do Covid-19 tem demandado reflexões sobre diversas questões que envolvem desde as relacionadas ao enfrentamento à pandemia em si, àquelas ligadas aos impactos sociais que afetam de sobremaneira as populações vulneráveis. Nesse cenário de desigualdade social e intensificação das vulnerabilidades, é o Poder Público que deve agir por meio de políticas públicas a fim de minimizar os impactos na sociedade - e a urgência da situação requer respostas igualmente urgentes.

Diante disso, para melhor discussão do tema divide-se o artigo em dois eixos temáticos. No primeiro, intitulado “Um diálogo entre saúde global e desigualdade social”, busca-se demonstrar a interface entre saúde global e desigualdade social, a partir das breves ponderações sobre saúde e os múltiplos fatores que influenciam nesse campo. No segundo, denominado “Revisitando o Direito de Pasárgada e a (des)proteção das favelas no Brasil: reflexões sobre o enfrentamento à pandemia do Covid-19”, pretende-se revisitar o “Direito de Pasárgada” de Boaventura de Sousa Santos a fim de demonstrar se o cenário de omissão do Estado nas favelas brasileiras ainda se mantém, com a consequente necessidade de uma organização desde dentro por parte dos moradores. Por fim, investigar-se-á, a partir das publicações diárias no portal do governo federal destinadas às ações em relação à pandemia, como têm se dado o enfrentamento à pandemia nas favelas brasileiras e as políticas públicas (não) elaboradas.

1 Um diálogo entre saúde global e desigualdade social

As diversas transformações decorrentes da globalização e da ascensão do capitalismo acabaram impactando também no campo da saúde. Essa, tratada a nível global e em seus múltiplos aspectos, requer respostas de diversos atores no que tange à sua proteção enquanto um direito humano e, sobretudo, enquanto necessidade humana para que se possa ter uma vida digna.

Pode-se dizer que o fenômeno da globalização, assim como possibilitou um crescimento econômico e mudanças a nível internacional, também aprofundou assimetrias e contribuiu para a marginalização econômica, política e social de dezenas de países e bilhões de pessoas. Tem-se, com isso, a fase mais perversa e neoliberal de um sistema que se preocupa com a maximização dos lucros e do capitalismo - em sua nova fase, a do capitalismo global2 2 Impôs-se a versão mais antissocial do capitalismo: o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global. Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais - sobretudo saúde, educação e segurança social- ao modelo de negócio do capital, ou seja, a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores. Este modelo põe de lado qualquer lógica de serviço público, e com isso ignora os princípios de cidadania e os direitos humanos. (SANTOS, 2020, p. 24). em que o poder das empresas se reafirmou de maneira esmagadora (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.) -, deixando de lado a preocupação com a problemática social. (BUSS; TOBAR; FEO; MATIDA; HOIRISCH, 2017BUSS, Paulo M.; TOBAR, Sebastían; FEO, Oscar; MATIDA, Álvaro; HOIRISCH, Cláudia. A Saúde nos processos de integração regional da América Latina e Caribe. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.).

Nesse sentido, o modelo de desenvolvimento e expansão ocidental resultou em um grande nível de riqueza, ao mesmo tempo em que fez crescentes as desigualdades. Os agentes políticos que atuam no campo da saúde foram confrontados por esse modelo que negligenciou não só a sustentabilidade, mas a equidade, sendo construído, inclusive, sobre a sua exploração. Veja-se que desde o começo, a saúde pública internacional foi condicionada pelos interesses econômicos dos países. (FRANGO-GIRALDO; ÁLVERAZ-DARDET, 2009; KICKBUSH, 2017KICKBUSH, Ilona. Desafios da governança global em saúde: estamos prontos? In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.).

Na área da saúde internacional, as primeiras ações dos governos a fim de articular esforços tiveram relação com a intensificação das pandemias durante o século XIX - pode-se compreender as pandemias “como epidemias que atingem vastas regiões do planeta”. Nessa linha, a segunda pandemia de cólera de 1827 foi a que demandou o maior número de ações coordenadas pelos governos. As medidas e respostas nessa pandemia só se colocaram enquanto prioridade quando afetaram as nações mais ricas do mundo, que à época eram os países europeus. (CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.). Com isso, observa-se que desde as primeiras pandemias o alerta em relação à saúde da população só se dá quando as classes mais favorecidas são afetadas. Para os detentores do poder nesse mundo globalizado, a problemática da saúde pouco importa quando apenas as populações mais vulneráveis são atingidas3 3 É nesse sentido que dispõe o autor: “As epidemias de que o novo coronavírus é a mais recente manifestação só se transformam em problemas globais graves quando as populações dos países mais ricos do Norte global são atingidas. Foi isso que sucedeu com a epidemia da SIDA/AIDS. Em 2016, a malária matou 405 mil pessoas, a esmagadora maioria em África, e isso não foi notícia. Os exemplos podiam multiplicar-se. (SANTOS, 2020, p. 26). .

Nesse contexto, tem-se a concepção da saúde internacional, contemplando a problemática da saúde para além das fronteiras do Estado-nação. No entanto, o enfoque de saúde internacional apresenta algumas limitações. Dentre essas, pode-se destacar: suposições de que o enfoque de saúde internacional é uma questão estritamente de países subdesenvolvidos e de populações pobres e marginalizadas - consideradas “fatalmente doentes” -, que acabam impedindo de identificar a influência das relações sociais e modos de produção no campo da saúde de uma forma mais abrangente; a dependência excessiva dos círculos de poder, interesses econômicos e alianças comerciais; e a percepção dos problemas de saúde como resultado da confrontação entre Norte-Sul. Foi a partir de limitações como essas que foi surgindo um olhar mais amplo no setor da saúde, considerando os diversos fatores que impactam nesse cenário, dando ensejo, assim, a saúde global. (FRANGO-GIRALDO; ÁLVERAZ-DARDET, 2009).

Portanto, nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1990, as relações entre globalização e saúde começaram a merecer crescente atenção em nível mundial4 4 A mudança de perspectiva que consiste em inserir a saúde no cenário global se deve a pelo menos duas alterações fundamentais: um crescente humanitarismo mundial que amplia a noção dos direitos humanos inalienáveis e a convicção de que a má saúde e qualquer outra carência evitável que afetam em conjunto de pessoas são um assunto que diz respeito a toda a humanidade; e o reconhecimento de que a saúde de uma parte do mundo tem impactos sobre a saúde e outros aspectos do bem-estar humano em outras partes do planeta. A saúde é hoje uma dimensão indivisível, um tema de todos, em que se entrelaçam questões complexas de política tanto nacional quanto internacional, aspectos econômicos entram em conflito com aspectos setoriais e em que é necessário tomar decisões e negociar em contextos de rápidas mudanças. (TOBAR; COITIÑO; KLEIMAN, 2017, p. 589). . Diante disso, surgiu uma nova vertente de interpretação dos problemas de saúde internacional, baseada na globalização: a saúde global. Essa vertente emergiu a partir do processo de globalização, tempos após o surgimento do conceito de saúde internacional estabelecido em 1913 e com o objetivo de superar algumas limitações da saúde pública internacional. A legislação internacional em saúde foi, então, se expandindo ao ritmo da globalização e incorporando-se à saúde global nas agendas de política exterior, gerando novos e maiores desafios na governança e no processo de definição das políticas de saúde. Desse modo, a saúde vista como uma problemática global envolve uma série de atores internacionais públicos e privados, estatais ou não, que se colocam no campo de debate, produção e aplicação do direito, impactando no âmbito local. (ALMEIDA, 2017ALMEIDA, Celia. Saúde, política externa e cooperação Sul-Sul. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017., p. 41; FRANGO-GIRALDO; ÁLVERAZ-DARDET, 2009; MADIES, 2020MADIES, Claudia Viviana. Legislación sanitaria internacional. Ministerio de salud. Argentina, 2017. Disponível em: https://salud.gob.ar/dels/entradas/legislacion-sanitaria-internacional Acesso em: 21/12/2020;
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;). Com efeito:

Surgida nos anos 1990, a expressão “saúde global” mobiliza um diversificado leque de atores, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Mundial, a Fundação Bill e Melinda Gates, os Estados, a indústria farmacêutica, as universidades e as mais diversas organizações não governamentais, hoje munidos de recursos financeiros e tecnológicos sem precedentes. (VENTURA, 2015VENTURA, Deisy. Mobilidade Humana e Saúde Global. Revista USP - São Paulo, n. 107, p. 55-64, 2015. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/115113> Acesso em: 07/07/2020;
https://www.revistas.usp.br/revusp/artic...
, p. 57-64).

Nesse viés, a problemática da saúde global, por vezes relacionada aos novos eventos como as epidemias internacionais, surgiu como parte de um processo político e histórico mais amplo, no contexto de uma ordem mundial neoliberal em que o papel da própria Organização Mundial da Saúde passou a ser questionado e reposicionado no âmbito de um conjunto de alianças de poder em transformação. Foi nesse contexto que emergiu a saúde global como uma perspectiva mais abrangente que a saúde internacional. (CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).

Para Franco-Giraldo (2016)FRANCO-GIRALDO, Álvaro. Salud global: una visión latinoamericana. Rev Panam Salud Publica. 2016;39(2):128-36. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2016.v39n2/128-136 Acesso em: 21/12/2020.
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, a saúde global além de ser entendida como um novo campo teórico, é condicionada pelo contexto político internacional. O autor adverte que a globalização ao mesmo tempo em que faz referência para a intensificação da transnacionalização de fenômenos, pode demonstrar uma face negativa em relação a problemática da saúde, sendo que é capaz de desencadear a deterioração de condições sanitárias, como devido ao aquecimento global, a pobreza, doenças e desigualdades em suas múltiplas formas.

Como precedentes, a saúde global tem a saúde internacional, com a qual compartilha a questão da saúde para além das fronteiras, e a saúde pública, a qual tem como foco a saúde da coletividade, bem como ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde. Dessa forma, vê-se a amplitude e a interdisciplinaridade da saúde global. “O reconhecimento do regional e do local, das diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais entre os países e as internas, assim como as consequências e respostas diferenciadas a eventos globais (FORTES; RIBEIRO, 2014FORTES, Paulo Antônio de Carvalho; RIBEIRO, Helena. Saúde Global em tempos de Globalização. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.2, p.366-375, 2014; Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n2/0104-1290-sausoc-23-2-0366.pdf. Acesso em: 08/07/2020;
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, p. 370)”, é o que acaba diferenciando a saúde global das formas clássicas de saúde internacional.

Assim, considera-se a saúde um bem público e global que deve abarcar toda coletividade, ou seja, entende-se que ninguém deve ser excluído do “consumo” e do direito à saúde, e dessa maneira, seus benefícios devem estar disponíveis a todos (em todos os lugares)5 5 Direito à saúde é sistema público eficiente, de acesso universal e gratuito, não é pagar um plano de saúde e torcer para que ele cumpra o que promete. A cada corte no orçamento da saúde, eu vou transformando o direito à saúde em letra morta. (VENTURA, 2016, p. 11). (FORTES; RIBEIRO, 2014FORTES, Paulo Antônio de Carvalho; RIBEIRO, Helena. Saúde Global em tempos de Globalização. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.2, p.366-375, 2014; Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n2/0104-1290-sausoc-23-2-0366.pdf. Acesso em: 08/07/2020;
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n2/01...
). Portanto, vê-se a relevância de se considerar a saúde a nível global, de forma que englobe todos os indivíduos, e que se trate tal questão considerando as problemáticas que envolvem o processo de globalização e os reflexos de questões relacionadas à saúde para além das fronteiras.

Em meados de 1980 ocorreram reformas no setor da saúde que se disseminaram em todo o mundo. Agendas restritivas foram elaboradas, fomentadas pela ideologia neoliberal então hegemônica. Com isso, os gastos em saúde foram submetidos às exigências de ajustes macroeconômicos, considerando os princípios neoliberais de privatização, desregulamentação, menos influência do Estado, flexibilidade e de modo a desconsiderar os problemas sociais. O neoliberalismo6 6 Em síntese, pode-se entender o neoliberalismo enquanto a aceitação da ideologia do mercado - ou a promoção do mercado em todas as áreas da sociedade possíveis. Esse modelo se opõe ao governo em todos aspectos, com exceção aos mais essenciais, esperando que o governo não influa na área econômica. Enquanto ideologia traz a ideia de que o crescimento econômico é bom para todos e, para o bem dos cidadãos, os governos devem conferir a máxima autonomia possível para os agentes individuais, sobretudo às empresas. (COBURN; COBURN, 2014). revolucionou as relações entre Estado, sociedade e as grandes corporações, com reflexos na saúde pública. Ao mesmo tempo, Dallari (2017)DALLARI, Sueli Gandolfi. Sistemas públicos universais de saúde e cobertura universal dos serviços de assistência médica. Cad. Ibero-Amer. Dir. Sanit., Brasília, 2017. alerta que em meio a esse ambiente em que se privilegia os aspectos econômicos e financeiros das atividades de saúde, ficou demonstrado que os programas de ajuste, em que os governos passaram a diminuir os gastos públicos e, com isso, beneficiar o setor privado que visa o lucro, não produziu “saúde”. Com isso, a autora dispõe sobre a necessidade de enfrentar o “mercado da doença”, em que os aspectos econômicos e financeiros das atividades ligadas à saúde são privilegiados. (ALMEIDA, 2017ALMEIDA, Celia. Saúde, política externa e cooperação Sul-Sul. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.; CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).

Nesse momento, o acesso à saúde praticamente deixou de ser considerado enquanto um direito humano. Esse processo foi acompanhado pela negligência em relação ao campo da saúde e às questões epidemiológicas e de saúde pública. O atendimento às populações piorou, em decorrência das privatizações, mudando a concepção de saúde como um bem público, o que acabou aumentando os gastos privados, mesmo entre as populações mais vulneráveis. (ALMEIDA, 2017ALMEIDA, Celia. Saúde, política externa e cooperação Sul-Sul. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.).

De tal modo, os ricos tem vida mais longa e mais saudável que os pobres, sendo que nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas oriundas de famílias mais pobres têm quatro a cinco vezes mais probabilidade de morrer do que as de famílias ricas. Assim, a aplicação da doutrina neoliberal aumentou de forma desumana as desigualdades sociais (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.).

Indo além, pode-se afirmar que “a estrutura de classes do capitalismo - o neoliberalismo - produz e exacerba essas desigualdades. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014., p. 26). É nesse ambiente de desigualdade social que se acentuam as vulnerabilidades daqueles que já se encontram em condições mais precárias, enquanto se intensificam os privilégios daqueles que se encontram acolhidos pelo sistema.

Esses sistemas neoliberais incentivam as desigualdades e se beneficiam delas. “Pode-se dizer que o neoliberalismo não apenas gera desigualdade, mas precisa dela. Ele é “antiequidade” (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014., p. 94). Assim, aos sistemas neoliberais não importam as condições sociais das populações e a ligação dessas condições com a problemática da saúde em um ambiente desigual. Não há o interesse pela busca da equidade entre ricos e pobres, inclusive no campo da saúde.

A partir disso, entende-se que qualquer discussão acerca da desigualdade em saúde precisa confrontar a doutrina neoliberal concernente a relação dos fatores socioeconômicos e a saúde. Essa doutrina dominante é impulsionada por nações desenvolvidas, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, assim como pelas organizações internacionais como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.).

Com essas mudanças neoliberais, muitos sistemas de saúde e agências de saúde global passaram a se manter com orçamentos menores e com menos pessoal para trabalhar7 7 Sobre o enfraquecimento e cortes no setor da saúde: “É sobretudo uma demanda do mercado, que quer abocanhar setores da saúde que eram públicos nesses países. Assim como o mercado precisa vender armas, construir muros, vender insumos de segurança. O que quero dizer é que cada uma dessas alterações de prioridade é acompanhada ou é causada por pressões do mercado. O momento que vivemos, no plano internacional e também no Brasil, é de enorme avanço do mercado, de império das necessidades do mercado. O mercado hoje é o rei. Os gestores, a classe política e os atores econômicos percebem a saúde coletiva como um grande mercado. (VENTURA, 2016, p. 7). . Esses sistemas conseguiram sobreviver às transformações globais e neoliberais, contudo, com orçamentos limitados, ao mesmo tempo em que as necessidades das comunidades vulneráveis continuam constantes - sobretudo em sociedades desiguais. (CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).

Nesse contexto, a problemática em torno da saúde envolve diferentes aspectos. Uma série de problemas estruturais têm se agravado, destacando-se a pobreza e as desigualdades sociais nos países em desenvolvimento e, também, em alguns países desenvolvidos. Mesmo que compreendida como uma questão relacionada aos fatores biológicos, a saúde é um fenômeno complexo e com múltiplas determinações, havendo evidências de que alterações no contexto social, econômico, político, cultural e ambiental afetam as condições de saúde das populações. (BARRETO, 2017BARRETO, Mauricio de Lima. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.).

No mesmo sentido, desde pelo menos o século XIX, há a concepção de que as condições de saúde da população estão diretamente relacionadas às características do contexto ambiental e social em que esta vive. Precárias condições de moradia, pobreza, o ambiente urbano inadequado, trabalho insalubre, são condições que afetam negativamente as condições de saúde de uma população. (BARRETO, 2017BARRETO, Mauricio de Lima. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.).

Conforme se dispõe, não se pode compreender as desigualdades em saúde sem uma investigação dos fatores sociais que produzem e acompanham as diferenças e condições de saúde. Ao mesmo tempo, não há como fazer muito a respeito das desigualdades sociais sem levar em conta as estruturas de poder vigentes. Essas, nos níveis internacional e nacional, influenciam nas ideias predominantes, no desenvolvimento de políticas públicas e ações e na implementação ou não destas. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.).

Além disso, Barreto (2017)BARRETO, Mauricio de Lima. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. adverte que diversas pesquisas na área da saúde pública e epidemiologia apontam que - salvo poucas exceções - a ocorrência de diferentes doenças e problemas de saúde se agrava entre as comunidades que vivem em condições socialmente desfavoráveis. Isso se observa entre os grupos mais vulneráveis, como os economicamente pobres, os grupos étnicos minoritários ou demais grupos que sofrem algum tipo de discriminação.8 8 Nesse contexto, cabe dispor que: “A nossa forma de viver, a nossa forma de produção animal, nossa relação com a natureza vão determinar, e isso é consenso na literatura especializada, novas doenças ou o retorno de outras que já foram erradicadas. A intensidade da circulação de pessoas e a complexidade da evolução dessas doenças impedem o seu isolamento em uma classe social, utopia totalitária acalentada pelas elites. Uma pessoa de renda alta ou média que preza a sua saúde, corre para tomar uma vacina quando ouve falar de uma epidemia. Mas ela precisa entender que, na ausência de um sistema público de saúde, nunca estará segura. Para haver segurança, é preciso que qualquer pessoa sem dinheiro seja atendida de forma eficiente. A única segurança sanitária possível é a igualdade, o direito à saúde. Se eu dependo de uma empresa privada, que visa o lucro, que pode falir e, além de tudo, pode corromper as autoridades de controle, se eu dependo disso, eu não tenho segurança sanitária”. (VENTURA, 2016, p. 11).

Com isso, entende-se fundamental refletir sobre as desigualdades em saúde como parte - e reflexo - da globalização econômica neoliberal. Essas desigualdades se entrelaçam com outras relacionando, assim, as lutas no campo da saúde às lutas mais amplas, repercutindo nos interesses das minorias. É importante compreender que as doutrinas neoliberais que impactam na saúde global não se preocupam com as desigualdades, pelo contrário, as consideram efêmeras em seus discursos e interesses predominantes (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.).

Assim, a partir da concepção neoliberal, as desigualdades em saúde não são consideradas como uma problemática, de modo que se entende que as desigualdades são necessárias ou até mesmo inevitáveis. Em contrapartida, entende-se que “revelar as desigualdades anteriormente obscurecidas é o primeiro passo no caminho da ação para reduzi-las”. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014., p. 48).

Nesse ambiente de diálogo entre saúde e desigualdade social, tem-se os determinantes sociais da saúde (DDS). Consideram-se esses como indicadores de condições sociais e econômicas em que os indivíduos vivem, como em relação a habitação, salário, emprego, alimentação, saneamento básico, relações de classe, entre outros. A partir dessa definição, “fatores socioeconômicos - independentemente dos serviços de saúde existentes - aumentam ou diminuem o risco de os indivíduos contraíram doenças comuns”, como infecções respiratórias. (CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015., p. 94).

Esse conceito dos determinantes sociais possibilitou uma perspectiva diferenciada no campo da saúde. Com isso, o bem-estar da população não resulta apenas do acesso à saúde e aos serviços médicos, “mas, sobretudo, da influência das condições sociais que as pessoas nascem, crescem, trabalham e envelhecem”. (CUETO, 2015CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015., p. 94).

Contudo, mesmo que a importância dos determinantes sociais na saúde seja sólida e haja posicionamentos políticos que busquem favorecer e implementar ações relacionadas às iniquidades em saúde, os determinantes sociais tem sido escassamente utilizados na prática das políticas públicas dos governos. (BARRETO, 2017BARRETO, Mauricio de Lima. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.). Isso porque não há por parte dos governos o interesse em atender às necessidades das comunidades mais vulneráveis, predominando o individualismo e os interesses econômicos acima das problemáticas sociais que impactam na saúde.

No que se refere ao Brasil, o país é o sexto mais desigual do mundo, sendo o primeiro, junto ao Catar, dentre os países democráticos. Para a autora, “o Brasil não é um país pobre, mas é um país de pobres” (SCHWARCZ, 2020SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. Companhia das letras. 2020.). Com isso, pode-se observar no Brasil um cenário de desigualdade que, como visto, impacta nas condições de saúde da população, sobretudo daqueles que já se encontram em situações mais vulneráveis.

Nesse ambiente de intensa desigualdade social, no campo da saúde há no Brasil um sistema público e universal, qual seja, o Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, esse sistema também tem sido vítima dos impactos do neoliberalismo, em um cenário de congelamento de gastos públicos e desfinanciamento9 9 Nessa linha, para Deisy Ventura: “Já vinha acontecendo o processo de privatização velada do nosso SUS. Já vinham ocorrendo distorções, principalmente isenções fiscais concedidas a empresas que foram estimadas em um quarto do valor investido no SUS”. (VENTURA, 2016, p. 8). .

Para Ventura (2016)VENTURA, Deisy. “Saúde é para gastar, não para dar lucro” [Entrevista a Adriana Cardoso]. Revista Dr! São Paulo, n. 90, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002869077 Acesso em: 22/12/2020.
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, a implantação do SUS nunca foi concluída. Isso devido ao subfinanciamento, pois o SUS nunca recebeu financiamento e suporte suficiente para que fosse plenamente implementado com a universalidade do acesso e a ideia de ser para todos. A autora indica, nesse sentido, que quando se subfinancia um sistema desse nível e amplitude, se gera um círculo vicioso, no sentido de que o sistema não dá conta de atender toda a demanda e, como não dá conta, buscam-se outras alternativas. No entanto, ao fomentar essas outras alternativas, acabam por desfigurar as principais características do SUS.

Sendo assim, mesmo que esse sistema seja universal e público, nos últimos anos o gasto público com saúde não tem sido capaz de manter a rede completa do SUS e sequer tem a possibilidade de fazer investimentos para melhorias. O Brasil está em 37º lugar em gasto per capita em saúde na lista da OCDE e, além disso, o gasto público per capita é superado pelo gasto privado, mesmo sendo o único país com um sistema universal de saúde, o que demonstra claramente o desfinanciamento do SUS. (FLEURY, 2020FLEURY, Sônia. O Vírus, os Parasitas e os Vampiros: Covid-19, desmonte do SUS e a EC 95. 2020. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/03/o-virus-os-parasitas-e-os-vampiros-covid-19-desmonte-do-sus-e-a-ec-95/. Acesso em: 25/07/2020.
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).

Ainda, em dezembro de 2016 foi aprovada a Emenda Constitucional 95, congelando os gastos públicos em saúde e, desde então, o orçamento para a área da saúde tem diminuído cada vez mais. Em 2019 a perda de investimentos na área resultou em R$ 20 bilhões. Essa queda de investimentos refletiu no desmonte de programas como o Mais Médicos, a Farmácia Popular, e impactou na distribuição de medicamentos para pacientes crônicos, dentre outros. (FLEURY, 2020FLEURY, Sônia. O Vírus, os Parasitas e os Vampiros: Covid-19, desmonte do SUS e a EC 95. 2020. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/03/o-virus-os-parasitas-e-os-vampiros-covid-19-desmonte-do-sus-e-a-ec-95/. Acesso em: 25/07/2020.
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).

Esse desmonte na área da saúde se reflete na atual pandemia do Covid-19 (ou “novo coronavírus”), vírus altamente contagioso que se espalhou pelo mundo, fazendo com que a Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual tem atuado no sentido de orientar os países nas medidas de enfrentamento, decretasse a situação de “pandemia”. Entretanto, não são todos os países que tem seguido as orientações da OMS, sendo que alguns têm adotado medidas mais restritivas, enquanto outros optam pela flexibilização10 10 Foi nesse contexto que o secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou os países - sem mencioná-los individualmente - que rejeitaram os fatos sobre a pandemia do coronavírus e ignoraram as orientações da OMS. Alertou, ainda, que desde o início da pandemia a OMS forneceu informações e orientações científicas que deveriam ter sido a base de uma reação global coordenada, mas que, ao contrário, muitas recomendações foram ignoradas por diversos países. (G1, 2020a). Compartilhou do mesmo pensamento o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom, ao mencionar que muitos países estão agindo na direção errada. Ele também não citou especificamente algum país, mas lembrou que 50% do recorde de 230 mil novos contaminados - em julho de 2020 - eram de apenas dois países. (G1, 2020b). .

Em relação à pandemia do coronavírus, a OMS foi alertada em 31 de dezembro de 2019 sobre casos de pneumonia na cidade de Wuhan na China e, em 7 de janeiro de 2020, autoridades chinesas confirmaram a identificação de um novo tipo de coronavírus (SARS-CoV-2). O surto causado pela doença foi declarado como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em 30 de janeiro de 2020 pela OMS, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional (RSI), sendo declarado como uma pandemia em 11 de março de 2020. (PAES-SOUSA; SILVEIRA; TAVARES, 2020PAES-SOUSA, Rômulo; SILVEIRA, Fabrício; TAVARES, Amarílis B. Proteção Social e COVID-19: a resposta do Brasil e das maiores economias da América Latina. Revista NAU Social - v. 11, n. 20, 2020. Disponível em: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/5/4/proteo-social-e-covid-19-a-resposta-do-brasil-e-das-maiores-economias-da-amrica-latina. Acesso em: 15/07/2020.
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).

Nesse contexto, ressalta-se que mesmo em um cenário de precarização e falta de financiamento, é o SUS que têm salvado a vida dos brasileiros no enfrentamento ao Covid-19, sobretudo a partir da atuação dos trabalhadores da saúde que estão na linha de frente. Infelizmente um dos reflexos da falta de investimentos na saúde é sentido por esses profissionais, com a falta de equipamentos de segurança, de respiradores e de condições adequadas de trabalho em meio a pandemia, por exemplo.

De fato, a falta de investimento no âmbito da saúde tem se refletido diretamente no combate a pandemia e na atuação dos profissionais da saúde. Isso pode se visualizar claramente pelo fato de que profissionais da saúde de diversos lugares do país denunciaram a falta de equipamentos de proteção individual nos hospitais de enfrentamento ao covid-19. O Conselho Federal de Enfermagem já havia recebido quase 3,6 mil denúncias de falta, escassez ou má qualidade dos equipamentos de proteção individual como máscaras, luvas e aventais, enquanto a Associação Médica Brasileira já acumulou quase três mil denúncias em 611 municípios. (COFEN, 2020COFEN. Profissionais da saúde reclamam da falta de equipamentos de proteção individual. 2020. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/profissionais-da-saude-reclamam-da-falta-de-equipamentos-de-protecao-individual_78970.html Acesso em: 22/12/2020;
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).

Diante do exposto, em tempos de pandemia a discussão sobre saúde a nível global se torna ainda mais urgente e o diálogo entre saúde e desigualdade social se mostra necessário, a fim de refletir sobre um problema que não é novo, mas tem sido constantemente negligenciado. A pandemia do coronavírus tem afetado diferentes pessoas de forma severa, entretanto, as condições de saúde dos indivíduos e de acesso à saúde variam em diversos fatores, como visto, assim como as políticas recomendadas, como as de isolamento, lamentavelmente, não podem ser seguidas por todos.

Conforme se observou, a saúde e a desigualdade social dialogam em um cenário em que ricos tem amplo acesso à saúde, condições de vida saudáveis, saneamento básico, acesso à alimentação e água potável, à produtos de higiene e limpeza, enquanto pessoas desfavorecidas, como as de comunidades periféricas, não tem as mesmas condições de vida, de saúde, de trabalho, moradia, alimentação, etc.

É nesse cenário de desigualdade que as favelas brasileiras se inserem em meio à pandemia do Covid-19. Essas comunidades já se encontravam em condições mais precárias antes da atual crise de saúde e, como abordado, essas condições impactam na saúde da população. Isso tudo se agravou com a pandemia, motivo pelo qual é importante investigar os desafios que têm se colocado às favelas brasileiras e como o governo brasileiro, enquanto órgão responsável pelas ações federais de combate à pandemia, têm se posicionado, sobretudo em relação às favelas e as políticas públicas elaboradas (ou não).

2 Revisitando o “Direito de Pasárgada” e a (des)proteção das favelas no Brasil: reflexões sobre o enfrentamento à pandemia do Covid-19

A discussão sobre saúde global tem se tornado cada vez mais necessária às diferentes áreas e campos de pesquisa e investigação. Além disso, a atual pandemia do Covid-19 trouxe a urgência de uma reflexão sobre vários problemas relacionados à saúde e aos múltiplos fatores que influenciam nesse campo, destacando-se entre eles, a relação entre desigualdade social e a saúde da população.

Conforme se observou, as condições econômicas-sociais-culturais-comportamentais de uma população influenciam no campo da saúde. Nesse ambiente, aqueles que tem melhores condições de vida e um amplo acesso aos serviços básicos e bens necessários à uma vida digna, tem condições de vida mais saudáveis em relação àqueles que não tem um mínimo de acesso a esses mesmos bens.

Em meio a esse cenário de desigualdade social, as pessoas que vivem em comunidades periféricas são constantemente invisibilizadas pelo Poder Público no que tange ao enfrentamento dessas desigualdades. Quando uma pandemia ocorre, as populações mais vulneráveis são as mais afetadas, pois não tem a mesma resposta à doença que aquelas pessoas que vivem em condições privilegiadas.

Nesse sentido, conforme se ressaltou, com a ascensão das agendas neoliberais o campo da saúde foi precarizado. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.). Desde a década de 1980, o mundo tem vivido em constante estado de crise, à medida em que o neoliberalismo foi se impondo enquanto versão dominante do capitalismo. A pandemia vem apenas agravar a crise que a população mundial tem sido sujeita. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020.). Com isso, ocorreram privatizações e cortes nos gastos referentes à saúde, assim como a predominância dos interesses econômicos em detrimento dos aspectos sociais e da proteção das populações marginalizadas, como as favelas.

A realidade que muitas pessoas enfrentam no Brasil e, sobretudo, nas favelas, é a de viver em uma casa com poucos cômodos, dividindo o espaço com os demais membros da família11 11 Por exemplo: Dados produzidos pela Casa Fluminense, a partir do Censo 2010 e do Índice de Progresso Social 2018, apontam que 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro têm mais de 3 pessoas por quarto. O município de Japeri, na Baixada Fluminense, possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. A favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, Cidade de Deus, Zona Portuária e Santa Cruz. (CASA FLUMINENSE, 2020, p. 1). . Entre esses, é comum se ter idosos e crianças, pessoas do grupo de risco, que não tem como se isolar dos demais familiares. Isso também acontece com as pessoas que necessitam trabalhar para sobreviver e manter a família12 12 “O que a gente percebe é que existem dois países: o Brasil que dá para fazer quarentena, trabalhar em home-office, usar álcool em gel e máscara, e um outro em que as pessoas estão morando em cima do córrego e não tem acesso à água”, disse um dos moradores. (CNN, 2020). (CNN, 2020CNN. Moradores de favelas relatam a dura realidade durante a crise do coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/05/03/moradores-de-favelas-relatam-suas-realidades-durante-a-crise-do-coronavirus Acesso em: 21/12/2020;
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).

Nesse cenário, o isolamento social, medida de extrema importância no combate à pandemia, não é possível para muitos brasileiros13 13 “Porque como é que um idoso vai entrar em uma situação de isolamento em uma casa com dez pessoas e dois cômodos? Esse isolamento é um isolamento para 'gringo ver', para rico. O pobre não tem condição de fazer. Vamos ter muitas perdas nas favelas, infelizmente” alertou Gilson Rodrigues em entrevista, líder comunitário de Paraisópolis. Ele segue, ainda, mencionando que muitos moradores da favela têm ficado sem água por muitos dias o que dificulta outra medida recomendada pelo governo, de higienização adequada contra o vírus. (BBC, 2020). - entre outras medidas que também não são possíveis, sobretudo considerando que parte da população sequer tem acesso à água e saneamento básico14 14 Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população. (SANTOS, 2020, p. 15). . Nesse momento, então, é importante que o governo atue de forma efetiva a partir de políticas públicas para atendimento e acolhimento dessas pessoas que se encontram em condições mais vulneráveis15 15 Nesse sentido, conforme pesquisa da Casa Fluminense “o contexto do adensamento populacional excessivo nas periferias” alerta para a problemática de que muitos moradores não tem condições de seguir as recomendações de isolamento social orientadas pela OMS, posto que morar em casas com quartos com mais de três pessoas é a realidade de muitas famílias das favelas brasileiras. .

A partir disso, a fim de se observar o cenário da pandemia nas favelas brasileiras e os desafios que tem surgido, cabe revisitar a obra “O direito dos oprimidos” de Boaventura de Sousa Santos. Isso porque o autor tem como centro de sua investigação uma favela brasileira e seu modo de organização à época, diante da omissão do Estado, que se repete, de certa forma, até os dias atuais.

Em um estudo realizado na década de 1970, em plena ditadura militar brasileira, Boaventura de Sousa Santos fez uma análise sociológica do direito informal numa favela do Rio de Janeiro, a favela do Jacarézinho, a qual o autor deu o nome fictício de Pasárgada. O Direito de Pasárgada, como se refere o autor, tem como agência central a Associação de Moradores, que foi a organização responsável pelas lutas dos moradores da favela, a fim de buscar melhores condições de habitação, de ordem e segurança nas relações entre os moradores. (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito, parte I. São Paulo: Cortez, 2014.).

Nesse sentido, o Direito de Pasárgada visava resolver conflitos intraclassistas num espaço social considerado “marginal”. Com isso, representava uma forma de tentar minimizar os efeitos da aplicação do direito capitalista de propriedade no seio das favelas, a partir da atuação da organização eleita pelos próprios moradores, devido à inacessibilidade estrutural do sistema jurídico estatal e ao caráter ilegal das favelas como bairros urbanos. (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito, parte I. São Paulo: Cortez, 2014.).

A associação dos moradores era responsável por encaminhar e resolver os litígios que envolviam os moradores, de modo a evitar maiores conflitos e buscar uma organização na favela desde dentro. No decorrer da obra, o autor traz com detalhes as características do Direito de Pasárgada e da atuação da associação na resolução dos litígios e nos demais assuntos que envolviam os moradores. (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito, parte I. São Paulo: Cortez, 2014.).

O Direito de Pasárgada reflete as condições que os moradores da favela vivenciavam - e vivenciam - diante da ausência do Estado que reproduz formas de exclusão social. O que se quer relembrando o Direito de Pasárgada é demonstrar que, mesmo décadas após esse estudo, ainda resiste a ausência do Estado nas favelas - mesmo que não nos mesmos moldes, considerando as transformações socias da presente época - sobretudo no que se refere à proteção dos moradores enquanto sujeitos de direitos como os moradores do “asfalto”.

A reflexão que se quer colocar, é no sentido de que durante anos as favelas brasileiras foram colocadas - e seguem sendo - à mercê da própria sorte, em condição de vulnerabilidade e desigualdade social. Enquanto no “asfalto” se tem melhores condições de vida e desenvolvimento, saneamento básico, acesso à água potável, entre outros, assim como se tem a atenção do Estado, nas favelas os moradores não tem as mesmas condições.

Em tempos de pandemia a história se repete. Como em Pasárgada, as favelas atualmente têm se visto na necessidade de se organizar por conta própria, agora no que se refere ao combate ao coronavírus, considerando que o Estado não tem elaborado políticas públicas de atendimento aos milhões de moradores que se encontram em situação de vulnerabilidade. Assim, cabe investigar como têm se dado o enfrentamento ao covid-19 nas favelas brasileiras e em que medida o “Direito de Pasárgada” ainda pode ser observado nos dias atuais.

No que diz respeito à atuação do governo brasileiro diante da pandemia, pode-se mencionar que desde o início tem-se priorizado as questões econômicas, menosprezando os impactos da pandemia e as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde, o que se pode visualizar a partir da atuação do próprio Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o qual afirmou em alguns momentos que “o Brasil não pode parar”, que “o brasileiro pula no esgoto e não pega nada”16 16 “O Presidente disse, sem apresentar embasamentos, que brasileiro não será contaminado na mesma magnitude dos outros países porquê de alguma forma é diferente”. (EXAME, 2020). (EXAME, 2020EXAME. O Brasileiro não pega nada, diz Bolsonaro sobre coronavírus. 2020. Disponível em: https://exame.com/brasil/o-presidente-sou-eu-diz-bolsonaro-sobre-defesa-de-mourao-por-isolamento/. Acesso em: 07/07/2020.
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), e que os governadores que pregam isolamento tem “medinho” do vírus (UOL, 2020UOL. Bolsonaro diz que governadores que pregam isolamento tem “medinho” do vírus. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/02/bolsonaro-diz-que-governadores-que-pregam-isolamento-tem-medinho-do-virus.htm. Acesso em: 07/07/2020.
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), em claro desrespeito e irresponsabilidade perante à população que tem enfrentado diariamente os impactos da pandemia17 17 Na presente crise humanitária, os governos de extrema-direita ou de direita neoliberal falharam mais do que os outros na luta contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para chicana política. Sob o pretexto de salvar a economia, correram riscos irresponsáveis pelos quais, esperamos, serão responsabilizados. Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento. Os exemplos mais marcantes são a Inglaterra, os EUA, o Brasil, a Índia, as Filipinas e a Tailândia. (SANTOS, 2020, p. 26). .

Para a autora Schwarcz (2020)SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. Companhia das letras. 2020., é necessário que se mostre para a população brasileira a realidade da doença e da pandemia que a sociedade mundial está enfrentando. No momento em que não se tem diretrizes claras por parte do governo e o Presidente da República se posiciona de forma contrária às recomendações oficiais, inclusive apoiando aglomerações e fazendo parte delas, não há argumentos que deem conta de se opor ao negacionismo de parte da população que acaba acreditando e, para além disso, reproduzindo essa visão. Nesse sentido, segue a autora:

A desigualdade tem muitas outras dimensões e a pandemia escancara as nossas. Ela chegou ao país de avião, por meio de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas - tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que o vírus chegou com força nas periferias, nos subúrbios, nas comunidades e favelas espalhadas pelo país. Em São Paulo a pandemia já é muito mais concentrada na periferia do que nos bairros centrais. No Rio de Janeiro, em Manaus e em Fortaleza, idem, e em Salvador o perfil parece estar se repetindo. Além do mais, dados vêm mostrando como ela tem incidido sobretudo na população negra, a mais afetada pela pandemia da covid-19. (SCHWARCZ, 2020SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. Companhia das letras. 2020., p. 4).

Dessa maneira, a fim de identificar as medidas de combate à pandemia adotadas pelo governo federal em relação às favelas, foi realizada uma pesquisa no portal do governo, a partir das publicações diárias que são lançadas no site com atualizações referentes às medidas adotadas no enfrentamento ao coronavírus. Em um segundo momento, tendo como base o relatório de uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela, foi possível identificar os principais desafios impostos em tempos de pandemia aos moradores das favelas brasileiras, conforme exposto a seguir.

Método e resultados

A metodologia que orientou a presente pesquisa é de caráter dedutivo. Em relação ao procedimento, optou-se pelo estudo de caso, a partir da investigação sobre as medidas de combate à pandemia adotadas pelo governo federal em relação às favelas brasileiras. Para tanto, enquanto técnica de pesquisa, com enfoque misto - quantitativo e qualitativo -, utilizou-se a pesquisa e análise de dados, primeiramente extraídos do portal oficial do governo federal brasileiro18 18 Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020. , de modo a identificar as medidas lançadas (ou não) e, posteriormente, do relatório publicado pelo Instituto Data Favela, identificando os principais desafios impostos aos moradores das favelas em tempos de pandemia.

Diante disso, o termo utilizado para pesquisa nas publicações foi “favela”, entre as publicações diárias dos meses de março a junho de 2020. Como as publicações são divididas por mês, a pesquisa foi feita em todas as páginas das publicações dos meses mencionados. Dentre todas as publicações analisadas, foram encontradas no total oito menções ao termo pesquisado, sendo que dessas apenas uma diz respeito à promoção de ação do governo federal no combate à pandemia nas favelas brasileiras, conforme o quadro a seguir:

Quadro 01
Termo favela nas publicações diárias do governo federal sobre ações realizadas na pandemia

Por conseguinte, a fim de identificar os desafios que as favelas brasileiras têm enfrentado durante a pandemia, utilizou-se como base de investigação o relatório de uma pesquisa realizada entre 19 e 22 de junho pelo instituto Data Favela/Locomotiva, abrangendo 239 favelas, publicado em 24 de junho de 2020. A partir da análise do documento publicado, foram identificados e extraídos os principais fatores investigados, expostos no quadro a seguir.

Quadro 02
Pesquisa sobre a pandemia realizada pelo Instituto Data Favela/Locomotiva em 239 favelas brasileiras

Discussão

Conforme pode-se extrair dos dados pesquisados no quadro 1, há apenas uma menção ao termo “favela” que se refere à ação concreta do governo federal no enfrentamento ao coronavírus nas favelas. Isso se deu no dia 05 de junho de 2020, sendo essa a primeira medida lançada pelo governo federal em relação ao coronavírus nessas comunidades desde o início da pandemia no país, em fevereiro.

Essa ação trata de duas estratégias que visam reforçar a assistência à população pelo SUS, sendo uma delas em favelas. A partir dessa ação, o Ministério da Saúde vai repassar recursos financeiros aos municípios que criarem Centros Comunitários de Referência e Centros de atendimento para identificarem e tratarem os casos da doença. Há uma previsão de investimento de R$ 1,2 bilhão. (BRASIL, 2020BRASIL. Medidas adotadas pelo governo federal no combate ao coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020. Acesso em: 07/07/2020.
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). Entretanto, esta ação ainda depende de outras medidas para ser efetivada e trazer resultados no combate à pandemia nas favelas.

Chama atenção o fato de que o governo federal sequer mencionou as favelas nas medidas concretas de enfrentamento ao coronavírus durante os meses iniciais da pandemia, nas publicações pesquisadas, assim como não agiu no sentido de propor ações e estratégias considerando as peculiaridades desses locais. Isso se reflete diretamente na vida de milhões de pessoas que vivem nas favelas brasileiras e não tem tido o auxílio do governo federal, nem condições de seguir as recomendações das autoridades de saúde, como as de isolamento e quarentena19 19 “As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga. É evidente que são menos discriminatórias que outras violências cometidas na nossa sociedade contra trabalhadores empobrecidos, mulheres, trabalhadores precários, negros, indígenas, imigrantes, refugiados, sem abrigo, camponeses, idosos, etc. Mas discriminam tanto no que respeita à sua prevenção, como à sua expansão e mitigação”. (SANTOS, 2020, p. 22). .

Nesse cenário, conforme se observou, o SUS tem passado por uma situação de subfinanciamento com consequente precarização nos serviços, em um ambiente em que prevalecem as medidas de caráter econômico em detrimento das sociais. Em meio a pandemia, momento em que se esperavam ações concretas e investimento do governo no setor da saúde, pode-se observar que essas ações não estão sendo lançadas, sobretudo àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade nas favelas brasileiras. Isso porque dentre os meses pesquisados o governo apenas se referiu à promoção de ações nas favelas em junho, a partir de uma medida que depende de outros fatores para a plena efetivação.

No que tange ao quadro 2, a partir desse foram identificados diversos fatores que se observam nas favelas e influenciam no combate ao coronavírus. Com isso, verificou-se que atualmente em torno de 13,6 milhões de brasileiros vivem nas favelas. Dentre esses, muitos vivem em domicílios com 4 ou mais pessoas e com no máximo 2 quartos. Esses moradores, em grande maioria, não têm plano de saúde e tem sobrevivido com menos da metade da renda, sem condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e pagas contas básicas se não tivessem ajuda e doações de terceiros. Além disso, muitos moradores mesmo pedindo o auxílio emergencial não conseguiram recebe-lo.

Demais dados identificados na pesquisa (DATA FAVELA, 2020DATA FAVELA. Pesquisa Pandemia na favela. 2020. Disponível em: https://www.slideshare.net/ILocomotiva/pandemia-na-favela. Acesso em: 10/07/2020.
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) e não expostos no quadro 2, demonstram que a saúde dos parentes mais velhos e a renda lideram a preocupação dos moradores das favelas. Outro fator apontado é em relação aos empregos, com o que se concluiu que “o emprego formal entre os moradores economicamente ativos na favela é metade do que dos moradores do asfalto”. Já o desemprego é o dobro.

Pelo que se pode observar, as dificuldades enfrentadas pelos moradores das favelas brasileiras são severas, demonstrando a desigualdade social presente na sociedade em que aqueles que se encontram em comunidades periféricas não tem o mínimo de auxílio e atenção do Poder Público, que se faz omisso por meses, mesmo diante de uma pandemia. Além disso, as dificuldades vivenciadas por esses moradores, segundo apurado na pesquisa, vão desde a impossibilidade de seguir as recomendações de isolamento social às questões econômicas que fazem com que muitas famílias dependam de doações para o básico do dia-a-dia.

Em tempos de globalização e ascensão do capitalismo, em que prevalecem os interesses econômicos, a atenção ao viés social em um mundo pandêmico é relegada ao esquecimento. Assim, os desafios que surgem àqueles que não se encontram acolhidos pelo sistema hegemônico são latentes e graves. Isso se visualiza na situação que milhões de moradores das favelas tem passado em meio a pandemia, em que as principais medidas de proteção não são possíveis, enquanto faltam alimentos e mantimentos básicos para muitas famílias.

Tem-se aí a visualização de uma interface entre desigualdade social e saúde. Enquanto parte da sociedade tem condições de seguir as recomendações das autoridades de saúde sem prejuízos, milhões de moradores das favelas além de não ter condições de seguir as recomendações de isolamento dentro de casa, se veem na necessidade de sair para buscar condições de sobreviver. Para eles não há escolha.

Na falta de ação do Estado, resta observar como as favelas têm se organizado no enfrentamento ao coronavírus, o que far-se-á, mesmo que brevemente, a partir do caso da favela de Paraisópolis em São Paulo, em que moradores protestaram cobrando políticas públicas por parte do governo federal, pelo fato de que em 60 dias de pandemia declarada no Estado não havia nenhuma política pública direcionada para as comunidades. Os moradores ainda reclamaram que vem tomando medidas por conta própria, diante da omissão do governo20 20 "Não queremos viver em dois Brasis: um que se salva na crise munido de álcool gel e o outro que fica abandonado à própria sorte, sem água, comida, emprego e sem saúde", disse em nota a União de Moradores. (G1, 2020). . (G1, 2020G1 SP. Moradores de Paraisópolis protestam por medidas contra o coronavírus nas favelas. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/18/moradores-de-paraisopolis-protestam-por-medidas-contra-o-coronavirus-nas-favelas.ghtml. Acesso em: 08/07/2020.
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).

Em meio às medidas que a comunidade de Paraisópolis tem tomado, 240 moradores foram capacitados para atuar como socorristas em bases de emergência. Ainda no começo da pandemia a comunidade se uniu contratando ambulâncias, médicos e enfermeiros a fim de minimizar os impactos da pandemia no cotidiano dos moradores. (G1, 2020G1 SP. Moradores de Paraisópolis protestam por medidas contra o coronavírus nas favelas. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/18/moradores-de-paraisopolis-protestam-por-medidas-contra-o-coronavirus-nas-favelas.ghtml. Acesso em: 08/07/2020.
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).

Para melhor organização e enfrentamento à doença, foram escolhidos 420 “presidentes de rua” voluntários, os quais são responsáveis por cuidar de regiões definidas sendo que cada um fica responsável por cerca de 50 casas. Esses voluntários tem a missão de monitorar os moradores da região a fim de identificar quando e se algum deles tem sintomas e precisa de atendimento médico. A atuação dos presidentes de rua também auxilia na identificação das famílias que estejam passando fome, as quais após identificadas passam a receber marmitas feitas por mulheres da comunidade. (G1, 2020G1 SP. Moradores de Paraisópolis protestam por medidas contra o coronavírus nas favelas. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/18/moradores-de-paraisopolis-protestam-por-medidas-contra-o-coronavirus-nas-favelas.ghtml. Acesso em: 08/07/2020.
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).

Como em Pasárgada, os moradores se viram na necessidade de buscar uma organização por conta própria, desde dentro, pois mais uma vez o Estado se mostrou omisso - mesmo diante da urgência do momento. Com isso, pode-se observar que o Direito de Pasárgada ainda resiste nas favelas brasileiras, que são constantemente invisibilizadas perante à sociedade.

Longe de romantizar a atuação dos moradores das favelas na pandemia - pois ela se dá num contexto de ausência do Estado, que deveria estar tomando a frente -, é essa atuação que têm efetivamente buscado atender aos moradores que se encontram em situação de vulnerabilidade e que não podem esperar a boa vontade dos governantes. Contudo, os impactos da pandemia também não esperam.

A partir dessa reflexão, pode-se observar que há uma clara ligação entre saúde global e desigualdade social, que se sobressai em tempos de pandemia. Do mesmo modo que no “asfalto” as condições de vida são melhores, as condições dos moradores de seguir as recomendações das autoridades de saúde também são, enquanto nas favelas não se têm o mesmo acesso aos bens necessário à uma vida digna e, quem dirá, às mesmas condições de seguir as medidas recomendadas em tempos de pandemia.

Por fim, conclui-se que o cenário de enfrentamento ao covid-19 no Brasil é preocupante, sobretudo em relação às favelas e aos moradores que são colocados à mercê da própria sorte. A urgência da situação requer respostas também urgentes, de modo a buscar minimizar os impactos da pandemia na vida das pessoas. Entretanto, infelizmente o Estado brasileiro têm se mostrado omisso diante do sofrimento de milhões de moradores das favelas brasileiras, que não tem tido as respostas necessárias por parte do governo. O “Direito de Pasárgada”, hoje, se reflete, de certa forma, na atuação dos moradores das favelas que têm se unido a fim de minimizar os impactos de um Estado omisso.

Conclusão

Conforme se observou, ocorreram diversas transformações com a globalização que impactaram também no campo da saúde. Com isso, houve a precarização de sistemas de saúde, fomentada pelas políticas neoliberais, a partir da privatização e do desfinanciamento dos sistemas públicos. Isso tudo afetou de sobremaneira as populações mais vulneráveis, que já viviam em condições precárias, as quais foram agravadas em meio à pandemia do Covid-19.

Nesse viés, em um cenário de precarização da saúde enquanto um direito humano, buscou-se demonstrar que as condições de saúde de uma população são influenciadas por múltiplos fatores, dentre eles os relacionados ao acesso aos bens necessários à uma vida digna, como o acesso à água potável, condições dignas de moradia, saneamento básico, entre outros. Considerando que o Brasil é um país de intensa desigualdade social e que o acesso a esses bens é dificultado àquelas comunidades que se encontram em condições de vulnerabilidade, os impactos na saúde se colocam de forma severa.

É o que acontece com as favelas brasileiras. Essas comunidades são constantemente invisibilizadas pelo Poder Público que não atua de forma efetiva a fim de minimizar os impactos da desigualdade social. Em tempos de pandemia, em que há a urgência de respostas no enfretamento ao Covid-19, mais uma vez há a omissão do governo federal.

A partir da investigação das publicações diárias no portal do governo federal, relacionadas às ações de enfrentamento à pandemia, pode-se concluir que desde o início da pandemia no país, em fevereiro, houve apenas uma política pública direcionada para as favelas, a qual ainda demanda de outras ações para ser efetivada.

Isso demonstra o quanto o “Direito de Pasárgada”, de Boaventura de Sousa Santos, ainda resiste no Brasil. Diante da omissão do governo, os moradores das favelas têm se visto na necessidade de organizar ações de enfrentamento à pandemia desde dentro, com a atuação de voluntários, como ocorreu na favela de Paraisópolis.

Além disso, com base nos dados extraídos do relatório da pesquisa realizada pelo instituto “Data Favela”, foi possível identificar os principais desafios relacionados ao Covid-19 nas favelas brasileiras. Restou clara, assim, a interface entre desigualdade social e saúde, em um ambiente em que milhões de moradores das favelas brasileiras não tem condições de seguir as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde, além de ter dificuldades econômicas e depender de doações de ONGs e parceiros.

Mesmo em tempos de pandemia, os ares do autoritarismo retornam, munidos de discursos negacionistas e irresponsáveis, em um cenário de intensificação das desigualdades sociais e precarização da saúde. Quem sofre são os milhões de brasileiros que se encontram em situação de vulnerabilidade e são constantemente invisibilizados pelo Poder Público. Para além da pandemia do Covid-19, preocupam as pandemias da exclusão, da desigualdade social e da inércia dos governos que priorizam os aspectos econômicos em detrimento dos sociais - mesmo diante de tantas vidas perdidas, afinal, “o Brasil não pode parar”.

  • 1
    Pesquisa apoiada pela CAPES.
  • 2
    Impôs-se a versão mais antissocial do capitalismo: o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global. Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais - sobretudo saúde, educação e segurança social- ao modelo de negócio do capital, ou seja, a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores. Este modelo põe de lado qualquer lógica de serviço público, e com isso ignora os princípios de cidadania e os direitos humanos. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020., p. 24).
  • 3
    É nesse sentido que dispõe o autor: “As epidemias de que o novo coronavírus é a mais recente manifestação só se transformam em problemas globais graves quando as populações dos países mais ricos do Norte global são atingidas. Foi isso que sucedeu com a epidemia da SIDA/AIDS. Em 2016, a malária matou 405 mil pessoas, a esmagadora maioria em África, e isso não foi notícia. Os exemplos podiam multiplicar-se. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020., p. 26).
  • 4
    A mudança de perspectiva que consiste em inserir a saúde no cenário global se deve a pelo menos duas alterações fundamentais: um crescente humanitarismo mundial que amplia a noção dos direitos humanos inalienáveis e a convicção de que a má saúde e qualquer outra carência evitável que afetam em conjunto de pessoas são um assunto que diz respeito a toda a humanidade; e o reconhecimento de que a saúde de uma parte do mundo tem impactos sobre a saúde e outros aspectos do bem-estar humano em outras partes do planeta. A saúde é hoje uma dimensão indivisível, um tema de todos, em que se entrelaçam questões complexas de política tanto nacional quanto internacional, aspectos econômicos entram em conflito com aspectos setoriais e em que é necessário tomar decisões e negociar em contextos de rápidas mudanças. (TOBAR; COITIÑO; KLEIMAN, 2017TOBAR, Sebastían; COITIÑO, Andrés; KLEIMAN, Alberto. Os Ministérios da Saúde e o desenvolvimento da Diplomacia da saúde. In: Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Org. Paulo Marchiori Buss e Sebastían Tobar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017., p. 589).
  • 5
    Direito à saúde é sistema público eficiente, de acesso universal e gratuito, não é pagar um plano de saúde e torcer para que ele cumpra o que promete. A cada corte no orçamento da saúde, eu vou transformando o direito à saúde em letra morta. (VENTURA, 2016VENTURA, Deisy. “Saúde é para gastar, não para dar lucro” [Entrevista a Adriana Cardoso]. Revista Dr! São Paulo, n. 90, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002869077 Acesso em: 22/12/2020.
    https://repositorio.usp.br/item/00286907...
    , p. 11).
  • 6
    Em síntese, pode-se entender o neoliberalismo enquanto a aceitação da ideologia do mercado - ou a promoção do mercado em todas as áreas da sociedade possíveis. Esse modelo se opõe ao governo em todos aspectos, com exceção aos mais essenciais, esperando que o governo não influa na área econômica. Enquanto ideologia traz a ideia de que o crescimento econômico é bom para todos e, para o bem dos cidadãos, os governos devem conferir a máxima autonomia possível para os agentes individuais, sobretudo às empresas. (COBURN; COBURN, 2014COBURN, David; COBURN, Elaine S. Saúde e desigualdades em saúde em um mundo globalizado neoliberal. In: Aspectos econômicos da Equidade em Saúde. Org. Di McIntyre e Gavin Mooney. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.).
  • 7
    Sobre o enfraquecimento e cortes no setor da saúde: “É sobretudo uma demanda do mercado, que quer abocanhar setores da saúde que eram públicos nesses países. Assim como o mercado precisa vender armas, construir muros, vender insumos de segurança. O que quero dizer é que cada uma dessas alterações de prioridade é acompanhada ou é causada por pressões do mercado. O momento que vivemos, no plano internacional e também no Brasil, é de enorme avanço do mercado, de império das necessidades do mercado. O mercado hoje é o rei. Os gestores, a classe política e os atores econômicos percebem a saúde coletiva como um grande mercado. (VENTURA, 2016VENTURA, Deisy. “Saúde é para gastar, não para dar lucro” [Entrevista a Adriana Cardoso]. Revista Dr! São Paulo, n. 90, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002869077 Acesso em: 22/12/2020.
    https://repositorio.usp.br/item/00286907...
    , p. 7).
  • 8
    Nesse contexto, cabe dispor que: “A nossa forma de viver, a nossa forma de produção animal, nossa relação com a natureza vão determinar, e isso é consenso na literatura especializada, novas doenças ou o retorno de outras que já foram erradicadas. A intensidade da circulação de pessoas e a complexidade da evolução dessas doenças impedem o seu isolamento em uma classe social, utopia totalitária acalentada pelas elites. Uma pessoa de renda alta ou média que preza a sua saúde, corre para tomar uma vacina quando ouve falar de uma epidemia. Mas ela precisa entender que, na ausência de um sistema público de saúde, nunca estará segura. Para haver segurança, é preciso que qualquer pessoa sem dinheiro seja atendida de forma eficiente. A única segurança sanitária possível é a igualdade, o direito à saúde. Se eu dependo de uma empresa privada, que visa o lucro, que pode falir e, além de tudo, pode corromper as autoridades de controle, se eu dependo disso, eu não tenho segurança sanitária”. (VENTURA, 2016VENTURA, Deisy. “Saúde é para gastar, não para dar lucro” [Entrevista a Adriana Cardoso]. Revista Dr! São Paulo, n. 90, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002869077 Acesso em: 22/12/2020.
    https://repositorio.usp.br/item/00286907...
    , p. 11).
  • 9
    Nessa linha, para Deisy Ventura: “Já vinha acontecendo o processo de privatização velada do nosso SUS. Já vinham ocorrendo distorções, principalmente isenções fiscais concedidas a empresas que foram estimadas em um quarto do valor investido no SUS”. (VENTURA, 2016VENTURA, Deisy. “Saúde é para gastar, não para dar lucro” [Entrevista a Adriana Cardoso]. Revista Dr! São Paulo, n. 90, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002869077 Acesso em: 22/12/2020.
    https://repositorio.usp.br/item/00286907...
    , p. 8).
  • 10
    Foi nesse contexto que o secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou os países - sem mencioná-los individualmente - que rejeitaram os fatos sobre a pandemia do coronavírus e ignoraram as orientações da OMS. Alertou, ainda, que desde o início da pandemia a OMS forneceu informações e orientações científicas que deveriam ter sido a base de uma reação global coordenada, mas que, ao contrário, muitas recomendações foram ignoradas por diversos países. (G1, 2020aG1. Secretário-geral da ONU crítica países que ignoram fatos da Covid-19 e orientação da OMS. 2020a. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/03/secretario-geral-da-onu-critica-paises-que-ignoram-fatos-da-covid-19-e-orientacao-da-oms.ghtml Acesso em: 21/12/2020;
    https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/...
    ). Compartilhou do mesmo pensamento o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom, ao mencionar que muitos países estão agindo na direção errada. Ele também não citou especificamente algum país, mas lembrou que 50% do recorde de 230 mil novos contaminados - em julho de 2020 - eram de apenas dois países. (G1, 2020bG1. Diretor da OMS diz que muitos países estão indo na direção errada no combate a pandemia. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/07/13/diretor-da-oms-diz-que-muitos-paises-estao-indo-na-direcao-errada-no-combate-a-pandemia.ghtml Acesso em: 23/12/2020;
    https://g1.globo.com/jornal-nacional/not...
    ).
  • 11
    Por exemplo: Dados produzidos pela Casa Fluminense, a partir do Censo 2010 e do Índice de Progresso Social 2018, apontam que 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro têm mais de 3 pessoas por quarto. O município de Japeri, na Baixada Fluminense, possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. A favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, Cidade de Deus, Zona Portuária e Santa Cruz. (CASA FLUMINENSE, 2020CASA FLUMINENSE. Quartos com mais de 3 pessoas é a realidade de 300 mil casas na região metropolitana do Rio. 2020. Disponível em: https://casafluminense.org.br/quartos-com-mais-de-3-pessoas-e-a-realidade-de-300-mil-casas-na-regiao-metropolitana-do-rio/ Acesso em: 22/12/2020;
    https://casafluminense.org.br/quartos-co...
    , p. 1).
  • 12
    “O que a gente percebe é que existem dois países: o Brasil que dá para fazer quarentena, trabalhar em home-office, usar álcool em gel e máscara, e um outro em que as pessoas estão morando em cima do córrego e não tem acesso à água”, disse um dos moradores. (CNN, 2020CNN. Moradores de favelas relatam a dura realidade durante a crise do coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/05/03/moradores-de-favelas-relatam-suas-realidades-durante-a-crise-do-coronavirus Acesso em: 21/12/2020;
    https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/20...
    ).
  • 13
    “Porque como é que um idoso vai entrar em uma situação de isolamento em uma casa com dez pessoas e dois cômodos? Esse isolamento é um isolamento para 'gringo ver', para rico. O pobre não tem condição de fazer. Vamos ter muitas perdas nas favelas, infelizmente” alertou Gilson Rodrigues em entrevista, líder comunitário de Paraisópolis. Ele segue, ainda, mencionando que muitos moradores da favela têm ficado sem água por muitos dias o que dificulta outra medida recomendada pelo governo, de higienização adequada contra o vírus. (BBC, 2020BBC. Favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil, diz líder de Paraisópolis. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51954958 Acesso em: 22/12/2020;
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51...
    ).
  • 14
    Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020., p. 15).
  • 15
    Nesse sentido, conforme pesquisa da Casa Fluminense “o contexto do adensamento populacional excessivo nas periferias” alerta para a problemática de que muitos moradores não tem condições de seguir as recomendações de isolamento social orientadas pela OMS, posto que morar em casas com quartos com mais de três pessoas é a realidade de muitas famílias das favelas brasileiras.
  • 16
    “O Presidente disse, sem apresentar embasamentos, que brasileiro não será contaminado na mesma magnitude dos outros países porquê de alguma forma é diferente”. (EXAME, 2020EXAME. O Brasileiro não pega nada, diz Bolsonaro sobre coronavírus. 2020. Disponível em: https://exame.com/brasil/o-presidente-sou-eu-diz-bolsonaro-sobre-defesa-de-mourao-por-isolamento/. Acesso em: 07/07/2020.
    https://exame.com/brasil/o-presidente-so...
    ).
  • 17
    Na presente crise humanitária, os governos de extrema-direita ou de direita neoliberal falharam mais do que os outros na luta contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para chicana política. Sob o pretexto de salvar a economia, correram riscos irresponsáveis pelos quais, esperamos, serão responsabilizados. Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento. Os exemplos mais marcantes são a Inglaterra, os EUA, o Brasil, a Índia, as Filipinas e a Tailândia. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020., p. 26).
  • 18
  • 19
    “As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga. É evidente que são menos discriminatórias que outras violências cometidas na nossa sociedade contra trabalhadores empobrecidos, mulheres, trabalhadores precários, negros, indígenas, imigrantes, refugiados, sem abrigo, camponeses, idosos, etc. Mas discriminam tanto no que respeita à sua prevenção, como à sua expansão e mitigação”. (SANTOS, 2020SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Ed. Almedina, 2020., p. 22).
  • 20
    "Não queremos viver em dois Brasis: um que se salva na crise munido de álcool gel e o outro que fica abandonado à própria sorte, sem água, comida, emprego e sem saúde", disse em nota a União de Moradores. (G1, 2020G1 SP. Moradores de Paraisópolis protestam por medidas contra o coronavírus nas favelas. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/18/moradores-de-paraisopolis-protestam-por-medidas-contra-o-coronavirus-nas-favelas.ghtml. Acesso em: 08/07/2020.
    https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici...
    ).

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2020
  • Aceito
    11 Jan 2021
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