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Aspectos da reprodução sócio-jurídica do capitalismo financeirizado

Aspects of the socio-legal reproduction of the financialized capitalism

Resumo

O capitalismo financeirizado tem sido criticado pelo seu caráter predatório, fundamentando não só um diagnóstico que apresenta a dominação pessoal como uma característica da atual sociedade, mas a retomada do idealismo jurídico como estratégia de enfrentamento. A partir de uma leitura categorial das finanças, o objetivo do presente artigo é destacar a adequação da reprodução sócio-jurídica à acumulação capitalista, de tal modo que o estudo filológico da crítica marxiana possa contribuir para a renovação da crítica marxista do direito.

Palavras-chave:
Financeirização; Direito; Marx

Abstract

Financialized capitalism has been criticized for its predatory character, grounding not only a diagnosis that presents personal domination as a characteristic of current society, but the resumption of legal idealism as a strategy of confrontation. From a categorical reading of finance, the aim of this article is to highlight the adequacy of social-legal reproduction to capitalist accumulation, in such a way that the philological study of Marxian critique can contribute to the renewal of marxist critique of law.

Keywords:
Financialization; Law; Marx

Introdução

A crítica aos desmandos do setor financeiro tem sido recorrente, notadamente a partir da crise de 2008. Aproximando abordagens das mais variadas matrizes teóricas, as denúncias acerca da insaciabilidade dos rentistas bem como de suas privilegiadas estruturas políticas de favorecimento guiam o tom de debates nacionais e internacionais. Ainda assim, tamanho consenso não foi capaz de deslocar a hegemonia da dominação financeira. Pelo contrário. Mesmo após o emblemático ano de 2020, em que a pandemia da COVID-19 inicialmente derrubou as bolsas de todo o mundo, o mercado de capitais não só se recuperou como já avança a ponto de alimentar suspeitas de que uma nova bolha esteja no horizonte.

É por isso mesmo salutar o questionamento apresentado por algumas análises progressistas: não seria necessário ir além das discussões sobre a distribuição da riqueza? Não seria oportuno investigar fatores que não se deixam reduzir à denúnca contra os especuladores? Nas palavras de Mariana Mazzucato - no significativamente intitulado O valor de tudo -, “não basta criticar a especulação e a extração de valor a curto prazo e defender um sistema tributário mais progressivo que tenha como alvo a riqueza”. O motivo? “Deve-se fundamentar essas críticas em uma discussão diferente sobre criação de valor (...), é preciso reacender um debate sério a respeito da natureza e da origem do valor” (MAZZUCATO, 2020MAZZUCATO, Mariana. O valor de tudo. Produção e apropriação na economia global. São Paulo: Portofolio-Penguin, 2020.: 43). No âmbito do presente artigo, esse tipo de problematização está relativamente próximo da abordagem que sustentarei. Para além da fundamental discussão acerca do valor e, mais especificamente, da forma-valor1 1 Temas que Mazzucato, apesar do intento crítico de seu último livro, não aborda. Isso ocorre em razão de sua conceituação do valor como “produção de novos bens e serviços” (MAZZUCATO, 2020: 29), concepção ancorada em uma solução de compromisso entre teorias objetivas e subjetivas do valor. Como será destacado, o presente artigo movimenta-se pelo arcabouço teórico marxista. , interessa indagar: quais as consequências do diagnóstico do chamado “capitalismo de Wall Street” para a compreensão do papel do direito nos dias de hoje? De que modo a estrutura de pensamento subjacente à crítica ao “capitalismo parasitário” se relaciona com a retomada de uma concepção de emancipação que tem na luta por direitos uma de suas principais apostas?

Para responder a essas perguntas, inicialmente destacarei como grande parte das análises críticas do “assalto rentista” se vê enredada por um diagnóstico personalista, constituindo uma análise que volta a depositar as expectativas de emancipação humana no idealismo jurídico. Frente a isso, apresento o sentido geral daquilo que denomino de crítica categorial da dominação financeira, momento em que esta é compreendida enquanto mecanismo de controle e vigilância do capital social total. Minha hipótese é que, longe de constituir apenas uma exegese conceitual - o que ela também é -, a retomada da crítica da economia política em sua “média ideal” oferece um alicerce a partir do qual podem ser discutidos desdobramentos jurídicos particularmente importantes. Por fim, após destacar o amálgama entre capital portador de juros e “acumulação de direitos”, exponho como a reprodução sócio-jurídica2 2 A utilização do termo “sócio-jurídica” (e não “sociojurídica”) tem como objetivo tanto evitar o entendimento de que existiria uma separação entre “sociedade” e “direito” como enfatizar de que modo este afeta aquele. Busca-se, assim, enfatizar a posição dos termos, em que um está posto e o outro pressuposto (FAUSTO, 1987: 299, n. 29). A própria diferença de níveis postos e pressupostos “chama” ela mesma por uma teoria crítica da sociedade que almeje integrar análises de grande, médio e micro alcance da reprodução sócio-jurídica. possui uma plasticidade apta a garantir sua adequação à elasticidade da acumulação capitalista, movimento que aponta para a necessidade de um estudo mais aprofundado acerca das relações entre direito e dinheiro.

Nesse sentido, as próximas páginas pretendem contribuir para o desenvolvimento de leituras críticas do direito que, mesmo influenciadas pelos estudos de Pachukanis, procuram ir além das discussões sobre forma-jurídica e forma-mercadoria apresentadas em Teoria geral do direito e o marxismo (1924)3 3 É por isso mesmo sintomática a crítica feita por Vinícius Casalino ao “paradoxo” que circunda grande parte da leitura marxista que se debruça sobre a contribuição do jurista russo. Após salientar que “os apontamentos elaborados pelo autor russo foram tomados como corretos, adequados e, sobretudo, suficientes, e parou-se neles”, Casalino realça o aceite até certo ponto acrítico das categorias centrais da reflexão pachukaniana, sem que isso passasse por uma “necessária e inafastável avaliação crítico-metodológica da própria teoria de Pachukanis” (CASALINO, 2018: 2270 - destaques no original). . Apesar do grande sucesso deste livro, no prefácio à segunda edição o próprio autor considerava sua obra como um trabalho “que na melhor das hipóteses deveria servir de estímulo e de material para uma discussão posterior”, já que ele “foi escrito em grande parte a título de esclarecimento pessoal, daí seu caráter abstrato e sua forma de exposição compacta, em alguns pontos quase sumária; daí também sua unilateralidade” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.: 55). Essa“discussão posterior” é, hoje, um imperativo, não apenas em virtude da publicação de textos importantes - além do Urtext, os Grundrisse, as Notas sobre Wagner e os Resultados do processo imediato de produção merecem destaque, todos inacessíveis a Pachukanis - para a compreensão da crítica da economia política4 4 O esforço para “ir além de Pachukanis” - o que não significa abandoná-lo - atravessa a produção de inúmeros autores brasileiros: Celso Kashiura e Oswaldo Akamine (ambos seguindo as trilhas de Márcio Bilharinho Naves), Guilherme Leite Gonçalves, Joelton Nascimento, Ricardo Prestes Pazello, Vitor Bartoletti Sartori e o já mencionado Vinícius Casalino são nomes de destaque nessa empreitada. Um panorama geral das discussões travadas nesse contexto pode ser encontrado no Dossiê “Marxismo e direito: 90 anos de Teoria geral do direito e marxismo, de E. B. Pachukanis” (2015), organizado pela Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas (disponível em http://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/issue/view/17). , inacessíveis na época de Pachukanis, mas sobretudo devido ao fortalecimento do encantamento jurídico nas décadas que caracterizam o surgimento, aprofundamento e ampliação do neoliberalismo.

1. Personalização do problema e retomada do idealismo jurídico

Toda solução pressupõe um diagnóstico estruturado por alguma articulação conceitual. Em uma narrativa particularmente disseminada nos dias de hoje, parece ser razoável considerar o aumento da desigualdade social e a precarização do trabalho e de nossas vidas como consequências de um agente econômico bastante conhecido - o poder corporativo. Efetivamente, as corporações parecem governar nossas vidas: elas não só determinam o que comemos, assistimos e vestimos, como onde trabalhamos e o que fazemos. Presentes em todas as esferas de nossas ações e disputando espaço e poder com os Estados nacionais, os “gigantes corporativos” teriam à sua disposição uma “rede monstruosa e cheia de tentáculos” para impor seus interesses (DOWBOR, 2020DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.: 86). Assim, parece ser seguro dizer que “a ascensão dramática da corporação ao domínio é um dos eventos notáveis da história moderna” (BAKAN, 2005BAKAN, Joel. The corporation: the pathological pursuit of profit and power. New York: Free Press, 2005.: 05).

Nesse contexto, é digna de nota a publicação de uma pesquisa do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, significativamente intitulada “A Rede de Controle Corporativo Global”. Após analisarem como 43 mil corporações se relacionam, os autores do relatório final salientam a “estrutura de laços de gravata” que caracteriza as corporações transnacionais, em que “uma grande parte do controle flui para um pequeno núcleo de instituições financeiras estreitamente unidas” (VITALI; GLATTFELDER; BATTISTON, 2011VITALI, S.; GLATTFELDER, JB.; BATTISTON, S. “The Network of Global Corporate Control”. PLoS ONE 6 (10), 2011 (disponível em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0025995).
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: 01). Trata-se de uma “gigantesca estrutura”, uma “superentidade econômica” com 737 atores que controlam 80% do valor de todas as empresas transnacionais. Além disso, três quartos do referido núcleo é composto por intermediários financeiros. Não por acaso, esse imbricamento fez Ladislau Dowbor ressaltar que “não ver a conexão entre esta concentração de poder econômico e o poder político constitui ingenuidade ou evidente falta de realismo” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 46).

Evidências à parte, ainda parece ser importante considerar que nem tudo que aparece aos sentidos é, por si só, revelador da estrutura social subjacente ao mundo fenomênico. Como já salientava Karl Marx, para aquele que está “preso nas relações de produção capitalistas” (MEGA, II. 4.2: 847), as relações sociais não são transparentes, mas translúcidas. Daí a qualificação do capital portador de juros - em análise particularmente afeita à problemática das corporações - como “a mãe de todas as formas enlouquecidas do capital”, momento em que a loucura do “modo de representação capitalista [kapitalistische Vorstellungsweise] atinge o seu auge” (MEGA, II. 4.2: 522). É a partir dessa compreensão que Marx pode igualmente salientar que a distinção entre comprar e vender, tão comum na linguagem econômica cotidiana, nada mais seria do que “uma diferenciação que só aparece como essencial para quem desconhece por completo a conexão efetiva” (MEGA, II. 4.2: 664 - destaque no original).

A retomada desses argumentos é importante para compreender como essa situação alimenta discursos que se estruturam pelo apelo à “realidade” ou ao “real interesse” daqueles que “dominam” o mundo. Diante de uma vivência que se vê cada vez mais aprisionada, em que os indivíduos se veem impotentes frente à sociedade que os abarca, é especialmente atual o estudo da astrologia feito por Adorno, ao analisar uma coluna do jornal Los Angeles Times no início da década de 1950. Tendo em vista uma dependência social exacerbada - “a captura do indivíduo por inumeráveis canais de organização” (ADORNO, 2008aADORNO, Theodor W. As estrelas descem à Terra. São Paulo: Editora Unesp, 2008a.: 174-175) -, a “obviedade da dependência” é, ainda assim, particularmente difícil de ser enfrentada pelas pessoas. Ao invés de confrontar as causas sociais que levam à impotência individual, habilmente descrita em “A consciência da sociologia do conhecimento” como a “maquinaria anônima que anula o indivíduo” (ADORNO, 1963: 28), é particularmente mais eficaz engendrar uma ideologia para a dependência como mecanismo de justificação do pensamento paranoico: “essa pode ser uma das razões pelas quais há tanta inclinação a projetar a dependência sobre alguma outra coisa, seja uma conspiração de banqueiros de Wall Street, sejam constelações estrelares (ADORNO, 2008aADORNO, Theodor W. As estrelas descem à Terra. São Paulo: Editora Unesp, 2008a.: 176).

Não por acaso, Leo Löwenthal e Norbert Guterman destacaram - no clássico Profetas do engano (1949LÖWENTHAL, Leo; GUTERMAN, Norbert. Prophets of Deceit. A Study of the Techniques of the American Agitator. New York: Harper & Brothers, 1949.) - como os agitadores norte-americanos se valiam da exacerbação da conspiração como estratégia de desvio das tentativas de investigar os processos sociais que faziam emergir os discursos sobre, por exemplo, as “maquinações de Wall Street” (LÖWENTHAL; GUTERMAN, 1949LÖWENTHAL, Leo; GUTERMAN, Norbert. Prophets of Deceit. A Study of the Techniques of the American Agitator. New York: Harper & Brothers, 1949.: 24). Com isso se vê de que modo a síntese conspiratória como salvação diante do caos é a aparência do “mais efetivo” (ADORNO, 2003______. Gesammelte Schriften. Band 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003.: 209), um estratagema que, apesar de sua impropriedade para uma teoria crítica, ainda assim orienta uma compreensão bastante difundida das alterações econômicas e políticas que caracterizaram a reprodução social dos últimos cinquenta anos.

Pense-se na análise da chamada “financeirização da economia” a partir da distinção entre capitalismo produtivo e improdutivo. Ancorada em uma leitura que considera a chamada “riqueza real” como algo circunscrito ao processo de produção, a sequência argumentativa desse diagnóstico considera as finanças como uma atividade improdutiva e, consequentemente, parasitária. Ela seria sustentada “pela expansão quantitativa do capital portador de juros e pela sua extensão a toda a economia em detrimento da reestruturação do capital industrial” (FINE, 2010FINE, Ben. “Locating Financialisation”. Historical Materialism, v. 18, pp. 97-116., 2010.: 113 - destaque meu), de tal modo que seu fortalecimento destituiria a chamada “economia real” de seus recursos, culminando na “tendência de dominação geral dos sistemas especulativos sobre os sistemas produtivos” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 49).

Extravasando suas funções iniciais de financiamento das atividades ditas produtivas, o setor financeiro teria sido apropriado “por corporações financeiras que os usam para especular em vez de investir” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 32). Assim, as finanças passariam a usar e drenar o sistema produtivo, fazendo emergir uma espécie de “capitalismo cassino” que teria imposto a lógica de especulação e ganhos rápidos não só ao setor industrial, mas à sociedade como um todo5 5 Em O capitalismo se desloca, Dowbor mantém essa linha argumentativa: “instalou-se um caos financeiro planetário, com o impacto fundamental de que se ganha muito mais dinheiro com aplicações financeiras, basicamente especulação, do que com investimentos produtivos” (DOWBOR, 2020: 17). . O motivo por trás dessa alteração, defende-se, estaria na necessidade de saciar a acumulação pessoal e o consumo improdutivo da classe rentista mediante a apropriação de mais-valor por meio de inovações financeiras e da contínua expansão de práticas de alto risco (DOWBOR, 2017: 132). Portanto, nesta separação entre lucratividade e investimentos encontrar-se-iam as razões pelas quais a sociedade teria se desviado da produção de bens e serviços socialmente úteis que caracterizariam os chamados trinta anos gloriosos do pós-guerra: “a lógica da acumulação de capital mudou (...). O sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo” (DOWBOR, 2017: 91).

Com isso se compreende a razão pela qual a estrutura conceitual desse diagnóstico constantemente estabeleça como saída para os problemas levantados não a reflexão sobre a própria possibilidade da ordem social, mas a retomada de algo que teria sido perdido, o brilho de algo que não reluz mais, um “fora” que materializaria um “um novo pacto global pelo desenvolvimento inclusivo” (DOWBOR, 2020DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.: 67). A nostalgia gerada por esse movimento entre pontos rigidamente fixados - em que o retorno de um “real” Estado de Bem-Estar social, de um “capitalismo produtivo” é usualmente veiculado - constitui uma das principais características de um tipo de reflexão caracterizada por aquilo que Moishe Postone denomina anticapitalismo fetichizado (POSTONE, 1980POSTONE, Moishe. “Anti-Semitism and National Socialism: Notes on the German Reaction to “Holocaust”. New German Critique, n. 19, 1980, pp. 97-115, 1980.: 110).

Ao contrapor a abstração do poder dos rentistas, de um lado, e o concreto “trabalho duro” da classe trabalhadora, do outro, as análises do capitalismo especulativo de Wall Street constantemente se movimentam pela personalização das estruturas sociais. Ainda que esse processo de subjetivação de processos objetivos seja decorrente da própria socialização capitalista, e não apenas de uma falha subjetiva, ele implica a não reflexão sobre a “abstração real” que funda o campo social (ADORNO, 2019______. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.: 359). Nesse contexto, “a intransparência da objetividade alienada empurra os sujeitos de volta ao seu eu restrito e os ilude ao lhes colocar seu ser-em-si separado, o sujeito monadológico e sua psicologia, como o essencial” (ADORNO, 2015: 86).

No entanto, é exatamente desse modo que a narrativa hegemônica estrutura seu diagnóstico sobre a financeirização e seu componente político. Assim, o poder dos especuladores, como todo e qualquer poder pessoal, precisaria se manifestar de algum modo. Uma vez que o domínio do “poder financeiro global”, mais longevo que o chamado período “fordista”, é tamanho que “delimita o território ocupado pelas opções da política democrática” (BELLUZO; GALÍPOLI, 2017: 183), isso traria como consequência o esvaziamento da democracia e a captura da área jurídica, embasando uma nova dinâmica de poder (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 115). O chamado “Estado-biombo” traria à tona uma situação em que “as políticas impostas pelas corporações aparecem como iniciativas impopulares dos governos” (DOWBOR, 2020: 79), uma articulação institucional particularmente ardilosa:

O fato de os oligopólios poderem se referir a si mesmos como ‘os mercados’, ao mesmo tempo em que justamente não precisam se submeter a nenhum mercado, gera esta aparência de ausência de poder, ou de um poder abstrato, justamente ‘os mercados’. Mas quando se diz que ‘os mercados estão nervosos’, significa em geral que meia dúzia de especuladores estão insatisfeitos (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 113).

A referência à “meia dúzia de especuladores” é fundamental. Ela exemplifica o conteúdo de verdade daqueles que se fincam na imediatez da socialização, momento em que as relações sociais objetificadas se apresentam para o indivíduo “como um ser em si” (ADORNO, 2015______. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.: 75). Se algumas abordagens marxistas chegam a apresentar a financeirização da economia6 6 O termo “financeirização” adquire inúmeros contornos na literatura, mesmo nas abordagens marxistas. Como destacada Costas Lapavitsas, “não há uma noção de financeirização universalmente aceita dentro das ciências sociais” (LAPAVITSAS, 2013: 13). como um obscuro “projeto político” de restauração do poder das elites econômicas (HARVEY, 2014HARVEY, David. O neoliberalismo: históricas e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.: 27 - destaque meu), isto é, “um evento de natureza política, uma expressão direta da luta de classes” (DUMÉNIL; LÉVY, 2004DUMÉNIL, Gerard; LÉVY, Dominique. Capital Resurgent: Roots of the Neoliberal Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2004.: 68 - destaque meu), Dowbor sustenta que “a grande realidade (...) é que nenhuma conspiração é necessária”. E por qual motivo? Com um número tão reduzido de pessoas poderosas “não há nada que não se resolva no campo de golfe no fim de semana. Esta rede de contatos pessoais é de enorme relevância” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 49 - destaque meu).

Em ambos os casos acima destacados pode-se observar uma compreensão política que norteia os diagnósticos da financeirização, já que estes, na trilha de uma teoria da sucessão das elites, são construídos a partir da ênfase no poder institucional de um grupo de indivíduos em maior ou menor escala. Nesse sentido, é sintomático que os desafios diante da lógica financeira predatória ensejem a seguinte reflexão: “não se trata de falta de meios técnicos ou financeiros, e sim da orientação política do seu uso” (DOWBOR, 2020DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.: 81 - destaque meu). Consequentemente, essa conjugação de análises faz com que o neoliberalismo seja compreendido como o domínio do proprietário capitalista ausente do processo de produção, sendo o rentista a encarnação da vitória da especulação sobre o investimento produtivo. Como se sabe, aqui se observa o argumento de que um novo “bloco hegemônico” teria passado a ditar as normas sociais, materializando uma configuração diferente da luta pela hegemonia e, assim, estabelecendo um tipo diferente de unidade do capital social.

Note-se, uma vez mais, a peculiar estrutura de pensamento subjacente a essa análise. Ela não só funda uma lógica de causalidade social bastante peculiar - em que uma forma dominante molda todo o sistema capitalista - como traz consequências importantes para a compreensão da reprodução sócio-jurídica. Se o neoliberalismo expressa o modo a partir do qual uma fração da classe capitalista mantém todo o mundo como refém, então “o aumento da circulação de capital fictício conduz à re-emergência de formas pessoais de dominação” (CARSON, 2017CARSON, Rebbeca. “Fictitious Capital and the Re-emergency of Personal Forms of Domination”. Continental Thought & Theory. Volume 1, Issue 4, pp. 566-586, 2017.: 566 - destaque meu). É exatamente a partir dessa perspectiva que Slavoj Zizek supõe contribuir para o debate acerca dos desafios impostos pelo capitalismo nos dias de hoje. Após também destacar que as finanças constituem uma atividade desconectada do processo de valorização do capital, ele enfatiza que as especulações financeiras “consistem principalmente em operações de crédito e investimentos especulativos em que ainda não se gasta dinheiro na produção”. Consequentemente, se “crédito significa dívida”, e se os agentes desta operação não estão sujeitos à forma-valor - já que essa relação ocorre antes e fora do processo produtivo -, então esses agentes estão submetidos “a outra forma de relação de poder que não se baseia na dominação abstrata da mercantilização” (ZIZEK, 2017ZIZEK, Slavoj. “Fictitious Capital and Personal Domination” (disponível em https://thephilosophicalsalon.com/fictitious-capital-and-the-return-of-personal-domination/), 2017.
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).

É curioso notar como esse tipo de diagnóstico aproxima leituras marxistas e heterodoxas. Quando se diz que o desafio que temos diante de nós consiste em reorientar os recursos para financiar as atividades produtivas, que a economia “está sendo sangrada por intermediários que pouco ou nada produzem, e corroída por ilegalidades escandalosas” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 245), que “o caráter parasitário do sistema financeiro tem como único contrapeso possível a capacidade pública de controle e regulação” (DOWBOR, 2017: 269), ou que a crítica à acumulação do capital “envolve a crítica aos direitos específicos que fundamentam o neoliberalismo - o direito à propriedade privada e à taxa de lucro individuais” (HARVEY, 2014HARVEY, David. O neoliberalismo: históricas e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.: 218), em todos esses casos percebe-se como uma crítica fincada na reprovação da distribuição da produção da riqueza acaba recuperando um arcabouço argumentativo característico da economia política clássica. Mais importante ainda, esses diagnósticos se movimentam por um pressuposto particularmente importante:

[O] poder dos capitalistas emana da estrutura jurídica particular das relações de propriedade e é mantido no lugar por ela. O núcleo da organização capitalista da sociedade é a instituição legal da propriedade privada” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 10).

Apesar de jogar luz para a compreensão do aparato jurídico como um elemento central da dominação no modo de produção capitalista, essa representação jurídica obscurece a relação existente entre o processo de acumulação do capital e a análise de suas determinações formais, notadamente a forma jurídica e seus desdobramentos7 7 Com isso desconsidera-se que “o ‘como’ dos direitos tem precedência sobre seu ‘o quê’, ‘por que’ e ‘para que fim’. A forma dos direitos vem antes de seu conteúdo, objetivo e efeito” (MENKE, 2015: 09). Esta é a razão pela qual Christoph Menke considera fundamental analisar “a forma burguesa dos direitos iguais” (MENKE, 2015: 10 - destaque meu), uma tese que está em forte contraste com um tipo de crítica dos direitos que se concentra apenas no conteúdo destes (MENKE, 2015: 409). . Considere-se, por exemplo, as propostas de revisar “o próprio conceito de direito comercial, que torna central nas decisões corporativas a remuneração dos acionistas e outros aplicadores financeiros” (DOWBOR, 2017DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.: 270) e defender “um conjunto inteiramente distintos de direitos” (HARVEY, 2014HARVEY, David. O neoliberalismo: históricas e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.: 218) enquanto alternativa à “fase atual” do capitalismo. Ainda que cada um desses autores parta de referenciais teóricos distintos, chama atenção o modo como um discurso que articula externalidade das finanças com dominação pessoal bloqueia tanto a importância da forma-valor para a compreensão da socialização capitalista como seu fetichismo e sua especial conexão com a reprodução sócio-jurídica.

Por isso mesmo, nos casos em que esse diagnóstico impera, a culpa dos rentistas gananciosos, a denúncia da rede invisível de proteção que os alimenta, bem como a acusação do poder fluido e imaterial desses indivíduos, essas críticas tendem a compor um discurso que parece repor o outro lado desse “negativo”, fantasiando a existência de um “sujeito social geral, uma comunidade de hommes de bonne volonté, aos quais bastaria sentar em uma mesa gigante para que se ponha ordem no que deu errado” (ADORNO, 2020______. Indústria cultural. São Paulo: Editora Unesp, 2020.: 267). Como já sugerido, seria necessário recuperar certa positividade, qual seja, o comedimento dos atores econômicos, a retomada dos investimentos produtivos, a visibilidade do poder, a representação do comum como pilar da crítica e, não por acaso, a necessidade de novas e efetivas regulações. Desse modo, se uma aplicação do Estado e do direito é equivocada, é de se esperar que possa existir um uso alternativo de cada um deles, isto é, que possam ser desenvolvidos procedimentos aptos para rearranjar o que foi feito de modo equivocado.

A título de exemplificação, pense-se na hipótese de que o desenvolvimento da sociedade capitalista não poderia ser explicado por uma “lógica” qualquer dedutível de categorias “abstratas” da lei do valor (AGLIETTA, 2015AGLIETTA, Michel. A Theory of Capitalist Regulation: The US Experience. London; New York: Verso, 2015.: 11), e que, consequentemente, a dinâmica social deveria ser apreendida por meio das “relações sociais de força, configurações institucionais, condicionamentos culturais e orientações político-estratégico dos atores” (HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.: 104). É sintomático perceber que esse discurso possui uma afinidade considerável com as demandas derivadas da chamada “teoria do valor-conhecimento”, apresentada por Daniel Bell no início da década de 1970:

Uma sociedade industrial, de Ricardo a Marx, é baseada em uma teoria do valor-trabalho, e o desenvolvimento da indústria se dá através de dispositivos de economia de trabalho, substituindo o capital por trabalho. Uma sociedade pós-industrial repousa em uma teoria do valor-conhecimento (BELL, 1999BELL, Daniel. The coming of post-industrial society. New York: Basic Books, 1999.: 11).

A partir dessa chave de leitura, a “guerra do capital para se valorizar” passa a ser vista como uma empreitada para gerar escassez diante do novo “fator de produção” dominante - o conhecimento. E assim se vislumbra como essa estrutura argumentativa reposiciona o direito como um elemento disputável na socialização moderna: se os direitos sobre a propriedade intelectual constituiriam a forma de apropriação privada dos meios de produção “quando estes são imateriais e, por natureza, podem ser de acesso aberto e gratuito” (DOWBOR, 2020DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.: 75), então “o conceito de propriedade privada dos meios de produção, esteio jurídico do capitalismo, precisa ser deslocado para a remuneração de quem cria, mas sem travar o acesso e a reprodução por terceiros” (DOWBOR, 2020: 170). Trata-se de um discurso que pressupõe a expectativa de que os conflitos decorrentes da “globalização” abririam caminho para possibilidades inéditas de “emancipação social”, “restauração de solidariedades danificadas” e “reconstrução de espaços dialógicos” (FARIA, 1999FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.: 326). Desse modo se compreende como essa problematização estabelece uma conexão orgânica com a compreensão da reprodução sócio-jurídica como instância que se materializa nas instituições e que, por isso mesmo, estaria aberta à introdução de procedimentos democráticos de reconhecimento que poderiam até mesmo viabilizar um direito com potencial emancipatório (BUCKEL, 2015BUCKEL, Sonja. Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2015.: 312; 321).

Isso significa que no diagnóstico mainstream de grande parcela da crítica heterodoxa e marxista, a análise das condições institucionais que permitiram o “ataque rentista” caminha de mãos dadas com a compreensão de que a dimensão político-jurídica seria responsável por permitir ou não o processo de acumulação do capital, como se o desenvolvimento das formas políticas e jurídicas fossem apenas condições do capital, e não, também, resultados da acumulação capitalista. Ou seja: diante da pergunta apresentada por Marx na Crítica do Programa de Gotha - “as relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas?” (MEGA, I. 25: 12) -, as análises que apostam suas fichas na primeira opção constituem vasta maioria. Mas não só. Descolando a investigação da socialização moderna da forma-valor, grande trunfo da crítica da economia política, a “tese canônica da financeirização” (PRADO, 2014PRADO, Eleutério. “Exame crítico da teoria da financeirização”. Crítica marxista, n. 39, pp. 13-34, 2014.: 14) corre o risco de até mesmo retirar de cena o estudo do capital, que passa a aparecer como uma denominação meramente quantitativa que poderia ser movimentada no tempo e no espaço para fins de reconstrução de uma acumulação “produtiva” e “equilibrada”. Esta, como repetido cotidianamente, teria como base uma nova configuração hegemônica abalizada nas chamadas “forças progressistas”, bacia de todas as correntes desenvolvimentistas.

Nesse percurso, ainda que a articulação discursiva dos termos “exploração”, “capital” e “capitalismo” possa sugerir uma retomada das reflexões de Marx, é comum observar uma aproximação a abordagens radicalmente distintas. Considerando a dominação pessoal e sua armadura jurídica fincada na propriedade privada como o eixo de questionamento a partir do qual giram as críticas ao capitalismo especulativo de Wall Street - situação que ensejou o diagnóstico do “neofeudalismo jurídico”, em que existiria um retorno do direito pessoal e sua predominância frente ao direito territorial característico da Revolução Francesa (FARIA, 1999FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.: 325) -, então não é de se estranhar, por exemplo, aproximações à temática do neo-republicanismo8 8 Esta é uma das ideias que orienta o último livro de William Clare Roberts, Marx’s Inferno: “espero retratar Marx como delineando um republicanismo alternativo, que tem uma semelhança familiar com o neo-republicanismo atualmente em discussão, mas que parte de uma análise da forma social da vida moderna em vez de se apegar à constituição puramente política da esfera pública” (ROBERTS, 2017: 07 - destaque meu). , especialmente no âmbito das reflexões acerca dos instrumentos jurídicos necessários à salvaguarda da liberdade contra o dominium privado (PETTIT, 2014PETTIT, Philip. Just Freedom: A moral compass for a complex world. New York/London: Norton Company, 2014.: 77). Com isso também se intuem as razões pelas quais um discurso do “comum” se conecte tão facilmente a essa linha de raciocínio. Se a normatividade jurídica protetora da propriedade privada é a “peça decisiva do edifício” capitalista (DARDOT; LAVAL, 2018: 19), então não chega a ser surpreendente que o argumento caminhe para a defesa de um “novo direito”9 9 Trata-se de uma demanda igualmente presente em Menke. Uma vez que “o fundamento da forma burguesa dos direitos é a moderna convulsão na ontologia da normatividade”, o fundamento do “novo direito” será “a dialética da atividade e da passividade no julgamento político” (MENKE, 2015: 11-13). . Essas abordagens - sugestivamente já intituladas de “economia política do neo-republicanismo” (SILVA, 2015SILVA, Ricardo. “Liberdade, desigualdade e dominação: a economia política do neorrepublicanismo”, em MIGUEL, Luis Felipe (Org.). Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.: 137), de um lado, e “economia política dos comuns”, do outro (DARDOT, LAVAL, 2018: 146) - não só indicam quão peculiar pode ser o desenvolvimento do chamado “pluriverso marxista” (BOBBIO, 2014BOBBIO, Norberto. Scritti su Marx. Dialettica, stato, società civile. Roma: Donzelli Editore, 2014.: 103), como revigoram um tipo de idealismo jurídico - ou “juridismo”10 10 O termo é utilizado por Ruy Fausto: “o modelo dominante do discurso de esquerda moderada peca um por um excesso de ‘juridismo’ em detrimento do elemento ‘luta’” (FAUSTO, 2007: 05). - que bloqueia a compreensão da adequação da reprodução sócio-jurídica à plasticidade da acumulação do capital.

2. Crítica categorial da dominação financeira

Para uma leitura categorial do “capitalismo de Wall Street”, o que importa não é simplesmente negar o sentido político das análises mainstream apresentadas anteriormente, mas perceber que a posição das classes não é por si só suficiente. Ainda que o destaque ao crescimento das dívidas, ao aprofundamento da desigualdade e às oscilações na taxa de lucro revele aspectos importantes das últimas décadas, é de se notar que esses aspectos, além de dependerem da mediação do Estado e, assim, constituírem um plano distinto de análise, reduzem a financeirização a uma abordagem quantitativa, como se seu significado pudesse ser compreendido pela mera ideia de deslocamento espacial e temporal do capital e seus impactos.

Nesse sentido, ao se movimentar pelos efeitos perceptíveis do “parasitismo financeiro”, a crítica aos especuladores frequentemente perde de vista uma das características mais importantes da socialização capitalista derivada da análise da forma-valor, qual seja, sua não transparência. Note-se que aquilo que é social neste modo de produção não se deixa resumir apenas pela translucidez das relações sociais. O que aparece não só vela algo diferente. Sua própria expressão também inverte o sentido do que é expressado. Por isso é importante atentar para o preciso sentido dado por Marx à palavra fetichismo: “a isso eu chamo de fetichismo, que adere [anklebt] aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias (MEGA, II. 6: 103).

Há aqui algo que vai muito além da “falsa consciência”, manifestado pelo verbo “aderir” [ankleben]. Os produtos do trabalho adquirem “vida própria como figuras independentes” (MEGA, II. 6: 104) simultaneamente à sua produção como mercadorias. Ora, no modo de produção capitalista as pessoas não entram em contato socialmente de modo direto, mas apenas por uma mediação bastante específica: “como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca” (MEGA, II. 6: 104). Mas esse modo de aparecimento não é uma ilusão [Täuschung]. Isso significa que o caráter fetichista da sociedade moderna expressa uma relação factual. Esta, no entanto, não é em hipótese alguma pautada pela associatividade entre sujeitos, mas por uma dominação objetiva destes.

Tal como colocado por Postone, essa dominação não pode ser plenamente compreendida “como dominação e controle dos muitos e de seu trabalho por poucos” (POSTONE, 2014______ Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014.: 150). Muito além disso, no capitalismo o trabalho social constitui um “terreno de dominação”, e não apenas o “objeto de dominação” (POSTONE, 2014: 150)11 11 Aqui deve-se atentar para a questão acerca do plano a partir do qual se coloca essa dominação objetiva. Em Postone isso aparece como uma qualificação do capitalismo. No entanto, a crítica categorial não analisa o capitalismo - termo que, cumpre destacar, Marx não utiliza -, mas a economia política. Mas não só, já que isso é feito em um nível de abstração particular, qual seja, a crítica em sua “média ideal” (MEGA, II. 4.2, p. 853). Consequentemente, não se trata de negar a dominação de classe pela dominação objetiva, ou o contrário (tal como defendido pelos críticos de Postone). Há aqui uma distinção quanto ao nível de abstração a partir do qual são analisadas as relações sociais que, por sua vez, depende do desenvolvimento efetivo da luta de classes, um insight que o próprio Marx manifesta no posfácio à segunda edição de O capital. . Daí o caráter distintivo da socialização capitalista, “em que suas relações sociais características não são evidentes, mas sim ‘objetivamente’ constituídas e, portanto, não parecem de forma alguma socialmente específicas” (POSTONE, 2014: 313). Note-se, ainda, que essas “formas de pensamento socialmente válidas” não se apresentam apenas como uma “necessidade natural” (MEGA, II. 6: 111), já que elas também constituem “as categorias da economia burguesa” (MEGA, II. 6: 106).

Se esta é a razão pela qual a esperada revolução científica de Marx se apresenta como uma crítica da economia política, então se compreende a repreensão aos autores clássicos por não terem considerado as formas sociais. Assim, a análise da forma-valor e a consequente apresentação da relação de valor não só demonstram como uma propriedade social se apresenta como propriedade interna per se das mercadorias. O desvelamento desse processo de naturalização também aponta seu caráter fetichista como corolário da análise das determinações formais que informam a crítica da economia política, razão pela qual Adorno enfatiza que uma teoria crítica da sociedade tem como um de seus aspectos essenciais “apreender em seu vir-a-ser coisas que se apresentam como existentes e por isso como dados de natureza” (ADORNO, 2008b______. Introdução à sociologia. São Paulo: Editora Unesp, 2008b.: 330). Ao não abordar as determinações formais, a economia burguesa fica presas às questões de conteúdo, perdendo de vista a especificidade da forma-valor, da forma-dinheiro, da forma-capital e assim por diante. Mas é justamente no “e assim por diante” que está o estágio mais desenvolvido do fetichismo, notadamente a forma do capital portador de juros, aspecto nuclear do processo de financeirização da economia.

Isso significa que a discussão do capitalismo contemporâneo, quando desconectada da análise da forma-valor, só pode caminhar pelas discussões conteudísticas. Daí não ser mera casualidade que as análises mainstream do capitalismo especulativo de Wall Street, e mesmo aquelas ditas progressistas, enfatizem seu aspecto “predatório”, “especulativo”, desencadeador da desigualdade social. Essa preocupação não constitui um erro. Mas a partir da “teoria pura do capitalismo” (UNO, 1980UNO, Kozo. Principles of Political Economy: Theory of a Purely Capitalist Society. Sussex/New Jersey: Harvester Press/Humanities Press, 1980.: xxii), essas questões devem ser analisadas no âmbito de sua própria possibilidade, isto é, das formas sociais a partir das quais esse conteúdo é posto. Por isso mesmo, tendo em vista a delimitação do objeto da crítica da economia política, as finanças passam a ser compreendidas como uma “tecnologia de poder que organiza as relações de poder capitalistas” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 54). Mas qual seria o significado disso?

A “objetividade fantasmagórica” do valor (MEGA, II. 6: 72) decorrente da relação de troca entre mercadorias só pode se expressar por uma forma-valor que, por sua vez, faz com que uma propriedade social pareça ser uma propriedade interna da mercadoria individualmente considerada. No âmbito do Livro I, a forma-equivalente aparece como um elemento que naturaliza as relações sociais, instituindo um caráter fetichista que desagua no fetichismo do dinheiro. No entanto, se nesse momento o dinheiro já aparece como manifestação independente do valor, “coisa-valor”, no Livro III há um aprofundamento desse processo. E é exatamente isso que a “fórmula trinitária” procura revelar. Capital, terra e trabalho são fontes de rendimento por serem meios de apropriação, isto é, eles permitem que uma pessoa se aproprie de uma porção do produto anual na forma de renda. No entanto, no âmbito da socialização capitalista isso aparece invertido para os agentes da produção (capitalistas, proprietários de terra e donos da força de trabalho). Tal como colocado pelo próprio Marx, “o processo real de produção, como unidade do processo imediato de produção e o processo de circulação, engendra novas configurações, nas quais se torna cada vez mais difícil identificar a conexão interna (MARX, II. 4.2: 850).

Qual seria, então, o preciso sentido dessas novas configurações? Elas certamente atestam um “caráter mistificador” (MARX, II. 4.2: 849), em que o próprio mundo aparece invertido. Nessa inversão revela-se, também, o processo de naturalização implacável da socialização capitalista em sua máxima potência. Como se sabe, o capital pressupõe o trabalho assalariado. Ocorre que o movimento do capital não se deixa agarrar somente pela distinção posição e pressuposição (FAUSTO, 1987______. Marx: Lógica e Política: tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987.: 149). Ele mesmo, na metamorfose de suas próprias formas, apaga sua expressão formal e, assim, suas pressuposições, naturalizando-as. Por isso Marx retoma o argumento acerca da coincidência entre trabalho e trabalho assalariado, enfatizando o sentido da autonomização formal subjacente à naturalização das relações sociais.

Esse processo, no entanto, não se restringe aos meios de trabalho. Como destaca Marx, “todas as formas sociais, na medida em que conduzem à produção de mercadorias e à circulação de dinheiro, participam dessa inversão” (MARX, II. 4.2: 849 - destaque meu). Esta é a razão pela qual também é dito que as relações apresentadas no Livro I são “ainda muito simples”. Daí a apresentação do capital como um “ente altamente místico” (MEGA, II. 4.2: 849), momento em que “as relações de produção tornam-se independentes umas das outras e os componentes do valor se ossificam em formas autônomas” (MEGA, II. 4.2: 850 - destaque meu). São essas caracterizações que terminam por qualificar a análise da forma-trinitária como a consumação da mistificação do modo de produção capitalista (MEGA, II. 4.2: 852).

Mas se o caráter fantasmagórico da objetividade-valor é posto pela análise do modo de produção capitalista no nível das relações de troca entre mercadorias, sendo por sua vez negado pela posição da forma-valor no nível da relação de valor, a partir de qual nível de abstração são posicionados monsieur Le Capital e madame La Terre? Nesse momento é importante considerar a resposta dada por Marx logo no início do Livro III:

As formas do capital, tal como as desenvolvemos neste livro, aproximam-se assim gradualmente da forma em que aparecem na superfície da sociedade, na consciência comum dos próprios agentes de produção e, finalmente, na ação dos vários capitais uns sobre os outros, a concorrência (MEGA, II. 4.2: 07).

Essa “superfície da sociedade” em que opera o “mundo encantado, distorcido e de ponta cabeça” das autonomizações e ossificações dos componentes do valor não é em hipótese alguma uma mera ilusão. Trata-se, pelo contrário, da realidade efetiva subjacente à socialização capitalista, algo que Marx expressou com particular clareza em Teorias da mais-valia:

Nesta forma de lucro completamente alienada - e na mesma medida em que a forma do lucro esconde seu núcleo interno - o capital adquire cada vez mais uma figuração objetiva, a relação se torna cada vez mais coisificada, mas uma coisa que tem a relação social em seu corpo, a engoliu em si mesmo. Coisa com vida fictícia e autonomia que se relaciona com si mesma - ser sensível-supersensível. Nesta forma de capital e lucro ele aparece na superfície como um pressuposto definitivo. É a forma da sua realidade efetiva, ou melhor, a sua efetiva forma de existência (MEGA, II. 3.4: 1482-1483 - destaque no original).

Ela é uma superfície que se apresenta como um “pressuposto definitivo”. Daí a importância de se atentar uma vez mais para o desenvolvimento conceitual que atravessa a crítica da economia política. O fetichismo da mercadoria e do dinheiro não dizem respeito a um período anterior, uma sociedade em que ainda não existe o capital. O que está em jogo na apresentação dialética categorial é a própria alteração dos níveis de abstração a partir dos quais são analisadas as categorias da economia política, como já destacado em mais de uma oportunidade.

No Livro I de O capital tanto a mercadoria como o dinheiro emergem em uma relação contextual que abstrai das relações capitalistas, as quais, no entanto, abarcam as relações de produção e circulação desse modo de produção. Isso significa que a mercadoria e o dinheiro são inicialmente apresentados como pressupostos categoriais do desenvolvimento do conceito de capital. No entanto, mercadorias não são apenas condições, mas também resultados do capital, recebendo com isso novas determinações. Esse movimento está intimamente associado ao dinheiro. Além de ser necessário à socialização capitalista e caracterizado pela sua não-neutralidade, algo particularmente importante acontece quando o dinheiro é vendido como mercadoria. São justamente as determinações que emergem neste momento que fundamentam o fetichismo do capital e a aparência de que as forças de produção lhe são imanentes, ao melhor estilo de um sujeito universal que tudo domina.

Nesta condição apagam-se as determinações que o possibilitam como tal, isto é, que permitem compreender o mundo encantado das autonomizações formais justamente como resultado da crítica da economia política, e não apenas como pré-requisito naturalizado da ação social. Por esse motivo Marx não hesita em destacar que “a separação do lucro entre lucro empresarial e juros (...) completa a autonomização da forma do mais-valor, sua ossificação em relação a sua substância, sua essência” (MEGA, II. 4.2: 851). E assim se compreende como o automatismo do valor que se autovaloriza está amalgamado à posição do capital portador de juros, algo que Marx já antecipava no Livro I (MEGA, II. 6: 173). Apesar do quinto capítulo do Livro III - em que ocorre a análise dos juros e do crédito - ser um dos mais fragmentados e inacabados, ali se encontram reflexões importantes que dão continuidade às questões acima destacadas. Pense-se, por exemplo, em afirmações como “no capital portador de juros as relações capitalistas alcançam sua forma mais exterior e fetichista” (MEGA, II. 4.2: 461 - destaques no original), ou então, “o capital portador de juros é em geral a mãe de todas as formas enlouquecidas” (MEGA, II. 4.2: 522).

O misticismo do capital portador de juros está relacionado à forma de empréstimo a ele subjacente. Marx destaca que na “qualidade de capital possível, de meio para a produção do lucro, ele se torna mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Em outras palavras, o capital como tal torna-se mercadoria” (MEGA, II. 4.2: 412 - destaques no original). Daí a necessidade de se estabelecer uma distinção, tal como colocado pelo próprio Marx: “Vimos que o capital, no processo de circulação, funciona como capital­mercadoria e capital monetário. Mas em nenhuma dessas duas formas o capital como tal se converte em mercadoria (MEGA, II. 4.2: 415 - destaques no original). Atente-se: o dinheiro derivado no início de O capital aparece como “a primeira manifestação do capital”, já que este ainda está pressuposto na apresentação categorial. No Livro III, no entanto, o ponto central é atentar para a alteração conceitual decorrente da posição do capital. A “mercadoria sui generis” acima retratada é justamente o dinheiro vendido como capital, isto é, capital portador de juros, que por sua vez se distingue - ou seja, possui novas determinações - do capital-mercadoria e do capital monetário12 12 Tal como presente no Livro II (Manuscrito VII), o “capital monetário” é o capital “em condição monetária ou em forma-dinheiro” (MEGA, II. 11: 689). O “capital-mercadoria”, por sua vez, é a “forma de existência funcional do valor de capital já valorizado e surgida diretamente do próprio processo de produção” (MEGA, II. 11: 676). Note-se que “capital monetário, capital-mercadoria não designam, portanto, tipos autônomos de capital, cujas funções constituam o conteúdo de ramos de negócio igualmente autônomos e separados entre si. Designam, nesse caso, apenas formas funcionais específicas do capital industrial, formas que este assume uma após a outra” (MEGA, II. 11: 587). . Ocorre que a venda desse “capital possível” só pode ocorrer no tempo, isto é, mediante o empréstimo do dinheiro, de tal modo que o capital portador de juros recebe uma forma peculiar de circulação. Trata-se, como não poderia deixar de ser, de um movimento particularmente significativo para o direito.

3. A reprodução sócio-jurídica subjacente ao capital portador de juros

Reduzida aos extremos D-D’, dinheiro que gera mais dinheiro, aqui encontra-se a “forma encurtada do capital” (MEGA, II. 4.2: 414), em que ele mesmo, capital, aparece misteriosamente como uma coisa que gera seu próprio incremento. Mas é importante atentar para algumas peculiaridades desse processo. Diferentemente de D-M-D’, em que operam as chamadas metamorfoses da mercadoria, em D-D’ “a primeira troca de lugar de D não é um momento da metamorfose da mercadoria ou da reprodução do capital” (MEGA, II. 4.2: 414). Assim, “a primeira troca de lugar de D não expressa aqui mais que a transferência ou cessão de A para B (uma transferência que tem lugar sob certas formas e cautelas jurídicas” (MEGA, II. 4.2: 414 - destaque no original).

Note-se que o movimento mais fetichizado do capital aparece mediado por “formas jurídicas”. Longe de ser algo secundário, trata-se de um ponto particularmente importante destacado por Marx. É verdade que os argumentos desenvolvidos no Livro III sem dúvida alguma priorizam as consequências mistificadoras dessa forma do capital, razão pela qual é enfatizado que “no capital portador de juros, portanto, este fetiche automático é completado, o valor que se autovaloriza, o dinheiro que gera dinheiro, e que não carrega nesta forma qualquer cicatriz de seu nascimento” (MEGA, II. 4.2, p. 462 - destaque no original). Mas é necessário atentar que essa ausência de rastro não significa que não exista qualquer marca a respeito da processualidade da autovalorização do valor. Ora, Marx faz uma consideração extremamente importante a esse respeito:

O capital emprestado retorna de dois modos: no processo efetivo, ele retorna ao capitalista em atividade; então, o retorno se repete uma vez mais como transferência ao prestamista, ao capitalista monetário, como devolução do capital a seu proprietário efetivo, seu ponto de partida jurídico (MEGA, II. 4.2: 417 - destaque no original).

O “ponto de partida jurídico” denota justamente um processo de gênese. Mas aqui não devem ser confundidos o desenvolvimento lógico e temporal dessa questão. Em que pese Marx flanar por esses distintos níveis, é o primeiro deles que merece especial atenção. Daí a importância de se atentar para o seguinte raciocínio: a negação do “nascimento” do “dinheiro que gera dinheiro” é posta por Marx em um nível de análise que considera o processo efetivo do modo de produção capitalista - unidade entre produção e circulação. Assim, ao considerar o “processo total”, Marx destaca que o caráter distintivo do capital portador de juros “é a forma externa do retorno, separada da mediação (MEGA, II. 4.2: 420 - destaque no original). Por isso Marx não só diz que “o capitalista pretor que cede o empréstimo aparta-se de seu capital, transfere-o ao capitalista produtivo, sem receber um equivalente” (MEGA, II. 4.2: 420 - destaque no original), como salienta que “a propriedade não é cedida, porque não se realiza nenhuma troca nem se recebe equivalente nenhum” (MEGA, II. 4.2: 420). E, uma vez mais, é o sentido jurídico dessas questões que vêm à tona:

O primeiro desembolso, que transfere o capital das mãos do prestamista às mãos do prestatário, é uma transação jurídica, que não tem relação nenhuma com o processo real de reprodução do capital e apenas lhe serve de introdução. O reembolso, pelo qual o capital retorna das mãos do prestatário às mãos do prestamista, é uma segunda transação jurídica, complementar à primeira; a primeira introduz o processo efetivo, a segunda é um ato complementar desse processo. Ponto de partida e ponto de retorno, cessão e restituição do capital emprestado, aparecem, pois, como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas efetuadas antes e depois do movimento efetivo do capital e que com ele não têm relação nenhuma (MEGA, II. 4.2: 420 - destaque no original).

Consequentemente, o fetiche do capital na sua forma de capital portador de juros não é apenas mediado por formas jurídicas, como anteriormente destacado. Essa mediação efetivamente põe um “ponto de partida” jurídico. Além disso, Marx destaca como duas transações jurídicas sustentam a aparência de que a cessão e restituição do capital emprestado não possuem qualquer relação com o processo subjacente de produção. Uma vez que esses dois atos jurídicos abarcam a totalidade desse movimento, Marx chama a atenção para as seguintes consequências:

Nessas transações, a mediação é obliterada, não é visível, não está diretamente incluída. Como mercadoria sui generis, possui também uma forma peculiar de alienação. Por isso, tampouco aqui o retorno se expressa como consequência e resultado de uma série determinada de fenômenos econômicos, mas como consequência de uma convenção jurídica especial entre compradores e vendedores. O tempo do retorno depende do curso do processo de produção efetivo; no capital portador de juros, seu retorno como capital parece depender da mera convenção entre prestamista e prestatário. Assim, o retorno do capital, com relação a essa transação, não aparece mais como resultado determinado pelo processo de produção, mas como se em nenhum momento o capital emprestado se despojasse da forma de dinheiro. No entanto, essas transações são determinadas pelos retornos reais. Mas isso não aparece na própria transação (isso também não ocorre de modo algum empiricamente. Se o retorno real não ocorre em tempo hábil, o prestatário tem de buscar outros recursos para cumprir suas obrigações para com o prestamista) (MEGA, II. 4.2, p. 421 - destaques no original).

Note-se: o capital adquire “uma forma peculiar de alienação”, em que sua própria existência aparece como fruto de uma convenção jurídica. Ainda que esta seja “determinada pelos processos reais”, isso não aparece nem no negócio jurídico nem na realidade efetiva da socialização capitalista. É verdade que no capital portador de juros “tanto a devolução como a cessão do capital são mero resultado de uma transação jurídica (...). Tudo o que se encontra entre esses dois polos se apaga” (MEGA, II. 4.2: 422 - destaque meu). Mas este apagamento corresponde somente ao fetichismo do capital, o que não significa que essa mesma relação social não seja reposta pelo próprio caráter cogente das normas jurídicas.

Se “empiricamente” o prestatário tem de arranjar um meio para cumprir suas obrigações, aqui se expressa não só a normatividade jurídica, mas sua existência enquanto elemento do fetichismo jurídico que acompanha o fetichismo do capital. Assim, ainda que a crítica marxiana ao mundo encantado que caracteriza a forma mais mistificante do capital tenha como objetivo trazer à luz as relações sociais subjacentes à autonomização das formas sociais, o apagamento dessas relações pelo capital portador de juros constitui uma negação que chama ela mesma por uma posição. Isso significa que as relações sociais não ficam simplesmente escondidas, elas aparecem necessariamente como, por exemplo, manifestação de direitos subjetivos, sejam eles considerados como algo dado pela natureza ou dependente de processos de reconhecimento validados por uma norma superior.

Essa dimensão jurídica subjacente ao capital portador de juros é enfatizada uma vez mais por Marx ao analisar a separação entre juros e lucro do empresário. Conforme destacado, este é um elemento fundante do encantamento do mundo capitalista13 13 Como dirá Jorge Grespan: é o “poder formal do contrato que obriga a pagar juros, portanto, faz todo dinheiro parecer capital, em consequência da inversão pela qual os juros são antecipados ao lucre efetivo da atividade de produção” (GRESPAN, 2019: 210). . Apesar dos juros terem como “ponto de partida efetivo” (MEGA, II. 4.2: 444) os papéis diferentes que as pessoas ocupam no processo de reprodução do capital, na condição de pessoas jurídicas que celebram contratos a diferença entre juros e ganho empresarial aparece como algo derivado da propriedade do capital. No âmbito da representação dos sujeitos tal como ocorre na socialização capitalista, a inversão qualitativa aparece como diferença posta por um contrato jurídico e suas respectivas cláusulas, isto é, como algo dependente da propriedade privada.

Apesar do sentido jurídico que encapa e movimenta a relação social não ganhar efetividade pela norma, que apenas registra um fato objetivo em sua linguagem particular, a posse de “títulos jurídicos distintos sobre o mesmo capital” (MEGA, II. 4.2: 446) entre duas pessoas nutre a inversão da divisão meramente quantitativa do lucro bruto numa divisão qualitativa. Mais importante ainda, Marx não deixa de captar o sentido expansionista dessa mistificação, ao salientar que tanto a ossificação como a autonomização “têm agora de fixar-se para toda a classe capitalista e para o capital total” (MEGA, II. 4.2: 446 - sublinhado meu). Assim, é essa fixação que estabelece os parâmetros para a racionalidade subjetiva. Ainda que isso esteja “correto, do ponto de vista prático, para o capitalista individual” (MEGA, II. 4.2: 448), a classe trabalhadora não sai em hipótese alguma imune dessas inversões. Isso ocorre porque na forma dos juros apaga-se a antítese em relação à força de trabalho. Ou seja: no âmbito do capital portador de juros, a negação da exploração põe a apropriação da riqueza como fator do direito de propriedade e do trabalho próprio.

Consequentemente, não é por acaso que Marx destaque que o ganho empresarial se apresenta para o capitalista “como resultado de suas funções de não proprietário, como... trabalhador” (MEGA, II. 4.2: 451 - destaque no original). Essas representações jurídicas e suas ilusões se acoplam no cérebro de todos aqueles que vivenciam a socialização capitalista, naturalizando com isso a própria condição de expropriação dos meios de produção. É como se a existência social não fosse movimentada pela lógica das expropriações, mas pela falta de acesso e reconhecimento das condições jurídicas que possibilitariam a plena manifestação do trabalho como fonte de riqueza. Essa distorção, como diz Marx, é um elemento da consciência dos indivíduos, e aparece como fundamento do surgimento e justificação do lucro (MEGA, II. 4.2: 454)14 14 Daí a afirmação de Sartori: “a forma de reconhecimento que é trazida pelo Direito em meio ao livro III (e da própria superfície da sociedade capitalista) é ainda mais fetichista que aquela do livro I” (SARTORI, 2019: 146). Nesse contexto, “a compreensão do caráter ativo do Direito implica em trazer à tona o modo pelo qual a mediação jurídica opera em meio ao cotidiano e aos agentes econômicos, parecendo possuir uma espécie de caráter demiúrgico somente na medida em que não pode tê-lo” (SARTORI, 2019: 147). .

Tem-se, então, a “mistificação do capital em sua forma mais flagrante” (MEGA, II. 4.2: 462). Mas ainda é importante atentar para o seguinte: tal como ressaltado logo acima, a ossificação e autonomização dos juros e do lucro empresarial “têm agora de fixar-se para toda a classe capitalista e para o capital total” (MEGA, II. 4.2: 446). Diante das considerações feitas até aqui, isso sem dúvida depende da produção contínua das referidas “transações jurídicas”, o que aponta para o processo de autonomização que se inscreve na reprodução sócio-jurídica moderna. Como o direito se comportar frente a isso? A produção contínua de acordos jurídicos que opõem o capital como propriedade e o capital como função seria um mecanismo de socialização suficiente para vincular toda a classe capitalista e o capital total?

Para responder a essas perguntas é importante considerar, ainda que brevemente, alguns aspectos derivados da análise marxiana do crédito. Após reafirmar que o capitalista funcional confronta o capitalista monetário, Marx salienta que “com o sistema de crédito o capital monetário assume um caráter social” (MEGA, II. 4.2: 459 - destaques no original). Tal como sustentado por Milios, aqui se encontra uma chave de leitura para se compreender como as inversões postas pelo capital portador de juros são socialmente efetivadas e validadas pelo crédito, possibilitando uma concepção do sistema financeiro que vá além da denúncia de seu parasitismo (MILIOS, 2018MILIOS, John. The origins of capitalism as a social system. London/New York: Routledge, 2018.: 15).

Segundo o próprio Marx, “o sistema de crédito não significa nada além da subordinação do capital portador de juros às condições e às necessidades do modo de produção capitalista” (MEGA, II. 4.2: 652 - destaques no original). Note-se, no entanto, que essas condições e necessidades não se reduzem à ideia de que o crédito seria um mero mediador (MEGA, II. 4.2: 501). Esta é a razão pela qual é necessário atentar para uma das particularidades da forma do capital portador de juros, qual seja, fazer com que cada rendimento determinado e regular em dinheiro “apareça como juros de algum capital, seja ele derivado de algum capital ou não” (MEGA, II. 4.2: 520). Mas essa inversão não somente atribui um significado novo às relações sociais, como anteriormente destacado. Há algo além disso, salientado pelo próprio Marx:

Ao desenvolverem-se o capital portador de juros e o sistema de crédito, todo capital parece duplicar e às vezes triplicar pelos diversos modos em que o mesmo capital ou o mesmo título de dívida aparece sob diferentes formas em diferentes mãos. Esse “capital monetário” é, em sua maior parte, puramente fictício (MEGA, II. 4.2: 526 - destaques no original).

O capital parece “duplicar” ou mesmo “triplicar’, sendo em sua maior parte um “capital fictício”. Marx explicitamente diz que “a formação do capital fictício chama capitalização” (MEGA, II. 4.2: 522 - destaque no original). Assim, não é mera casualidade que a posição do crédito esteja intimamente associada ao fetichismo do capital. Daí a ideia de que com a capitalização “toda a conexão com o processo real de valorização do capital é perdida até o último rastro e se reforça a concepção do capital como um autômato que se valoriza por si mesmo” (MEGA, II. 4.2: 522). Como se vê, trata-se do referido processo de autonomização das formas sociais, agora subjacente ao próprio sistema de crédito.

Mas aqui deve-se atentar para um ponto particularmente precioso para os propósitos do presente artigo. A partir das considerações anteriores seria possível destacar como o processo de autonomização do sistema de crédito se relaciona com a acumulação do capital, cuja compreensão não pode estar restrita às considerações apresentadas na sétima seção do Livro I, em que a “lei geral da acumulação capitalista” exige uma espécie de aumento contínuo do capital produtivo. Essa determinação está associada a um nível de abstração específico, qual seja, o processo imediato de produção. Mas já no Livro II, em que opera outro nível de abstração - o processo de circulação -, a acumulação do capital é enriquecida pela posição de novas determinações, notadamente no âmbito da reprodução ampliada e seus setores. Por fim, ao considerar o nível da unidade entre produção e circulação, o Livro III revela a possibilidade categorial de que a acumulação de capital se bifurque entre uma acumulação “real” ou “fictícia”. Por mais que esta constitua o exemplo mais notório do fetichismo do capital, o sistema de crédito efetivamente se apresenta como uma esfera independente dotada de instrumentos e leis próprias.

Esse não é, no entanto, o ponto nevrálgico da questão. O decisivo é atentar uma vez mais para o caráter social subjacente a esses processos de autonomização das formas sociais. Diante do movimento autônomo do valor dos títulos de posse, não faltam narrativas que apontam a externalidade destes e sua consequente disfunção para a acumulação capitalista, abrindo as portas para que o processo de financeirização seja compreendido como uma distorção meramente quantitativa da “economia real” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 137), tal como exemplificado nas análises mainstream do capitalismo especulativo de Wall Street15 15 Por mais que algumas dessas abordagens se apresentem como “marxistas”, essas análises seguem a abordagem austríaca do capital fictício, em que este aparece - notadamente a partir de Friedrich Hayek - como uma “ilusão”, um “erro”, isto é, um termo pejorativo. Trata-se de uma narrativa que tem suas origens em Charles Jenkinson (1805), em que o capital fictício é sinônimo de instabilidade, de capital inautêntico (DURAND, 2017: 42-46). . Mas o próprio Marx já destacava que a relação social que envolve o capital como propriedade e o capital como função não se deixa resumir pelo seu modo externo. Pelo contrário, o que se desenha - na crítica da economia política - é tanto o controle como a vigilância que os unifica. Segundo Marx, o valor de mercado desses papéis é somente em parte especulativo (MEGA, II. 4.2: 523). E isso porque ele depende daquilo que ocorre no campo da efetividade da socialização capitalista, isto é, não apenas dos ganhos reais, mas também das expectativas jurídicas de ganho. Daí a importância, no caso da dívida pública, que a renda anual não só coincida com sua fixação jurídica como seja possível determiná-la com “suficiente segurança”. Ora, com isso se delineiam relações muito mais profundas do que a mera atribuição de um caráter predatório às atividades financeiras. Como destaca Marx,

[T]odos esses títulos não representam mais do que accumulated clains upon production [direitos acumulados sobre a produção] (...), por acumulação de capital monetário devemos entender fundamentalmente uma acumulação desses clains upon production [direitos sobre a produção (MEGA, II. 4.2: 524 - destaques no original).

Trata-se, na verdade, de um raciocínio relativamente próximo de algo que já havia mencionado no Livro II. Ao discutir o tesouro enquanto forma de acumulação de dinheiro distinta da acumulação efetiva - a transformação do mais-valor em capital -, Marx faz um comentário importante. Abstraindo-se do dinheiro creditício, o capital monetário latente pode existir na forma de

“[...] meros direitos (títulos jurídicos) legalmente confirmados que os capitalistas ostentam em relação a terceiros. Em todos esses casos, seja qual for a forma de existência desse capital monetário adicional, ele próprio não representa, na medida em que é capital in spe, nada mais do que títulos jurídicos adicionais - e mantidos em reserva - dos capitalistas sobre a produção anual adicional futura da sociedade” (MEGA, II. 11: 313 - destaques no original.

Assim, se a acumulação de capital monetário é fundamentalmente uma acumulação de direitos sobre a produção, o que há nessas passagens - e isto é fundamental - é a própria acumulação de direitos e por direitos como condição para a relação de controle existente entre capital monetário e processo produtivo, um raciocínio que conceitualmente antecipa consideráveis discussões acerca da “inflação legislativa”16 16 Um dos sintomas das chamadas “mudanças do direito entre duas eras econômicas” - a keynesiana e a decorrente da globalização - é a chamada “inflação jurídica” ou “explosão legal”, termos que procuram descrever os desafios do direito positivo do Estado-nação a partir da dissolução do paradigma keynesiano. Nesse contexto, “o resultado inevitável da ‘inflação jurídica’, em síntese, é a desvalorização progressiva do próprio direito positivo, impedindo-o assim de exercer suas funções reguladoras e controladoras básicas por meio de suas normas, suas leis e seus códigos” (FARIA, 1999: 133). Apesar do apelo inovador dessa discussão, que constitui um dos grandes debates jurídicos a partir da década de 1970, é sintomática a percepção de Marx, cem anos antes: “com a evolução das necessidades de desenvolvimento econômico e social, o ‘direito positivo’ pode e deve alternar suas determinações” (MEGA, II. 4.2: 669, n. 1). . Consequentemente, trata-se de uma relação que passa necessariamente pelo sistema bancário, algo igualmente captador por Marx (MEGA, II. 4.2: 661).

Como se vê, a conexão categorial - e não o apelo aos interesses de “meia dúzia de especuladores” - que vai do capital portador de juros ao crédito, desaguando no capital bancário, no sistema de crédito e no sistema bancário, não só aponta para a mistificação das relações sociais capitalistas, como também revela elementos adicionais - jurídicos - acerca das condições de possibilidade da sociedade moderna. Essas condições, no entanto, não admitem toda e qualquer contingência social, mas dão a forma da continuidade e aprofundamento de um modo de produção essencialmente contraditório. Ou seja, a existência dos juros na sociedade capitalista se estabelece em uma forma particular de representação das relações sociais. E é precisamente esse raciocínio que permite compreender não só o nível de abstração a partir do qual a “financeirização da economia” pode ser abordada na crítica da economia política, mas sobretudo o imbricamento entre finanças e fetichismo. Tal como destacado por Milios, Sotiropoulos e Lapatsioras, “a valorização do capital é baseada em uma representação específica da economia capitalista e essa representação é efetiva na organização do circuito do capital” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 53).

A partir dessa leitura, os ativos financeiros são formas reificadas a partir das quais o capital aparece na realidade efetiva. Este vir-a-ser já é ele mesmo uma representação da realidade capitalista, o que traz impactos significativos para as abordagens heterodoxas e marxistas que insistem em apreender as relações sociais como algo transparente. Por mais opostas que essas abordagens pareçam ser, o diagnóstico mainstream da financeirização observa as finanças a partir de uma chave de leitura meramente instrumental frente à “economia real”: de um lado, aqueles que sustentam existir uma relação “predatória”, como já destacado; do outro, as abordagens neoclássicas que apresentam as finanças nos termos de um sistema “informativo”. Mas em uma abordagem atenta à forma-valor e sua relação com o fetichismo do capital, os parâmetros da abordagem mudam consideravelmente.

Daí o argumento de que as finanças constituem “a máscara cotidiana do capital: é a forma de existência do capital” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 139 - destaque no original). O caráter translúcido da realidade capitalista traz como consequência que suas representações orgânicas não são externas à existência dos indivíduos (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 149). Uma vez que o caráter fictício do capital remete à reificação das relações capitalistas de produção, “a capitalização tem a ver com a valorização como resultado de uma determinada representação com base no risco e na forma como esta valorização reforça e fortalece a implementação das ‘leis’ do capital” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 149 - destaque no original). Essa valorização “traduz em dados quantitativos (...) as dinâmicas das relações sociais de poder” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 141 - destaque no original). Assim,

[S]e o título S como mercadoria sui generis é uma reificação da relação de capital, sua valorização (isto é, sua própria existência como valor de troca) necessariamente depende de uma representação particular e de uma quantificação das condições sócio-políticas e econômicas da produção capitalista. Independentemente da eficiência dos mercados na disseminação de informação sobre os fundamentos, estes já foram moldados sob as condições das normas ideológicas capitalistas. Os múltiplos ‘eventos’ econômico-técnico-políticos (isto é, todos os eventos de valorização do capital e resistência a ele) que podem emergir dentro da empresa capitalista ou preocupá-la são, desta forma, convertidos em ‘percepções objetivas’ e sinais quantitativos dentro dos mercados de capitais (...). O sistema financeiro proporciona uma representação e quantificação das diferentes relações de poder e sociais em geral (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 151).

A valorização subjacente à posição do capital portador de juros implica a compreensão da financeirização como uma tradução específica das relações sociais, de tal modo que este próprio traduzir já se apresenta como elemento para a valorização. Mais importante ainda, isso depende não só da referida “representação particular”, mas de uma “quantificação das condições sócio-políticas”, condições referentes à garantia das expectativas jurídicas de ganho acima destacadas. Isso está associado não só a uma arquitetura institucional e jurídica, mas ao uso financeiro destas. Neste sentido, “democracia”, “Estado de Direito” e “legislação trabalhista”, por exemplo, aparecem como dados - a representação de um evento no espaço e no tempo - cuja sistematização enquanto riscos faz emergir uma informação acerca do potencial de valorização de títulos.

Com isso se compreende a caracterização da financeirização da economia como “um tipo de supervisão do circuito do capital” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 152), isto é, como um mecanismo de controle e vigilância do mundo invertido da socialização capitalista. Ou seja, trata-se de um processo que não se deixa compreender plenamente pelas análises que veem a dominação financeira como algo decorrente da “hegemonia dos rentistas”, da “guinada neoliberal”, ou da já referida “nova lógica de acumulação” (ZUBOFF, 2018ZUBOFF, Shoshana. “Big Other: Capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação”. In BRUNO, F.; CARDOSO, B.; KANASHIRO, M.; GUILHON, L.; MELGAÇO, L. (Org.). Tecnolopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, pp. 17-68, 2018.: 18). Tal como destacado pelos autores gregos: “a ascensão das finanças não é um subproduto econômico de uma única razão, mas uma tendência que já estava em movimento muito antes da chegada ao poder de Reagan e Thatcher” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 158). Pautada e desenvolvida por uma abordagem derivada da forma-valor, o que se observa é uma leitura que aponta para o fortalecimento do capitalismo financeirizado que se espalha sobre a sociedade como uma teia de aranha (VOLLGRAF, 2018VOLLGRAF, Carl-Erich. “Marx’s Further Work on Capital after Publishing Volume i: On the Completion of Part II of the MEGA2”, in VAN DER LINDEN, M.; HUBMANN, G. (Ed.). Marx’s Capital: An Unfinishable Project? Leiden/Boston: Brill, 2018.: 65).

Assim, esse diagnóstico da financeirização a partir da forma-valor acentua não a redistribuição de renda e a instabilidade econômica, aspectos pertencentes a outro nível de abstração. Em se tratando da crítica da economia política em sua “média ideal” - a “teoria pura do capitalismo” - o foco está na organização das relações de poder capitalistas em linha com um “protótipo particular” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 110). Consequentemente, além de proporcionar uma forma específica de financiamento, como geralmente enfatizado, a predominância dos mercados financeiros não é vista como sinal de um capitalismo moribundo, terminal, conforme destacado. Pelo contrário, eles atuam na referida organização das relações capitalistas, assegurando e reforçando sua reprodução social, notadamente pelas vias jurídicas.

Enquanto “supervisão do circuito do capital”, “protótipo particular” que instaura uma governamentalidade da socialização capitalista, as finanças são compreendidas como um mecanismo de normalização das relações sociais a partir do risco. Isso significa que no âmbito de uma leitura da financeirização a partir da forma-valor, a “sociedade do risco” é compreendida justamente como o reflexo financeiro da realidade efetiva, sua representação mais fetichizada possível. Trata-se de uma dimensão quantitativa que não só antecipa reificadamente o futuro, acelerando-o, como o traduz na possibilidade de ocorrência de eventos sociais cujos sentidos já são fornecidos pela representação fetichizada do mundo invertido em que prepondera a “forma trinitária”. Note-se, no entanto, que a expressão do risco não se identifica com sua organização para fins de manutenção e aprofundamento do modo de produção capitalista.

Aqui ainda falta um aspecto fundamental, qual seja a comensurabilidade entre os diferentes riscos concretos. É exatamente nesse nível de abstração que entram em cena os conhecidos derivativos, tradicionalmente vistos como um mecanismo de usurpação da “economia real”, isto é, “um novo meio de lucro em benefício do proprietário ausente e das instituições que asseguram a sua posição dominante (intermediários financeiros)” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 173). No entanto, no âmbito das considerações acima destacadas, os derivativos também aparecem a partir de uma perspectiva radicalmente distinta. Eles não são compreendidos nos termos de sua instrumentalidade, mas pela forma-mercadoria, isto é, como contratos financeiros que moldam o risco abstrato pela mercadorização dos riscos concretos dispersos na representação financeira.

Uma vez que “o risco abstrato é a dimensão mediadora de qualquer risco concreto, permitindo assim que todos os diferentes riscos concretos se tornem sociais” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 177), então pode-se dizer que os derivativos impõem a comensurabilidade entre esses diferentes riscos concretos, estabelecendo uma medida objetiva para eles. Desse modo, “eles não são, portanto, a ‘besta selvagem’ da especulação, mas o pré-requisito fundamental para a organização contemporânea das relações sociais de poder” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 175). Isso significa que os derivativos - uma manifestação da reprodução sócio-jurídica - permitem que os riscos sejam mensurados em dinheiro de um modo autônomo. Assim, tendo adquirido uma expressão monetária, os riscos também passam a “ter” valor.

Mas não só. Como suportes da imputação de risco, as próprias pessoas “têm” valor na medida em que se apresentam como “partes” do referido contrato financeiro. Na verdade, tudo que passa pela intermediação financeira (direta ou indiretamente) - o que significa passar pela representação jurídica - passa a “ter” valor, seja isso a “saúde”, a “natureza” ou o “comum”, uma consequência derivada de “um modo universal de interpretar e entender a realidade a partir do ponto de vista do risco” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013SOTIROPOULOS, D.; MILIOS, J; LAPATSIORAS, S. A Political Economy of Contemporary Capitalism and its Crisis: Demystifying Finance. London, New York: Routledge, 2013.: 177 - destaque no original). Assim, “os mercados de derivativos estão (...) organizados de tal forma que uma quantidade líquida de valor emerge junto com o isolamento e a embalagem de um risco concreto conhecido (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013: 178).

Que o “valor” seja resultado de uma relação social que, no entanto, aparece como propriedade interna das coisas já foi aqui destacado, ainda que o fetichismo da mercadoria adquira enquanto fetichismo do capital uma profundidade muito maior. No entanto, há algo a mais no âmbito da financeirização da economia, uma vez que a emersão dessa “quantidade líquida de valor” depende da existência e expansão dos derivativos, isto é, dos contratos futuros. Isso indica que a “tecnologia de poder” acima retratada não apenas pressupõe a expansão e sistematização da “acumulação de direitos” que caracteriza a acumulação de capital monetário, mas também necessita de uma mediação social que organize os meios que garantam a eficácia do controle das relações capitalistas. Como se vê, não se trata aqui de questionar de que modo a generalização dos derivativos repercute no direito, como se este constituísse algo externo àquele, mas de perceber o nexo categorial que conecta a reprodução sócio-jurídica às formas enlouquecidas do capital. No âmbito de uma análise circunscrita à análise do capitalismo em sua “média ideal”, essa composição é particularmente importante para uma crítica marxista que não só problematize a luta por direitos enquanto estratégia de emancipação humana como compreenda criticamente a “força do direito”17 17 Grespan habilmente desenvolve essa potência jurídica subjacente às inversões e mistificações do capital portador de juros, notadamente para aqueles de algum modo (direta ou indiretamente) envolvidos no empréstimo bancário: “mais do que força da economia, do trabalho e da produção, trata-se aqui da força do direito, da propriedade privada” (GRESPAN, 2019: 274). .

Considerações finais

A partir das críticas mais ou menos homogêneas à “financeirização da economia”, o presente artigo procurou problematizar a estrutura de pensamento que alimenta o diagnóstico da dominação pessoal - seja ela comanda pelas elites ou corporações - como um dos principais desafios atuais. Por meio de um raciocínio que pressupõe a compreensão da ordem social enquanto um todo capaz de ser moldado por uma de suas partes, destaquei de que modo esse pensamento identitário posiciona o direito como um instrumento socialmente disputável, algo passível de ser convertido em uma estratégia de luta anticapitalista. Diante desse cenário, a retomada da leitura categorial das finanças demonstrou tanto o enredamento social dos interesses especulativos, isto é, suas predeterminações formais, como sua conexão com o desenvolvimento das formas jurídicas, notadamente diante do imbricamento entre capital portador de juros e a sugestiva “acumulação de direitos”.

Esse movimento é importante tanto para problematizar o “juridismo” que caracteriza as demandas de amplos setores sociais, como para discutir o alcance de teorias críticas do direito - em especial a partir da contribuição de Pachukanis - que ainda se mostram satisfeitas em destacar a adequação do direito à forma-mercadoria, e assim, sua conformidade com a exploração capitalista. Que isso esteja, em linhas gerais, correto, não há dúvidas. No entanto, há uma ampla gama de questões, especialmente no que se refere ao peculiar modo (jurídico) de representação capitalista que ainda aguardam desenvolvimento. E isso ocorre devido às distintas maneiras a partir das quais o sentido jurídico das relações sociais aparece no palco da sociabilização capitalista.

Com Marx, é possível encontrar expressões como “fictio juris do contrato” (MEGA, II. 6: 530), “ilusão jurídica” (MEGA, II. 6: 563, n. 74), ou mesmo “ficção jurídica” (MEGA, II. 4.2: 686), dentre tantas outras. Por isso mesmo, não deixa de ser interessante notar a menção às formas jurídicas - no plural -, no preciso sentido de que suas metamorfoses expressam conteúdos econômicos que elas mesmo, enquanto “meras formas”, não podem determinar. Daí a ênfase de Marx, por exemplo, ao salientar que essa compreensão solapa a noção de justiça natural: “quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto” (MEGA, II. 4.2: 413).

Essas reflexões têm relação com uma passagem presente no anexo à primeira edição de O capital, em que Marx faz a seguinte consideração: “se eu disser que o direito romano e o direito alemão são ambos direitos, isto é evidente. Mas se, pelo contrário, eu disser: o direito, este abstrato, se realiza efetivamente no direito romano e no direito alemão, o contexto torna-se então místico” (MEGA, II. 5: 634 - destaque no original). Essa perda de referência ao caráter social é problemática justamente por bloquear a compreensão da especificidade da reprodução sócio-jurídica moderna, algo captado por Marx em uma nota de rodapé que discute o conceito de propriedade privada em Hegel: “com a evolução das necessidades de desenvolvimento econômico e social, o ‘direito positivo’ pode e deve alternar suas determinações” (MEGA, II. 4.2: 669, n. 1).

A partir das reflexões desenvolvidas no presente artigo, todas essas referências atestam não só a profunda mutabilidade das formas da legalidade, como permitem localizá-las junto ao desenvolvimento categorial em sua “média ideal”, notadamente na conexão conceitual existente entre capital portador de juros, crédito e finanças. Naturalmente, não se pretendeu aqui captar todos os sentidos jurídicos presentes em O capital, muito menos sugerir que este seja suficiente para a compreensão da totalidade dos aspectos que caracterizam o direito moderno. Em virtude dos diferentes patamares conceituais e campos do conhecimento que atravessam a crítica da economia política, um sentido geral da legalidade do modo de produção capitalista ainda precisa desenvolver uma mediação conceitual entre suas diversas manifestações.

Por isso mesmo, a crítica marxista do direito tem na articulação entre distintos níveis de abstração tanto uma abertura para um programa de pesquisa como seu principal desafio. Os aspectos da reprodução sócio-jurídica no capitalismo financeiro, no entanto, apontam a necessidade de uma vinculação analítica mais estreita às metamorfoses do dinheiro e, assim, demandam uma teoria monetária do direito como condição para o estudo da plasticidade da reprodução sócio-jurídica frente à elasticidade da acumulação capitalista.

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  • 1
    Temas que Mazzucato, apesar do intento crítico de seu último livro, não aborda. Isso ocorre em razão de sua conceituação do valor como “produção de novos bens e serviços” (MAZZUCATO, 2020MAZZUCATO, Mariana. O valor de tudo. Produção e apropriação na economia global. São Paulo: Portofolio-Penguin, 2020.: 29), concepção ancorada em uma solução de compromisso entre teorias objetivas e subjetivas do valor. Como será destacado, o presente artigo movimenta-se pelo arcabouço teórico marxista.
  • 2
    A utilização do termo “sócio-jurídica” (e não “sociojurídica”) tem como objetivo tanto evitar o entendimento de que existiria uma separação entre “sociedade” e “direito” como enfatizar de que modo este afeta aquele. Busca-se, assim, enfatizar a posição dos termos, em que um está posto e o outro pressuposto (FAUSTO, 1987______. Marx: Lógica e Política: tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987.: 299, n. 29). A própria diferença de níveis postos e pressupostos “chama” ela mesma por uma teoria crítica da sociedade que almeje integrar análises de grande, médio e micro alcance da reprodução sócio-jurídica.
  • 3
    É por isso mesmo sintomática a crítica feita por Vinícius Casalino ao “paradoxo” que circunda grande parte da leitura marxista que se debruça sobre a contribuição do jurista russo. Após salientar que “os apontamentos elaborados pelo autor russo foram tomados como corretos, adequados e, sobretudo, suficientes, e parou-se neles”, Casalino realça o aceite até certo ponto acrítico das categorias centrais da reflexão pachukaniana, sem que isso passasse por uma “necessária e inafastável avaliação crítico-metodológica da própria teoria de Pachukanis” (CASALINO, 2018CASALINO, Vinícius. “A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito”, in Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 9, n. 4, pp. 2267-2292, 2018.: 2270 - destaques no original).
  • 4
    O esforço para “ir além de Pachukanis” - o que não significa abandoná-lo - atravessa a produção de inúmeros autores brasileiros: Celso Kashiura e Oswaldo Akamine (ambos seguindo as trilhas de Márcio Bilharinho Naves), Guilherme Leite Gonçalves, Joelton Nascimento, Ricardo Prestes Pazello, Vitor Bartoletti Sartori e o já mencionado Vinícius Casalino são nomes de destaque nessa empreitada. Um panorama geral das discussões travadas nesse contexto pode ser encontrado no Dossiê “Marxismo e direito: 90 anos de Teoria geral do direito e marxismo, de E. B. Pachukanis” (2015), organizado pela Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas (disponível em http://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/issue/view/17).
  • 5
    Em O capitalismo se desloca, Dowbor mantém essa linha argumentativa: “instalou-se um caos financeiro planetário, com o impacto fundamental de que se ganha muito mais dinheiro com aplicações financeiras, basicamente especulação, do que com investimentos produtivos” (DOWBOR, 2020DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.: 17).
  • 6
    O termo “financeirização” adquire inúmeros contornos na literatura, mesmo nas abordagens marxistas. Como destacada Costas Lapavitsas, “não há uma noção de financeirização universalmente aceita dentro das ciências sociais” (LAPAVITSAS, 2013LAPAVITSAS, Costas. Profiting Without Producing: How Finance Exploit Us All. London/New York: Verso, 2013.: 13).
  • 7
    Com isso desconsidera-se que “o ‘como’ dos direitos tem precedência sobre seu ‘o quê’, ‘por que’ e ‘para que fim’. A forma dos direitos vem antes de seu conteúdo, objetivo e efeito” (MENKE, 2015MENKE, Christoph. Kritik der Rechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015.: 09). Esta é a razão pela qual Christoph Menke considera fundamental analisar “a forma burguesa dos direitos iguais” (MENKE, 2015MENKE, Christoph. Kritik der Rechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015.: 10 - destaque meu), uma tese que está em forte contraste com um tipo de crítica dos direitos que se concentra apenas no conteúdo destes (MENKE, 2015: 409).
  • 8
    Esta é uma das ideias que orienta o último livro de William Clare Roberts, Marx’s Inferno: “espero retratar Marx como delineando um republicanismo alternativo, que tem uma semelhança familiar com o neo-republicanismo atualmente em discussão, mas que parte de uma análise da forma social da vida moderna em vez de se apegar à constituição puramente política da esfera pública” (ROBERTS, 2017ROBERTS, William Clare. Marx’s Inferno: the political theory of Capital. New Jersey: Princeton University Press, 2017.: 07 - destaque meu).
  • 9
    Trata-se de uma demanda igualmente presente em Menke. Uma vez que “o fundamento da forma burguesa dos direitos é a moderna convulsão na ontologia da normatividade”, o fundamento do “novo direito” será “a dialética da atividade e da passividade no julgamento político” (MENKE, 2015MENKE, Christoph. Kritik der Rechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015.: 11-13).
  • 10
    O termo é utilizado por Ruy Fausto: “o modelo dominante do discurso de esquerda moderada peca um por um excesso de ‘juridismo’ em detrimento do elemento ‘luta’” (FAUSTO, 2007FAUSTO, Ruy. A esquerda difícil: em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX e alguns outros temas. São Paulo: Perspectiva, 2007.: 05).
  • 11
    Aqui deve-se atentar para a questão acerca do plano a partir do qual se coloca essa dominação objetiva. Em Postone isso aparece como uma qualificação do capitalismo. No entanto, a crítica categorial não analisa o capitalismo - termo que, cumpre destacar, Marx não utiliza -, mas a economia política. Mas não só, já que isso é feito em um nível de abstração particular, qual seja, a crítica em sua “média ideal” (MEGA, II. 4.2, p. 853). Consequentemente, não se trata de negar a dominação de classe pela dominação objetiva, ou o contrário (tal como defendido pelos críticos de Postone). Há aqui uma distinção quanto ao nível de abstração a partir do qual são analisadas as relações sociais que, por sua vez, depende do desenvolvimento efetivo da luta de classes, um insight que o próprio Marx manifesta no posfácio à segunda edição de O capital.
  • 12
    Tal como presente no Livro II (Manuscrito VII), o “capital monetário” é o capital “em condição monetária ou em forma-dinheiro” (MEGA, II. 11: 689). O “capital-mercadoria”, por sua vez, é a “forma de existência funcional do valor de capital já valorizado e surgida diretamente do próprio processo de produção” (MEGA, II. 11: 676). Note-se que “capital monetário, capital-mercadoria não designam, portanto, tipos autônomos de capital, cujas funções constituam o conteúdo de ramos de negócio igualmente autônomos e separados entre si. Designam, nesse caso, apenas formas funcionais específicas do capital industrial, formas que este assume uma após a outra” (MEGA, II. 11: 587).
  • 13
    Como dirá Jorge Grespan: é o “poder formal do contrato que obriga a pagar juros, portanto, faz todo dinheiro parecer capital, em consequência da inversão pela qual os juros são antecipados ao lucre efetivo da atividade de produção” (GRESPAN, 2019GRESPAN, Jorge. Marx e o modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.: 210).
  • 14
    Daí a afirmação de Sartori: “a forma de reconhecimento que é trazida pelo Direito em meio ao livro III (e da própria superfície da sociedade capitalista) é ainda mais fetichista que aquela do livro I” (SARTORI, 2019SARTORI, Vitor Bartoletti. “Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador de juros; o livro III de O capital diante do papel ativo do direito”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 52, janeiro/2019-abril/2019 pp. 124-154.: 146). Nesse contexto, “a compreensão do caráter ativo do Direito implica em trazer à tona o modo pelo qual a mediação jurídica opera em meio ao cotidiano e aos agentes econômicos, parecendo possuir uma espécie de caráter demiúrgico somente na medida em que não pode tê-lo” (SARTORI, 2019: 147).
  • 15
    Por mais que algumas dessas abordagens se apresentem como “marxistas”, essas análises seguem a abordagem austríaca do capital fictício, em que este aparece - notadamente a partir de Friedrich Hayek - como uma “ilusão”, um “erro”, isto é, um termo pejorativo. Trata-se de uma narrativa que tem suas origens em Charles Jenkinson (1805), em que o capital fictício é sinônimo de instabilidade, de capital inautêntico (DURAND, 2017DURAND, Cédric. Fictitious Capital: How Finance is Appropriating Our Future. London/New York: Verso, 2017.: 42-46).
  • 16
    Um dos sintomas das chamadas “mudanças do direito entre duas eras econômicas” - a keynesiana e a decorrente da globalização - é a chamada “inflação jurídica” ou “explosão legal”, termos que procuram descrever os desafios do direito positivo do Estado-nação a partir da dissolução do paradigma keynesiano. Nesse contexto, “o resultado inevitável da ‘inflação jurídica’, em síntese, é a desvalorização progressiva do próprio direito positivo, impedindo-o assim de exercer suas funções reguladoras e controladoras básicas por meio de suas normas, suas leis e seus códigos” (FARIA, 1999FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.: 133). Apesar do apelo inovador dessa discussão, que constitui um dos grandes debates jurídicos a partir da década de 1970, é sintomática a percepção de Marx, cem anos antes: “com a evolução das necessidades de desenvolvimento econômico e social, o ‘direito positivo’ pode e deve alternar suas determinações” (MEGA, II. 4.2: 669, n. 1).
  • 17
    Grespan habilmente desenvolve essa potência jurídica subjacente às inversões e mistificações do capital portador de juros, notadamente para aqueles de algum modo (direta ou indiretamente) envolvidos no empréstimo bancário: “mais do que força da economia, do trabalho e da produção, trata-se aqui da força do direito, da propriedade privada” (GRESPAN, 2019GRESPAN, Jorge. Marx e o modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.: 274).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2021
  • Aceito
    07 Nov 2021
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