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Controvérsias de investimentos sobre direitos de propriedade intelectual

INVESTMENT DISPUTES CONCERNING INTELLECTUAL PROPERTY RIGHTS

Resumo

Este artigo explora a interação entre o direito internacional de investimento e os direitos de propriedade intelectual mediante o exame de duas controvérsias arbitrais conhecidas como Philip Morris versus Uruguai e Philip Morris versus Austrália. Uma vez reconhecidos os direitos de propriedade intelectual como uma forma de investimento à luz de acordos internacionais, novos desafios sobre a autonomia regulatória nacional se impõem. O campo de pesquisa é a propriedade intelectual. O objetivo proposto é verificar se os tribunais arbitrais restringiram a autonomia regulatória do Uruguai e da Austrália. Em razão desse objetivo, a pesquisa adota o método de estudo de caso. Os resultados demonstram: (i) futuras controvérsias sobre investimentos podem considerar medidas nacionais para regular a propriedade intelectual como desapropriação indireta; (ii) o princípio do abuso de direito possui utilidade para impedir o reconhecimento da jurisdição em disputas de investimentos. Duas conclusões principais são obtidas: (i) as decisões finais arbitrais não restringiram a autonomia regulatória do Uruguai e da Austrália; (ii) os acordos internacionais de investimentos promovem potencial impacto sobre a autonomia regulatória nacional.

Palavras-chave
Propriedade intelectual; desapropriação indireta; arbitragem investidor-Estado; autonomia regulatória nacional; acordos de investimentos

Abstract

This article explores the interaction between international investment law and intellectual property rights through examining two arbitration disputes known as Philip Morris versus Uruguay and Philip Morris versus Australia. Once intellectual property rights are recognized as a form of investment under international agreements, new challenges concerning autonomy regulation of States are imposed. The field of research is intellectual property. The proposed objective is to verify whether arbitral tribunals have restricted autonomy regulation of Uruguay and Australia. Because of this objective, the research adopts the case study method. The results demonstrate: (i) further investment disputes can consider national measures to regulate intellectual property as indirect expropriation; (ii) the principle of abuse of rights is useful to preclude jurisdiction recognition over investment disputes. Two main conclusions are obtained: (i) the final arbitration awards do not restrict national regulatory autonomy of Uruguay and Australia; (ii) the international investment agreements can impact national regulatory autonomy.

Keywords
Intellectual property; indirect expropriation; investor-State arbitration; national regulatory autonomy; investment agreements

Introdução

No ano de 2003, os países-membros da Organização Mundial de Saúde (OMS) aprovaram por unanimidade a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, a qual estimula os Estados a promoverem políticas públicas de combate ao tabagismo. Com respaldo na Convenção, vários países, entre eles o Brasil, adotaram medidas para promoção da saúde pública mediante restrição do uso de marcas nas embalagens de cigarro. A empresa Philip Morris, titular da marca Marlboro, entre outras, impugnou os atos normativos do Uruguai e da Austrália à luz de tratados bilaterais de investimentos.

Um dos pontos em comum nas duas controvérsias é o argumento da empresa demandante: a restrição ao uso do registro marcário representa um ato de desapropriação indireta e consequente violação do tratado bilateral de investimentos. As alegações da Philip Morris refletem a problemática das intersecções das políticas de investimentos e de propriedade intelectual, e motivam o presente estudo de caso sobre os contenciosos suscitados em face do Uruguai e da Austrália.

Além das controvérsias propostas pela Philip Morris, três outras versam sobre registros marcários e/ou patentes, a saber: (i) Eli Lilly versus Canadá; (ii) Bridgestone versus Panamá; (iii) Shell versus Nicarágua. As cinco controvérsias identificadas têm em comum a imputação de violação da regra da desapropriação indireta.

O número restrito de contenciosos indica a adoção de uma pesquisa qualitativa e do método de estudo de caso, e o uso das decisões arbitrais como fontes primárias. O objetivo geral é verificar os fundamentos utilizados nas decisões arbitrais das controvérsias propostas pela Philip Morris, que acolheram ou rejeitaram a alegação de restrição de uso marcário como violação dos tratados bilaterais de investimentos.

A primeira seção versa sobre a propriedade intelectual nos acordos de investimentos. Os contenciosos sobre propriedade intelectual apresentados por investidores internacionais sugerem um esforço direcionado para limitar a autonomia regulatória dos Estados e promover uma constante elevação dos níveis de proteção dos direitos de patentes, marcas e outros ativos.

A segunda seção descreve a controvérsia Philip Morris versus Uruguai com foco: (i) em uma preliminar de defesa sobre a não caracterização das atividades da empresa como investimento, nos termos dos critérios de Salini; (ii) na prática da desapropriação indireta tributada ao país demandado.

A terceira seção dedica-se ao contencioso movido pela Philip Morris em face da Austrália e concentra atenção na preliminar de defesa correspondente à doutrina de abuso de direito. O ato regulatório australiano também foi imputado como um ato de desapropriação indireta. No entanto, o órgão arbitral não analisou essa alegação pelos motivos expostos na seção.

A conclusão aborda o impacto dos acordos de investimentos na autonomia regulatória nacional a partir do que foi apreendido nas controvérsias sobre restrições de uso de registro marcário. A celebração dos tratados bilaterais de investimentos pelo Brasil enseja a adoção de novos parâmetros do exame de conformidade jurídica dos atos regulatórios de propriedade intelectual para evitar violações de regras, tais como a desapropriação indireta.

1. Propriedade intelectual nos acordos de investimentos

A expressão “acordos internacionais de investimento” é empregada nos moldes utilizados pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) para se referir a: (i) tratados bilaterais de investimento; e (ii) tratados com previsões de investimento, os quais compreendem os acordos de livre-comércio (UNCTAD, 2022CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO (UNCTAD). Investment Policy Hub. Disponível em: Disponível em: https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements . Acesso em: 6 fev. 2022.
https://investmentpolicy.unctad.org/inte...
).

A propriedade intelectual encontra-se prevista na maior parte dos tratados bilaterais de investimento (MERCURIO, 2012MERCURIO, Bryan. Awakening the Sleeping Giant: Intellectual Property Rights in International Investment Agreements. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 15, n. 3, p. 871-915, set. 2012., p. 872) e nos capítulos de investimentos dos acordos de livre-comércio (RUSE-KHAN, 2010RUSE-KHAN, Henning Grosse. Protecting Intellectual Property under BITs, FTAs, and TRIPS: Conflicting Regimes or Mutual Coherence? Munique: Max Planck Institute for Intellectual Property and Competition Law, 2010., p. 12). Como forma de investimento, encontra-se prevista desde o primeiro tratado bilateral moderno sobre a matéria, celebrado entre Alemanha e Paquistão, no ano de 1959 (DIEPENDAELE, COCKBAIN e STERCKX, 2017DIEPENDAELE, Lisa; COCKBAIN, Julian; STERCKX, Sigrid. Eli Lilly v Canada: The Uncomfortable Liaison between Intellectual Property and International Investment Law. Queen Mary Journal of Intellectual Property, Londres, v. 7, n. 3, p. 283-305, 2017., p. 295).

Ainda assim, há a percepção de novidade na matéria, a qual decorre das controvérsias suscitadas pelos investidores estrangeiros em face dos Estados para impugnar atos regulatórios sobre marcas e patentes, a partir da década de 2000. Os contenciosos promovidos pela empresa Philip Morris, entre outros, tiveram repercussão pública (YU, 2017YU, Peter. The Investment-Related Aspects of Intellectual Property Rights. American University Law Review, Washington, v. 66, n. 3, p. 829-910, abr. 2017., p. 843) e trouxeram ao debate o potencial impacto dos tribunais arbitrais na autonomia regulatória nacional no tocante à propriedade intelectual (HENCKELS, 2016HENCKELS, Caroline. Protecting Regulatory Autonomy through Greater Precision in Investment Treaties: The TPP, CETA, and TTIP. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 19, n. 1, p. 27-50, mar. 2016., p. 28). O conceito de autonomia regulatória nacional remete ao grau de liberdade dos Estados para estabelecer os seus regulamentos sem descumprir os acordos internacionais no âmbito do direito econômico internacional (DU, 2011DU, Ming. The Rise of National Regulatory Autonomy in the GATT/WTO Regime. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 14, n. 3, p. 639-675, set. 2011., p. 647).

A perda da autonomia regulatória nacional proporcionada pelos acordos de investimentos está longe de configurar um tema novo. A preservação da liberdade estatal para estabelecer políticas públicas encontra-se no debate sobre a não adesão do Brasil à Convenção sobre Resolução de Conflitos relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados, assinada em Washington em 18 de março de 1965 (COZENDEY, 2015COZENDEY, Carlos Marcio Bicalho. Os acordos brasileiros de investimentos. In: RODRIGUEZ, Graciela (org.). Acordos de investimentos à brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Eqüit, 2015. p. 13-20., p. 14).

Nas três últimas décadas, a discussão sobre a restrição da autonomia regulatória decorrente dos acordos de investimentos assume relevo particular em razão do uso recorrente da arbitragem por parte dos investidores internacionais. Em consulta à base de dados da UNCTAD, identifica-se o número de 43 controvérsias de investimentos entre os anos de 1990 e 1999. O número cresce para 327 no período compreendido entre 2000 e 2009, e atinge o montante de 665 controvérsias iniciadas na década seguinte, entre os anos de 2010 e 2019 (UNCTAD, 2022CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO (UNCTAD). Investment Policy Hub. Disponível em: Disponível em: https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements . Acesso em: 6 fev. 2022.
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).

Investidores estrangeiros veem os mecanismos de solução de controvérsia como um instrumento para obter do Estado receptor o que não é possível na negociação do acordo (OKEDIJI, 2014OKEDIJI, Ruth. Is Intellectual Property “Investment”? Eli Lilly v. Canada and the International Intellectual Property System. University of Pennsylvania Journal of International Law, Pennsylvania, v. 35, n. 4, p. 1121-1138, jan. 2014., p. 1136). Ao suscitar uma controvérsia perante o órgão arbitral previsto no acordo, as empresas buscam desestimular a adoção de alterações legislativas que as desfavoreçam, entre outros objetivos (HO, 2015HO, Cynthia. Sovereignty Under Siege: Corporate Challenges to Domestic Intellectual Property Decisions. Berkeley Technology Law Journal, Berkeley, v. 30, n. 1, p. 213-304, mar. 2015., p. 216). A finalidade almejada pelas empresas não se resume à obtenção de indenizações. Os órgãos arbitrais internacionais têm sido acionados por investidores com o escopo de reduzir deliberadamente a capacidade regulatória dos Estados (GATHII e HO, 2017GATHII, James; HO, Cynthia. Regime Shift of IP Lawmaking and Enforcement from WTO to the International Investment Regime. Minnesota Journal of Law, Science & Technology, Minnesota, v. 18, n. 2, p. 427-515, jun. 2017., p. 429).

Os contenciosos de investimentos que envolvem propriedade intelectual refletem estratégias para elevar os patamares de proteção (FRANKEL, 2016FRANKEL, Susy. Interpreting the Overlap of International Investment and Intellectual Property Law. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 19, n. 1, p. 121-143, mar. 2016., p. 122). Uma delas trata da interpretação do Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) pelos tribunais arbitrais de investimentos de forma distinta à realizada pelo órgão de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) (BERNIERI, 2006BERNIERI, Rosa Castro. Intellectual Property Rights in Bilateral Investment Treaties and Access to Medicines: The Case of Latin America. The Journal of World Intellectual Property, New Jersey, v. 9, n. 5, p. 548-572, ago. 2006., p. 549). Nesse sentido, a elevação dos níveis de proteção de patentes, marcas, desenhos industriais e outros ativos efetiva-se mediante a interpretação extensiva das normas do TRIPS (CORREA, 2014CORREA, Carlos. The Impact of the Economic Partnership Agreements on WTO Law. In: DREXL, Josef; RUSE-KHAN, Henning Grosse; NADDE-PHLIX, Souheir (eds.). MPI Studies on Intellectual Property and Competition Law: EU Bilateral Trade Agreements and Intellectual Property - for Better or Worse? Berlim: Springer, 2014. p. 87-108., p. 93). Por isso, os tratados bilaterais de investimentos e os capítulos de investimentos dos acordos de livre-comércio proporcionam o efeito TRIPS-Plus (VANHONNAEKER, 2015HO, Cynthia. Sovereignty Under Siege: Corporate Challenges to Domestic Intellectual Property Decisions. Berkeley Technology Law Journal, Berkeley, v. 30, n. 1, p. 213-304, mar. 2015., p. 180).

A elevação dos níveis de proteção da propriedade intelectual por meio dos tratados bilaterais de investimentos constitui uma estratégia adotada por países desenvolvidos, que compreende três aspectos. O primeiro é a inserção da propriedade intelectual na definição de investimento. O segundo é a vinculação dos acordos de investimentos com compromissos os quais os países cedem autonomia regulatória em termos de propriedade intelectual, por exemplo, tratados bilaterais de propriedade intelectual. O terceiro refere-se ao uso dos princípios da nação mais favorecida e do tratamento nacional nos instrumentos de investimentos. Os três aspectos mencionados operaram em conjunto para promover um nível de proteção mais exigente da propriedade intelectual em relação ao da OMC (DRAHOS, 2001DRAHOS, Peter. Bits and Bips. The Journal of World Intellectual Property, New Jersey, v. 4, n. 6, p. 791-808, jan. 2001., p. 794).

O TRIPS é o ponto de partida para uma progressiva elevação dos níveis de proteção da propriedade intelectual (DRAHOS et al., 2004DRAHOS, Peter et al. Pharmaceuticals, Intellectual Property and Free Trade: The Case of the US-Australia Free Trade Agreement. Prometheus, Highgate, v. 22, n. 3, p. 243-257, set. 2004., p. 253; KUR, 2016KUR, Annette. From Minimum Standards to Maximum Rules. In: ULLRICH, Hanns et al. (eds.). MPI Studies on Intellectual Property and Competition Law: TRIPS Plus 20 - from Trade Rules to Market Principles. Berlim: Springer, 2016. p. 133-162., p. 135-136; MERCURIO, 2006MERCURIO, Bryan. TRIPS-Plus Provisions in FTAs: Recent Trends. In: BARTELS, Lorand; ORTINO, Federico (orgs.). Regional Trade Agreements and the WTO Legal System. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 215-237., p. 215; SELL, 2011SELL, Susan. TRIPS Was Never Enough: Vertical Forum Shifting, FTAS, ACTA, and TTP. Journal of Intellectual Property Law, Georgia, p. 447-478, mar. 2011., p. 448), que se efetiva por meio de diversas ações empreendidas pelos países desenvolvidos. Os capítulos sobre patentes, marcas e outros ativos nos acordos de livre-comércio constituem uma dessas ações, porquanto trazem normas TRIPS-Plus caracterizadas por: (i) implementar um nível de proteção mais exigente comparado ao da OMC; (ii) eliminar uma faculdade ou flexibilidade pactuada; ou (iii) incluir novos direitos de propriedade intelectual (CORREA, 2014CORREA, Carlos. The Impact of the Economic Partnership Agreements on WTO Law. In: DREXL, Josef; RUSE-KHAN, Henning Grosse; NADDE-PHLIX, Souheir (eds.). MPI Studies on Intellectual Property and Competition Law: EU Bilateral Trade Agreements and Intellectual Property - for Better or Worse? Berlim: Springer, 2014. p. 87-108., p. 88; DRAHOS, 2001DRAHOS, Peter. Bits and Bips. The Journal of World Intellectual Property, New Jersey, v. 4, n. 6, p. 791-808, jan. 2001., p. 793; MERCURIO, 2006MERCURIO, Bryan. TRIPS-Plus Provisions in FTAs: Recent Trends. In: BARTELS, Lorand; ORTINO, Federico (orgs.). Regional Trade Agreements and the WTO Legal System. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 215-237., p. 219; VIVAS-EUGUI, 2003VIVAS-EUGUI, David. Regional and Bilateral Agreements and a TRIPS-Plus World: The Free Trade Area of the Americas (FTAA). TRIPS Issues Papers, Geneva: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTD), n. 1, p. 1-36, jan. 2003., p. 4). Essas normas restringem a autonomia regulatória no tocante à propriedade intelectual em um grau superior ao previsto nos acordos constitutivos da OMC (HILTY, 2016HILTY, Reto. Ways Out of the Trap of Article 1(1) TRIPS. In: ULLRICH, Hanns et al. (eds.). MPI Studies on Intellectual Property and Competition Law: TRIPS Plus 20 - from Trade Rules to Market Principles. Berlin: Springer, 2016. p. 185-210., p. 185-186).

Restrições à concessão de licenças compulsórias e proibições de importação paralela de medicamentos são incluídas nos acordos de livre-comércio celebrados pelos Estados Unidos e pela União Europeia com países em desenvolvimento, o que implica restrição de direitos compreendidos no TRIPS como necessários à promoção da saúde pública (CORREA, 2007CORREA, Carlos. Propriedade intelectual e saúde pública. Tradução Fabíola Wüst Zibetti. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007., p. 38; DRAHOS, 2007DRAHOS, Peter. Four Lessons for Developing Countries from the Trade Negotiations Over Access to Medicines. Liverpool Law Review, Liverpool, v. 28, n. 1, p. 11-39, maio 2007., p. 33; SELL, 2007SELL, Susan. TRIPS-Plus Free Trade Agreements and Access to Medicines. Liverpool Law Review, Liverpool, v. 28, n. 1, p. 41-75, jun. 2007., p. 59; MITTAL, 2017MITTAL, Sandeep. Effects of TRIPS Plus Provisions in International Trade Agreements upon Access to Medicines in Developing Countries. Journal of Intellectual Property Rights, Nova Deli, v. 22, n. 6, p. 295-302, nov. 2017., p. 298; XAVIER JUNIOR e BRANDÃO, 2009XAVIER JUNIOR, Ely Caetano; BRANDÃO, Clarissa. Desafios globais contemporâneos: cenário de convergências no direito internacional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 425-442, jul. 2009., p. 434).

A elevação dos padrões de proteção de propriedade intelectual, por meio do TRIPS e de outros instrumentos, não decorre somente de uma pressão por parte dos países desenvolvidos. Determinados países em desenvolvimento compartilham de uma crença autêntica sobre o fortalecimento de proteção patentária como indutor do desenvolvimento econômico (MAZZOLENI e NELSON, 1998MAZZOLENI, Roberto; NELSON, Richard. The Benefits and Costs of Strong Patent Protection: A Contribution to the Current Debate. Research Policy, Amsterdã, v. 27, n. 3, p. 273-284, jul. 1998., p. 273), o que é controverso, porquanto o direito patentário pode promover distorções promotoras de ineficiência econômica quando verificada uma proteção excessiva (STIGLITZ, 2008STIGLITZ, Joseph. Economic Foundations of Intellectual Property Rights. Duke Law Journal, Durham, p. 1693-1724, abr. 2008., p. 1724).

O efeito adverso da proteção excessiva da propriedade intelectual possui impacto econômico negativo no interesse público dos países desenvolvidos e em desenvolvimento (ABBOTT, 2017ABBOTT, Frederick. The Evolution of Public Health Provisions in Preferential Trade and Investment Agreements of the United States. In: ROFFE, Pedro; SEUBA, Xavier (orgs.). Current Alliances in International Intellectual Property Lawmaking: The Emergence and Impact of Mega-Regionals, Global Perspectives for the IP System. Strasbourg: CEIPI-ICTSD, 2017. p. 45-63., p. 63; HILTY, 2016HILTY, Reto. Ways Out of the Trap of Article 1(1) TRIPS. In: ULLRICH, Hanns et al. (eds.). MPI Studies on Intellectual Property and Competition Law: TRIPS Plus 20 - from Trade Rules to Market Principles. Berlin: Springer, 2016. p. 185-210., p. 186). Após a entrada em vigor do TRIPS, configura-se um novo bilaratelismo da propriedade intelectual, que opera por meio da extensa rede de tratados bilaterais de investimentos (OKEDIJI, 2003OKEDIJI, Ruth. Back to Bilateralism? Pendulum Swings in International Intellectual Property Protection. University of Ottawa Law & Technology Journal, Ottawa, v. 1, n. 1, p. 125-147, 2003., p. 142).

Resta assim evidenciado o entrelaçamento entre as normas sobre investimentos internacionais e proteção de patentes, marcas, desenhos industriais e outros ativos. Os tratados bilaterais de investimentos proporcionam um nível de exigência maior em relação ao TRIPS, o que suscita um debate sobre quanto eles impactam na formulação de políticas públicas.

2. Philip Morris versus Uruguai

Em 2008 e 2009, o Uruguai editou três atos normativos infralegais, os quais reservaram 80% do espaço dedicado ao rótulo para imagens das consequências do uso do cigarro. Os atos regulatórios adotados pelo Uruguai estabeleceram uma única apresentação às diferentes marcas de cigarro. As marcas de cigarro costumam possuir diferentes cores ou denominações para seus produtos, por exemplo, Marlboro vermelho, Marlboro ouro, Marlboro azul e Marlboro verde. Essa diferenciação no tocante à apresentação do produto restou proibida (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
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, §§ 4-6).

As medidas de saúde públicas adotadas pelo Uruguai tiveram como fundamento a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco de 2003, a qual prevê a obrigação de constar advertências sobre os efeitos nocivos do consumo de cigarro nas embalagens em pelo menos 50% da principal superfície exposta (WHO, 2003WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). World Health Organization Framework Convention on Tobacco Control. Genebra, 21 maio 2003. Disponível em: Disponível em: https://fctc.who.int/publications/i/item/9241591013 . Acesso em: 21 dez. 2021.
https://fctc.who.int/publications/i/item...
, art. 11.1. iv).

Em 2010, a empresa Philip Morris apresentou o pedido de instauração da controvérsia perante o ICSID. O direito aplicável invocado pela empresa demandante foi o tratado bilateral de investimentos celebrado entre Suíça e Uruguai em 1988, o qual entrou em vigor em 1991 (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, § 1). O tratado definiu a propriedade intelectual como uma forma de investimento com expressa referência às marcas (URUGUAI, 1988URUGUAI. Agreement between the Swiss Confederation and the Oriental Republic of Uruguay on the Reciprocal Promotion and Protection of Investments. Assinado em 07.10.1988. Disponível em: Disponível em: https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements/treaty-files/3121/download . Acesso em: 6 jun. 2020.
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, art. 1.2.d).

A preliminar suscitada pelo Uruguai compreendeu a descaracterização das atividades empreendidas pela Philip Morris como investimento. Para a defesa, a comercialização de cigarro não preencheu o requisito de contribuição ao desenvolvimento do Estado receptor, um dos critérios do teste de Salini. Nessa linha de argumentação, o país demandado apresentou dados sobre o custo com tratamento à saúde gerado por doenças relacionadas ao consumo de tabaco (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
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, §§ 177-178 e 181).

Referido teste é uma referência à controvérsia Salini versus Marrocos, cujo órgão arbitral elencou quatro elementos interdependentes para identificar um ativo como investimento estrangeiro: (i) aplicação de dinheiro ou de ativos; (ii) duração da execução do contrato; (iii) risco do empreendimento; (iv) contribuição para o desenvolvimento econômico do Estado receptor (ICSID, 2001INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Salini Costruttori S.P.A. and Italstrade S.P.A. v. Kingdom of Morocco. Decision on Jurisdiction, 23 jul. 2001. Case No. ARB/00/4. Disponível em: Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0738.pdf . Acesso em: 22 nov. 2019.
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, § 52). Reconhece-se que o teste de Salini poderia se chamar Fedax porque os critérios para identificação do investimento já haviam sido sistematizados no laudo arbitral da controvérsia Fedax versus Venezuela, proferido quatro anos antes da conclusão da controvérsia Salini versus Marrocos (STERN, 2009STERN, Brigitte. The Contours of the Notion of Protected Investment. ICSID Review, Oxford, v. 24, n. 2, p. 534-551, set. 2009., p. 536).

Os critérios de Salini não funcionam como uma definição em abstrato de investimento. Eles permitem uma identificação casuística de investimento, porquanto este é um conceito aberto, em conformidade com o art. 25 (1) da Convenção de Washington. Desse modo, novas matérias são passíveis de serem classificadas como investimentos, por exemplo, propriedade intelectual (ANDRADE, 2015ANDRADE, Thiago Pedroso de. Aspectos metodológicos do direito internacional de investimentos. 2015. 223 f. Tese (Doutorado em Ciências Jurídicas) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 59). Como os direitos de patentes, marcas, desenhos industriais e outros ativos preenchem os critérios de Salini, a literatura costuma reconhecer a possibilidade de qualificá-los como investimentos (VANHONNAEKER, 2019VANHONNAEKER, Lukas. Intellectual Property Rights in International Investment Agreements. In: CHAISSE, Julien; CHOUKROUNE, Leïla; JUSOH, Sufian (eds.). Handbook of International Investment Law and Policy. Berlim: Springer, 2019. p. 1989-2012., p. 1995VANHONNAEKER, Lukas. Intellectual Property Rights as Foreign Direct Investments: from Collision to Collaboration. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2015.).

A Philip Morris alegou a irrelevância do critério de contribuição ao desenvolvimento econômico do Estado receptor, em razão da não previsão no tratado bilateral de investimentos (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
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, § 185). Compreensão distinta foi defendida por Vadi (2015VADI, Valentina. Towards a New Dialectics: Pharmaceutical Patents, Public Health and Foreign Direct Investments. Journal of Intellectual Property and Entertainment Law, Nova York, v. 5, n. 1, p. 113-195, 2015., p. 152), que respaldou a tese defendida pelo Uruguai. O critério do desenvolvimento econômico não é preenchido simplesmente pelo exercício da atividade de uma empresa no Estado receptor, ainda que ela gere empregos e pagamento de tributos.

O órgão arbitral reconheceu uma ampla gama de operações econômicas compreendida na noção de investimento. A restrição da definição de investimento e a consequente limitação de jurisdição ratione materiae ocorrem por meio de previsão nesse sentido no tratado bilateral de investimentos e/ou na legislação nacional sobre a matéria. Ao se interpretar o art. 25 (1) da Convenção de Washington, na sua acepção comum, no contexto e à luz do objeto e objetivo do instrumento, investimento possui um significado amplo, na avaliação do órgão arbitral. Os árbitros não reconheceram como consistente a jurisprudência sobre o teste de Salini, razão pela qual não o consideraram relevante para o caso concreto (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, §§ 200-204).

Para o órgão arbitral, os critérios de Salini não operam como requisitos jurisdicionais, mas como elementos úteis na identificação de uma atividade como investimento. Por conseguinte, a ausência de um dos critérios de Salini não prejudicou o reconhecimento da jurisdição. Com essa fundamentação, o órgão arbitral reconheceu a sua jurisdição sobre o caso e afastou a preliminar alegada pelo Uruguai (ICSID, 2013INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Decision on Jurisdiction, 2 jul. 2013. Case No. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC3592_En.pdf . Acesso em: 2 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, §§ 206 e 210).

O reconhecimento da jurisdição pelo órgão arbitral possibilitou o exame de mérito da controvérsia. Entre as alegações da empresa demandante, encontra-se a violação da regra da desapropriação indireta (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, § 175), a qual possui previsão no tratado bilateral de investimentos entre Uruguai e Suíça (URUGUAI, 1988URUGUAI. Agreement between the Swiss Confederation and the Oriental Republic of Uruguay on the Reciprocal Promotion and Protection of Investments. Assinado em 07.10.1988. Disponível em: Disponível em: https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements/treaty-files/3121/download . Acesso em: 6 jun. 2020.
https://investmentpolicy.unctad.org/inte...
, art. 5.1).

O conceito de desapropriação indireta remete às medidas estatais prejudiciais aos investimentos estrangeiros privando-os de utilidade econômica, ou diminuindo o seu valor, independentemente da intenção do Poder Público nesse sentido (CHRISTIE, 1962CHRISTIE, George. What Constitutes a Taking of Property under International Law? British Yearbook of International Law, Oxford, v. 38, p. 307-338, abr. 1962., p. 310). A não transferência de titularidade da propriedade é o elemento característico da desapropriação indireta. O investidor é privado do seu investimento ou sofre uma perda efetiva do exercício ou controle da propriedade (HENCKELS, 2016HENCKELS, Caroline. Protecting Regulatory Autonomy through Greater Precision in Investment Treaties: The TPP, CETA, and TTIP. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 19, n. 1, p. 27-50, mar. 2016., p. 40; DOLZER e SCHREUER, 2008DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investment Law. Oxford: Oxford University, 2008., p. 92).

A aferição da desapropriação indireta prioriza o seu elemento consequencial, em detrimento do formal. O instrumento formal para adoção da desapropriação indireta é menos relevante comparado à consequência produzida pelo ato (REISMAN e SLOANE, 2004REISMAN, Michael; SLOANE, Robert. Indirect Expropriation and Its Valuation in the Bit Generation. British Yearbook of International Law, Oxford, v. 74, n. 1, p. 115-150, jan. 2004., p. 121). A desapropriação indireta costuma resultar de um processo constituído de diversos atos sequenciais. Os acordos de investimentos utilizam expressões sinônimas para se referir a ela: desapropriação construtiva, medidas equivalentes à desapropriação, medidas com efeito equivalente à desapropriação (FORTIER e DRYMER, 2004FORTIER, Yves; DRYMER, Stephen. Indirect Expropriation in the Law of International Investment: I Know it when I See it, or Caveat Investor. ICSID Review, Oxford, v. 19, n. 2, p. 293-327, set. 2004., p. 297).

No mérito, o Uruguai defendeu-se afirmando a inexistência de direitos passíveis de desapropriação, porquanto a sua legislação não prevê o direito de uso do registro marcário. Os árbitros rejeitaram a argumentação exposta na defesa porque a ausência de direito de uso no ordenamento jurídico não afasta o direito de propriedade conferido pelo registro marcário (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, § 272).

Como o registro marcário é um direito de propriedade, ele é passível de desapropriação. Esse foi o raciocínio adotado pelo órgão arbitral. Quando um indivíduo deposita um pedido de registro, presume-se a sua intenção de uso do bem, embora o procedimento eventualmente tenha o único efeito de excluir a utilização do signo por terceiros (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, §§ 272-273).

No caso concreto, o órgão arbitral não reconheceu a desapropriação indireta porque a marca Marlboro e os outros elementos distintivos continuaram estampando os maços de cigarro comercializados pela empresa demandante. As medidas impugnadas limitaram o modo de usar os registros marcários, mas não afetaram substancialmente o negócio (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, § 276). Os árbitros, ao afastarem a violação da desapropriação indireta, adotaram uma fundamentação com respaldo na doutrina dos poderes de polícia, também identificada como poder de regular. Nesse sentido, o laudo arbitral em exame constitui uma contribuição para pacificar o reconhecimento da referida doutrina na jurisprudência arbitral de investimentos (ZARRA, 2017ZARRA, Giovanni. Right to Regulate, Margin of Appreciation and Proportionality: Current Status in Investment Arbitration in Light of Philip Morris v. Uruguay. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, p. 95-120, 2017., p. 114).

A perspectiva adotada pelo órgão arbitral compreendeu uma análise do impacto da restrição de uso do registro marcário sobre o conjunto dos produtos comercializados pela empresa demandante. As medidas impugnadas não promoveram uma limitação substancial do valor do empreendimento da Philip Morris (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, §§ 283-284).

A Philip Morris admitiu a obtenção de lucros superiores aos do período anterior à edição dos atos regulatórios uruguaios. No entanto, ela alegou que seus lucros teriam sido em valores superiores aos efetivamente verificados se não fosse pelos atos regulatórios impugnados. Essa alegação foi rejeitada pelo órgão arbitral com fundamento na jurisprudência, a qual não reconhece a desapropriação mediante a demonstração de perda parcial de lucros ou considerando a expectativa de lucro. Essas verificações levaram à conclusão da inexistência da desapropriação indireta (ICSID, 2016INTERNATIONAL CENTRE OF SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES (ICSID). Philip Morris v. Uruguay. Award, 8 jul. 2016. ARB/10/7. Disponível em: Disponível em: http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/ICSIDBLOBS/OnlineAwards/C1000/DC9012_En.pdf . Acesso em: 6 fev. 2020.
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/IC...
, § 286).

As demais alegações apresentadas pela Philip Morris foram rejeitadas. O laudo arbitral da controvérsia Philip Morris versus Uruguai traz consequências positivas à promoção da saúde pública, notadamente pelo reconhecimento da autonomia regulatória dos Estados na matéria (VOON, 2017VOON, Tania. Philip Morris v. Uruguay: Implications for Public Health. The Journal of World Investment & Trade, Leiden, v. 18, n. 2, p. 320-331, fev. 2017., p. 329).

A título de conclusão preliminar, vê-se que o órgão arbitral reconheceu: (i) a aplicação de um conceito amplo de investimento, o qual inclui o direito marcário; (ii) o alcance limitado da alegação de não preenchimento do requisito de desenvolvimento econômico à luz do teste de Salini, porquanto se afastou a preliminar de defesa nesse sentido; (iii) o registro marcário como passível de desapropriação indireta, em tese, porque ele corresponde a um direito de propriedade; (iv) a não configuração de desapropriação indireta pelos atos regulatórios adotados pelo Uruguai, porquanto não houve perda substancial do valor do empreendimento.

3. Philip Morris versus Austrália

Em setembro de 2010, a empresa Philip Morris reestruturou as suas subsidiárias em diversos países. Uma das empresas reestruturadas foi a Philip Morris Asia Limited, constituída em Hong Kong, com operações na fabricação, na importação, no comércio e na distribuição de cigarro na Austrália, na Nova Zelândia e nas Ilhas do Pacífico. A subsidiária constituída em Hong Kong passou a deter as ações de uma das empresas do grupo econômico, sediada na Austrália (Philip Morris Australia Limited), controladora da Philip Morris Limited, também com sede na Austrália. Essa última empresa foi titular, na ocasião, dos direitos de propriedade intelectual relacionados aos produtos comercializados nesse país (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, §§ 141-143 e 183).

Quando a reestruturação empresarial foi realizada, encontravam-se em discussão os atos regulatórios restringindo o uso de marcas nas embalagens de cigarro, os quais foram editados pela Austrália em 2011, após anos de debate. As normas australianas estabeleceram uma embalagem-padrão para cigarros, limitando o uso do registro marcário, com o escopo de desestimular o consumo e promover a saúde pública (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, §§ 99-140, 165).

No ano de 2011, a Philip Morris, por meio da subsidiária com sede em Hong Kong, dirigiu à Austrália a notificação para constituição de um órgão arbitral à luz das regras da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL) perante a Corte Permanente de Arbitragem. A estratégia adotada pela empresa Philip Morris foi suscitar a controvérsia em nome da subsidiária constituída em Hong Kong. Desse modo, foi possível adotar como direito aplicável o tratado bilateral de investimentos celebrado entre Austrália e Hong Kong em 1993 (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, § 13).

A pretensão da empresa compreendeu a suspensão do cumprimento da lei australiana e a respectiva compensação pelo prejuízo sofrido. Os atos regulatórios foram acusados de diminuir substancialmente o valor dos investimentos da empresa no país. Para fundamentar a alegação, ela diferenciou dois tipos de modelos de negócio. No primeiro tipo, a marca exercia um papel fundamental, já no segundo tipo, a marca era irrelevante. Na argumentação desenvolvida pela empresa demandante, o ato regulatório impugnado ensejou uma mudança do seu modelo de negócio, passando ela a exercer a atividade empresarial como se o portfólio de marcas fosse irrelevante (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, §§ 6, 7).

Voon e Mitchell (2011VOON, Tania; MITCHELL, Andrew. Time to Quit? Assessing International Investment Claims against Plain Tobacco Packaging in Australia. Journal of International Economic Law, Oxford, v. 14, n. 3, p. 515-552, set. 2011., p. 522-523) descaracterizam o alegado investimento da Philip Morris ao exporem o não preenchimento do requisito de desenvolvimento econômico. Trata--se, assim, de uma preliminar à luz dos critérios de Salini e em conformidade com a defesa do Uruguai na controvérsia suscitada pela Philip Morris.

Os atos regulatórios impugnados não afetaram o investimento como um todo, o qual é mais amplo do que os registros marcários. Por isso, os argumentos da Philip Morris aproximam-se da dúbia noção de desapropriação parcial, a qual não possui previsão no tratado bilateral de investimentos celebrado entre Hong Kong e Austrália. Trata-se de um tema não pacificado na jurisprudência arbitral, que compreende decisões favoráveis e contrárias à noção de desapropriação parcial (MITCHELL e WURZBERGER, 2011MITCHELL, Andrew; WURZBERGER, Sebastian. Boxed In? Australia’s Plain Tobacco Packaging Initiative and International Investment Law. Arbitration International, Oxford, v. 27, n. 4, p. 623-652, dez. 2011., p. 634-635).

O tratado bilateral de investimentos entre Austrália e Hong Kong não mencionou as controvérsias preexistentes à realização do investimento (AUSTRALIA, 1993AUSTRALIA. Agreement between the Government of Hong Kong and the Government of Australia for the Promotion and Protection of Investments. Assinado em 15 set. 1993. Disponível em: Disponível em: https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements/treaty-files/152/download . Acesso em: 6 jan. 2020.
https://investmentpolicy.unctad.org/inte...
, art. 10). Com esse fundamento, a defesa apresentou uma objeção temporal, porquanto não expressou consentimento aos conflitos configurados anteriormente aos investimentos (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
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, § 352).

O exame da objeção ratione temporis demandou a verificação da data do investimento. Em outros termos, o investimento protegido ocorreu antes ou depois da alegada violação do tratado? Na compreensão dos árbitros, a identificação precisa da data da alegada violação do tratado foi fundamental para avaliar o reconhecimento da jurisdição. Nesse aspecto, foi citada a controvérsia Gremcitel versus Peru, cujo julgamento admitiu a importância da identificação da data denominada de crítica, correspondente ao momento da adoção pelo Estado da medida objeto de futura impugnação. A medida impugnada costuma decorrer de uma sequência de eventos. O início da sequência de eventos ocorre comumente anos antes da adoção pelo Estado da medida apontada como violação do tratado (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, §§ 529-530).

No caso em tela, a edição do ato regulatório constituiu a data crítica da controvérsia (21 de novembro de 2011). No entanto, a reestruturação da empresa foi decidida em 3 de setembro de 2010 e completada em 23 de fevereiro de 2011, antes da edição da lei dedicada à promoção da saúde pública por meio da restrição do uso de marca nas embalagens de cigarro. Considerando a identificação da data crítica, nos termos anteriormente mencionados, o órgão arbitral reconheceu a jurisdição ratione temporis (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, §§ 533-534), passando em seguida ao exame da tese do abuso de direito, invocada pela Austrália como objeção ao exame de mérito da controvérsia.

A tese de abuso de direito possui o alcance de impedir o reconhecimento da jurisdição de um órgão arbitral de investimento. Isso ocorre particularmente quando o investidor estrangeiro promove a prática do forum shopping, escolhendo o acordo e consequentemente reestruturando o seu empreendimento com o escopo de suscitar uma controvérsia (TOPCAN, 2014TOPCAN, Utku. Abuse of the Right to Access ICSID Arbitration. ICSID Review, Oxford, v. 29, n. 3, p. 627-647, set. 2014., p. 629). A Austrália invocou a tese de abuso de direito em sua defesa. Nessa linha de raciocínio, a reestruturação das empresas e dos respectivos investimentos ocorreu com o objetivo de alegar a violação do tratado, considerando uma divergência preexistente ou, pelo menos, previsível. Para a Austrália, a reestruturação empresarial foi conduzida com o escopo de criar uma vantagem desleal, porque o investidor não tinha real intenção de promover uma atividade econômica no Estado receptor, mas sim de suscitar a controvérsia (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
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, §§ 194 e 536).

A jurisprudência arbitral indica a impossibilidade de uma empresa alterar os seus investimentos com a finalidade de obter acesso jurisdicional de um órgão arbitral após a configuração do prejuízo. Não há óbice à reestruturação do investimento, particularmente na iminência de um dano. No entanto, a doutrina do abuso de direito combate a mudança estrutural do investimento por parte do investidor com objetivo único de suscitar uma controvérsia (STERN, 2009STERN, Brigitte. The Contours of the Notion of Protected Investment. ICSID Review, Oxford, v. 24, n. 2, p. 534-551, set. 2009., p. 548).

A reestruturação empresarial não decorreu de razões tributárias ou de negócios, constatou o órgão arbitral. A constituição das subsidiárias foi realizada para possibilitar à Philip Morris suscitar a controvérsia com o fundamento no tratado bilateral de investimentos celebrado entre Austrália e Hong Kong (PCA, 2015HO, Cynthia. Sovereignty Under Siege: Corporate Challenges to Domestic Intellectual Property Decisions. Berkeley Technology Law Journal, Berkeley, v. 30, n. 1, p. 213-304, mar. 2015., §§ 554 e 584).

Ao alcançar tal conclusão, o órgão arbitral classificou a controvérsia como um abuso de direito (ou abuso de processo). Os atos regulatórios que padronizavam as embalagens de cigarro eram previsíveis quando houve a reestruturação do grupo econômico. Desse modo, os árbitros declararam-se impedidos de exercer a jurisdição e julgaram inadmissível a arbitragem (PCA, 2015PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Philip Morris Asia Limited v. The Commonwealth of Australia. Award on Jurisdiction and Admissibility, 17 dez. 2015. PCA Case No. 2012-12. Disponível em: Disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/1711 . Acesso em: 22 nov. 2018.
https://pcacases.com/web/sendAttach/1711...
, § 585, 588). Por isso, a alegação da desapropriação indireta, própria do mérito da controvérsia, não foi examinada.

Conclusão

Os órgãos arbitrais decidiram em favor dos países demandados nas controvérsias sobre uso de registros marcários nas embalagens de cigarro, suscitadas pela empresa Philip Morris. Nesses dois casos, não houve restrições à autonomia regulatória dos Estados no tocante à formulação de políticas públicas, porquanto não foram identificadas violações dos tratados invocados.

Os países demandados não se viram obrigados a revogar suas leis ou promover indenizações pecuniárias à multinacional tabagista. Por outro lado, no curso das duas controvérsias, razoável supor um constrangimento imposto às autoridades governamentais do Uruguai e da Austrália no tocante à aprovação de novas medidas de promoção à saúde pública.

De acordo com essa hipótese, as controvérsias propostas serviram para frear o aperfeiçoamento de uma política pública. Como é cediço, as políticas públicas resultam de contextos específicos, os quais são dinâmicos. A interrupção das ações de uma política pública pode resultar no seu sepultamento. É possível que o objetivo almejado pela empresa tabagista tenha sido atingido independentemente da improcedência verificada nas duas controvérsias.

Da fundamentação adotada na controvérsia Philip Morris versus Uruguai, depreende-se a possibilidade de o tratado bilateral de investimentos restringir a autonomia regulatória nacional no tocante à propriedade intelectual. A decisão arbitral admitiu a viabilidade de a restrição do uso de registro marcário classificar-se como desapropriação indireta. No caso concreto, afastou-se essa alegação porque a empresa não demonstrou efetivo prejuízo decorrente da medida impugnada; ao contrário, admitiu lucros superiores aos obtidos antes da entrada em vigor dos atos regulatórios.

Isso sugere uma pergunta: se a empresa tivesse comprovado prejuízo, seria possível caracterizar a desapropriação indireta? Não há uma caracterização automática da desapropriação indireta decorrente da configuração de prejuízo econômico. De todo modo, o órgão arbitral admitiu em tese a correspondência entre uma medida restritiva de uso de registro marcário e a desapropriação indireta. Isso tampouco ocorreu na controvérsia Philip Morris versus Austrália porque o mérito não foi examinado, uma vez acolhida a preliminar de abuso de direito invocada pela defesa.

O estudo de caso da controvérsia Philip Morris versus Uruguai demonstra que medidas de propriedade intelectual são passíveis de violar tratados bilaterais de investimentos. Tendo isso em mente, mostra-se razoável a elaboração dos atos regulatórios de propriedade intelectual à luz dos compromissos de investimentos vigentes no Brasil. Esse tipo de aferição cabe, inclusive, na análise de impacto regulatório, prevista no art. 5o da Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019 (BRASIL, 2019BRASIL. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, n. 183-B, p. 1-4, 20 set. 2019.), e no Decreto n. 10.411, de 30 de junho de 2020 (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto n. 10.411, de 30 de junho de 2020. Regulamenta a análise de impacto regulatório. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 35, 1o jul. 2020.).

Como os atos administrativos normativos sobre propriedade intelectual no Brasil são elaborados em observância às disposições do TRIPS, entre outros acordos internacionais, espera-se igual cuidado em relação aos tratados bilaterais de investimentos, sob pena de adoção de medidas frágeis do ponto de vista jurídico.

A previsão de propriedade intelectual nos tratados bilaterais de investimentos celebrados pelo país não contribuiu para a inserção do tema na Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual (Enpi) para o período de 2021 a 2030, instituída pelo Decreto n. 10.886, de 7 de dezembro de 2021 (BRASIL, 2021BRASIL. Decreto n. 10.886, de 7 de dezembro de 2021. Institui a Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, n. 230, 8 dez. 2021.). Entre as ações delineadas, não se prevê nenhuma medida atinente ao impacto dos acordos de investimentos no sistema de propriedade intelectual. Menciona-se a importância da promoção de um ambiente de negócios para atração de investimentos estrangeiros, o que não corresponde ao tema aqui tratado.

Embora os órgãos arbitrais não tenham restringido a autonomia regulatória dos países demandados nas controvérsias examinadas, reconhece-se a possibilidade de tal conclusão em futuros contenciosos que envolvam propriedade intelectual. Justifica-se, assim, um aperfeiçoamento dos atos regulatórios sobre patentes, marcas, desenhos industriais e outros ativos considerando os compromissos de investimentos celebrados pelo país, além de possíveis impugnações em órgãos arbitrais.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Dr. Luiz Otávio Pimentel.

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  • Como citar este artigo: CUNHA NETO, Loris Baena; CARVALHO, Sergio Medeiros Paulino de. Controvérsias de investimentos sobre direitos de propriedade intelectual. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2309, 2023. https://doi.org/10.1590/2317-6172202309

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    07 Set 2022
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