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Pluralismo político: o Poder Judiciário e os direitos LGBT

PLURALISM: JUDICIARY BRANCH AND LGBT RIGHTS

Resumo

No período de oito anos, o Supremo Tribunal Federal realizou dois julgamentos particularmente emblemáticos sobre direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT): o caso de união homoafetiva (2011) e o da criminalização da homofobia e transfobia (2019). A pesquisa no presente artigo analisa esses casos sob a perspectiva do pluralismo político de Robert Dahl, concentrando-se na análise (i) do Poder Judiciário como arena decisória, (ii) da mudança dos atores que figuraram como amici curiae, marcada pela inédita presença da Bancada Evangélica e uma maior representatividade das pessoas LGBT no caso da criminalização da homofobia e transfobia, e (iii) dos interesses aparentes dos atores contrários ao julgamento de procedência dos pedidos, revelados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Bancada Evangélica.

Pluralismo político; Supremo Tribunal Federal; direitos LGBT; amici curiae; Bancada Evangélica

Abstract

In eight years, the Federal Supreme Court held two particularly emblematic judgments on LGBT rights: the case of civil homosexual union (2011) and the criminalization of homophobia and transphobia (2019). The research presented in this article analyzes these cases from the perspective of Robert Dahl’s political pluralism, focusing on the analysis (i) of the Judiciary as a decision-making arena, (ii) of the change of the actors that figured as amici curiae, marked by the unprecedented presence of the Evangelical Bench and a greater representation of LGBT people in the case of the criminalization of homophobia and transphobia, and (iii) the apparent interests of the actors contrary to the judgment of the merits of the requests, revealed by the CNBB and by the Evangelical Bench.

Political pluralism; Brazilian Supreme Court; LGBT rights; amici curiae; Evangelical Bench

INTRODUÇÃO

No dia 13 de fevereiro de 2019, o advogado subscritor do Mandado de Injunção (MI) n. 4.733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, assumiu a tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF) para sustentar oralmente as razões para julgamento de procedência dessas duas ações, na qualidade de patrono dos autores. O advogado foi sucedido na tribuna pelos advogados Thiago Gomes Viana, Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia, Ananda Hadah Rodrigues Puchta e Maria Eduarda Aguiar da Silva. Essa se tornaria a sessão do STF em que mais advogados LGBT1 1 Sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. sustentaram oralmente as razões para procedência das demandas.

Por outro lado, também foi inédita a participação da Frente Parlamentar Mista da Família e de Apoio à Vida, também conhecida como Bancada Evangélica, por meio das sustentações orais realizadas pelos advogados Walter de Paula e Silva e Cícero Gomes Lage, que enfatizaram as razões para julgamento de improcedência do MI n. 4.733 e da ADO n. 26. Foi dessa maneira que teve início a primeira sessão de julgamento que terminaria, quatro meses depois, com a criminalização da homofobia e transfobia no Brasil.

Quase oito anos antes, em maio de 2011, acontecia outro julgamento emblemático no plenário do STF: o julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, cujo resultado foi a equiparação da união estável homoafetiva2 2 A expressão “união homoafetiva” foi empregada neste artigo por ser mais frequentemente utilizada no material empírico analisado. Para compreensão da discussão acerca da problemática em torno da adoção dessa expressão e da palavra “homossexualidade”, recomendo a leitura de Roger Raupp Rios, Sérgio Golin e Paulo Gilberto Logo Leivas (2011). à união estável heteroafetiva.

Com exceção do advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, as pessoas que assumiram a tribuna do STF para sustentar oralmente as razões tanto para procedência como para improcedência do pedido eram completamente diferentes das que participariam, anos depois, da sessão de julgamento da criminalização da homofobia e transfobia.

Nesse contexto, o presente artigo se debruça sobre dois casos estudados: o da união homoafetiva e o da criminalização da homofobia e transfobia, que foram examinados por meio do uso do método qualitativo de análise documental. As unidades de análise são os quatro processos constitucionais – ADPF n. 132/RJ, ADI n. 4.277/DF, ADO n. 26 e MI n. 4.733 –, que se encontram documentados por meio de votos, acórdãos, sessões de julgamento e peças processuais disponibilizados por órgãos oficiais do Estado.3 3 As informações processuais podem ser acessadas pelo site do STF. Fontes: ADI n. 4.277/DF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=11872. Acesso em: 8 jul. 2020; ADPF n. 132/RJ. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2598238. Acesso em: 8 jul. 2020; MI n. 4.733. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4239576. Acesso em: 8 jul. 2020; ADO n. 26. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4515053. Acesso em: 8 jul. 2020.

A pergunta de pesquisa que orienta o artigo é a investigação sobre quem foram os atores e quais os interesses apresentados nos casos da união homoafetiva e da criminalização da homofobia e transfobia, considerando o STF arena decisória. A opção pelo pluralismo de Robert Dahl como fundamento teórico tem o propósito de auxiliar a compreensão de como diferentes atores e interesses são organizados em determinada conjuntura, assumindo que o estágio da política em discussão importa, bem como que todos os atores são dotados de recursos políticos e interesses.

O artigo segue dividido em quatro seções: (i) a abordagem do pluralismo político e dos conceitos de atores, arena decisória e interesses; (ii) o Poder Judiciário como arena decisória; (iii) os atores identificados nos casos; e (iv) os interesses aparentes. Ao final, são apresentadas as derradeiras considerações.

1. PLURALISMO POLÍTICO: ATORES, ARENA DECISÓRIA E INTERESSES EM JOGO

O presente artigo se fundamenta nas bases teóricas do pluralismo, com ênfase nos estudos de Robert Dahl,4 4 O pluralismo político de Robert Dahl é um aporte da ciência política, que não se confunde com o pluralismo inspirado na obra de Peter Häberle (2013), comumente associado ao Poder Judiciário e a decisões do STF por se tratar de uma teoria de hermenêutica constitucional. a fim de descrever a capacidade de diferentes atores participarem em determinada arena decisória exercendo influência no resultado de uma política pública.

Nesse contexto, atores são figuras dotadas de recursos políticos, cujos exemplos encontrados na obra de Robert Dahl (1989DHAL, Robert. Who Governs: Democracy and Power in an American City. New Haven and London: Yale University Press, 1989., p. 228) são: tempo, acesso a riquezas, crédito, controle sobre empregos, controle sobre informação, posição social, carisma, popularidade, legitimidade, legalidade (direito ao voto) e direitos de um cargo público. Tais recursos são limitados e dispersos entre os atores de maneira não igualitária, inexistindo ator desprovido de todos os recursos, ao mesmo tempo que atores que melhor acessam um tipo de recurso podem ser desprovidos de outros.

A influência é encarada como a capacidade de agenda setting dos atores, ou seja, a capacidade de pautar determinada questão no debate público, sendo pertinente a distinção de John Kingdon acerca do estabelecimento da agenda e da escolha dentre as alternativas de ação governamental. O autor concebe agenda como “a lista de temas ou problemas que são alvo em dado momento de séria atenção, tanto da parte das autoridades governamentais como de pessoas fora do governo, mas estreitamente associadas às autoridades” (KINGDON, 1995, p. 222). Dentro dessa lista, apenas um conjunto de alternativas de ação governamental é seriamente considerado pelas autoridades em razão da influência que é exercida pelos atores, seja como incentivo, seja como obstáculo.

No entanto, conceitualmente, participantes podem ser considerados como diferentes dos processos. Cada um dos participantes e dos processos pode atuar como um incentivo ou obstáculo. Um participante ou um processo funciona como incentivo quando trazem um tema para o topo da agenda, ou pressionam para que uma determinada alternativa seja considerada como a mais adequada. [...] Um participante ou um processo funciona como obstáculo quando são reduzidas as chances de certa questão ou alternativa serem levadas em consideração. (KINGDON, 1995KINGDON, John. Agendas, Alternatives and Public Policies. New York: Harper Collins College Publishers, 1995., p. 226)

Por uma questão metodológica, não abordarei neste artigo a correlação entre a influência exercida pelos atores e o resultado da política em discussão, mas tão somente analisarei como determinados atores trataram a questão no STF durante o processo decisório, possibilitando que os direitos das pessoas LGBT fossem considerados uma questão merecedora de ação governamental.

E esses atores são movidos por interesses, isto é, por visões particulares de preferência que ganham destaque ao serem mediadas com o governo ou arena decisória. Ainda que essa categoria analítica careça de melhor definição, também se reconhece a possibilidade de refinamento da definição de “interesse” na medida em que houver o ajuste ao objeto empírico analisado (BAUMGARTNER e LEECH, 1998BAUMGARTNER, Frank; LEECH, Beth. Basic Interests: The Importance of Groups in Politics and in Political Science. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1998., p. 25), o que pretendo realizar nas próximas seções.

Nesse contexto, o modelo pluralista assume que existem conflitos entre os atores em determinada arena e que esses conflitos são resolvidos por meio da barganha entre os grupos e as coalizões organizadas em torno de interesses compartilhados. O equilíbrio do sistema é mantido pela formação de coalizões em nível majoritário, de modo que o poder acaba sendo descentralizado, fluido e dependente da conjuntura. Existe, portanto, “um sistema ‘multicêntrico’, no qual os centros existem em uma relação de conflito e barganha entre si” (LOWI, 1964LOWI, Theodore. American Business, Public Policy, Case-Studies and Political Theory. New York: Atherton Press, 1964., p. 679).5 5 Tradução livre da autora. Originalmente: “Thus, power is highly decentralized, fluid, and situational. There is no single elite, but a ‘multicentere’ system in which the centers exist in a conflict-and-bargaining relation to each other” (LOWI, 1964, p. 679).

Assim, quando a questão em debate são os direitos das pessoas LGBT no Brasil, os atores que historicamente procuraram exercer influência sobre essa questão são as entidades religiosas e os organismos do terceiro setor defensores de direitos humanos e minorias sociais. Diversas arenas decisórias já foram mobilizadas por esses atores, por exemplo, o Poder Executivo, o Congresso Nacional e, mais recentemente, o Poder Judiciário. Também os interesses divergem a depender dos atores e da arena escolhida para o exercício da influência, uma vez que a conjuntura e o estágio da política em discussão (se criação ou implementação, por exemplo) importam.

Nesse contexto, as próximas seções tratam do Poder Judiciário como arena decisória, bem como dos atores e interesses presentes nos casos da união homoafetiva, decidido pelo STF em 2011, e da criminalização da homofobia e transfobia, julgado em 2019.

2. O PODER JUDICIÁRIO COMO ARENA DECISÓRIA NO BRASIL

O exercício do controle concentrado de constitucionalidade é uma competência normativa do Poder Judiciário, que foi inspirado nas Cortes Constitucionais europeias que começaram a ser implementadas após a Primeira Guerra Mundial, a partir do protótipo austríaco idealizado em 1920, sendo introduzido em nosso ordenamento com a Emenda Constitucional n. 16, de 1965.

É recente a reflexão sobre o protagonismo que o Poder Judiciário – notadamente o seu órgão de cúpula, o STF – vem exercendo ao reconhecer direitos de grupos minoritários por meio da realização do controle concentrado de constitucionalidade, especialmente considerando as mudanças trazidas pelo estado de bem-estar social, que equiparou a responsabilidade do Judiciário à dos Poderes Legislativo e Executivo “pela coerência de suas atitudes em conformidade com os projetos de mudança social” (FERRAZ JR., 1994FERRAZ JR., Tercio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista USP, n. 21, p. 12-21, 1994., p. 19).

Nesse contexto, os direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988, combinados ao acesso à justiça proporcionado por novas modalidades de ações constitucionais (como é o caso, por exemplo, da ADPF), permitiram a entrada de temas de justiça distributiva no Judiciário, ou seja, que “dizem respeito à participação de todos no respeito devido a cada membro da humanidade (direito à não discriminação em razão de cor, religião, convicção política, sexo ou orientação sexual)” (LOPES, 1994LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça e Poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição. Revista USP, n. 21, p. 22-33, 1994., p. 27).

Como ao Judiciário não é permitida uma “não decisão”, esse Poder tem apresentado suas respostas, tornando-se uma relevante arena decisória no contexto brasileiro, sobretudo quando a questão envolve direitos humanos.

A consequência desta análise é que o lugar do poder judiciário mudou porque seu papel na sociedade se alterou, como expressão do deslocamento da representação da política para o discurso dos direitos humanos. Tal mudança foi concomitante com a transformação do próprio judiciário, em razão da constitucionalização do sistema político e judicialização do conflito social. A constitucionalização do sistema político implica remeter tanto a ação do poder executivo como do poder legislativo ao controle dos tribunais constitucionais. A judicialização do conflito social implica transferir as expectativas de resolução de demandas e conflitos sociais para o poder judiciário, que seria o único fiador da convivência e o único poder confiável. (SORJ, 2004SORJ, Bernardo. A democracia inesperada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004., p. 80)

O protagonismo político do STF acompanhou as transformações sofridas pelo Poder Judiciário e foi ainda elevado por escolhas institucionais que permitiram uma “exacerbada concentração de poderes nas mãos do STF” (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 166), o que o autor denomina supremocracia. Oscar Vilhena Vieira (2018)VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. descreve que essas escolhas institucionais envolvem a constitucionalização de temas sociais, econômicos e públicos, a sobreposição das funções de tribunal constitucional, tribunal de recurso e tribunal de primeira e última instâncias em casos envolvendo autoridades e a politização da jurisdição constitucional com a ampliação da possibilidade do acesso ao STF, seja por atores políticos relevantes, como governadores e partidos políticos, seja pelas organizações da sociedade civil que se mobilizam para serem admitidas no processo como amici curiae.

Nesse contexto, o STF foi escolhido como a arena decisória a ser analisada no endereçamento da questão dos direitos das pessoas LGBT e objeto de influência de atores considerados de incentivo e de obstáculo para a questão, classificados a partir do posicionamento favorável ou contrário ao julgamento de procedência dos pedidos das ações constitucionais.6 6 Essa classificação é feita a partir do pedido da petição inicial: como os pedidos iniciais formulados nas ações constitucionais são em prol da proteção aos direitos das pessoas LGBT, classifico o posicionamento favorável ao julgamento de procedência da ação como um incentivo, ao passo que o posicionamento contrário ao julgamento de procedência da ação é classificado como um obstáculo.

Ainda que o foco não seja o resultado dos julgamentos em si, é importante esclarecer que o resultado do julgamento da ADI n. 4.277 e da ADPF n. 132, em 2011, foi no sentido de equiparar a união estável homoafetiva à união heteroafetiva. Não obstante inexistisse dúvida sobre a competência normativa do STF para realizar o controle de constitucionalidade e de o resultado ter sido um consenso entre os Ministros do STF (votação unânime), houve uma divergência na fundamentação, uma vez que uma minoria dos Ministros entendeu que a Corte estava limitada pelo texto da Constituição Federal – que não elenca a família homoafetiva expressamente no rol do art. 226.

Nesse contexto, houve uma maioria de Ministros do STF que, sobretudo a partir da obra de Luiz Edson Fachin (2003)FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003., Maria Berenice Dias (1997DIAS, Maria Berenice. Efeitos patrimoniais das relações de afeto. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 1. 1997, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. Tema: Repensando o direito de família. Promovido pela OAB/MG com apoio do IBDFAM., 2010DIAS, Maria Berenice. Família homoafetiva. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Manual de direito das famílias e das sucessões. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.) e Daniel Sarmento (2008)SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo: perspectivas constitucionais. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 619-659., convergiu ao aplicar o conceito amplo de família como algo que pode ser depreendido da própria CF de 1988. Para os Ministros Ayres Britto (Relator), Celso de Mello, Marco Aurélio, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa o enquadramento da união de pessoas do mesmo sexo nesse conceito não só permite conceder status jurídico à união estável homoafetiva como é a interpretação em conformidade à Constituição que deve ser conferida ao questionado art. 1.723 do CC.

Por outro lado, tivemos três Ministros que entenderam que o rol de famílias previsto no art. 226 da CF de 1988 apresentou tipos de entidades familiares somente com fundamento no conceito restrito, de modo que o conceito amplo é novo, depreendido dos princípios constitucionais e somente nele é que a união homoafetiva pode ser enquadrada. O entendimento dos Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso se aproxima da movimentação feita pela doutrina na medida em que trabalhou com os dois conceitos atualmente vigentes, reconhecendo que se manteve o conceito anterior (restrito) em paralelo ao surgimento de um novo conceito de família (amplo). (BUZOLIN, 2019BUZOLIN, Lívia Gonçalves. Direito homoafetivo: criação e discussão nos Poderes Judiciário e Legislativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2019., p. 67)

No caso da criminalização da homofobia e transfobia, o resultado do julgamento, em 2019, foi o enquadramento jurídico das condutas homofóbicas e transfóbicas como expressões de racismo, devendo ser consideradas os tipos penais previstos na Lei n. 7.716 de 1989, constituindo, também, circunstância que qualifica o crime de homicídio doloso, por configurar motivo torpe (art. 121, § 2º, I, Código Penal).

De todo modo, a introdução da reflexão sobre a possibilidade de o Poder Judiciário ser encarado como uma arena decisória no exercício do controle de constitucionalidade tem o objetivo tão somente de situar a análise do presente artigo, que, por sua vez, considera a influência exercida por atores durante o processamento das ações constitucionais, ou seja, em um momento anterior ao julgamento.

3. QUEM SÃO OS ATORES?

Para o pluralismo, atores são figuras dotadas de recursos políticos com capacidade de exercer influência no processo decisório de uma política pública. Quando o Poder Judiciário é analisado como a arena decisória no processo de uma ação constitucional, o papel exercido pelos amici curiae revela um exemplo de ator digno de melhor estudo por se diferenciar dos papéis exercidos pelo ator e réu da ação.

A figura do amicus curiae tem por finalidade auxiliar o julgador com argumentos e esclarecimentos acerca da matéria debatida em sede de controle concentrado de constitucionalidade e foi legislativamente disciplinada no art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.882/1999 e no art. 6º, §§ 1º e 2º, da Lei n. 9.882/1999, ainda que a admissão dos “amigos da corte” não tenha sido necessariamente inaugurada com referida legislação federal.

A participação dessas entidades é, portanto, voluntária e tem sido cada vez mais frequente no processamento das ações constitucionais. De acordo com a pesquisa de Eloísa Machado de Almeida (2019ALMEIDA, Eloísa Machado. Capacidades institucionais dos amici curiae no Supremo Tribunal Federal: acessibilidade, admissibilidade e influência. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 678-707, 2019., p. 680), o crescimento da participação dos amici curiae mais do que dobrou nos últimos anos, uma vez que “saltou de pouco mais de 13% no período de 1999 a 2005 e chega a 30% entre 2006 e 2014”. Essa pesquisa identificou determinadas capacidades institucionais dessa participação no STF, ou seja, condições institucionais necessárias para que os amici curiae possam ser capazes de influenciar uma decisão judicial. São exemplos:

i) as condições de acessibilidade aos amici curiae, que compreende as características prazo, custo e representação por advogado; ii) as condições de admissibilidade, onde são explorados os poderes do relator e os critérios de representatividade e relevância da matéria; iii) as condições de influenciar no processo, onde será abordada a possibilidade de peticionar, de sustentar oralmente e de recorrer. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado. Capacidades institucionais dos amici curiae no Supremo Tribunal Federal: acessibilidade, admissibilidade e influência. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 678-707, 2019., p. 681)

As duas últimas capacidades institucionais são pertinentes para a análise que realizo no presente artigo, a saber, as condições de admissibilidade e as condições de influenciar o processo. Isso porque, ao contrário das figuras do autor e réu da ação, que gozam de prerrogativas processuais, os amici curiae participam do processo de maneira voluntária com a finalidade de influenciar o resultado do julgamento a partir de seus interesses, transcritos nas peças processuais apresentadas nos autos por meio de manifestação e da realização de sustentação oral na tribuna.

Além disso, as condições de admissibilidade e de influência no processo decorrem dos recursos políticos empregados pelos atores. Nos casos estudados, o tempo, acesso a recursos financeiros, informação sobre litígio estratégico no STF e legitimidade para ser aceito como amicus curiae são alguns dos recursos políticos que os atores precisaram mobilizar para serem capazes de exercer influência no resultado no julgamento.

Nos autos da ADPF n. 132 foram admitidas catorze entidades como amici curiae: Conectas Direitos Humanos, Escritório de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais (EDH), Grupo Gay da Bahia (GGB), Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), Grupo de Estudos em Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (GEDI da UFMG), Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais, Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual, Associação de Travestis e Transexuais de Minas Gerais, Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual (GAI), Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESP), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Associação Eduardo Banks.

Já na ADI n. 4.277 foram admitidas como amici curiae apenas seis das catorze entidades que já haviam sido incluídas na ADPF n. 132: Conectas Direitos Humanos, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, IBDFAM, AIESP, CNBB e Associação Eduardo Banks.

Portanto, das catorze organizações admitidas como amici curiae no caso da união homoafetiva, doze delas apresentaram contribuição para que as ações fossem julgadas procedentes e duas organizações se posicionaram pelo julgamento de improcedência das demandas (CNBB e Associação Eduardo Banks), ou seja, doze atores figuraram como incentivo e dois como obstáculo.

Já no caso da criminalização da homofobia e transfobia, houve a admissão, nos autos da ADO n. 26, de onze entidades como amici curiae: GGB, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GADVS), Grupo Dignidade de Gays, Lésbicas e Transgêneros (Grupo Dignidade), Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), Conselho Federal da Psicologia, Defensoria Pública do Distrito Federal, Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), Frente Parlamentar “Mista” da Família de Apoio à Vida (Bancada Evangélica) e Convenção Brasileira das Igrejas Evangélicas Irmãos Menonitas (Cobim). A Associação Eduardo Banks – que foi admitida no caso da união homoafetiva e apresentou parecer contrário, atuando como obstáculo – teve o pedido de admissão como amicus curiae rejeitado sob o fundamento de que não detinha a representatividade adequada.

Durante o processamento do MI n. 4.733 foram admitidas três entidades como amici curiae: Grupo Dignidade, Conselho Federal da Psicologia e IBDFAM.

Assim, do total de doze entidades que participaram do processamento e julgamento da ADO n. 26 e do MI n. 4.733, três delas apresentaram argumentos para julgamento de improcedência dos pedidos, atuando como obstáculo (Anajure, Cobim e Bancada Evangélica), e a maioria se posicionou favoravelmente ao julgamento de procedência e, consequentemente, à criminalização da homofobia e transfobia.

O posicionamento das entidades admitidas como amici curiae nos casos da união homoafetiva e da criminalização da homofobia e transfobia foi sintetizado na Tabela 1.

TABELA 1
– POSICIONAMENTO DAS ENTIDADES ADMITIDAS COMO AMICI CURIAE POR CASO

A comparação dos dois casos revela que houve um aumento no número de atores que se posicionaram como obstáculo à questão no STF, ou seja, que trouxeram argumentos contrários ao julgamento de procedência do pedido de criminalização de homofobia e transfobia quando comparado ao caso da união homoafetiva. Outro dado relevante é que os atores que se posicionaram de maneira contrária mudaram totalmente de um julgamento para o outro.

No processamento da união homoafetiva, a CNBB e a Associação Eduardo Banks trouxeram argumentos contrários ao julgamento de procedência dos pedidos, ao passo que, no caso da criminalização da homofobia e transfobia, as manifestações com subsídios pela improcedência foram apresentadas pela Anajure, Cobim e Bancada Evangélica. A ausência de pedido de admissão da CNBB como amicus curiae e o indeferimento da participação da Associação Eduardo Banks no processamento da ADO n. 26 e do MI n. 4.733 (criminalização da homofobia e transfobia) são dados relevantes da mudança nos atores que representam interesses contrários a demandas constitucionais que versam sobre direitos das pessoas LGBT.

A CNBB é uma instituição que existe há mais de sessenta anos no Brasil e “congrega os Bispos da Igreja católica no país”.7 7 Fonte: https://www.cnbb.org.br/quem-somos/. Acesso em: 6 dez. 2019. Teve uma relevante atuação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, sendo capaz de aprovar pautas na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, especialmente relacionadas a questões morais que foram tradicionalmente defendidas pela Igreja Católica.

Conhecer as regras congressuais e saber jogá-las foram trunfos dos agentes católicos. Aproveitaram-se da moralidade cristã, cuja legitimidade reivindicaram, para obter significativo proveito simbólico – utilizando expressão bastante bourdieusiana. Mesmo com parlamentares evangélicos ocupando boa parte das cadeiras de titularidade (poder de voz e voto), o jogo permaneceu nos mesmos parâmetros desempenhados pela CNBB noutros momentos políticos. Para valer suas ideias nos assuntos morais, não precisaram mobilizar deputados ou senadores declaradamente fiéis. Apresentaram-se como chave de legitimidade, imprescindíveis aos discursos veiculados pelos políticos: permitiram o acesso aos debates sobre família, filhos, etc. (WOHNRATH, 2017WOHNRATH, Vinicius Parolin. Duas dinâmicas, dois resultados: a Igreja Católica na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Pro-Posições, Campinas, p. 242-270, 2017., p. 260)

A CNBB fez uso desse capital religioso e moral no julgamento da união homoafetiva, tendo apresentado argumentos sobre a natureza do vínculo familiar que provém da união conjugal entre a mulher e o homem. No entanto, a entidade não formulou o requerimento para ingresso como amicus curiae no caso da criminalização da homofobia e transfobia. Nesse julgamento, houve a substituição da entidade católica – como expositora de argumentos contrários ao julgamento de procedência – por entidades ligadas à religião evangélica, a saber, Anajure, Cobim e Bancada Evangélica.

A Bancada Evangélica também esteve presente durante a Constituinte de 1987-1988, entretanto, sua atuação fora das esferas legislativa e executiva era tímida se comparada com outras entidades vinculadas a religiões – a Anajure, por exemplo, atua em oito ações constitucionais perante o STF.8 8 Fonte: http://portal.stf.jus.br/processos/listarPartes.asp?termo=ASSOCIA%C3%87%C3%83O%20NACIONAL%20DE%20JURISTAS%20EVANG%C3%89LICOS. Acesso em: 9 dez. 2019.

Os evangélicos ascenderam demograficamente e produziram seus canais políticos no Legislativo e no Executivo, mas em menor incidência no Judiciário. Eles têm demonstrado forte capacidade de indução do voto, mais do que qualquer outra religião no país. [...] Assim, a via eleitoral permitiu acesso às elites políticas de religiosos com menos capitais econômico, cultural e social do que o necessário para a mobilidade no Poder Judiciário, cujo perfil é predominantemente elitizado, tradicional e católico. (ALMEIDA, 2017ALMEIDA, Ronaldo de. A onda quebrada – evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu, 2017., p. s/n)

Nesse contexto, é inédito9 9 A busca pelo nome da Frente Parlamentar “Mista” da Família de Apoio à Vida no site do STF apresentou como único resultado sua participação na ADO n. 26. Fonte: Supremo Tribunal Federal. e notável o ingresso da Bancada Evangélica no Poder Judiciário, especialmente considerando que se trata de uma organização formada por parlamentares cuja arena decisória tradicionalmente havia sido, por definição, o Congresso Nacional. Uma hipótese para esse ineditismo talvez seja a própria natureza dos interesses em discussão, conforme abordarei na seção 4. De todo modo, essa novidade foi acompanhada pela formação mais conservadora do Congresso Nacional desde a redemocratização10 10 Fonte: Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2018/12/21/novo-governo-e-congresso-com-perfil-mais-conservador-geram-duvidas-sobre-avanco-em-direitos-da-populacao-lgbt. Acesso em: 7 jun. 2021. e a eleição de Jair Bolsonaro, o primeiro Presidente da República que foi filiado à Bancada Evangélica durante o exercício de seus mandatos no Poder Legislativo, sendo conhecido por declarações abertamente contrárias aos direitos das pessoas LGBT.11 11 Fonte: G1. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/03/estou-me-lixando-para-esse-pessoal-diz-bolsonaro-sobre-movimento-gay.html. Acesso em: 7 jun. 2021.

Por outro lado, analisando os casos sob a perspectiva dos amici curiae que atuaram como incentivo, isto é, que trouxeram argumentos favoráveis à união homoafetiva e à criminalização da homofobia e transfobia, um dado relevante a ser ressaltado é a maior presença de pessoas LGBT que realizaram a sustentação oral na tribuna do STF. No caso da união homoafetiva, apenas o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti realizou a sustentação oral pelas entidades favoráveis ao julgamento de procedência. A maioria das sustentações orais foi realizada por nomes reconhecidos da doutrina de direito constitucional, tais como Luís Roberto Barroso (que viria a ser nomeado Ministro do STF anos depois) e Oscar Vilhena Vieira e, da doutrina de direito civil e de família, a exemplo de Maria Berenice Dias.12 12 Fonte: decisão de julgamento de 04.05.2011. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11872. Acesso em: 10 dez. 2019.

Já o caso da criminalização da homofobia e transfobia contou com a sustentação oral dos advogados LGBT Thiago Gomes Viana, Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia, Ananda Hadah Rodrigues Puchta e Maria Eduarda Aguiar da Silva representando os amici curiae favoráveis ao julgamento de procedência, além do advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, que realizou a sustentação oral pelos autores das ações constitucionais.

Entendo que essa mudança de advogados doutrinadores por advogados LGBT é significativa pelo fato de demonstrar uma maior representatividade em um julgamento em que justamente se discutem direitos das pessoas LGBT.13 13 Os efeitos simbólicos dessa maior representatividade foram abordados em artigo anterior (BUZOLIN, 2020). Optei por utilizar o conceito de representatividade em vez do exercício do lugar de fala das pessoas LGBT, pois, conforme ensina Djamila Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento Justificando, 2017., p. 47-48),

um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade. [...] Assim, entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que os indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados.

Essa mudança também demonstra a adaptabilidade dos atores a uma nova conjuntura, sobretudo quando consideramos que o caso da união homoafetiva, em 2011, foi o primeiro julgamento emblemático sobre direitos das pessoas LGBT e que foi seguido de outros casos importantes, como a ADI n. 4.275, que decidiu pela possibilidade do uso do nome social por pessoas transgênero (em 2018), e a ADI n. 5.543, que afirmou a possibilidade de doação de sangue por homens homoafetivos (em maio de 2020).

4. OS INTERESSES APARENTES

Os interesses dos atores que mais se destacaram no estudo dos casos foram os interesses contrários ao julgamento de procedência dos pedidos das ações constitucionais, não só porque são diferentes dos interesses dos atores das ações, mas também porque revelaram demandas externas e características dos atores que as ventilaram.

A contribuição da CNBB no caso da união homoafetiva foi sobre o fato de a Constituição Federal definir o vínculo familiar na união conjugal da mulher e do homem, de modo que o Código Civil somente teria reproduzido essa disposição. Esse argumento foi enfrentado e acolhido em parte por uma minoria dos Ministros do STF, uma vez que, conforme abordei anteriormente, três Ministros entenderam que o rol do art. 226 da Constituição Federal elencou entidades familiares existentes a partir da união do homem e da mulher.

Já no caso da criminalização da homofobia e transfobia, a Bancada Evangélica e a Cobim trouxeram manifestações acerca do tema da liberdade religiosa. Essa questão não foi abordada originalmente na petição inicial da ADO n. 26,14 14 A íntegra da petição inicial pode ser consultada em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4515053. Acesso em: 22 jan. 2020. mas acabou sendo incorporada na tese jurídica sedimentada no julgamento da seguinte maneira:

A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero. (BRASIL, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26. Julgada procedente em parte. Partido Popular Socialista e Congresso Nacional. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento, 2019.)

Nesse contexto, os argumentos trazidos pela CNBB no caso da união homoafetiva foram centrados em uma ideia de moralidade familiar a ser seguida por todos os brasileiros, o que caracterizo como interesse amplo. No caso da criminalização da homofobia e transfobia, a manifestação apresentada pela Bancada Evangélica foi além dos argumentos sobre a necessidade de julgamento de improcedência dos pedidos, sendo marcada pela presença de fundamentação vinculada a interesses dos próprios parlamentares, abordando a imunidade parlamentar e sua liberdade de expressão. Nesse caso, foi apresentado um interesse restrito da Bancada Evangélica, focado na proteção à liberdade dos parlamentares evangélicos de emitir discurso livre e respeitoso, assentado na heterossexualidade.

Esse dado demonstra que – assim como na esfera política, notadamente no Poder Legislativo federal – as entidades religiosas têm exercido influência no processo decisório do STF, ainda que sem obter o resultado almejado, uma vez que não houve o acolhimento da pauta central proposta por tais entidades religiosas, a saber, a impossibilidade de afirmação de direitos das pessoas LGBT.

Apesar de contar com a adesão de um considerável volume de parlamentares no Congresso Nacional, a Bancada Evangélica ainda não se mostrou capaz de converter suas pautas em normas jurídicas. Especificamente sobre a questão da família homoafetiva e as Frentes Parlamentares, “há uma representação tanto dos interesses do movimento LGBT como do movimento evangélico dentro do Congresso Nacional que tem gerado um tipo de tensão paralisante, ou seja, indício da impossibilidade de aprovação de projetos de lei contrários ou favoráveis à família homoafetiva” (BUZOLIN, 2019BUZOLIN, Lívia Gonçalves. Direito homoafetivo: criação e discussão nos Poderes Judiciário e Legislativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2019., p. 122).

Também é significativo o uso do discurso da proteção dos direitos humanos por parte da Bancada Evangélica, a reivindicar o direito de liberdade como fundamento para o exercício da liberdade religiosa e parlamentar sem punição por discursos que sejam contrários às pessoas LGBT. Essa tendência já havia sido reconhecida pela pesquisa de Maria das Dores Campos Machado, que analisou o comportamento reativo de grande parte dos atores evangélicos na Câmara dos Deputados, concluindo que “já não se restringe à inversão dos argumentos apresentados pelos gays” (MACHADO, 2017MACHADO, Maria das Dores Campos. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 47, p. 351-380, jan./abr. 2017., p. 364), mas também à apropriação de valores ligados ao ideário dos direitos humanos, como a liberdade de expressão e de crença.

Essa mudança nos interesses (e discursos) das entidades religiosas contrárias ao reconhecimento de direitos das pessoas LGBT – nos casos específicos, alterando de um interesse mais amplo ligado à moralidade cristã para outro mais restrito à liberdade parlamentar de deputados e senadores evangélicos – pode ser explicada pelo pluralismo político de Robert Dahl como um resultado natural das coalizões e conjunturas que se formam na arena decisória em torno daquela determinada política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos casos da união homoafetiva (2011) e da criminalização da homofobia e transfobia (2019) a partir do pluralismo político de Robert Dahl permitiu identificar os atores e interesses presentes no STF, classificado neste artigo como a arena decisória das políticas em discussão, em razão da relevância alcançada pelo Poder Judiciário com a previsão de direitos de não discriminação na Constituição Federal de 1988 e da judicialização de conflitos sociais.

Todos os atores são dotados de recursos políticos para exercer influência em determinada política; as entidades religiosas e os organismos do terceiro setor defensores de direitos humanos e minorias sociais são os atores que historicamente conseguiram pautar questões relacionadas aos direitos das pessoas LGBT no Brasil, seja atuando como incentivo para que a questão fosse trazida para o topo da agenda governamental, seja funcionando como obstáculo para reduzir a chance de reconhecimento da união homoafetiva e da criminalização da homofobia e transfobia.

A partir do estudo de casos realizado foi possível constatar que diferentes atores ingressaram como amici curiae nas ações constitucionais com o objetivo de exercer influência no resultado dos julgamentos. A comparação dos dois casos revelou que, ao longo dos anos, houve um aumento de mais de 10% no número de atores contrários ao julgamento de procedência do pedido de criminalização de homofobia e transfobia quando comparado ao caso da união homoafetiva.

Os atores que se posicionaram de maneira contrária mudaram totalmente de um julgamento para o outro. Enquanto no caso da união homoafetiva esse posicionamento foi representado pela CNBB e pela Associação Eduardo Banks, no caso da criminalização da homofobia e transfobia, os atores obstáculo ao pedido de procedência foram entidades evangélicas, a saber, Anajure, Cobim e Bancada Evangélica, sendo inédita a participação dessa última no STF.

Apesar de diversas arenas decisórias terem sido mobilizadas por esses atores, a escolha da análise do Poder Judiciário permitiu verificar a divergência dos interesses, moldados a partir da conjuntura e do estágio da política em discussão, revelados sobretudo nas manifestações e nos argumentos trazidos pelos amici curiae durante o processamento das ações constitucionais de maneira voluntária e com maior liberalidade, por exemplo, do que o autor e o réu no processo – vinculados aos pedidos da petição inicial.

Dessa forma, identifiquei que, no caso da união homoafetiva, o interesse demonstrado pela CNBB foi centrado em uma ideia de moralidade familiar a ser seguida por todos os brasileiros (interesse amplo). No caso da criminalização da homofobia e transfobia, a manifestação apresentada pela Bancada Evangélica foi marcada pela presença de fundamentação vinculada a interesses dos próprios parlamentares, abordando a imunidade parlamentar e sua liberdade de expressão. Ou seja, foi apresentado um interesse restrito da Bancada Evangélica, focado na proteção à liberdade dos parlamentares evangélicos de emitir um discurso assentado na heteronormatividade.

Essa mudança nos interesses aparentes dos atores contrários ao julgamento de procedência dos pedidos pode ser explicada quando consideramos a própria natureza das políticas em discussão: no caso de 2011, discutiu-se a extensão de direitos a um grupo minoritário, ao passo que, em 2019, decidiu-se sobre a criminalização de uma conduta, o que afetará outros grupos considerados ofensores em potencial.

De todo modo, as razões pelas quais houve uma mudança tanto nos atores que se posicionaram de maneira contrária como nos interesses aparentes desses atores somente poderão ser mais bem compreendidas a partir de um estudo mais aprofundado, o que não fez parte do objeto deste artigo.

Também deixo o convite para maior investigação sobre a organização dos atores em prol dos direitos LGBT nos últimos dez anos e que, ao que tudo indica, permitiu maior representatividade de pessoas LGBT na participação e defesa dos seus interesses no STF.

AGRADECIMENTOS

A autora agradece a Luciana Gross Cunha, Lauro Emilio Gonzalez Farias e Eduardo Grin pelos comentários. Agradece também à Fundação Getulio Vargas pela bolsa Mario Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2020
  • Aceito
    25 Nov 2021
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