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Uma pessoa trabalhadora e “família”: a identidade concurseira nas representações de Instagram

A FAMILY HARD WORKER: CONCURSEIRA’S IDENTITY ON PRESENTATIONS FROM INSTAGRAM

UNA PERSONA TRABAJADORA Y “FAMILIA": LA IDENTIDAD “CONCURSEIRA” EN LAS REPRESENTACIONES DE INSTAGRAM

Resumo

Esta é uma pesquisa desenvolvida no âmbito da sociologia das profissões jurídicas com o objetivo de identificar o processo de construção da identidade concurseira a partir da análise das representações do eu no espaço de socialização virtual do Instagram. Realizou-se análise “dramatúrgica” inspirada nas pesquisas de Ervin Goffman das interações ocorridas nos perfis de Instagram de 44 atores em representação no mundo dos concursos durante o mês de junho de 2022. O trabalho interpretativo consistiu na busca pela identificação de valores compartilhados pelos integrantes do heterogêneo grupo de análise. Percebemos uma disposição de grupo constante para a representação de um tipo trabalhador e ordeiro, avesso ao conflito aberto e materializador dos “valores familiares”. Rotulamos esses traços de identidade como os de uma pessoa “trabalhadora” e “família”. Concluímos que (1) há uma grande diferença entre os valores “profissionais” das carreiras jurídicas e os valores “concurseiros” em circulação no espaço social e que (2) isso nos permite diagnosticar a existência de problemas significativos no contexto do exercício concreto das atividades institucionais de formação e controle da “moral oficial” dentro do campo jurídico profissional, nas escolas de formação, nas corregedorias e nos tribunais de ética.

Palavras-chave
Sociologia das profissões jurídicas; concurso público; identidade concurseira; ética no campo jurídico; Instagram

Abstract

This is a study on the sociology of juridical professions developed with the aim to identify the construction of an “concurseira’s” identity (the identity of a public servant “wannabe” in Brazil) from the analysis of the presentation of the self in the virtual social space of Instagram. We carried on a dramaturgical analysis, inspired by Ervin Goffman, of the interactions occurred during the month of June in 2022 in 44 Instagram’s profile. The interpretative work consisted in the search for values shared by members of the group. We came to identify a constant group’s disposition for the presentation of a role of a worker and orderly person that avoid the conflict and that materialize “family values”. We labeled those traces of personality as “worker” and “family”. We concluded that there are significant differences between “professional” values and “concurseiro’s” values in the field. We understood that (1) there is a significant difference between the concurseiro’s values and the “professional” values in the juridical field, and (2) this leads to a great chance of seeing concrete problems in the institutional systems of juridical education and ethics’ control.

Keywords
Sociology of juridical professions; recruitment of public servants; concurseiras’s identity; ethics in the juridical field; Instagram

Resumen

Este es un estudio de sociología de las profesiones jurídicas desarrollado con el objetivo de identificar la construcción de la identidad "concurseira" (la identidad de alguien que aspira a ser funcionario público en Brasil) a partir del análisis de la presentación del self en el espacio social virtual de Instagram. Llevamos a cabo un análisis dramatúrgico, inspirado en Goffman, de las interacciones ocurridas durante el mes de junio de 2022 en 44 perfiles de Instagram. El trabajo interpretativo consistió en la búsqueda de valores compartidos por los miembros del grupo. Llegamos a identificar una disposición constante del grupo para presentar el papel de trabajador y persona ordenada que evita el conflicto y materializa los "valores familiares". Etiquetamos esos rasgos de personalidad como "trabajador" y "familiar". Concluimos que existen diferencias significativas entre los valores "profesionales" y los valores de los "concurseiros" en el campo. Comprendimos que (1) hay una diferencia significativa entre los valores de los concurseiros y los valores "profesionales" en el ámbito jurídico, y (2) esto conduce a una gran posibilidad de ver problemas concretos en los sistemas institucionales de educación jurídica y control ético.

Palabras clave
Sociología de las profesiones jurídicas; reclutamiento de funcionarios públicos; identidad “concurseira”; ética en el campo jurídico; Instagram

Introdução: os diferentes mundos do concurseiro e do concursado1 1 Os autores agradecem ao grupo de pesquisadores(as) do Observatório de Práticas Sociojurídicas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) pela interação proveitosa e pelo constante estímulo intelectual. Agradecem também a Ingrid S. Cavalcante pelo insight inicial e pela leitura atenta do primeiro rascunho deste texto.

Sob o ponto de vista do senso comum, o fenômeno do concurseiro encontra-se materializado. No Brasil, um grande número de pessoas é capaz de identificar um(a) “concurseiro(a)” ainda que não o(a) consiga definir. Há sempre um amigo, um parente, uma colega de turma, que “estuda para concurso”. Para quem vive o dia a dia no campo jurídico profissional, então, o “concurseiro” é real.2 2 Recorremos a essa materialização real do concurseiro para a adoção de uma orientação de estilo: a não utilização das aspas (“”) para fazer referência ao grupo.

Para além dessa constatação existencial, pode-se dizer que o concurseiro se materializa também como objeto de estudo, ou seja, existe como tema científico. Pesquisas etnográficas recentes nos fornecem um relato bastante crível e vivo desse mundo. Trata-se de um mundo povoado por atores peculiares - o professor concurseiro, os empreendedores da educação, coaches e afins, além do próprio concurseiro, ator que possui menor capital simbólico (e, em regra, econômico), mas em torno do qual giram as interações nesse universo (Maia, 2019MAIA, Bóris. Sujeitos de Estado: aprendizado e tradição de conhecimento na preparação para concursos públicos da burocracia fiscal. 2019. 250 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.) - no qual se criam “mentalidades” e constroem-se certos traços de caráter.

Assim, já se falou na existência de uma psicodinâmica específica no grupo - a psicodinâmica do “não trabalho” (Anjos; Mendes, 2015ANJOS, Felipe Burle dos; MENDES, Ana Magnólia. A psicodinâmica do não trabalho. Estudo de caso com concurseiros. Revista Laborativa, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 35-55, abr. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa/article/view/1074 . Acesso em: 12 fev. 2024.
https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborati...
, p. 52) - e, também, na possibilidade da internalização de valores por parte do concurseiro, o que corresponde à formação de um ethos concurseiro (Araújo, 2016ARAÚJO, Henny Nayane Tavares de. A construção do Ethos concurseiro: mérito e experiência moral na competição por cargos públicos. 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016., p. 96). Esse parece ser um universo tão peculiar que pesquisadores do sistema de seleção estatal (concursos) chegam a formular a hipótese de que haja mesmo uma “ideologia concurseira” (Fontainha et al., 2014FONTAINHA, Fernando et al. Processos seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos concursos? Rio de Janeiro: FGV, 2014., p. 13-15).

Sob o ponto de vista de pesquisadores do campo jurídico - que realizam suas pesquisas vinculados às demandas das instituições jurídicas3 3 O ângulo de abordagem pode mudar, mas a especificidade do mundo dos concursos permaneceria. Assim, sob o ponto de vista dos pesquisadores da Engenharia, o mundo do engenheiro concurseiro estaria separado do mundo do exercício profissional da engenharia, e, sob os olhos do administrador, o mundo do administrador concurseiro estaria separado do mundo do verdadeiro businessman, etc. Essa multiplicidade de pontos de observação do fenômeno é “materialização” da autonomia. -, levar a sério a existência desse mundo dos concurseiros significa, entre outras coisas, conjecturar acerca da possibilidade de uma ruptura entre os mundos daqueles que desejam ser juristas contratados pelo Estado e daqueles que já o são. E aqui, vale dizer, usamos a palavra “mundo” para nos referir a um espaço de interação social específico no qual vivemos uma das faces da nossa vida cotidiana. Um universo cultural dotado de relativa autonomia no espaço da nossa vida social mais ampla.

Pode-se dizer que há indícios dessa cisão de mundos quando percebemos, por exemplo, a existência de uma lacuna significativa entre “o que se faz para ser aprovado” e “o que se faz depois de aprovado” em concurso público. O caráter autorreferencial das seleções de funcionários públicos - que selecionam os melhores “fazedores de prova” sem grandes considerações sobre o perfil profissional e sobre as competências e habilidades do servidor (Feitosa; Passos, 2017FEITOSA, Gustavo Pereira; PASSOS, Daniela Veloso. O concurso público e as novas competências para o exercício da magistratura: uma análise do atual modelo de seleção. Seqüência, Florianópolis, n. 76, p. 131-154, ago. 2017., p. 150) - pode ser apontado como uma disfuncionalidade do sistema de seleção que certamente “acarreta enorme prejuízo de recursos financeiros e humanos para a administração pública” (Fontainha et al., 2014FONTAINHA, Fernando et al. Processos seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos concursos? Rio de Janeiro: FGV, 2014., p. 15).

A fala de uma experiente profissional do Direito (ministra do Superior Tribunal de Justiça [STJ]) oferece-nos uma clara ideia desse “sentimento” de separação entre o mundo das provas e o mundo do exercício profissional concretamente considerado.

A magistratura brasileira sofre hoje duas importantes tendências: juvenilização e feminilização, arregimentando jovens bacharéis em Direito, recém-saídos das faculdades. Mediante concurso de provas e títulos, com absoluta transparência e seriedade, ingressa-se na magistratura com uma bagagem pesada de conteúdo doutrinário, com um conhecimento geral amplo, mas superficial, superficialidade vencida aqui e ali pelos cursos de preparação para concursos públicos.

Com o entusiasmo dos jovens, encontram os novos magistrados colegas que, como eles, vêm de uma universidade que se formou dentro de linhas bem antigas, prontas para ministrar muitas informações e pouquíssima formação.

São a estes jovens, produto de uma formação acadêmica decadente, a quem entregamos o destino do Judiciário (Calmon, 2006CALMON, Eliana. O perfil do juiz brasileiro. Themis: Revista da Escola Superior de Magistratura do Estado do Ceará, v. 4, n. 1, p. 363-375, 2006. Disponível em: Disponível em: https://revistathemis.tjce.jus.br/THEMIS/article/view/276/265 . Acesso em: 16 nov. 2023.
https://revistathemis.tjce.jus.br/THEMIS...
, p. 363).

Assim, enquanto a observação direta no mundo dos concursos nos diz que estamos diante de uma prática formativa marcada pela “dica”, pelo “macete”, pela “esquematização” (Maia, 2019MAIA, Bóris. Sujeitos de Estado: aprendizado e tradição de conhecimento na preparação para concursos públicos da burocracia fiscal. 2019. 250 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., p. 189) e pelos “bizus” (Passos, 2018PASSOS, Daniela Veloso Souza. Concurso público para a magistratura: repensando o modelo de seleção e o papel dos juízes na democracia brasileira. 2018. 279f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) - Universidade de Fortaleza, 2018. Disponível em: Disponível em: https://uol.unifor.br/auth-sophia/exibicao/21038 . Acesso em: 12 fev. 2024.
https://uol.unifor.br/auth-sophia/exibic...
, p. 105), as instituições jurídicas profissionais pensam em contar com profissionais com

capacidade de usar o conhecimento científico de todas as áreas para resolver problemas novos de modo original - o que implica o domínio não só de conteúdos, mas dos caminhos metodológicos e das formas de trabalho intelectual interdisciplinar, e que exige educação inicial e continuada rigorosa, em níveis crescentes de complexidade.4 4 Trechos das “Diretrizes Pedagógicas da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados”. Acessadas no site https://www.enfam.jus.br/ensino/diretrizes-pedagogicas/, em 23 de novembro de 2022.

Esta pesquisa parte justamente do ponto em que se nota uma cisão aparente de mundos com o objetivo de realizar uma reflexão sobre o tema a partir de uma aproximação cultural. A pretensão foi levar a sério essa hipótese e nos perguntar: estamos diante de diferentes culturas? São os valores concurseiros realmente tão diferentes dos valores desses profissionais do Direito já contratados pelo Estado a ponto de podermos falar na existência de dois mundos?

Por sua vez, essa abordagem da questão dos valores se dá a partir de um movimento interno, ou seja, do direcionamento da curiosidade científica a partir da identificação de um problema vivido dentro do próprio campo jurídico profissional. É que nesse universo profissional existem diversos códigos de conduta em vigor que definem o ideal moral profissional dos juristas, ou seja, há uma moral oficialmente estipulada no campo jurídico profissional.

Esses valores profissionais previstos normativamente são repassados institucionalmente como “moral oficial” nos curtos cursos de formação que, em geral, acontecem após a aprovação em concurso. De acordo com as regras ético-jurídicas em vigor no campo, a incorporação desses valores nas interações da vida profissional e pessoal dos juristas não é algo opcional. Agir conforme os valores profissionais é um “dever”, e a existência de um comportamento desviante pode resultar no acionamento do sistema institucional de controle (corregedorias, tribunais de ética e afins).

Esta pesquisa foi conduzida a partir de considerações sobre esse contexto de vida profissional institucional e foi concretizada com a intenção de contribuir com informações para a realização de uma reflexão sobre a moral profissional dos juristas (o ideal normativo e a realidade comportamental efetiva) e o seu sistema institucional de formação de pessoal e controle ético.

1. representações do eu na cultura da virtualidade real

Nesta pesquisa, buscamos analisar as imagens do concurseiro projetadas e forjadas no espaço de interação virtual do Instagram. A partir da análise dessas representações, foi possível identificar os valores em circulação no mundo do concurseiro e então indicar o processo de construção de uma identidade de grupo. Privilegiamos, portanto, a observação e a análise da “ordem da interação” (Goffman, 1983GOFFMAN, Erving. The Interaction Order: American Sociological Association, 1982 Presidential Address. American Sociological Review, [s. l.], v. 48, n. 1, p. 1-17, fev. 1983., p. 5) na nossa vida social.

Devemos essa “calibração” do olhar científico principalmente à leitura atual de A representação do eu na vida cotidiana (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014.), publicado pela primeira vez em 1959. Então, o que um texto produzido a partir da observação das interações sociais acontecidas em geral no âmbito cultural da sociedade anglo-americana em meados do século passado tem a sugerir ao analista da nossa vida atual? Isso merece alguma consideração.5 5 Não se pretende aqui desenvolver uma argumentação original. Há exemplos de pesquisas em ambientes de interação social “virtual” a partir da influência teórica de Goffman. Consultamos Vaast (2007) e Thibes e Mancini (2013).

O caráter existencial da epistemologia de Goffman permite que a sua curiosidade científica se torne atualizável. Ele dedicou-se a analisar o teatro da vida cotidiana, ou seja, como “lemos” uns aos outros, formulamos ideias compreensivas e atuamos nos pequenos e nos grandes encontros do nosso dia a dia. A sua análise utiliza-se da “linguagem teatral” e concentra-se nos “problemas dramatúrgicos” surgidos nos encontros humanos do tipo cara a cara (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 255).

De acordo com ele, apresentamo-nos socialmente de maneira controlada, sempre tentando permitir a leitura de “quem nós somos” por parte dos outros participantes da interação. Nos encontros cotidianos (interações), apresentamo-nos expressivamente de forma a tornar possível a leitura do nosso papel social e esperamos ser tratados de acordo com ele. Em suas próprias palavras:

A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada. [...] quando um indivíduo projeta uma definição da situação e com isso pretende, implícita ou explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo automaticamente exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e a tratá-lo de acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 25).

A epistemologia existencial de Goffman6 6 Esse impulso “existencial” a partir do contato com Goffman pode ser percebido também em relato de um dos seus ex-alunos (Marx, 1984). Além disso, há no texto “A representação do eu...” um diálogo constante com os trabalhos de Sartre e Simone, por exemplo, p. 45, 70, 88, 89, 127, 253. Para o desenvolvimento da ideia de uma epistemologia existencial, ver Maia (2018). leva-o a formular claramente uma ideia não essencialista sobre o fenômeno humano. Somos quem representamos ser, ou seja, construímos quem somos a partir daquilo que expressamos nas diversas esferas da nossa vida (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 270). Essa afirmação tem o mesmo sentido da de Sartre (2014SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 17) em O ser e o nada quando diz que a sua teoria do fenômeno “substituiu a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno” (grifos do autor).

Vive-se hoje de maneira muito diferente da que se vivia em meados do século passado. Uma das diferenças significativas, que é claramente perceptível, diz respeito ao meio pelo qual se dá a nossa interação social. Atualmente, passamos muitas horas do dia interagindo através das telas, usando os mais diversos gadgets. Objetivamente, isso significa que uma parte importante do nosso dia é “tempo de tela” e somos apresentados a esse estilo de vida cada vez mais cedo (Nobre et al., 2021NOBRE, Juliana Nogueira Pontes et al. Fatores determinantes no tempo de tela de crianças na primeira infância. Ciência & Saúde Coletiva, [s. l.], v. 26, n. 3, p. 1127-1136, 2021., p. 1128). O viver “com a tela” é uma característica de vida que alcança o viver de pessoas em diferentes pontos do planeta Terra, e o estilo de vida “mediada por telas” começa a fazer parte da nossa autoimagem (Nunes, 2016NUNES, Ana Cecília Bisso. A representação da vida mediada por telas: a cultura da convergência através do episódio Connection Lost de Modern Family. Mediação, Belo Horizonte, v. 18, n. 23, jul./dez. 2016.).

Hoje, a mudança paradigmática é ainda mais profunda, além de vivermos “com as telas”, a nossa própria vivência pode se efetivar “pelas telas” (Sanz, 2021SANZ, Cláudia Linhares; SOUZA, Fabiane de; CAMPELO, Luanda. Vida instagramável: habitando tempos e espaços do mundo-empresa. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, [s. l.], v. 20, n. 37, p. 52-63, 2021., p. 54).7 7 Isso significa ir além da ideia de vivermos “dentro” das telas. Uma vida “dentro” das telas sempre pressupõe a possibilidade de se viver paralelamente uma vida “fora” das telas. A vida vivida pela tela é “sentida na pele” e não pode ser “desligada”. É a vida vivida no gozo do ambiente instagramável (Thibes, 2013, p. 155), mas também sentida como violência. Ver, por exemplo, a visão pessimista das próprias crianças e adolescentes quanto à possibilidade de se evitar o cyberbullying. Relato de jovem inglês: “I don’t think you can ever stop cyberbullying at all because you’d basically have to get rid of all the communication things that we love and you can’t do that’, ‘you might do a lot of things to them but it still ain’t going to stop them’” (Smith et al., 2008, p. 381). Em tradução livre: “‘Eu não acredito que possamos acabar com o ciberbullying, porque, para isso, teríamos de nos livrar de todos os aparelhos de comunicação que nós amamos e você não pode fazer isso’, ‘você pode fazer muitas coisas com eles [assediadores], mas mesmo assim não conseguirá pará-los’”. A internet não serve apenas para “mostrar” a nossa realidade. É no espaço de fluxo (Castells, 2019CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019., p. 494) das comunicações em rede que “fazemos” nossa vida, ou seja, cada vez mais as nossas ações no mundo virtual são ações que constituem a nossa realidade. No atual estágio de comunicação e interação humana,

a própria realidade (ou seja, a experiência simbólica/material das pessoas) é inteiramente captada, totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do faz de conta, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam na experiência (Castells, 2019CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019., p. 455).

Vivemos em um momento no qual é possível perceber a “materialidade de ambientes digitais” (Machado, 2015MACHADO, Mônica. Daniel Miller: “A antropologia digital é o melhor caminho para entender a sociedade moderna”. Entrevista. Revista Z cultural, ano X.01, 2015., p. 2) ou, sob outra perspectiva, de desenvolvimento significativo da cultura da “virtualidade real”. Trata-se de uma nova configuração de mundo “onde o faz de conta vai se tornando realidade” (Castells, 2019CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019., p. 458).

Recentemente - com a pandemia de covid-19 -, os seres humanos foram orientados a se distanciarem fisicamente uns dos outros por um período, e isso agudizou o processo de mudança no nosso jeito de viver. No que diz respeito ao tempo de tela dos brasileiros, por exemplo, estudos epidemiológicos indicam que o tempo de uso do computar e do tablet foi de mais de 5 horas por dia durante a pandemia, e entre os jovens adultos esse tempo médio foi de 7 horas e 45 minutos (Malta et al., 2020MALTA, Deborah Carvalho et al. A pandemia da covid-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 29, n. 4, p. 1-13, 2020., p. 8).

O ponto que desejamos enfatizar é que a convivência humana migra do espaço social físico para o espaço de fluxo virtual e isso nos permite analisar a vida virtual como vida tout court. Esse estado de coisas transforma os estudos sobre o que acontece na vida virtual em estudos sobre o “centro” da sociabilidade humana e isso garante dignidade acadêmica e social ao estudo de fenômenos que de outra forma poderiam se considerar banais.8 8 É interessante notar a “exortação” de pesquisador da antropologia digital aos seus alunos - que ficaram impossibilitados de “fazer o campo” da maneira tradicional durante a pandemia de covid-19 - a se arriscarem a fazer pesquisa a partir de interações no mundo virtual (Miller, 2021). A fala publicada inicialmente pelo professor está disponível em https://wordpress.com/post/csociais.wordpress.com/2567. Acesso em: 15 dez. 2023.

2. O concurseiro de Instagram: sobre o espaço público virtual, os atores e o sentido da observação

Depois de realizada pesquisa exploratória em espaços virtuais de interação de grupos concurseiros (fóruns virtuais, grupos de WhatsApp, perfis de Facebook e Instagram), optamos por estabilizar a nossa observação na análise das interações sociais na vida de Instagram de um grupo de atores em representação no mundo do concurseiro.

Desde o início, percebemos que tanto o Facebook quanto o Instagram nos permitiam uma análise mais rica em termos de expressividade humana se comparados aos fóruns e grupos de WhatsApp. Nesses dois primeiros, a própria natureza pictórica da comunicação gerada - que privilegia o uso de imagens na formação de uma identidade virtual - garante uma riqueza simbólica que favorece a análise das interações sociais.

No Facebook e especialmente no Instagram, percebe-se maior variedade de expressões e de elementos cênicos com uma maior possibilidade de criação de redes de interação e de análise iconográfica. Esses lugares de encontro virtual nos pareceram ideais para a análise do que Goffman (2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014.) chama de expressões “emitidas”, que são aquelas que estão para além do sentido literal das palavras comunicadas e incluem uma série de “pistas” deixadas pelo ator nos gestos e no cenário da sua representação.9 9 Vale lembrar do “exemplo” dado por Goffman (2014, p. 17) quando fala de expressão emitida. Retira de livro descrição de cena em que um inglês, bem de vida e um tanto esnobe, “faz se perceber” em uma praia espanhola. Ele, entre outras coisas, “olha os outros por cima”, “ri de maneira controlada e casual”, “Lê um livro na praia”, “mostra a capa do livro”, “nada de maneira a mostrar sua familiaridade com o mar”, etc.

Optamos pela análise das representações acontecidas no Instagram devido a um critério pouco objetivo, mas que pareceu fazer sentido nas nossas conversas. Consideramos o Facebook um aplicativo dotado de capital simbólico decrescente, um aplicativo “envelhecido” ou um tanto “fora de moda”. O Instagram pareceu-nos nesse momento - as mudanças nesse sentido são muito rápidas - um aplicativo mais “adulto” do que o TikTok e mais “jovem” do que o Facebook. Esse perfil intermediário do Instagram10 10 Há indicação de que essa “impressão” tem respaldo estatístico. O site “statista” afirma que mais de 60% dos usuários de Instagram estão entre os 18 e os 34 anos de idade. Site da “statista”, em https://www.statista.com/statistics/325587/instagram-global-age-group/. Acesso em: 24 jun. 2022. nos pareceu adequado para a análise de interações dos grupos concurseiros na medida em que grande parte desse grupo é formada por jovens adultos que buscam a integração no mercado de trabalho.

Realizamos a nossa observação no que consideramos ser o espaço público virtual. O Instagram é um software produzido por uma empresa privada, no entanto, consideramos público o espaço de interação nos perfis abertos. Isso significa que as interações observadas nesta pesquisa estão - ou estavam na época da observação - acessíveis para qualquer pessoa do planeta com acesso à internet e perfil no Instagram.11 11 Para uma reflexão de caráter ético sobre as observações realizadas nos espaços públicos e privados (também uma conversa sobre a própria ideia de público e privado no mundo virtual), ver Estalella e Ardèvol (2007, p. 9-10).

Não provocamos interação a partir do nosso perfil, mas estávamos presentes também nesse mundo virtual. Por isso, tivemos de nos preocupar com a nossa própria representação social. Representamos nesse universo o papel de um sóbrio agente institucional que estava situado em uma plateia enorme, com outros milhares de “seguidores”. Alguém cuja expressão provavelmente não seria visível por parte dos atores em cena.

Escolhemos o nome “opsj.ufersa”, com indicação expressa na bio acerca da nossa vinculação institucional. A nossa imagem de perfil - a que nos identifica iconograficamente nesse mundo - foi a foto da capa do livro de Goffman, A representação do eu na vida cotidiana. Publicamos apenas um post, a foto de outra capa de livro, agora o A sociedade em rede, de Castells. Como legenda nesse post, escrevemos uma apresentação formal: “Perfil criado por pesquisadores que estudam as representações do ‘eu’ no espaço social-virtual”. Atraímos dois seguidores. Seguimos 44 perfis concurseiros, e foi a partir da observação do que aconteceu nesse universo de interações que fizemos as nossas interpretações.

Buscamos acompanhar as interações de um grupo heterogêneo de concurseiros. Para isso, tivemos de garantir que parte do nosso grupo de observação fosse constituída por uma lógica não algorítmica que é padrão característico das comunicações em rede. Sem considerar isso, correríamos o risco de analisar apenas uma “região” de interação muito específica no mundo dos concurseiros, um setor da vida virtual de “reduzida diversidade” (Loiola, 2018LOIOLA, Daniel Felipe Emergente. Recomendado para você: o impacto do algoritmo do YouTube na formação de bolhas. 2018. 165 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.). Por esse motivo, em alguns casos, recorremos à indicação de perfis concurseiros feitas por informantes de “carne e osso” e à pesquisa ativa no universo do Instagram - com a utilização de palavras-chave no campo de busca -, em oposição ao estabelecimento de conexões com perfis sugeridos pelo próprio software.

Nesta pesquisa, adotamos um conceito puramente instrumental de concurseiro. Isso explica por que não recorremos a categorias nativas como a diferença entre “concurseiros” e “concursandos” (Fontainha, 2011FONTAINHA, Fernando de Castro. O perfil do aluno da EMERJ: um estudo sobre “concursandos”. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out./dez. 2011.; Maia, 2019MAIA, Bóris. Sujeitos de Estado: aprendizado e tradição de conhecimento na preparação para concursos públicos da burocracia fiscal. 2019. 250 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., p. 120). Consideramos concurseiro toda pessoa que se apresenta socialmente dessa forma, ou seja, concurseiro é quem interage nesse mundo.

A partir da observação realizada, percebemos que a identificação expressa é mais comum entre os jovens estudantes e trabalhadores ainda em ascensão na carreira jurídica (pense, por exemplo, em alguém que se apresenta como “concurseiralavoueu” ou “concurseirocapixaba”), e a identificação “por afinidade” é mais comum entre os ex-concurseiros de sucesso, ou seja, entre os profissionais concursados que continuam interagindo nesse mundo. Mesmo no caso desses concurseiros “por afinidade”,12 12 Talvez uma nomenclatura mais adequada seja identificação “por interesse”. Na observação concreta se percebe rapidamente que, em muitos casos, a maior parte deles, essa identificação “por afinidade” deve-se na verdade ao estabelecimento de uma relação econômica. Há relações de consumo, com oferta de serviços de mentoria, venda de livros, de cursos, propaganda de lives, etc. notamos sempre uma inequívoca identificação do ator com o universo concurseiro.

Acompanhamos as interações na vida vivida virtualmente de um grupo muito diferente de concurseiros. Desde um perfil que projeta a imagem de uma jovem concurseira nordestina, de classe média, vegetariana, progressista, esforçada, com preocupações estéticas, até o perfil de alguém consolidado na carreira profissional, um desembargador e concurseiro old school, de meia idade, torcedor do Fluminense, religioso.13 13 Diferentemente do que se pode pensar à primeira vista, em determinado campo social encontram-se diversas ideologias. Ver, por exemplo, a análise de Bourdieu (2008, p. 115-185) sobre os diversos tipos de estilistas no “mundo” da moda. Desde uma jovem delegada, muito feliz com sua família e seus amigos, que posta o look às sextas-feiras e pretende ajudar os concurseiros a estudar “com eficiência e fé” ou uma juíza, professora de uma grande rede de ensino concurseiro, multimídia, que mora na capital, fitness e com uma companheira muito presente com quem tem afinidade, até um concurseiro muito jovem, do interior, que se apresenta como alguém religioso (“Deus acima de tudo”), muito preocupado com as questões policiais e que pretende seguir carreira militar.14 14 No grupo analisado, apenas dois perfis não remetiam a uma pessoa “física”. Um deles era o perfil de uma pessoa jurídica - uma empresa do ramo dos concursos - e outro era um perfil cômico; um alter ego de um concurseiro “físico” já representado no Instagram por perfil “sério”. Durante o tempo de observação, não houve indicativo claro de que os “perfilados” tivessem ajuda de uma equipe profissional na construção de conteúdo. Mesmo que existam esses casos (existência de uma equipe “por trás de um perfil”), não se invalida a proposta de análise desta pesquisa na medida em que essas pessoas de Instagram efetivamente “existem” nesse mundo virtual. Todos com milhares de seguidores.

No palco do Instagram, a interação com a plateia ocorre de inúmeras maneiras. A forma de interação mais comum é rápida, objetiva e se dá por uma linguagem não verbal (são várias as ideias contidas nos mais diversos stickers). Essa é a forma que podemos chamar de comunicação padrão sob uma perspectiva estatística e aquela que garante provavelmente um feedback mais preciso ao controlador do perfil de Instagram.

Há, no entanto, interações mais desenvolvidas no espaço virtual público reservado aos comentários dos posts e provavelmente também nos espaços de interação de backstage (nas mensagens diretas). Uma parte significativa dos atos se dá nos stories, que permite uma comunicação mais “viva” com algo de mais espontâneo, ocasionado provavelmente pelo efêmero do registro.

No mundo virtual, o tempo é paradoxalmente da simultaneidade e do imediatismo, por um lado, e do atemporal, por outro (Castells, 2019CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019., p. 542). Os posts, stories e reacts sugerem a existência de uma interação que tende ao imediato e que se apresenta na sua forma mais exemplar nas lives. No caso de algumas figuras digitais, a quantidade de input informacional é tão grande e constante que isso nos dá a impressão de estarmos vivendo a vida com eles.

Entretanto, também percebemos ser possível o acesso a uma série de interações do passado. Rolando o feed de determinado perfil, somos levados ao passado da vida de uma pessoa virtual. E essa possibilidade de “andarmos” à vontade no tempo torna essas interações atemporais.15 15 Um dos perfis, inclusive, esteve sem interação “ao vivo” durante o período da pesquisa, estava sem atualizações. Isso não impossibilitou a visualização das interações que permaneciam lá, registradas e “vivas” no mundo virtual.

Uma vez definido “o que” iríamos observar, passamos a tratar do “como”. A observação concreta foi guiada pela seguinte pergunta: qual a imagem projetada pelos concurseiros nas representações de Instagram? Depois da observação individual das interações nos perfis selecionados, o nosso trabalho interpretativo consistiu na busca pela identificação de alguma coisa, ou, melhor, de algum “valor” compartilhado por pessoas tão diferentes que representavam um mesmo papel social no mundo virtual, o de concurseiro.

3. Primeiro traço de identidade: uma pessoa trabalhadora

Por se tratar de grupo de observação composto de perfis muito diversos, acreditávamos inicialmente que seria difícil a identificação de valores compartilhados por todos - ou ao menos por uma maioria clara - dos indivíduos em representação no espaço de interação virtual do Instagram. No entanto, o primeiro traço de personalidade de grupo se materializou de maneira clara desde as primeiras observações. Percebemos que nos mais diferentes perfis de concurseiros estava-se a encenar representações de um papel “trabalhador”.

O concurseiro apresenta-se socialmente como um incansável e obstinado trabalhador. Acorda cedo (às vezes, dorme tarde), trabalha nos fins de semana, não “pula” carnaval. Relaxa com moderação e equilíbrio. A vida é suada. O concurseiro mostra-se socialmente como uma espécie de workaholic que renuncia aos momentos com a família e de lazer para conquistar um objetivo de vida. Nas interações analisadas no Instagram, são incontáveis as representações cuja direção dramatúrgica se desenvolve nesse sentido.16 16 Nessa representação, muitas vezes, o ator joga com a força dramática de se apresentar como alguém que tem como lado “negativo” a “exagerada” tendência de fazer uma “coisa boa” (em uma encenação dramatúrgica que lembra em sentido o caso anedótico do candidato a uma vaga de trabalho que apresenta como “defeito” o “perfeccionismo”). Esse é um traço de identidade marcante.

Por se tratar de pesquisa sobre representações no espaço virtual, ou seja, uma pesquisa que considera o mundo virtual “nos seus próprios termos” (Boellstorff, 2015BOELLSTORFF, Tom. Coming of Age in Second Life: An Anthropologist Explores the Virtually Human. Princeton: University Press, 2015., p. 4), não nos pareceu fazer sentido a preocupação com a identificação da atividade do concurseiro como uma atividade “realmente profissional”, isto é, como uma ocupação com a qual alguém garante a sua subsistência (Freidson, 2009FREIDSON, Eliot. Profissão médica: um estudo de sociologia do conhecimento aplicado. São Paulo: Unesp, 2009., p. 23).17 17 Neste artigo, não realizamos análises de tipo psicológico. Na literatura nacional, no entanto, há pesquisa que indica a existência de uma psicodinâmica do “não trabalho”. De acordo com esse estudo, o concurseiro cria uma estratégia mental de “escape” de uma realidade social desvantajosa: o desemprego (Anjos; Mendes, 2015, p. 52). Nesta pesquisa, consideramos que a profissão de alguém era aquela desempenhada na representação virtual, ou seja, não fizemos distinções a partir da “divisão moral do trabalho” (Gonçalves, 2008GONÇALVES, Carlos Manuel. Análise sociológica das profissões: principais eixos de desenvolvimento. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Universidade do Porto, Porto, Portugal, v. XVII-XVIII, p. 177-223, 2008.).

Em termos iconográficos, nada representa melhor esse traço de personalidade da pessoa trabalhadora - a valorização do trabalho “duro”, “incansável”, “focado” - do que as incontáveis imagens de bebidas estimulantes, o café em destaque.

O trabalho do concurseiro estudante é estudar. São muitas H.B.C. (“horas bunda + cadeira”) fazendo “ciclos”, “sistematizações”, “revisões”, “questões”, “lei seca”, “mapa mental”, etc. Nesse subgrupo (concurseiro estudante), a iconografia do trabalho é complementada com as imagens dos notebooks, itens de papelaria e estação de trabalho. Esse conjunto de imagens constitui uma espécie de iconografia básica do concurseiro digital.

No grupo de influenciadores concurseiros, muitos já são profissionais do Direito aprovados em concurso. A aprovação em concurso é item valorizado nesse universo, capitalizável em termos culturais e econômicos dentro do próprio grupo. O bom conceito da profissão jurídica concursada é perceptível já na análise dos elementos de fachada (Bio). No grupo de análise, encontramos autoapresentações do tipo: “Procurador Federal”; “Defensor”; “Aprovado para Promotor de Justiça”; “Defensor Público do Pará. Aprovado Delegado CE PB”; “1o lugar (MPMG e MPGO)”; “Aprovado delegado PF, ES e SC”; “Defensora Pública Federal”; “Procurador da Fazenda Nacional”; “Delegada de Polícia”; “Delegado de Polícia”; “Defensora Pública na terra da luz”; “Membro da DPU”; “Servidor público/Tribunal de Justiça”; “Assistente Técnico Administrativo”; “Defensor Público Federal”; “Juíza”; “Aprovada em 5 concursos, 2 objetivas da magistratura”; “Desembargador Federal”; “Ex-juiz de Direito”; “Agente de Polícia Federal”.

Apesar de o título profissional na região de fachada - atestado de concursado - ser elemento importante de distinção, nas interações ocorridas a partir dos perfis analisados, constatamos que a personalidade concurseira esteve quase sempre em destaque,18 18 Em boa parte dos perfis analisados, o alto nível de interação e de exposição das mais diversas “faces” da vida cotidiana indicava a provável inexistência - ou pouca importância na expressividade da identidade “global” dos atores - de perfis “pessoais” ao lado dos perfis concurseiros (que assim seriam considerados “profissionais”). ou seja, apesar de referências ocasionais nos posts e stories acerca da vida na profissão jurídica “de meta” (como defensores, delegados, juízas, etc.), a tendência de interação na maior parte dos casos sempre foi concurseira. O trabalho representado foi o de concurseiro.

Nas representações concurseiras, os atores não costumam recorrer aos traços acadêmicos típicos, como os diplomas de mestrado e de doutorado. No universo de análise, encontramos apenas dois doutores com indicação expressa da vinculação institucional (Universidade de São Paulo [USP] e Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]). No geral, os professores de cursinho buscam uma identidade própria longe da identidade acadêmica, e apresentam-se, por exemplo, como “professor e orientador para concurso público”; “explicador/professor”; “mentor delta e carreira policial”; “orador motivacional”; “mentora de provas orais”; “coach”; “treinador”; “mentor: 10 anos”; “palestrante”; “autor best-seller”; “especialista em aprendizagem acelerada”; “ENSINO o que SEI: passei com 24 na PGFN e aos 19 no TJPE”.

O traço de personalidade trabalhadora, característico de uma pessoa que “sente a profissão como um dever”, é um elemento importante de materialização do espírito capitalista (Weber, 2004WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 47). Na sua roupagem tradicional, como comportamento sóbrio, esse traço de personalidade constitui uma forma de expressão da ideologia liberal no seu momento de nascimento.

Nas representações acontecidas no universo dos concurseiros brasileiros, entretanto, a racionalidade sóbria - que se poderia esperar do burocrata estatal que internaliza o papel de agente de Estado - cede lugar a uma característica pessoal de tendência emocional. Em muitos momentos, as cenas são comparáveis àquelas vistas nas terapias de grupo. O concurseiro - influencer - aparece nesses casos como um agente terapêutico que fala uma linguagem de autoajuda e sugere técnicas de “autocontrole desenvolvidas para que o indivíduo supere problemas advindos de todas as esferas - profissional, familiar ou econômica” (Leite, 2019LEITE, Elaine da Silveira. Por uma sociologia da autoajuda: o esboço de sua legitimação na sociedade contemporânea. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 917-932, jul./set. 2019., p. 920).

“Foco na missão, desistir não é opção!”; “Eu quero, eu posso, eu consigo”; “Minha missão é lembrar que você pode!”; “Melhoramos a sua vida!”; “Cedo pra parar, tarde pra desistir”; “A fé na vitória tem que ser inabalável” são slogans de fachada que indicam a disposição para esse habitus.19 19 O habitus como uma espécie de “jeito de ser” da persona virtual. Para a ideia de habitus nesse sentido, a partir de Bourdieu, ver Maia (2018, p. 16-18). Nesse sentido, nada é mais exemplar desse perfil de autoajuda do que as conversas dos influenciadores com a sua plateia por meio das “caixas de perguntas”. Nesses momentos, são frequentes as buscas de conselhos sobre os mais diversos aspectos da vida, a vida amorosa, financeira, familiar, angústias pessoais, etc.20 20 O sucesso desse tipo concurseiro de autoajuda (um deles chega a ter mais de 1 milhão de seguidores) não significa que ele é admirado em todas as regiões do campo da interação virtual no Instagram. Em algumas regiões do espaço virtual, há representações cômicas em que aqueles detentores de menor capital simbólico - concurseiros ainda não aprovados, aprovados para cargos “menores” ou aprovados que ascenderam socialmente, mas não incorporaram plenamente o habitus do novo grupo - organizam verdadeiras representações cômicas. Nessas interações, se “faz graça” desse tipo. Isso nos interessa na medida em que dá testemunho concreto da própria existência do fenômeno ironizado. A ironia nesse caso nunca se refere à própria ideia de trabalho, é, ao contrário, uma encenação que fortalece a própria ideia da “pessoa trabalhadora”. A mensagem “por trás da piada” é que se deve trabalhar “e ponto”, sem se recorrer aos eufemismos (em geral de classe média). É o concurseiro “raiz” falando do concurseiro “nutela”.

O concurseiro, na verdade, pareceu-nos claramente materializar a cultura capitalista na sua roupagem atual do agente empreendedor. A nossa observação reforça, portanto, a tese interpretativa de outras pesquisas empíricas que identificam nesse mundo dos concurseiros a valorização da cultura “gerencialista” (Rocha, 2019ROCHA, Bianca Gomes Lima da. Entre o sofrimento e o (in)cansável movimento: as tensões vivenciadas por concursados-concurseiros à luz da contemporaneidade e da gestão gerencialista. 2019. 199 f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2019.; Pinel; Rêses; 2020PINEL, Walace Roza; RÊSES, Erlando da Silva. Serviço público e a capital dos concursos: uma análise crítica da categoria concurseiro no Distrito Federal. Revista Humanidades e Inovação, Palmas, v. 7, n. 7, p. 432-440, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/2541 . Acesso em: 11 maio 2020.
https://revista.unitins.br/index.php/hum...
, p. 439). Dado o nosso histórico de formações culturais “peculiares” - como indicam os estudos antropológicos de Holanda (1995HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.) e Freyre (2006FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. São Paulo: Global, 2006.), entre outros -, pode-se dizer que essa figura do empreendedor concurseiro que vimos materializar-se nas interações de Instagram corresponde a uma espécie de apropriação nacional da cultura “organizacional” wasp da classe média anglo-americana (Whyte, 2002WHYTE, William H. The Organization Man. Pensilvânia: University of Pennsylvania Press, 2002., p. 3) e da sua versão mais recente na forma da cultura “disruptiva” do jovem empreendedor californiano (Castells, 2019CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2019., p. 116).

A própria construção do personagem concurseiro (concursado) de sucesso pode ser entendida como uma materialização desse espírito empreendedor. Nas representações de Instagram, os concurseiros são verdadeiros “empreendedores de si” (Barbosa, 2011BARBOSA, Attila Magno e Silva. O empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 38, p. 121-140, fev. 2011.). A comunicação digital quase sempre está a serviço de uma estratégia de marketing pessoal de um indivíduo-empresa que projeta uma imagem de sucesso, modernidade e juventude.

Nesse sentido, pode-se dizer que o concurseiro de Instagram é um personagem de vida instagramável capaz de sugerir subjetivações integradas à “economia libidinal contemporânea” que se relaciona ao gozo (Thibes; Mancini, 2013THIBES, Mariana Zanata; MANCINI, Pedro Felipe de Andrade. A representação do eu na sociabilidade virtual: a economia libidinal da amizade. Ide, São Paulo, v. 35, n. 55, p. 149-163, jan. 2013., p. 149; 155). Nos perfis, o caráter instagramável - um valor que não pode ser confundido com o ato formal de participar da comunidade do Instagram - materializa-se principalmente por uma preocupação estética com o objetivo de garantir performance nas interações (Sanz; Souza; Campelo, 2021SANZ, Cláudia Linhares; SOUZA, Fabiane de; CAMPELO, Luanda. Vida instagramável: habitando tempos e espaços do mundo-empresa. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, [s. l.], v. 20, n. 37, p. 52-63, 2021., p. 55; 59).

Como já se observou, “no site da rede social Instagram o sujeito discursivo [...] vai tecendo seu discurso imagético por meio de uma relação estética com a imagem” (Luz, 2015LUZ, Andréa Francisca da. O instagramer e seu discurso multissemiótico na rede social Instagram. 2015. 113 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015., p. 59). As preocupações estéticas são perceptíveis, por exemplo, na escolha de determinados ângulos de captura de imagem, no “modelo de corpo” que transmite uma imagem que remete ao bem-estar fitness (é interessante perceber o número significativo de “corredores” concurseiros, por exemplo) e no vestir “moderno” (no trabalho, ternos e tailleurs slim fit e acessórios que atualizam a tradição formalista).

No grupo de análise, essa moral empreendedora foi materializada de maneira significativa e em perfis variados. Por aqueles nascidos na classe média, mas também por aqueles que viveram um processo de ascensão social ou que contam com ela a partir da aprovação no concurso. É possível perceber, por exemplo, o espírito empreendedor no perfil de concursado ainda jovem, de família simples, que desde cedo “lutou” e foi ser policial militar e depois, com esforço, chegou à posição que ocupa hoje, com a graça de Deus, de policial rodoviário federal e de professor de concurso de sucesso com milhares de seguidores.

Mesmo assim, percebe-se que o papel de empreendedor no universo dos concurseiros é interpretado de maneira “natural” por aqueles que já nasceram com esses valores internalizados, ou, melhor, por aqueles cuja moral empreendedora é apresentada ainda na socialização primária no âmbito da família e da escola. Assim, um jovem que vem de uma família de classe média tem maior probabilidade de “nascer” com o physique du rôle do empreendedor. Por exemplo, observamos o caso de um jovem defensor, que corre e viaja para a Europa, com a mulher, que se veste com distinção e bebe vinho. Ele tem um irmão, também jovem e branco, muito bem-sucedido, que é procurador, e também tem pets e corre, e tem bons amigos com quem sai para jantar. Juntos desenvolveram um método de estudo para concurso; são apaixonados pelo o que fazem.

4. Segundo traço de identidade: uma pessoa “família”

Uma pessoa família é, em um primeiro sentido, aquela que está junto da sua família e que “fala” com frequência sobre ela nos encontros cotidianos da vida social. Nas conversas virtuais analisadas, os “retratos de família” (imagens dos controladores do perfil com seus familiares) constituem elemento iconográfico significativo.

Contudo, por pessoa “família” queremos indicar algo mais amplo do que o sentido literal pode sugerir. Uma pessoa “família” - que é diferente de uma pessoa “de família”, expressão utilizada quando se está em jogo geralmente uma distinção de classe - é aquela que materializa no seu comportamento os “valores familiares”. Uma pessoa desse tipo não é dada a excessos, tem boas amizades, acorda cedo, pensa positivo, exercita-se, teme a Deus, prefere Netflix às noitadas, é obediente, etc.

Não parece ser sem sentido relacionar esse traço de caráter do concurseiro ideal - que surge das representações - ao traço de “cordialidade” mais amplo da cultura nacional. O espírito do patrimonialista brasileiro é muito diferente do espírito do agente racional ao modo do que foi analisado por Weber (ver Holanda, 1995HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 141-151).

Esse traço identitário está muito presente nas interações virtuais dos concurseiros. É percebido nas representações de intimidade entre o concurseiro e seus seguidores (especialmente nas interações via “caixa de perguntas”), na criação e na repetição exaustiva de bordões engraçados (“Nosso foguete não tem ré!”; “Vamos passar o trator!”), no apelo aos valores religiosos, na foto dos amigos comportados à mesa, na adoração dos pets, nos passeios nos parques (com uma balada de vez em quando: “Essa cervejinha deveria estar incluída no rol de direitos humanos da CADH hahahahaha”), no exercício “pago” do dia, na postagem sentimental da mensagem para o parente que se foi, na carta de amor para a “pequena”, ou seja, em tudo aquilo que constrói a imagem do concurseiro como uma pessoa boa e ordeira.

Uma das maneiras mais claras de visualizar esse tipo família,21 21 Uma distinção que consideramos importante. Não se pode rotular essa figura do concurseiro “família” de “cidadão de bem” de maneira indistinta. Se, provavelmente, nos grupos de interações de região de tendência conservadora (nos grupos “delta”, por exemplo) esse rótulo pode ser bem aceito em termos de autodefinição, nos grupos em conversas em regiões mais progressistas (entre os que têm como meta a defensoria pública, por exemplo), o uso dessa expressão tende a ser depreciado (com ironia, por exemplo). no entanto, é observar as representações com falas “apolíticas” dos concurseiros (Maia, 2019MAIA, Bóris. Sujeitos de Estado: aprendizado e tradição de conhecimento na preparação para concursos públicos da burocracia fiscal. 2019. 250 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., p. 215; 213). É evidente que não falar de modo direto sobre política é algo muito diferente de não se expressar politicamente, e podemos afirmar que são raros os casos de perfis completamente opacos no que diz respeito à possibilidade de captar a posição política do controlador. No ambiente virtual, o perfil político de um ator pode ser facilmente inferido a partir da análise de postagens cotidianas, como livros indicados, grupo de amigos, lugares que frequenta, expressões que usa, etc.

O que afirmamos, com base na análise das interações, é que se mostrar como agente apolítico é uma estratégia retórica muito utilizada nas interações sociais dos concurseiros. Nas interações de Instagram, percebemos o uso dessa estratégia principalmente diante das postagens potencialmente problemáticas. A “apoliticidade”, nesses casos, está a serviço da representação do concurseiro ordeiro, pessoa que não se mete em confusão22 22 É interessante atentar para a possível relação entre isso que identificamos como o caráter “ordeiro” do concurseiro e a sua relação com a ideologia de “classe média”. Para reflexão nesse sentido, ver Chauí (2016, p. 19). (“Não me envolvo em política”; “Minha análise é técnica”; “Jesus é eterno. Ideologias são perecíveis”; “Nunca posto sobre política, mas postarei sobre atitudes”).

Mesmo assim, as confusões ocorrem no espaço virtual. Esse tipo de interação tensa (as “tretas” no linguajar nativo) é facilmente percebido nas interações que surgem a partir das postagens identificadas pelo grupo como políticas. Isso vale tanto para o concurseiro que posta foto com o filho do presidente (conservador) quanto para o que posta comentário favorável sobre uma decisão do STJ que permite o plantio de maconha para uso medicinal.

A “treta” pode ser definida como uma comunicação problemática causada por uma quebra de expectativas. A encenação do ator gera atrito com parte da plateia, pois os seus gestos expressivos são lidos como materializadores de uma ação social incompatível com o papel que representam. Nessas situações, percebe-se claramente um “problema dramatúrgico” (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 27) na encenação do tipo família, ou seja, é nesse tipo de situação que esse traço de personalidade é colocado à prova.

Nos casos analisados, um grupo irritado da plateia, ao entender que o ator se comportou de maneira incompatível com o seu papel de concurseiro, passa a exercer uma pressão para que o ator volte ao seu estado de representação “normal”. A existência dessa pressão social, por sua vez, é indicativa da norma social, ou seja, a pressão para se “voltar a uma representação típica” é indicativa da existência do próprio papel representado.

Nesses casos problemáticos de interação, a plateia, em geral muito respeitosa e estimulante, reage com estranhamento (“Conseguiu jogar na lata do lixo toda admiração que tinha por vc. Parabéns!!!”; “Triste e decepcionada, sem mais”; “Decepção com Constitucionalistas que se escondem....”; “O famoso socialista do iPhone e de todos os benefícios que o capitalismo traz...”), e é diante desses problemas que a direção por vezes utiliza instrumentos graves de intervenção, como bloqueios de perfis, respostas diretas aos comentários - o que gera nós discursivos próprios -, imposição de normas para os comentários, etc.

Se, sob o ponto de vista individual-subjetivo, podemos apenas especular sobre os motivos de convicção íntima dessa apresentação social “apolítica” (fuga das “tretas”, desinteresse na vida social-virtual, filosofia de vida, socialização antecipatória, etc.), sob o ponto de vista da objetivação concreta da representação, podemos interpretar o comportamento social “apolítico” no mundo do concurseiro como uma estratégia de integração em determinado espaço de interação social (concurseiro).

Na verdade, o que percebemos é que existe em boa parte das representações uma disposição para a adoção de uma retórica da neutralidade (“Fiquem à vontade para, tecnicamente, manifestarem-se”). O uso dessa estratégia retórica é característico da dogmática jurídica, que é o conhecimento especializado do jurista e que ele aprende na sua formação institucional (Bourdieu, 2010BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010., p. 216; Maia, 2018MAIA, Mário Sérgio Falcão. Humanismo, existencialismo e fenomenologia no campo jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018., p. 188, 189). Portanto, é algo muito familiar em um grupo de juristas efetivos ou em potencial.

Depois do tensionamento da “treta”, segue-se em geral uma recomposição de cena e uma tentativa de distensionar, que consiste no retorno ao papel neutro do concurseiro família. Em geral, a própria plateia contribui significativamente para o restabelecimento da normalidade cênica, principalmente quando há um grande número de seguidores fiéis que “ganham” o debate pela quantidade muito superior de participação na interação. O ator entende as deixas (“Eu converso com todo mundo”) e tenta retomar a representação (“Fica com Deus, amigo!”; “Desabafei ... vamos trabalhar e estudar”).

Conclusão: ruptura ou continuidade entre os mundos do concurseiro e do jurista profissional?

No universo das interações investigadas, as representações concurseiras foram muito diferentes entre si. Todavia, percebemos uma disposição de grupo constante para a representação de um tipo trabalhador e ordeiro, avesso ao conflito aberto e materializador dos valores familiares. Rotulamos esses traços de identidade como os de uma pessoa “trabalhadora” e “família”.

Não foi objetivo deste artigo afirmar que essas pessoas de carne e osso - os controladores do perfil - internalizam esses valores que encontramos materializados nas suas representações. Na verdade, em termos mais precisos e fiéis ao referencial teórico usado, podemos afirmar que essa foi uma “não” questão nesta pesquisa. O que podemos afirmar é que essas pessoas que observamos “se mostram” assim nos encontros cotidianos da vida virtual.

O campo jurídico profissional brasileiro é, desde o seu surgimento, um ambiente de trabalho tradicional em que vigora uma cultura liberal-conservadora (Castro, 2018CASTRO, Felipe Araújo. Genealogia histórica do campo jurídico brasileiro: liberalismo- conservador, autoritarismo e reprodução aristocrática. 2018. 435 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, Belo Horizonte, 2018.). Entre os juízes, por exemplo, há ainda hoje uma valorização do “uso da linguagem formal” e da “vestimenta adequada”, e quase 60% dos juízes mais jovens - de primeira instância - e 75% dos mais velhos - de segunda - consideram que a exposição de tatuagens afeta o “formalismo da audiência” (Vianna; Carvalho; Burgos, 2018VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; BURGOS, Marcelo Baumann. Quem somos a magistratura que queremos. Rio de Janeiro: AMB, 2018., p. 26).

Essa tradição, no entanto, é um tanto modernizada atualmente. Uma das maneiras mais evidentes de perceber esse processo de modernização da tradição é atentar justamente para a cultura empreendedora dentro do campo jurídico profissional. Nos ambientes de trabalho do campo jurídico profissional há projeções do trabalho “eficiente” - um modelo de expressão gerencial -, e hoje em dia os juristas de Estado trabalham para bater metas e atuam com “foco no cliente” (Fontainha, 2007FONTAINHA, Fernando de Castro. Informatização da vida e dos tribunais. Revista Direito GV, São Paulo, v. 3 n. 1, p. 57-74, jan./jun. 2007., p. 73).

Assim, essa representação que identificamos do concurseiro empreendedor e “família” se adequa a esse papel modernizado do tradicional trabalhador do Direito no Brasil. A imagem projetada nas representações cotidianas dos concurseiros no Instagram assemelha-se à do “quase” jurista profissional, ou seja, trata-se da imagem de alguém que busca mostrar nas suas interações os valores de integração com as pessoas em atuação no mundo jurídico que se pretende integrar.

Podemos apenas conjecturar acerca de existência dessa socialização antecipatória em que os concurseiros pensem ser alguma “vantagem” a representação desse papel ainda no próprio processo de seleção (nas representações perante a banca de concurso, por exemplo). Porém, o que podemos afirmar com clareza é que existe uma distância significativa entre os valores em circulação no grupo concurseiro e os valores oficiais do campo jurídico profissional. Assim, percebemos facilmente que a figura racional, sóbria, discreta, prudente, etc. que se infere a partir da análise sistemática dos códigos de ética em vigor no campo jurídico (Maia, 2021MAIA, Mário Sérgio Falcão. Ética no campo jurídico profissional: normas e conflitos no mundo do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021., p. 129-142) está distante do que vemos representado no mundo dos concurseiros no Instagram.

Nesse caso, o que o olhar sociologicamente orientado nos indica é que a existência dessa grande diferença entre os valores “profissionais” e os valores “concurseiros” pode gerar obstáculos significativos no exercício concreto das atividades institucionais de formação de pessoal e controle da “moral oficial” dentro do campo jurídico profissional. Isso porque o processo de imposição institucional de uma “moral estranha” ao sujeito é sempre mais difícil do que o controle de uma “moral familiar” internalizada nos processos de socialização prévios ao ingresso no serviço público.

REFERÊNCIAS

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  • WHYTE, William H. The Organization Man Pensilvânia: University of Pennsylvania Press, 2002.
  • 1
    Os autores agradecem ao grupo de pesquisadores(as) do Observatório de Práticas Sociojurídicas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) pela interação proveitosa e pelo constante estímulo intelectual. Agradecem também a Ingrid S. Cavalcante pelo insight inicial e pela leitura atenta do primeiro rascunho deste texto.
  • 2
    Recorremos a essa materialização real do concurseiro para a adoção de uma orientação de estilo: a não utilização das aspas (“”) para fazer referência ao grupo.
  • 3
    O ângulo de abordagem pode mudar, mas a especificidade do mundo dos concursos permaneceria. Assim, sob o ponto de vista dos pesquisadores da Engenharia, o mundo do engenheiro concurseiro estaria separado do mundo do exercício profissional da engenharia, e, sob os olhos do administrador, o mundo do administrador concurseiro estaria separado do mundo do verdadeiro businessman, etc. Essa multiplicidade de pontos de observação do fenômeno é “materialização” da autonomia.
  • 4
    Trechos das “Diretrizes Pedagógicas da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados”. Acessadas no site https://www.enfam.jus.br/ensino/diretrizes-pedagogicas/, em 23 de novembro de 2022.
  • 5
    Não se pretende aqui desenvolver uma argumentação original. Há exemplos de pesquisas em ambientes de interação social “virtual” a partir da influência teórica de Goffman. Consultamos Vaast (2007VAAST, Emmanuelle. The Presentation of Self in a Virtual but Work-related Environment. In: CROWSTON, Kevin; SIEBER, Sandra; WYNN, Eleanor (eds.). Virtuality and Virtualization. Boston: Springer; IFIP - International Federation for Information Processing, 2007. v. 236. p. 183-199.) e Thibes e Mancini (2013THIBES, Mariana Zanata; MANCINI, Pedro Felipe de Andrade. A representação do eu na sociabilidade virtual: a economia libidinal da amizade. Ide, São Paulo, v. 35, n. 55, p. 149-163, jan. 2013.).
  • 6
    Esse impulso “existencial” a partir do contato com Goffman pode ser percebido também em relato de um dos seus ex-alunos (Marx, 1984MARX, Gary T. Role Models and Role Distance: A Remembrance of Erving Goffman. Theory and Society, [s. l.], v. 13, n. 5, p. 649-662, 1984.). Além disso, há no texto “A representação do eu...” um diálogo constante com os trabalhos de Sartre e Simone, por exemplo, p. 45, 70, 88, 89, 127, 253. Para o desenvolvimento da ideia de uma epistemologia existencial, ver Maia (2018).
  • 7
    Isso significa ir além da ideia de vivermos “dentro” das telas. Uma vida “dentro” das telas sempre pressupõe a possibilidade de se viver paralelamente uma vida “fora” das telas. A vida vivida pela tela é “sentida na pele” e não pode ser “desligada”. É a vida vivida no gozo do ambiente instagramável (Thibes, 2013THIBES, Mariana Zanata; MANCINI, Pedro Felipe de Andrade. A representação do eu na sociabilidade virtual: a economia libidinal da amizade. Ide, São Paulo, v. 35, n. 55, p. 149-163, jan. 2013., p. 155), mas também sentida como violência. Ver, por exemplo, a visão pessimista das próprias crianças e adolescentes quanto à possibilidade de se evitar o cyberbullying. Relato de jovem inglês: “I don’t think you can ever stop cyberbullying at all because you’d basically have to get rid of all the communication things that we love and you can’t do that’, ‘you might do a lot of things to them but it still ain’t going to stop them’” (Smith et al., 2008SMITH, Peter K. et al. Cyberbullying: Its Nature and Impact in Secondary School Pupils. Journal of Child Psychology and Psychiatry, [s. l.], v. 49, n. 4, p. 376-385, 2008., p. 381). Em tradução livre: “‘Eu não acredito que possamos acabar com o ciberbullying, porque, para isso, teríamos de nos livrar de todos os aparelhos de comunicação que nós amamos e você não pode fazer isso’, ‘você pode fazer muitas coisas com eles [assediadores], mas mesmo assim não conseguirá pará-los’”.
  • 8
    É interessante notar a “exortação” de pesquisador da antropologia digital aos seus alunos - que ficaram impossibilitados de “fazer o campo” da maneira tradicional durante a pandemia de covid-19 - a se arriscarem a fazer pesquisa a partir de interações no mundo virtual (Miller, 2021MILLER, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social. Blog CSociais Online, 2021. [publicado em 9 de junho de 2020]. Disponível em: Disponível em: https://wordpress.com/post/csociais.wordpress.com/2567 . Acesso em: 15 dez. 2023.
    https://wordpress.com/post/csociais.word...
    ). A fala publicada inicialmente pelo professor está disponível em https://wordpress.com/post/csociais.wordpress.com/2567. Acesso em: 15 dez. 2023.
  • 9
    Vale lembrar do “exemplo” dado por Goffman (2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 17) quando fala de expressão emitida. Retira de livro descrição de cena em que um inglês, bem de vida e um tanto esnobe, “faz se perceber” em uma praia espanhola. Ele, entre outras coisas, “olha os outros por cima”, “ri de maneira controlada e casual”, “Lê um livro na praia”, “mostra a capa do livro”, “nada de maneira a mostrar sua familiaridade com o mar”, etc.
  • 10
    Há indicação de que essa “impressão” tem respaldo estatístico. O site “statista” afirma que mais de 60% dos usuários de Instagram estão entre os 18 e os 34 anos de idade. Site da “statista”, em https://www.statista.com/statistics/325587/instagram-global-age-group/. Acesso em: 24 jun. 2022.
  • 11
    Para uma reflexão de caráter ético sobre as observações realizadas nos espaços públicos e privados (também uma conversa sobre a própria ideia de público e privado no mundo virtual), ver Estalella e Ardèvol (2007ESTALELLA, Adolfo; ARDÈVOL, Elisenda. Ética de campo: hacia una ética situada para la investigación etnográfica de internet. Forum: Qualitative Social Research, [s. l.], v. 8, n. 3, art. 2, p. 1-25, set. 2007., p. 9-10).
  • 12
    Talvez uma nomenclatura mais adequada seja identificação “por interesse”. Na observação concreta se percebe rapidamente que, em muitos casos, a maior parte deles, essa identificação “por afinidade” deve-se na verdade ao estabelecimento de uma relação econômica. Há relações de consumo, com oferta de serviços de mentoria, venda de livros, de cursos, propaganda de lives, etc.
  • 13
    Diferentemente do que se pode pensar à primeira vista, em determinado campo social encontram-se diversas ideologias. Ver, por exemplo, a análise de Bourdieu (2008BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2008., p. 115-185) sobre os diversos tipos de estilistas no “mundo” da moda.
  • 14
    No grupo analisado, apenas dois perfis não remetiam a uma pessoa “física”. Um deles era o perfil de uma pessoa jurídica - uma empresa do ramo dos concursos - e outro era um perfil cômico; um alter ego de um concurseiro “físico” já representado no Instagram por perfil “sério”. Durante o tempo de observação, não houve indicativo claro de que os “perfilados” tivessem ajuda de uma equipe profissional na construção de conteúdo. Mesmo que existam esses casos (existência de uma equipe “por trás de um perfil”), não se invalida a proposta de análise desta pesquisa na medida em que essas pessoas de Instagram efetivamente “existem” nesse mundo virtual.
  • 15
    Um dos perfis, inclusive, esteve sem interação “ao vivo” durante o período da pesquisa, estava sem atualizações. Isso não impossibilitou a visualização das interações que permaneciam lá, registradas e “vivas” no mundo virtual.
  • 16
    Nessa representação, muitas vezes, o ator joga com a força dramática de se apresentar como alguém que tem como lado “negativo” a “exagerada” tendência de fazer uma “coisa boa” (em uma encenação dramatúrgica que lembra em sentido o caso anedótico do candidato a uma vaga de trabalho que apresenta como “defeito” o “perfeccionismo”).
  • 17
    Neste artigo, não realizamos análises de tipo psicológico. Na literatura nacional, no entanto, há pesquisa que indica a existência de uma psicodinâmica do “não trabalho”. De acordo com esse estudo, o concurseiro cria uma estratégia mental de “escape” de uma realidade social desvantajosa: o desemprego (Anjos; Mendes, 2015ANJOS, Felipe Burle dos; MENDES, Ana Magnólia. A psicodinâmica do não trabalho. Estudo de caso com concurseiros. Revista Laborativa, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 35-55, abr. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa/article/view/1074 . Acesso em: 12 fev. 2024.
    https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborati...
    , p. 52).
  • 18
    Em boa parte dos perfis analisados, o alto nível de interação e de exposição das mais diversas “faces” da vida cotidiana indicava a provável inexistência - ou pouca importância na expressividade da identidade “global” dos atores - de perfis “pessoais” ao lado dos perfis concurseiros (que assim seriam considerados “profissionais”).
  • 19
    O habitus como uma espécie de “jeito de ser” da persona virtual. Para a ideia de habitus nesse sentido, a partir de Bourdieu, ver Maia (2018, p. 16-18).
  • 20
    O sucesso desse tipo concurseiro de autoajuda (um deles chega a ter mais de 1 milhão de seguidores) não significa que ele é admirado em todas as regiões do campo da interação virtual no Instagram. Em algumas regiões do espaço virtual, há representações cômicas em que aqueles detentores de menor capital simbólico - concurseiros ainda não aprovados, aprovados para cargos “menores” ou aprovados que ascenderam socialmente, mas não incorporaram plenamente o habitus do novo grupo - organizam verdadeiras representações cômicas. Nessas interações, se “faz graça” desse tipo. Isso nos interessa na medida em que dá testemunho concreto da própria existência do fenômeno ironizado. A ironia nesse caso nunca se refere à própria ideia de trabalho, é, ao contrário, uma encenação que fortalece a própria ideia da “pessoa trabalhadora”. A mensagem “por trás da piada” é que se deve trabalhar “e ponto”, sem se recorrer aos eufemismos (em geral de classe média). É o concurseiro “raiz” falando do concurseiro “nutela”.
  • 21
    Uma distinção que consideramos importante. Não se pode rotular essa figura do concurseiro “família” de “cidadão de bem” de maneira indistinta. Se, provavelmente, nos grupos de interações de região de tendência conservadora (nos grupos “delta”, por exemplo) esse rótulo pode ser bem aceito em termos de autodefinição, nos grupos em conversas em regiões mais progressistas (entre os que têm como meta a defensoria pública, por exemplo), o uso dessa expressão tende a ser depreciado (com ironia, por exemplo).
  • 22
    É interessante atentar para a possível relação entre isso que identificamos como o caráter “ordeiro” do concurseiro e a sua relação com a ideologia de “classe média”. Para reflexão nesse sentido, ver Chauí (2016CHAUÍ, Marilena. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo. In: SINGER, André et al. Por que gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 16-22., p. 19).
  • Editora responsável

    Catarina Helena Cortada Barbieri (Editora-chefe)
  • Como citar este artigo

    MAIA, Mário S. F.; NERIS, Lucas G. D. Uma pessoa trabalhadora e “família”: a identidade concurseira nas representações de Instagram. Revista Direito GV, São Paulo, v. 20, e2402, 2024. https://doi.org/10.1590/2317-6172202402

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    17 Abr 2023
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