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Intervenção fonoaudiologica baseada na perspectiva comportamental em transtorno global do desenvolvimento (tgd): relato de caso

Resumos

O objetivo deste trabalho foi descrever um processo de intervenção fonoaudiológica focado na adequação das habilidades linguísticas, sociais e cognitivas de uma criança com Distúrbio de Linguagem como parte de um Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), sob a perspectiva comportamental. A criança em questão era do gênero feminino e foi diagnosticada numa clínica-escola de Fonoaudiologia e encaminhada ao diagnóstico neurológico aos 2 anos de idade. Logo após o diagnóstico iniciou-se a intervenção fonoaudiológica individual, com base numa perspectiva comportamentalista de base mais tradicional; no entanto, ao longo do processo, houve mudanças no direcionamento da intervenção, sendo aqui relatados os dois primeiros anos de intervenção e apresentados dados da reavaliação fonoaudiológica no início do terceiro ano de intervenção. Como resultado da intervenção, houve melhora da linguagem receptiva e expressiva, sendo que a criança apresentou evolução quanto ao aspecto comportamental e aquisição de habilidades comunicativas, associando respostas verbais à ações. Além disso, houve aumento do contato ocular e do tempo de atenção e de aspectos relacionados ao simbolismo. O caso foi descrito com a preocupação de deixar claro que nem sempre é fácil a identificação da melhor abordagem terapêutica para essas crianças logo no início do processo, sendo que as decisões acerca da abordagem adequada devem ser repensadas constantemente não somente em decorrência do diagnóstico em si, mas também das manifestações da sintomatologia geral e específica – que variam conforme o desenvolvimento da criança e a evolução do processo de intervenção. Essas decisões devem ser pautadas na experiência do profissional, mas também na expectativa e no limite de cada família.

Fonoaudiologia; Transtorno Autístico; Linguagem Infantil; Desenvolvimento Infantil; Estudos de Intervenção; Resultado de Tratamento


The aim of this study was to describe a process of speech-language therapy focused on the adequacy of language skills, cognitive and social abilities with child with a language disorder as part of a Pervasive Developmental Disorder (PDD) under the behavioral approach. The child in question was female and was diagnosed in a Clinic of Speech-Language Pathology in a university and referred to the neurological diagnosis at 2 years of age. Soon after the diagnosis, the individual language intervention begin based on a behaviorist perspective of more traditional base; however, throughout the process, being reported here the first two years of intervention and presented data from the revaluation speech-language at the beginning of the third year of intervention. As a result of the intervention, there was improvement in receptive and expressive language, and the child presented evolution as the behavioral aspect and the acquisition of communicative skills, involving verbal responses to actions. Additionally, increased eye contact and attention span and aspects related to the symbolism.

The case was described with a concern to make it clear that it is not always easy to identify the best therapeutic approach for these children early in the process, and decisions about the appropriate approach should be constantly rethought not only because on the diagnosis itself but also the manifestations of general and specific symptoms – which vary according to children´s development and progress of the intervention. These decisions should be guide by the experience of the professional, but also in the expectation and limit of each family.

Speech; Language and Hearing Sciences; Autistic Disorder; Child Language; Child Development; Intervention Studies; Treatment Outcome


INTRODUÇÃO

Diversos quadros podem afetar o desenvolvimento infantil logo nos primeiros anos de vida, ocasionando danos significantes em diversas áreas do desenvolvimento e afetando o indivíduo ao longo de toda sua vida1. Nicolielo AP, Hage SRV. Relações entre processamento fonológico e linguagem escrita nos sujeitos com distúrbio específico de linguagem. Rev CEFAC. 2011;13(4):636-44.. Aqueles que se caracterizam por um desenvolvimento acentuadamente alterado em três áreas principais, envolvendo a interação social, a comunicação e presença de repertório restrito de atividades e interesses, são denominados de Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD)2. Gertel MCR, Maia SM. Reflexões acerca do papel do fonoaudiólogo junto à família de uma criança com Transtorno Global do Desenvolvimento: estudo de caso. Rev. Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(3):436-41.. Tais transtornos são marcados pelo início precoce de atrasos e desvios do desenvolvimento, cujo quadro clínico costuma ser complexo e variável, visto que os sintomas dependem da gravidade do quadro, da fase de desenvolvimento da criança e da presença ou não de outras alterações mentais associadas, compondo um espectro ou continuum que varia de sintomatologias leves a severas3. Fernandes FD, Cardoso C, Sassi FC, Amato CH, Sousa-Morato PF. Fonoaudiologia e autismo: resultado de três diferentes modelos de terapia de linguagem. Pró-fono R. Atual. Cient. 2008;20(4):267-72..

As alterações de linguagem são encontradas de forma sistemática nos diferentes quadros que compõem o referido espectro, sendo observada grande variedade qualitativa e quantitativa na gama de comportamentos comunicativos nesta população2. Gertel MCR, Maia SM. Reflexões acerca do papel do fonoaudiólogo junto à família de uma criança com Transtorno Global do Desenvolvimento: estudo de caso. Rev. Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(3):436-41.. A linguagem sempre representa um aspecto fundamental estando ligada ao prognóstico desses quadros 4. Fernandes FDM, Miilher LP. Relações entre a Autistic Behavior Checklist (ABC) e o perfil funcional da comunicação no espectro autístico. Pró-fono R. Atual. Cient. 2008;20(2):111-6.,5. Luyster RJ, Kadlec MB, Carter A, Tager-Flusberg H. Language assesssment and development in toddlers with autism spectrum disorders. J Autism Develop Dis. 2008;38(8):1426-38..

Nestes casos, podem ser encontrados prejuízos na interação social, evidente pela inabilidade na relação com o outro, sendo esta a característica mais peculiar, usualmente combinada com os déficits de linguagem e alterações de comportamento que caracterizam, de forma geral, o espectro autista. No entanto, estas alterações não atingem todas as áreas do comportamento na mesma proporção, sendo causadoras de um prejuízo difuso6. Smith V, Mirenda P, Zaidman-Zait A. Predictors of expressive vocabulary growth in children with autism. J Speech Lang Hear Res. 2007;50(1):149-60.. O diagnóstico é fundamentalmente clínico, não sendo conhecido, até o momento, nenhum marcador biológico que caracterize as alterações classificadas entre os transtornos globais do desenvolvimento7. Silva RA, Lopes-Herrera SA, De Vitto LPM. Distúrbio de linguagem como parte de um transtorno global do desenvolvimento: descrição de um processo terapêutico fonoaudiológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2007;12(4):322-8..

Grande variedade de fundamentos teóricos é citada quando se trata de abordagens terapêuticas nos casos de TGD, partindo de pressupostos distintos. Entretanto, apesar das estratégias e enfoques serem diversos, os objetivos finais almejados em todo processo de intervenção são os mesmos – melhorar as habilidades linguísticas, sociais e cognitivas do indivíduo. Por outro lado, nada impede que hajam princípios funcionais regendo um trabalho comportamental de base, desde que se entenda que todo comportamento trabalhado deva ter uma funcionalidade dentro do contexto e do ambiente da criança e sua família.

Basicamente, como formas de intervenção, podem ser encontradas as abordagens formais e as funcionais. Nos modelos tradicionais de intervenção terapêutica em linguagem – também denominados formais – os objetivos da intervenção são centrados nas dimensões da linguagem individualmente e nos processos psicolinguísticos envolvidos com estas dimensões. Os objetivos são selecionados e dirigidos pelo fonoaudiólogo, que elege o aspecto a ser trabalhado construindo, previamente, as estratégias a serem utilizadas para atingir o objetivo proposto, especificando de antemão a resposta que se quer obter da criança. Em contrapartida, os modelos de intervenção funcionais, com base numa perspectiva pragmática, têm como primeira meta fazer com que as crianças se comuniquem de forma eficaz, não importando os meios de comunicação utilizados ou quanto a desvios nas formas linguísticas expressadas. São os interesses da criança que direcionam os objetivos da sessão e, por meio deles, o fonoaudiólogo organiza as dimensões da linguagem, sendo estas focadas todas ao mesmo tempo8. Pereira A, Riesgo RS, Wagner MB. Autismo infantil: tradução e validação da Childhood Autism Rating Scale para uso no Brasil. J Pediatr. 2008;84(6):487-94..

Ressalta-se que crianças com TGD apresentam uma proficiente habilidade de regular o comportamento do outro para satisfazer uma necessidade ligada à regulação do ambiente; em contrapartida, existe uma deficiência na habilidade de atrair a atenção do adulto para si próprio ou para um objeto, tendo a interação como finalidade. O foco do direcionamento do aprimoramento da comunicação deve ser o desenvolvimento das habilidades funcionais de comunicação. Um trabalho voltado aos interesses da criança proporcionará aumento da frequência dos comportamentos comunicativos intencionais e as funções dos mesmos de maneira mais natural9. Lopes-Herrera AS, Hage SRV. Princípios da intervenção com base comportamental em crianças sem linguagem oral. In: Lamônica DAC. Estimulação da linguagem (aspectos teóricos e práticos). 1ed. São José dos Campos: Editora Pulso; 2008. P. 55-73..

No entanto, este trabalho anteriormente citado9. Lopes-Herrera AS, Hage SRV. Princípios da intervenção com base comportamental em crianças sem linguagem oral. In: Lamônica DAC. Estimulação da linguagem (aspectos teóricos e práticos). 1ed. São José dos Campos: Editora Pulso; 2008. P. 55-73., aliado a uma abordagem comportamental, com princípios da Análise Comportamental Aplicada, pode ser de grande valia para o sucesso terapêutico, no qual comportamentos indesejados tais como estereotipias e falta de atenção, podem ser eliminados ou diminuídos em frequência de manifestação e comportamentos desejáveis, como por exemplo, a intenção comunicativa, além de serem reforçados e modelados por meio de estratégias específicas7. Silva RA, Lopes-Herrera SA, De Vitto LPM. Distúrbio de linguagem como parte de um transtorno global do desenvolvimento: descrição de um processo terapêutico fonoaudiológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2007;12(4):322-8..

Levando em consideração os pontos levantados, este presente estudo de caso teve como objetivo descrever o processo de intervenção fonoaudiológica de uma criança com diagnóstico de autismo, sendo que tal intervenção foi realizada sob a perspectiva comportamental. Ressalta-se que, no início da intervenção, era adotado um enfoque comportamentalista de base mais tradicional; no entanto, ao longo do processo, o foco da abordagem passou a ser mais funcional, sendo este o foco do estudo de caso aqui apresentado.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da FOB/USP (Processo no. 187/2011). Os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consentindo, desta forma, com a realização e divulgação deste estudo de caso e seus resultados.O estudo foi feito por meio da análise dos dados presentes nos relatórios que se encontram no prontuário da referida criança.

Trata-se do caso de uma criança do sexo feminino, com 6 anos de idade na época desta descrição do caso, com diagnóstico fonoaudiológico de Distúrbio de Linguagem como parte de um Transtorno Global do Desenvolvimento.

A criança iniciou atendimento na Clínica de Fonoaudiologia da instituição de origem quando apresentava dois anos e sete meses de idade, sendo submetida à avaliação fonoaudiológica. Nesta ocasião foram realizadas anamnese e avaliação fonoaudiológica. Dados do histórico revelaram que, durante a gestação, a mãe fez uso de antidepressivo a partir do 4º mês de gestação, sendo este medicamento receitado pelo médico. O parto ocorreu sem intercorrências. Dados da primeira infância revelam que a mãe amamentou a criança por 40 dias e deixou de amamentá-la devido ao uso do antidepressivo. A criança apresentou episódios recorrentes de otite, sendo realizado tratamento medicamentoso, o qual a mãe não soube referir o nome da medicação utilizada. Não há relato de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.

Referente ao desenvolvimento da linguagem oral, a emissão das primeiras palavras ocorreu com um ano de idade e por volta de um ano e oito meses a criança começou a combinar duas palavras para formar pequenas frases. Aos dois anos de idade, a mãe refere que a filha passou a ficar desatenta, parecendo que não escutava e que não tinha atenção. Parou de falar, deixou de manifestar interesse por brinquedos, não acatava ordens. Passou a se comunicar por meio de gestos e a utilizar outras pessoas como instrumento para realizar as atividades que ela desejava. Não apresentava linguagem oral, somente balbucios que utilizava de forma aleatória. A mãe relata que a criança tinha dificuldade em perceber perigos reais e demonstrava muito nervosismo quando sua rotina era modificada, demonstrando dificuldade em se adaptar quando tais mudanças ocorriam.

A avaliação fonoaudiológica antes do início da intervenção constou basicamente da observação de aspectos do desenvolvimento. Este aspecto foi avaliado por meio da utilização da Escala ELM1010 . Coplan J. The early language Milestone Scale. Austin: Pro-Ed; 1993.,do Inventário Portage Operacionalizado1111 . Williams LCA, Aiello ALR. O Inventário Portage Operacionalizado: intervenção com famílias. 1st ed. São Paulo: Memnon/FAPESP; 2001. e da Escala de Desenvolvimento Comportamental de Gesell e Amatruda1212 . Gesell A. Gesell e Amatruda diagnóstico do desenvolvimento: avaliação e tratamento do desenvolvimento neuropsicológico do lactente e da criança pequena, o normal e o patológico. 3.Ed. São Paulo: Atheneu, 2000. Os achados evidenciaram atraso do desenvolvimento em todas as áreas observadas (linguagem, motor, cognição, autocuidados e socialização). Ressalta-se que, em muitos momentos durante a avaliação, a criança utilizou o avaliador ou a mãe como instrumento para realizar as atividades desejadas. A avaliação audiológica constatou audição dentro dos parâmetros de normalidade, tendo sido realizada a timpanometria e a audiometria comportamental, visto que a criança não permitia a colocação dos fones para realização da audiometria tonal liminar.

O diagnóstico fonoaudiológico foi o de distúrbio de linguagem indicando um transtorno global do desenvolvimento (TGD). Como conduta, após a avaliação fonoaudiológica, a criança foi encaminhada para terapia fonoaudiológica individual, duas vezes por semana, na própria clínica de Fonoaudiologia da instituição de origem e a um serviço de atendimento especializado na educação de crianças especiais, ao qual a família não quis procurar antes da definição do diagnóstico médico. Foi realizado o encaminhamento ao neurologista infantil para fechamento do diagnóstico, sendo que este confirmou o diagnóstico de TGD, solicitando acompanhamento do caso após início da intervenção, para definir melhor a categoria de TGD em que a criança se encaixaria, tendo por base o acompanhamento da evolução.

Basicamente, o objetivo geral do processo de intervenção fonoaudiológica, inicialmente, focou a adequação das habilidades linguísticas, sociais e cognitivas da criança. Os objetivos específicos trabalhados no primeiro ano da intervenção envolveram o trabalho para aumento do tempo de atenção, do contato ocular, da intenção comunicativa e estimulação da linguagem oral, sendo tais aspectos trabalhados por meio de atividades lúdicas. Neste momento, foi adotada uma perspectiva comportamental mais de base (Análise Comportamental Aplicada), com uso de princípios de condicionamento com uso de reforços positivos aos comportamentos-alvo estipulados pela terapeuta. Os comportamentos-alvo iniciais foram estabelecimento de contato ocular, permanência em sala de terapia, reconhecimento do outro e estabelecimento de atenção conjunta. Comportamentos considerados inadequados, como birras, uso do adulto como objetos ou estereotipias – quando apresentados – eram ignorados pela terapeuta e os pais eram orientados ao mesmo, para que tais comportamentos não fossem reforçados. No início do processo de intervenção, foi possível observar que a criança apresentava comportamentos repetitivos, brincando da mesma forma com o mesmo brinquedo por um tempo prolongado, mostrando-se resistente à troca de brinquedos ou de atividade pela fonoaudióloga. Na maior parte do tempo, durante as sessões, a criança fazia uso da função instrumental, solicitando objetos por meio de gestos, realizando pouco contato ocular. Produzia poucas vocalizações, sendo estas feitas de forma isolada e sem entonação. Quanto ao aspecto comportamental, não permanecia em sala de terapia sem a presença dos pais e quando não era compreendida ou era repreendida, devido ao seu comportamento inadequado, apresentava comportamentos de birra e gritos.

Foi necessária a realização de um trabalho de orientação constante com a família, visto que os pais eram bastante resistentes em realizar as solicitações da fonoaudióloga e se deixavam ser utilizados pela criança como instrumento para realização de ações desejadas pela mesma. Além disso, evidenciavam dificuldade em estabelecer para a criança uma rotina de atividades diárias, a qual também não era apresentada por toda família. Sendo assim, as orientações englobavam a importância da estimulação adequada da linguagem oral, do estabelecimento de uma rotina de atividades diárias e do controle de estímulos do ambiente. Ressalta-se que a criança tinha muita dificuldade em se adaptar ao ambiente escolar. Muitas vezes, os pais referiram que a criança demonstrava comportamentos agressivos, recusando-se a entrar na escola. Os professores relatavam aos pais que a criança ficava um tempo isolada dos colegas, mas, aos poucos, realizava algumas das atividades propostas (atividades lúdicas), entretanto, sem muita interação com as demais crianças. Diante deste comportamento, os pais mudaram a criança para outra escola, que possuía uma sala de estimulação para crianças com necessidades especiais.

Quanto à evolução no primeiro ano de intervenção fonoaudiológica, constatou-se melhora no que diz respeito ao aspecto comportamental, visto que a criança já entrava e permanecia em sala de terapia sozinha, não mais necessitando da presença dos pais. Além disso, os comportamentos de birra diante de uma situação indesejada diminuíram. Quanto às habilidades comunicativas, referente às habilidades dialógicas ou conversacionais, a criança passou a apresentar intenção comunicativa, buscando, em alguns momentos, interação com a fonoaudióloga. No entanto, as respostas vocais ou verbais ao interlocutor, bem como a participação ativa na atividade dialógica ainda eram ausentes. Relacionado às funções comunicativas, houve aumento da ocorrência da função instrumental, porém, sem melhora quanto à oralidade, sendo esta função realizada, ainda, por meio de gestos. As demais funções encontravam-se ausentes. Referente aos meios de comunicação, a criança utilizava vocalizações não-articuladas e articuladas com entonação da língua (jargão), gestos não-simbólicos, como pegar na mão e levar até o objeto, e, quanto aos meios verbais, era possível observar apenas algumas onomatopéias que referiam aos animais.

Durante a interação em terapia, observava-se aumento do contato ocular e maior interesse nas atividades propostas, apresentando melhora quanto à atenção. Referente à compreensão, raramente demonstrava compreender as solicitações da fonoaudióloga, seja por comandos verbais ou gestuais, apresentando respostas assistemáticas. Durante a manipulação dos objetos e brinquedos, a criança ainda apresentava comportamentos repetitivos, visto que brincava da mesma forma com o mesmo brinquedo por um tempo prolongado, evidenciando apenas uso convencional de alguns objetos. Manipulava os mesmos sem organização, desistindo da atividade em alguns momentos e, em muitos outros, utilizando a fonoaudióloga como meio para superar algum obstáculo ou dificuldade durante as atividades realizadas. Quanto à brincadeira simbólica, esta ainda se encontrava no estágio sensório-motor. Em terapia, a criança mostrava-se resistente à troca de brinquedos ou de atividade. Tal fato também ocorria na vida diária como relatado pelos pais. Devido à baixa resposta da criança em desenvolver uma comunicação funcional verbal e sendo esta a expectativa da família, foi indicado à mesma o trabalho com comunicação alternativa, ao qual a família recusou, mesmo sendo oferecido o apoio de uma instituição especializada na cidade que oferecia o serviço. Desta forma, foi dada continuidade à intervenção fonoaudiológica, mas com alguns redirecionamentos.

Portanto, no segundo ano de intervenção, foi feito um redirecionamento do caso, com uma proposta de intervenção ainda comportamental, mas com um caráter mais funcional – isto é – embora a intervenção passasse a ter um caráter funcional, ainda assim utilizava princípios comportamentais de base para o controle do comportamento e direcionamento de atenção da criança. Assim, o foco são comportamentos que tenham funcionalidade no contexto e ambiente da criança, sendo que a intervenção passa a ser mais planejada conforme os interesses da mesma. A intervenção, embora voltada aos interesses da criança, tinha como objetivo direto o aumento da frequência dos comportamentos comunicativos intencionais e das funções dos mesmos de maneira mais natural. O redirecionamento foi feito, portanto, considerando a perspectiva de valorizar os intercâmbios linguísticos e comunicativos e entende a linguagem como tendo, além da função simbólica, uma função social e de comunicação. Sendo assim, a principal meta terapêutica foi a de desenvolver a compreensão das situações de comunicação e a intencionalidade da mesma, por meio do uso de habilidades comunicativas não-verbais e verbais, visando à melhoria na inserção social, escolar e familiar da criança. Os objetivos específicos foram desenvolvimento da atenção conjunta, do contato ocular, da capacidade de imitação, da atividade simbólica, além do estabelecimento de turnos interacionais e atribuição de funcionalidade a objetos e situações comunicativas.

O desenvolvimento das estratégias terapêuticas considerou a utilização de inputs facilitadores para o desenvolvimento linguístico. A contingência de fala, que é a habilidade em responder ao comportamento da criança, seja ele na modalidade verbal ou não, dando continuidade ao tópico de interesse da criança, passou a ser utilizada em terapia, oferecendo maior participação da criança na atividade dialógica. Foram propostas atividades envolvendo atenção compartilhada, tendo por objetivo levar a criança a ter atenção à fala do outro e a atuar de forma compartilhada em contextos comunicativos.

Durante as atividades lúdicas, eram criadas situações que levassem a criança a prestar atenção às instruções verbais, para que ela parasse a manipulação dos objetos que persistia em explorar de forma não-funcional e direcionasse a atenção à fonoaudióloga e/ou à atividade proposta. Ressalta-se aqui a importância, considerada dentro da abordagem funcional, das relações da criança com os adultos para o desenvolvimento das habilidades linguísticas do infante, sendo que ambos contribuem com suas experiências e conhecimentos para a interação. Aliada a esta estratégia, foram ainda utilizadas estratégias da abordagem comportamental de base no reforçamento positivo e diferencial de estímulos, em que somente os comportamentos considerados adequados pela fonoaudióloga eram reforçados, como, por exemplo, direcionar atenção ao que era solicitado e realizar emissões verbais; os reforços eram dados por meio do oferecimento de um objeto de interesse da criança, frases e palavras motivadoras, sendo que os demais comportamentos, como, por exemplo, não direcionar a atenção ao outro, eram ignorados pela fonoaudióloga, que mais uma vez dava início à interação verbal planejada. Assim, por meio da utilização desta estratégia, os comportamentos desejados tiveram sua frequência aumentada em oposição aos comportamentos diferentes do desejado, ocorrendo diminuição na variabilidade na topografia (forma) da resposta (comportamento) reforçada9. Lopes-Herrera AS, Hage SRV. Princípios da intervenção com base comportamental em crianças sem linguagem oral. In: Lamônica DAC. Estimulação da linguagem (aspectos teóricos e práticos). 1ed. São José dos Campos: Editora Pulso; 2008. P. 55-73..

Para direcionamento da atenção e obtenção de comportamentos atencionais adequados, o ambiente terapêutico teve que ser rearranjado, excluindo-se os estímulos dispersivos e competitivos, sendo composto pela presença da criança, da fonoaudióloga e de apenas um objeto previamente escolhido para a interação. As atividades propostas buscavam despertar o interesse da criança, motivando-a a participar dos intercâmbios comunicativos.

A fonoaudióloga passou a observar e analisar os comportamentos apresentados pela criança, de forma a verificar quais atitudes eram facilitadoras para o desenvolvimento da capacidade comunicativa, propondo atividades lúdicas que criassem situações, as mais naturais possíveis, para realização das atividades dialógicas. A curiosidade da criança sempre era instigada em tudo que era novo. Um exemplo de atividade realizada era quando a fonoaudióloga oferecia à criança um pote fechado com tampa, dizendo-lhe que dentro deste pote havia um brinquedo, posteriormente entregava à criança para que ela tentasse abri-lo. Sendo assim, o objeto de desejo permanecia fora do alcance da criança. Durante essas atividades, a criança passou a direcionar mais sua atenção e começou a buscar a interação com a fonoaudióloga para que esta a ajudasse na tarefa que estava sendo realizada. Quando não conseguia realizar a tarefa proposta (abrir o pote para alcançar o objeto), a fonoaudióloga fornecia o modelo para a criança e esta observava atentamente, para reproduzir em seguida, utilizando uma estratégia denominada modelagem. A técnica de modelagem é um procedimento comportamental no qual se realizam aproximações sucessivas da resposta do indivíduo ao comportamento esperado, buscando, assim, a ampliação do repertório comportamental com aquisição de novas respostas9. Lopes-Herrera AS, Hage SRV. Princípios da intervenção com base comportamental em crianças sem linguagem oral. In: Lamônica DAC. Estimulação da linguagem (aspectos teóricos e práticos). 1ed. São José dos Campos: Editora Pulso; 2008. P. 55-73. .

A cada sessão, na medida em que a criança conseguia realizar as atividades propostas, aumentava-se o grau de complexidade das mesmas. Após conseguir alcançar o objeto de desejo (brinquedo escondido, por exemplo), era proposta uma nova interação entre a criança e a fonoaudióloga, de forma a atuar sob o mesmo brinquedo de forma interativa e mais diversificada, sendo trabalhada a atividade simbólica e a exploração funcional do objeto em questão de forma conjunta. Para que a criança não realizasse a atividade de forma isolada sem a participação da fonoaudióloga ou sem a utilização do objeto utilizado, o que não propiciaria interação e troca de experiências, era solicitada a atenção da criança de forma sistemática e dirigida. Utilizando os princípios da Análise Comportamental Aplicada, já citados anteriormente, a criança era recompensada, por meio de reforços positivos sociais (como sorrisos, palmas, palavras de incentivo com entonação variada), sempre que realizava as atividades propostas ou quando demonstrava comportamentos desejáveis, tornando a situação de interação agradável e gratificante.

RESULTADOS

A criança demonstrou evolução no que diz respeito ao aumento do foco de atenção, sendo que foi possível realizar as atividades propostas com mais de um objeto ou brinquedo em sala. Não foi mais necessário o rearranjo ambiental, ou seja, excluir da sala de terapia estímulos que, inicialmente, eram considerados competitivos, tais como outros brinquedos, móveis e objetos de decoração.

Após conseguir evolução no estabelecimento da atenção conjunta, foi possível inserir o procedimento do modelo dirigido à criança, também utilizado nas sessões terapêuticas. Tal procedimento utilizou a técnica comportamental da imitação, na qual a fonoaudióloga, de posse do objeto desejado, apresentava o modelo verbal referente ao mesmo, bem como realizava emissões que representassem as ações ou gestos comunicativos, para que a criança associasse as emissões orais/verbais com os objetos e ações que estas representavam. Buscava-se, assim, a estimulação da compreensão da linguagem oral e o desenvolvimento da capacidade de abstrair e simbolizar o código linguístico verbal, bem como a imitação das produções orais da fonoaudióloga. Inicialmente, a criança não apresentava resposta, ou seja, não imitava as produções verbais. Nessas ocasiões, o objeto em questão era fornecido à criança após a terceira tentativa sem resposta, de forma a propiciar a experenciação deste, sendo repetido, posteriormente, o nome do objeto em diversas situações.

A técnica de espera também foi utilizada, na qual eram realizadas pausas/silêncio em respeito à troca de turnos, estando esta associada a procedimentos comportamentais, durante as interações. Sendo assim, a fonoaudióloga sempre aguardava a resposta da criança para que as intenções comunicativas desta pudessem ter a oportunidade de aparecer com maior frequência9. Lopes-Herrera AS, Hage SRV. Princípios da intervenção com base comportamental em crianças sem linguagem oral. In: Lamônica DAC. Estimulação da linguagem (aspectos teóricos e práticos). 1ed. São José dos Campos: Editora Pulso; 2008. P. 55-73..

A criança começou a apresentar mais respostas verbais, visto que passou a imitar algumas onomatopéias e gestos comunicativos associados à emissão de jargão. Ao longo de toda interação, a fonoaudióloga solicitava uma resposta da criança, de forma a levar esta a desenvolver a habilidade de fornecer uma informação quando solicitada. Quando a criança não conseguia fornecer a informação, a fonoaudióloga oferecia o modelo adequado com objetivo de conseguir com que a criança passasse a seguir instruções e modelos e como forma de habilitá-la em seu processo de desenvolvimento da linguagem. A cada resposta da criança, a fonoaudióloga utilizava a técnica de modelagem, realizando aproximações sucessivas desta resposta ao comportamento terminal ou esperado, sendo este previamente estabelecido (por exemplo, o nome do objeto). A criança passou a produzir algumas sílabas isoladas, fazendo referência a alguns objetos, como, por exemplo, emitia a sílaba /bƆ/ se referindo à /bƆla/. Algumas produções verbais também estavam associadas às ações, tais como a emissão de /ʃa/ solicitando a /ʃave/, para que pudesse abrir o armário no qual estavam guardados os brinquedos, fazendo uso, portanto, da função instrumental por meio da utilização de uma emissão verbal, o que anteriormente não era observado. Também passou a identificar figuras de ação, representado-as por meio de gestos tais como lavar as mãos, tomar banho e comer, realizando emissões orais que as representassem, como o som /ʃ/ para lavar as mãos e tomar banho e “hmmm” para comer.

Pôde-se observar evolução quanto às funções comunicativas, cuja presença não era observada anteriormente, tais como função de protesto, estando esta associada a uma emissão verbal, em que a criança realizava gesto de “não” com a cabeça e emitia /nãna/ quando não queria realizar alguma atividade proposta; da função interativa por meio de gestos tais como gesto com a mão para “oi” e “tchau”; função de nomeação, nomeando alguns animais por meio de onomatopéias. Passou a fazer uso da função heurística, por meio de gestos, quando se questionava onde estava o brinquedo de interesse (gesto de “cadê” com as mãos). Além disso, a criança apresentou aumento da intenção comunicativa, começou a iniciar, com maior frequência, a interação e a apresentar respostas ao interlocutor, conseguindo aguardar seu turno de maneira adequada. O aumento da funcionalidade bem como da intenção comunicativa ocorreu em resposta ao redirecionamento para uma abordagem mais funcional. Esta observação foi feita no intuito de auxiliar fonoaudiólogos a realizarem adaptações às suas estratégias, mesmo quando utilizam recursos comportamentais, para que estas possam ser adaptadas para objetivos mais funcionais, sem a perda do foco característico da intervenção original.

Durante o processo de intervenção, pôde-se verificar melhora na linguagem receptiva, visto que a criança passou a apresentar nível de compreensão da linguagem oral não identificado anteriormente devido à ausência de respostas. A criança passou a compreender ordens situacionais com até três ações, não acompanhadas de gestos. Demonstrou compreender o que lhe era solicitado, fornecendo respostas por meio de gestos e algumas emissões orais.

Juntamente com a evolução das habilidades comunicativas, houve evolução das condutas simbólicas, apresentadas com maior frequência pela criança, que passou a utilizar esquemas simbólicos para solicitar ou obter algum objeto fora de seu alcance, emissões com significado e representação simbólica, como brincar de dar banho em uma boneca.

O trabalho de orientação aos pais também teve efeito positivo, visto que os mesmos passaram a realizar as atividades propostas em casa, conseguindo aproveitar, da melhor forma possível, os momentos de interação natural e espontânea para realizar a estimulação da linguagem. Passaram a demonstrar maior preocupação com relação à forma correta de estimular o desenvolvimento da linguagem, tornando-se participantes ativos na intervenção proposta. Os pais começaram a observar e interpretar e a responder às diferentes formas de comunicação fornecida pela criança, conseguindo compreender o que ela queria dizer, passando a respeitar os turnos comunicativos. Ao longo de todo processo de intervenção, a criança demonstrou boa capacidade de generalização perante as metas terapêuticas. As observações realizadas ao longo do processo terapêutico constataram evolução das respostas da criança frente à abordagem pragmática utilizada, evidenciada pelo aumento da funcionalidade e da intenção comunicativa, não observados anteriormente.

Os dados da reavaliação aqui apresentados são do início do terceiro ano de intervenção e esta constou, principalmente, da observação comportamental, utilizando o Protocolo de Observação Comportamental- PROC1313 . Zorzi JL, Hage SRV. PROC Protocolo de observação: avaliação de linguagem e aspectos cognitivos infantis. São José dos Campos: Pulso; 2004., avaliação do vocabulário receptivo por meio do Teste de Vocabulário por Imagens Peabody – TVIP1111 . Williams LCA, Aiello ALR. O Inventário Portage Operacionalizado: intervenção com famílias. 1st ed. São Paulo: Memnon/FAPESP; 2001., avaliação do desenvolvimento por meio da aplicação da Escala de Desenvolvimento Comportamental de Gesell e Amatruda1212 . Gesell A. Gesell e Amatruda diagnóstico do desenvolvimento: avaliação e tratamento do desenvolvimento neuropsicológico do lactente e da criança pequena, o normal e o patológico. 3.Ed. São Paulo: Atheneu, 2000 e do Inventário Portage Operacionalizado1111 . Williams LCA, Aiello ALR. O Inventário Portage Operacionalizado: intervenção com famílias. 1st ed. São Paulo: Memnon/FAPESP; 2001.. Este último revelou que, referente à socialização, a criança encontrava-se adequada ao que se espera para a faixa etária de 6 anos nas habilidades que não envolviam a linguagem oral, tais como manifestar seus sentimentos, brincar com quatro crianças ou mais em uma atividade de cooperação sem supervisão constante, imitar papeis de adulto, confortar colegas quando estes estão tristes, escolher seus próprios amigos, planejar e construir e dramatizar trechos de história (sendo está realizada por meio de gestos e vocalizações). As atividades envolvendo a utilização da linguagem oral estavam aquém do que se espera para sua faixa etária. No que diz respeito à cognição, apresentou desempenho compatível com a faixa etária de 2 a 3 anos, ressaltando que referente aos comportamentos que envolviam a linguagem oral a criança os realizava por meio de gestos associados a vocalizações.

A avaliação do vocabulário receptivo foi realizada por meio do Teste de Vocabulário por Imagens Peabody – TVIP1414 . Dunn LM, Dunn LM. Peabody Picture Vocabulary Test – Revised. Circle Pines, MN: American Guidance Service;1981., no qual a criança obteve pontuação classificada como baixa inferior. O desempenho da criança no PROC1313 . Zorzi JL, Hage SRV. PROC Protocolo de observação: avaliação de linguagem e aspectos cognitivos infantis. São José dos Campos: Pulso; 2004. confirmou a evolução observada nas habilidades dialógicas, em que foi possível observar a presença de intenção comunicativa, de início da interação com participação na atividade dialógica. Foi observado que tais comportamentos estavam presentes em menor frequência quando comparados às respostas dadas ao interlocutor e ao aguardo de sua participação no turno comunicativo. Referente às funções comunicativas, constatou-se que as funções instrumental, interativa e de nomeação estavam presentes raramente, enquanto que a função informativa estava ausente. A função de protesto foi a que estava presente com maior frequência. A criança utilizava, no momento da reavaliação, como meios de comunicação, vocalizações articuladas e não-articuladas com a entonação da língua (jargão), com a presença de gestos não-simbólicos elementares com a produção de algumas palavras isoladas. A linguagem referia-se somente à situação imediata e concreta. Demonstrava compreensão de ordens com 3 ou mais ações, solicitações ou comentários. Referente ao desenvolvimento cognitivo, quanto à manipulação dos objetos, apresentou exploração rápida e superficial, persistindo na atividade quando surgia algum obstáculo, tentando superá-lo. Fez uso convencional dos objetos apresentando início da brincadeira simbólica encontrando-se no início do período representativo.

DISCUSSÃO

As manifestações clínicas nos casos de Transtorno Global do Desenvolvimento começam a ser observadas antes do terceiro ano de vida, ressaltando a importância do diagnóstico e do processo de intervenção precoces, o que certamente contribui para a evolução da criança na busca do desenvolvimento de uma comunicação funcional. No presente caso, as manifestações clínicas, tais como perda de interesse por brinquedos e utilização do outro como instrumento para realização das atividades desejadas, começaram a ser observadas pela mãe a partir dos 2 anos de idade, momento em que a família procurou o atendimento fonoaudiológico. Os achados da avaliação pré-intervenção evidenciaram atraso do desenvolvimento em todas as áreas observadas (linguagem, motor, cognição, autocuidados e socialização), chegando à conclusão da presença de Distúrbio de Linguagem como parte de um Transtorno Global do Desenvolvimento, que posteriormente foi confirmado por diagnóstico neurológico, visto que o diagnóstico de TGD é eminentemente médico7. Silva RA, Lopes-Herrera SA, De Vitto LPM. Distúrbio de linguagem como parte de um transtorno global do desenvolvimento: descrição de um processo terapêutico fonoaudiológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2007;12(4):322-8..

De posse dos achados da anamnese e da avaliação fonoaudiológica, o objetivo geral do processo de intervenção fonoaudiológica, neste estudo, focou, inicialmente, a adequação das habilidades linguísticas, sociais e cognitivas da criança. A questão envolvendo a possibilidade de identificação da melhor abordagem terapêutica para essas crianças tem sido discutida na literatura, reiterando a importância da determinação do perfil individual de habilidades e inabilidades de cada sujeito como fundamentação para definições do modelo de intervenção a ser adotado e a participação da família na escolha da abordagem a ser adotada1515 . Fernandes FD, Cardoso C, Sassi FC, Amato CH, Sousa-Morato PF. Fonoaudiologia e autismo: resultado de três diferentes modelos de terapia de linguagem. Pró-fono R. Atual. Cient. 2008;20(4):267-72.; no entanto, em casos de TGD, não há como serem ignoradas questões comportamentais que permeiam todo o desenvolvimento e interferem na aquisição das habilidades linguísticas.

No processo de intervenção descrito, os objetivos específicos iniciais envolveram o trabalho para aumento do tempo de atenção, do contato ocular, da permanência em sala, estabelecimento de atenção conjunta e diminuição de comportamentos de birra, de uso do adulto como objeto e estereotipias não-funcionais; neste momento inicial, optou-se por uma abordagem comportamentalista de base (análise comportamental aplicada). Como resultados, a criança apresentou melhora no estabelecimento de contato ocular, começou a permanecer mais tempo em sala de terapia e a estabelecer um maior tempo de atenção sobre objetos, além de diminuir seus comportamentos de birra e estereotipias. Em questões de intenção comunicativa, passou a apresentar maior intenção comunicativa, buscando, em alguns momentos, a interação e havendo o aumento da ocorrência da função instrumental realizada por meio de gestos. Entretanto, muitas das habilidades comunicativas ainda se encontravam ausentes ou defasadas, sendo proposto, portanto, um redirecionamento do caso, com uma proposta de intervenção ainda de base comportamental, mas se adotando princípios de caráter mais funcional. Este redirecionamento foi realizado após a família ter se recusado a procurar os serviços de comunicação alternativa indicados pela fonoaudióloga no momento e ter sido orientada quanto à melhor adequação desta ao estabelecimento de uma comunicação eficaz para a criança. Ressalta-se que neste estudo utilizou-se prioritariamente a abordagem comportamental de base, entretanto, a evolução apresentada pela criança dentro do processo terapêutico evidenciou a necessidade de se redirecionar a intervenção para uma abordagem funcional. Dentro da perspectiva comportamental, a abordagem funcional é aquela na qual todo comportamento trabalhado deve ter por base a função deste no contexto e ambiente da criança e sua família.

Considerando que o processo de comunicação envolve a interação entre, no mínimo, dois indivíduos, no qual há transferência de informação, seja por meio verbal ou não-verbal, ressalta-se a importância do desenvolvimento da atenção compartilhada, que envolve direcionar e manter a atenção visual para o parceiro comunicativo, sendo imprescindível para a criança se engajar socialmente e desenvolver funções cognitivas. Esta habilidade é, portanto, considerada precursora para o desenvolvimento da linguagem. Estudos apontam déficits importantes nesta habilidade em crianças com TGD, os quais parecem estar também relacionados à severidade dos sintomas sociais apresentados por estas crianças1616 . Misquiatti ARN, Brito AC Terapia de linguagem de irmãos com transtornos invasivos do desenvolvimento: estudo longitudinal.Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(1):134-9.,1717 . Mundy P, Newell L. Attention, joint attention, and social cognition. Curr Dir Psychol Sci. 2007;16(5):269-74.. Outros trabalhos apontam que, apesar de a atenção compartilhada estar severamente comprometida e servir como um marcador precoce desses quadros, ela não está totalmente ausente1818 . Menezes CGL, Perissinoto Jacy. Habilidade de atenção compartilhada em sujeitos com transtornos do espectro autístico. Pró-fono R. Atual. Cient. 2008;20(4):273-8.. Fica evidente, no caso aqui apresentado que, a partir do momento que se conseguiu desenvolver a atenção compartilhada, entre a criança e a fonoaudióloga, maiores ganhos foram obtidos no processo de intervenção, principalmente no procedimento do modelo dirigido à criança, possibilitando a utilização dos princípios da análise comportamental aplicada, com objetivo de desenvolver repertórios de habilidades sociais relevantes e reduzir repertórios inadequados, por meio de métodos baseados em princípios comportamentais.

A utilização de técnicas comportamentais tais como imitação, espera e mando-modelo se deu por serem estas estratégias facilitadoras no direcionamento do processo terapêutico, comumente utilizadas nestes casos e proporcionou, para a criança do presente estudo, aumento da ocorrência de comportamentos considerados adequados e desejáveis, tais como contato ocular, atenção direcionada, com melhora também das condutas simbólicas e da intenção comunicativa com aumento das produções verbais e maior adequação da interação social.

Outro ponto considerado fundamental para a evolução obtida na intervenção fonoaudiológica aqui relatada foi à orientação e maior participação dos pais na intervenção proposta, mesmo que por vezes, estes tenham se recusado a seguir as orientações quanto a melhor abordagem educacional a ser adotada pelo ponto de vista do desenvolvimento de uma comunicação eficaz. Assim, os resultados alcançados na intervenção puderam também ser utilizados e observados no ambiente natural da criança, mesmo que com limitações. O efeito positivo das orientações a pais voltadas às questões de comunicação e linguagem, realizadas juntamente com o processo terapêuticoé evidente.

CONCLUSÃO

A identificação da melhor abordagem terapêutica para crianças com distúrbio de linguagem como parte de uma TGD deve ser realizada logo no início do processo, sendo que as decisões acerca da abordagem adequada devem ser repensadas constantemente não somente em decorrência do diagnóstico em si, mas também das manifestações da sintomatologia geral e específica – que variam conforme o desenvolvimento da criança e a evolução do processo de intervenção. Essas decisões devem ser pautadas na experiência do profissional, mas também na expectativa e no limite de cada família.

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  • Este trabalho foi realizado na Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo.
  • ERRATA:

    Neste artigo, publicado no periódico Revista Cefac, volume 16(4):1351-1360, página 1351,
    onde se lê:
    Autora: Bianca Lopes Rodrigues Gonçalves
    leia-se:
    Autora: Bianca Rodrigues Lopes Gonçalves

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2012
  • Aceito
    02 Jul 2013
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